Resumo: Este artigo parte da noção de serviço público para discutir em que medida a organização burocrática do Estado brasileiro se modificou para coadunar-se com um modelo de ação estatal contemporâneo para a consecução desses mesmos serviços.
Palavras-chave: serviços públicos; administração pública; direito administrativo.
Sumário: Introdução; 1. Nova repartição das esferas de ação entre Estado, mercado e sociedade; 2. A evolução para o Estado Regulador e o aparato burocrático no Brasil; 3. O Estado Regulador brasileiro: serviços públicos e agências reguladoras.
Introdução
A noção de serviço público aparece no Direito Administrativo sem que preexista uma delimitação legal que tipifique seus caracteres de maneira precisa. Ela é, em verdade, reflexo da evolução da sociedade e do Estado, afetada por fatores econômicos, sociais e tecnológicos. De fundamental importância para a construção do próprio Direito Administrativo, ela está, portanto, intimamente ligada à razão de ser do Estado. (MEDAUAR, 2003, p. 527)
Dessa afirmação advém o objetivo do presente trabalho, qual seja analisar em que medida a organização burocrática do Estado se modificou para coadunar-se com um modelo de ação estatal contemporâneo para a consecução dos serviços públicos.
Dito de outra forma, assume-se a tese de Giandomenico Majone (1999), a partir da leitura do italiano Alfred Chandler, de que a “estrutura acompanha a estratégia, e de que o tipo mais complexo de estrutura é o resultado da concentração de várias estratégias básicas”.
Se, de fato, a estrutura acompanha a estratégia, propõe-se verificar a estrutura burocrática do Estado brasileiro, em especial no que concerne à consecução dos serviços públicos, frente às diversas estratégias de ação desse mesmo ente, a partir do século XX, no que se refere ao domínio econômico. Esse recorte é necessário posto que seria impossível discorrer, neste trabalho, sobre a completude histórica da intervenção estatal e todas as suas nuances.
A empreitada ganha relevância à medida que as transformações pelas quais passou a Administração Pública nos últimos anos demandaram e demandam alterações no ordenamento jurídico-institucional, desafiando a capacidade explicativa do Direito Administrativo.
De antemão, embora não pertença ao escopo deste trabalho aprofundar a discussão doutrinária que envolve a noção de serviço público, será preciso, ao menos, nivelar um entendimento sobre ela, para que seja possível, ao final, perceber em que medida ela afeta os contornos da organização burocrática do Estado.
Recorramos, inicialmente, à escola francesa. Léon Duguit apresenta uma visão clássica da noção, definida como “toda atividade cujo cumprimento deve ser regulado, assegurado e controlado pelos governantes, porque (…) é indispensável para a realização e desenvolvimento da interdependência social (…) e não pode ser assegurada senão mediante à intervenção da força governante”. (2005, p. 65). Por sua vez, para Gaston Jéze, o “serviço público é um procedimento técnico com o qual se satisfazem as necessidades de interesse geral”, subordinado a regime jurídico especial, caracterizado pela subrodinação do interesse privado ao interesse geral. De outra forma, Maurice Hauriau destaca tratar-se de “uma organização criada por uma pessoa administrativa tendo em vista a satisfação de uma necessidade coletiva”. (HAURIOU apud JUSTEN, 2003, p. 40)
Cretella Júnior, em seu Tratado de Direito Administrativo, dedicou capítulo à busca por um conceito de serviço público na doutrina brasileira e, como resultado de suas observações, conclui, com Brandão Cavalcanti, que: a noção de serviço público varia no tempo, de acordo com a necessidade da maior ou menor amplitude da intervenção do Estado, com o regime político e as tendências na ordem social e econômica; o serviço, para ser considerado público, precisa obedecer a um regime jurídico peculiar, fixado pelo Estado, e deve atender e destinar-se ao público; a intervenção do Estado, por meio de seus órgãos, constitui um dos elementos necessários à classificação dos serviços públicos; e, não se deve confundir serviço público com os serviços puramente administrativos que se compreendem numa esfera mais restrita. (CRETELLA JUNIOR, 1967. p. 38.)
Também merecem destaque, a título de construção de um patamar mínimo de compreensão da noção de serviço público, três elementos a ela subjacentes, pontuados por Dinorá Grotti: um subjetivo, que considera a pessoa jurídica prestadora da atividade, sendo serviço público aquele prestado pelo Estado; um material, que considera a atividade exercida e, por isso, o serviço público seria a atividade que tem por objeto a satisfação de necessidades coletivas; e, outro formal, que considera o regime jurídico, sendo serviço público a atividade exercida sob regime de Direito Público derrogatório e exorbitante do Direito Comum. (GROTTI, 2002. p. 42)
Estabelecidas algumas vertentes que envolvem a noção de serviço público, destaca-se que esta se encontra dentro das funções administrativas, como um fim ou meio para fim imediato, que se traduz em atividades públicas, funções ou prestações de interesse público e com um regime jurídico de direito administrativo. (DROMI, 1996. p. 531)
Antecipe-se, a títutlo de conclusão, que “objetivos que o Estado se propõe perseguir condicionam as atribuições da Administração Pública e estas, por sua vez, determinam os modos de atuação e de organização por ela adotados”. (GROTTI, 2002, p. 62)
Feita essa digressão, estão construídos os pilares que permitirão seguir a análise proposta. De primeiro, visitar-se-á, brevemente, a evolução da repartição das esferas de ação entre Estado, mercado e sociedade, partindo-se da visão liberal clássica até chegar às tendências contemporâneas e suas implicações para o papel do Estado e a sua estrutura burocrática, ocasião em que será possível delimitar as bases do denominado Estado Regulador. Posteriormente, também de maneira sucinta, se apontarão alguns dos marcos relativos à evolução do Estado e o seu aparto burocrático no Brasil, chegando-se à década de 80 e os novos requerimentos do perfil do Estado e sua relação com os servidos públicos.
1. Nova repartição das esferas de ação entre Estado, mercado e sociedade
Por ora, uma nova idéia de participação política não mais permite explicar, à luz de conceitos formados na separação clássica entre esfera pública e privada, os desafios práticos que chegam à Administração moderna. (MORÓN, 1980. p. 18; MODESTO, 2005) Da mesma forma, o Direito Administrativo contemporâneo tende ao abandono da vertente autoritária para valorizar a participação de seus destinatários finais, mediante a perspectiva de iniciativa popular ou de cooperação privada no desempenho das prestações administrativas". (TÁCITO, 1997, p. 02) O relato a seguir nos auxiliará na compreensão dessa realidade.
Na primeira metade do século XIX, a burguesia liberal atuou na espreita de um modelo alternativo de sociedade, antiestatista e antiburocrática, que buscava reduzir a intervenção estatal em favor da liberdade de mercado. O Estado era, assim, alijado das atividades de cunho econômico, restringindo-se à garantia da propriedade privada e da autonomia e liberdades individuais. (MORÓN, 1980, p. 24)
Aragão esclarece que o modelo liberal de pensar do Estado assentava-se em três pilares: no poder político sob a incumbência do Parlamento, composto por representantes eleitos pela burguesia ou por quem possuísse determinada renda; nos Poderes Executivo e Judiciário, autorizados a praticar atos que decorressem imediatamente dos atos aprovados pelo Poder Legislativo; e, no respeito aos direitos e garantias individuais constitucionalmente assegurados, direitos estes apenas de liberdade frente ao Poder Público. O mercado seria benéfico para o conjunto da sociedade se agisse livremente, não devendo, por essa razão, ser funcionalizado por qualquer finalidade coletiva. (ARAGÃO, 2002. p. 47-48)
Vital Moreira (MOREIRA, 1997. p. 24) explicita as funções da Administração Pública nesse contexto: “o Estado detinha o monopólio do público e a administração pública era a administração do Estado. Estabelecer a fronteira entre o Estado e a sociedade era o mesmo que estabelecer a divisória entre a administração pública e os particulares. (…) Os particulares eram administrados, não podiam ser administração nem compartilhar dela. A relação entre esferas do Estado e da sociedade, do público e do privado, da Administração e dos particulares era claramente representada mediante uma metáfora espacial, representando duas áreas separadas por uma fronteira (nítida)”.
Não obstante, a luta da burguesia contra a ampliação das tarefas do Estado e pelo seu controle passa a sofrer progressiva mudança de direção à medida que entram na cena política as classes subordinadas, em especial o proletariado. Morón (MORÓN, 1980, p. 25) define o fenômeno como a “transição do Estado monoclasse para o Estado pluriclasse” . Também se pode falar em passagem para o Estado Democrático de Direito, ou mesmo ascensão do Estado Social ou de Bem-Estar, cujo tempo áureo se observa, já no século XX, com o fim da Segunda Guerra Mundial, ocasião em que a economia aquecida, alavancou trinta anos de crescimento ininterrupto, época do “consenso social-democrático”, tempo em que se adotara a política econômica e social de Keynes.
Sem adentramos nas especificidades das denominações, o que se supõe é a ampliação do campo de intervenção do Estado, resultando em aumento progressivo de funções públicas e, com isso, da própria Administração Pública, permeável, agora, a conteúdos sócio-econômicos que alteram o seu entendimento: de garantia dos limites do Poder e do respeito à liberdade individual, transforma-se num programa normativo de realizações. (MORÓN, 1980, p. 254-26)
Caio Tácito situa e resume a mudança em tela no seguinte excerto:
“Cuida-se não mais de amparar apenas o indivíduo, na garantia de sua clássica liberdade, ou ao cidadão, no acesso aos direitos políticos, mas de colocar sob o palio da lei e ao alcance de instrumentos processuais específicos, o consumidor, o usuário ou diretamente a comunidade agredida sem condições adequadas de fruição de bens e serviços. (…) A transição para o Estado (…) é um desafio para os fundamentos do Direito Administrativo, como forma de relacionamento entre a Administração Pública e os administrados.” (TÁCITO, 1997, p. 02)
Em definitivo, não importa que exista ou não a intervenção estatal, mas a configuração e a finalidade das atividades administrativas. (MORÓN, 1980, p. 38) Floresce a colaboração individual ou coletiva no processo administrativo, aproximando a Administração dos cidadãos, rompendo-se, com isso, a idéia de Administração contraposta à sociedade; de interesse público oposto a interesse privado.[1]
Até meados da década de 80, os Estados intervieram fortemente na economia por várias razões, dentre elas para: prestar de serviços públicos; criar de infra-estruturas de grande porte não lucrativas ou de lucratividade deferida; evitar a monopolização dos mercados; e, fomentar regiões menos favorecidas; entre outras.
Os críticos desse modelo, no entanto, já advertiam que tal política acabaria levando a resultados inversos aos pretendidos, com custos insuportáveis pelo Estado, inflação e desemprego. De fato, a partir da década de 80, verificou-se não existir capacidade econômica suficiente para manter os investimentos econômicos, sociais e de infraestrutura. Por conseguinte, entram em cena as receitas neoliberais e a transição para um Estado Regulador.
Marçal Justen Filho assinala que o Estado Regulador estende ao setor dos serviços públicos as concepções desenvolvidas na atividade econômica privada. Por este modelo, somente incumbe ao Estado desempenhar atividades diretas nos setores em que a atuação da iniciativa privada coloca em risco valores coletivos ou se mostra insuficiente para propiciar sua plena realização. Nesse ínterim, o autor assinala quatro características desse modelo de Estado, a saber: a transferência para a iniciativa privada de atividades desenvolvidas pelo Estado, desde que dotadas de forte cunho de racionalidade econômica, com a liberalização de atividades até então monopolizadas pelo Estado, para propiciar a disputa pelos particulares em regime de mercado; inversão da relevância do instrumento interventivo, como o Estado presente no domínio econômico, mas não mais exercendo diretamente as atividades; a atuação regulatória do Estado destinada a propiciar a realização de certos valores de natureza política ou social e não só a correção de falhas de mercado. “Isso se torna especialmente evidente quando o mecanismo de mercado passa a disciplinar a prestação de serviços públicos”; e, por último, na institucionalização de mecanismos dinâmicos de disciplina permanente das atividades reguladas.( JUSTEN FILHO, 2005. p. 450-451)[2]
Para melhor situar e resumir os desafios a que está submetido o Estado e seu aparato burocrático é interessante retomar, na íntegra, excerto de Paulo Modesto (MODESTO, 2005, p. 30):
“No plano científico ou acadêmico, amplia-se a percepção da necessidade de romper definitivamente com a concepção autoritária e tradicional do direito administrativo brasileiro, relacionada a uma concepção ainda liberal do Estado consubstanciada não obsessiva centralidade da noção de administração agressiva, mediante a qual a administração é vista em relação ao cidadão fundamentalmente através de decisões unilaterais, impositivas, individualizadas, auto-executórias e desfavoráveis. Se essa noção de administração já não deveria ser dominante ou exclusiva no Estado Social, com o desenvolvimento da Administração prestadora de serviços, que colocou em evidência a figura dos atos administrativos favoráveis, reclamados pelo particular, destituídos das notas de autor-executoriedade, o desconforto atualmente é ainda maior. A Administração é cada vez mais dependente da atuação do particular, sendo carente não apenas de recursos privados, mas de informação e colaboração. (…) O aparato público diminui, de um modo tendencialmente geral, mas são ampliadas as suas responsabilidades, dilatando-se a interferência do Estado tanto na regulação de mercados quanto no plano do fomento a atividades de interesse social. (…) Neste contexto, crescem de importância o processo administrativo, as técnicas de audiência e consulta públicas, de controle das informações privilegiadas e do manejo de recursos públicos, de cooperação intergovernamental e integração internacional entre administrações públicas, bem formas variadas de fomento e arbitragem de interesses que dificilmente podem ser reduzidas às formas tradicionais de atuação do Estado.”
A alteração nos contornos da atuação estatal pode, também, ser analisada à luz da abordagem da Administração Pública e seus enfoques Patrimonial, Burocrático e Gerencial – aqui apontadas de forma muito breve.
A primeira caracteriza-se pela incapacidade ou a relutância do príncipe em distinguir entre o patrimônio público e seus bens privados, sendo o aparelho do Estado extensão do poder do soberano.
Por sua vez, a Administração Burocrática urge na segunda metade do século XIX, sob os auspícios do Estado liberal, visando combater a corrupção e o nepotismo patrimonialista. A autoridade não mais tem origem no soberano, mas nas estruturas formalmente definidas.[3] As dificuldades deste modelo em responder às demandas sociais, a baixa eficiência de suas estruturas, aliadas à captura do Estado por interesses privados e ao processo de globalização e de transformações tecnológicas, desencadearam a chamada crise do Estado, num cenário que impulsionou o surgimento de um novo modelo de Administração Pública.
A Administração Gerencial emerge, na segunda metade do século XX, preocupada com os resultados e não com os procedimentos; com a eficiência e a criatividade. Na década de 80, o modelo gerencial sugeriu três providências básicas, tidas como premissas para a reforma do Aparelho do Estado: corte de gastos, aumento da eficiência e atuação flexível do aparato burocrático. Vale dizer que o Gerencialismo está apoiado também em pressupostos da Administração Burocrática que lhe antecedeu, mas flexibilizando alguns de seus princípios fundamentais. No plano da estrutura organizacional, a descentralização e a redução dos níveis hierárquicos tornam-se essenciais, de modo a tornar a Administração permeável à maior participação dos agentes privados e/ou das organizações da sociedade civil. (BRESSER PEREIRA, 2006. p. 14-18.)
Em resumo, retome-se Floriano Marques Neto (MARQUES NETO, 2005, p. 4-5): “(…) enquanto na perspectiva do Estado liberal incumbe ao poder público assegurar as regras do jogo para livre afirmação das relações de mercado e no Estado social inverte-se este papel, passando a atividade estatal a prover necessidades coletivas, ao Estado contemporâneo são requisitadas funções de equalizador, mediador e árbitro das relações econômicas e sociais. Mais que um mero garantidor de pré condições normativas e menos que um produtor de utilidades públicas, o Estado hodierno assume um papel de ‘mediador ativo’ de interesses. (…) Já do ângulo organizacional, aparece a necessidade de novos órgãos e instrumentos de ação estatal. Afinal, para desempenhar este novo perfil de ação regulatória se fazem necessários instrumentos aptos a conferir ao regulador independência, autonomia, especialidade e capacidade técnica.”
Isto posto, a evolução supra delineia o que ocorrera no ocidente a partir do final do século XIX e compõe o plano de fundo para que se evidencie o caso brasileiro.
2. A evolução para o Estado Regulador e o aparato burocrático no Brasil
Caio Tácito(TÁCITO, 1997, p. 721) revela que o Brasil se aproxima dos parâmetros comparativos do que ocorreu plano internacional. Almiro do Couto e Silva (COUTO E SILVA, 2009) acrescenta que, no século XX, o Estado brasileiro, nas suas relações com a economia, acompanhou o modelo dos países capitalistas da Europa continental, embora quase sempre com algum atraso.
A seguir, serão pontuados alguns dos reflexos dessa evolução para a organização burocrática do Estado no Brasil.
Caio Tácito (1997) ilustra a intervenção do Estado brasileiro na economia como um movimento pendular – ora o Estado aproximando-se do interesse privado, ora afastando-se deste. Apenas para ilustrar essa figura, retomemos alguns momentos de nossa história recente.
Nas duas primeiras décadas do século XX, o pequeno tamanho do Estado brasileiro correspondia à sua dimuta intervenção no campo econômico, limitada, quase sempre, ao plano normativo, num período em que graçava o instituto jurídico da concessão de serviços públicos. (COUTO E SILVA, 2009, p. 7)
Nos anos 20, tem início processo de descentralização do Estado, com a criação de autarquias, movimento que ganhara notável incremento com Vargas, responsável por intensificar a presença do Estado no campo econômico. (COUTO E SILVA, op. cit., p. 7)
Após a Segunda Guerra, a descentralização do Estado passa a realizar-se predominantemente no sentido da “fuga para o Direito Privado”. As atividades comerciais e industriais que o Estado exerce, quase sempre na prestação de serviços públicos que têm essa natureza, ao invés de serem atribuídos a autarquias, eram realizadas por pessoas jurídicas de direito privado, sociedades de economia mista e empresas públicas, integradas à Administração Pública Indireta. (COUTO E SILVA, 2009, p. 7)
Contudo, já com os militares no poder, para a realização das grandes obras de infraestrutura necessárias ao desenvolvimento e à modernização do país, ampliou-se consideravelmente a órbita de atuação do Estado na economia, tanto pela criação em grande número de entidades de sua administração indireta, destinadas a desempenhar o papel de agentes económicos, quanto pela edição de regras jurídicas disciplinadoras da atividade econômica. Paralelamente a essa tendência, as empresas devedoras de instituições públicas[4], quando impossibilitadas de pagarem os débitos contraídos, passavam, a tê-las como sócias e, não poucas vezes, como sócias detentoras do controle acionário. (COUTO E SILVA, 2009, p. 8)
Marques Neto destaca que no modelo prevalecente até o final da década de 80 firmara-se na idéia de que a melhor maneira de regular determinado serviço público era reservar a sua exploração pelo Estado. A curva ascendente da expansão da ação direta do Estado na atividade econômica e social alcança seu ápice no início da década de 80.
A tendência de retomada da abertura econômica, a par do crescimento na demanda de serviços essenciais, conduzem a uma política de retração da atividade pública empresarial, com busca de maior produtividade em áreas acessíveis à economia privada.
Neste diapasão, repetem-se, no país, experiências internacionais, em especial a norte-americana, dirigidas por três vetores – desestatização, privatização e desregulamentação.
O primeiro passo de inversão da tendência expansionista da Administração Pública brasileira se manifesta, em julho de 1979, com a edição do Decreto nº 83.740, que aprovou o Programa Nacional de Desburocratização (PND), restringindo a criação de novas entidades paraestatais e estabelecendo as primeiras diretrizes para a transferência de empresas públicas para o setor privado, visando dinamizar e simplificar a Administração Pública federal.
Contudo, é a partir da década de 90 que a tendência se consagra. Com a chegada de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República, as premissas constantes do PND foram consolidadas na forma do Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), de novembro de 1995, que visava incorporar à Administração Pública um novo modelo de gestão, em substituição ao modelo burocrático. Pela citada Reforma, o poder público deveria concentrar-se não na produção direta de bens ou prestação direta de serviços, mas na criação de marcos regulatórios onde se daria a atuação dos agentes privados, com destaque para o combate à estagnação econômica e à crise fiscal. [5]
É justamente aí que emerge, entre nós, o Estado Regulador com vistas a incorporar uma organização burocrática gerencial, com novos contornos para forma de organizar a prestação dos serviços públicos. Vale, desde já, assinalar, retomando Caio Tácito (TÁCITO, 1997, p. 729), que o “pêndulo que favorecia o domínio público sobre a economia em áreas qualificadas, reverte em benefício da exploração privada de atividades produtivas, ainda que sob a vigilância do poder de polícia administrativa”.
Afinal, o que isso significa para a organização burocrática do Estado e a prestação dos serviços públicos?
Giandomenico Majone (GIANDOMENICO MAJONE, 1999, p. 12; 19) oferece-nos uma resposta à questão, ao descrever a face interna do Estado Regulador: “(…) a descentralização e a regionalização administrativas; a divisão de entidades antigamente monolíticas em unidades com uma única finalidade e com orçamentos próprios; a delegação de responsabilidade pela prestação de serviços a organizações privadas, lucrativas ou sem fins lucrativos, e a entidades não ministeriais que operam fora do quadro normal do Poder Executivo; licitações e outros arranjos contratuais, ou quase-contratuais, competitivos, através dos quais os poderes para elaborar orçamentos e tomar decisões são delegados a compradores que, em nome de seu grupo de clientes, compram serviços dos prestadores que oferecem o melhor custo-benefício. (…) Entre as conseqüências estruturais mais óbvias da mudança para um modo regulador de governança, figura uma nova classe de agências especializadas e de comissões que operam autonomamente em relação ao governo central. (…) Daí, um serviço público (leia-se Adm. Pública) unificado, grandes empresas estatais e burocracias do bem-estar social expandidas serem instituições características do Estado Positivo (liberal). As demandas administrativas do exercício da regulação, todavia são bastante diferentes (…) melhor atendidas por organizações flexíveis e altamente especializadas que gozem de autonomia considerável no processo de tomada de decisões: as agências reguladoras independentes.”
Vale inferir que, acompanhando a evolução do modelo de Estado, os serviços públicos assumiram características próprias ao longo do tempo. Dinorá Grotti (GROTTI, 2002, p. 70-71), a partir de Benoit Jeanneau, aponta três etapas sucessivas de serviços públicos: a) a primeira, intitulada “o fundo realengo”, enfeixa um número de serviços públicos limitado, cujo objeto “corresponde às grandes funções que incumbem naturalmente ao Estado em toda sociedade organizada”, compreendendo: a defesa nacional, a diplomacia, a olícia e a justiça, mas, também, a construção e manutenção das estradas, os correios; b) a segunda fase, no último terço do século XIX, corresponde aos serviços de utilidade coletiva, resultante da conjugação dos progressos técnicos e da concentração urbana, que transformam profundamente os modos de vida e as relações sociais – transportes, água, gás, eletricidade, ensino, assistência etc; e, c) a terceira etapa, que alargou o campo de ação e diversificou os métodos de prestação, reúne os serviços de intervenção econômica e social, sendo dois os aspectos que levaram à mudança: a necessidade de o Estado intervir na atividade econômica geral; e a irrupção de novas necessidades sociais, surgindo, especialmente em matéria sócio-educativa e cultural, uma multiplicidade de serviços públicos de forma associativa.
3. O Estado Regulador brasileiro: serviços públicos e agências reguladoras
Como assevera Vital Moreira (MOREIRA, 1997, p. 44), “a privatização e a liberalização dos setores econômicos reservados os Estado foram em muitos casos acompanhadas de uma forte regulação pública das correspondentes atividades. O fenômeno é observável sobretudo no caso de setores de prestação de serviços públicos, mas não só”.
Luis Roberto Barroso (2006, p. 66) adverte que, em que pese a evolução da regulação estatal rumo aos contornos de um Estado Regulador, persiste no Brasil atuação estatal direta na ordem econômica, em duas hipóteses: na prestação de serviços públicos e na a exploração de atividades econômicas[6]. Vejamos, então, como o Estado se organiza para cumprir, especificamente, a prestação dos serviços públicos.
Não se propõe, por ora, percorrer, em detalhes, aspectos orgânicos e funcionais da Administração Pública, basta o registro de que os serviços públicos podem ser prestados diretamente, pelos órgãos despersonalizados integrantes da Administração, ou indiretamente, por entidades com personalidade jurídica própria.
Na prestação indireta abrem-se duas possibilidades: pode o Estado constituir pessoas jurídicas públicas (autarquias e fundações públicas) ou privadas (sociedades de economia mista e empresas públicas) e, mediante lei, outorgar a tais entes a prestação do serviço público. Ou pode, por outro lado, delegar à iniciativa privada, mediante contrato ou outro ato negocial, a prestação do serviço. Serve-se aí o Estado de outras figuras como a concessão ou a permissão.
Neste momento, é preciso abrir um parêtesis para destacar como essa forma de atuação impacta a própria noção de serviço público. Gustavo Binenboym preconiza que a desestatização de serviços públicos não importa, todavia, a despublicização desses serviços. Ao contrário, a transferência ou devolução destas tarefas à iniciativa privada exige republicização dos mecanismos de controle do Estado sobre elas. Isto porque o Estado conserva responsabilidades e deveres em relação à prestação adequada dos serviços públicos – em especial as de planejamento, regulação e fiscalização. É nesse contexto que surgem personagens fundamentais de sua organização burocrática – as agências reguladoras. (BARROSO, 2006, p. 66-68)
Em verdade, a emergência do Estado Regulador no Brasil deu causa ao ressurgimento das autarquias, batizadas de ‘agências reguladoras’, em homenagem ao símile norte-americano tomado como modelo e qualificadas como especiais porque independentes e investidas de poderes peculiares. Ditas agências têm a função precípua de disciplinar e controlar a prestação de serviços públicos por particulares, a eles confiados mediante concessão, permissão ou autorização, instrumentos de delegação também retomados. (COUTO E SILVA, 2009, p. 12) Surge, assim, um novo padrão de atuação regulatória, com relevância para o que Marques Neto denomina regulação reflexiva, na qual o Estado deixa de ser um adjudicador de direitos e passa a ser um mediador de interesses, sem perder a função de tutor das hipossuficiências sociais. (MARQUES NETO, 2005, p. 4)
Marques Neto também afirma ocorrer um aumento de complexidade no provimento dos serviços públicos com consequências para a configuração do Estado. Para demarcar esta complexidade, sustenta que o Estado atua na regulação sobre serviços públicos no triplo papel de: espaço de formulação de políticas públicas cujas pautas e metas ditarão a conformação da exploração do serviço (público); titular do serviço e dos bens a eles afetos, cuja preservação lhe incumbe e em face de quem o operador em regime público pode postular direitos como equilíbrio da relação contratual; e, ente regulador encarregado não exclusivamente da defesa dos interesses estatais, mas incumbido da tarefa de defesa do usuários, de preservador das linhas gerais da exploração da atividade e ainda mediador dos interesses de todos os agentes envolvidos. (MARQUES NETO, 2005, p. 15)
Assim, justamente para fazer jus a essa tripartição de papéis em face da exploração dos serviços públicos que se dá o surgimento de órgãos reguladores autônomos como forma de neutralizar a atividade regulatória da influência dos interesses do próprio Estado em face da atividade, imunizando a atividade do regulador do controle hierárquico, mediador pela ação política. Ainda, a organização burocrática do Estado busca configurar-se não mais como uma estrutura piramidal, mas numa nova configuração “em que os poderes são ordenados como uma rede, articulada com os entes sociais”, permitindo adequada intercomunicação entre os atores sociais. (MARQUES NETO, 2005, p. 4)[7]
Não são poucos os desafios impostos por essa nova configuração jurídico-institucional, que envolve o poder normativo e a independência dos novos órgãos reguladores até a descaracterização dos serviços públicos e seu regime como forma de regulamentação da atividade privada na prestação de serviços públicos.
A emergência de um marco regulatório a organizar a prestação dos serviços públicos no Brasil deverá conciliar, assim, a realidade sócio-econômica que envolve a atuação do Estado na economia, bem como a sua necessária organização burocrática. Referida tarefa passará, certamente, pela delimitação e contorno precisos das agências reguladoras nacionais e aqui, resta-nos a indagação: até que ponto, porém, será possível conciliar ideias, conceitos e institutos jurídicos firmemente incorporados ao direito brasileiro, muitos deles de matriz europeia, com transplantes retirados do tecido econômico-jurídico americano? Ainda, como harmonizar, por exemplo, a noção de serviço público, plasmada em diversas normas de nossa Constituição Federal, com preceitos da legislação ordinária que, na moldura da privatização e da reforma do Estado, abriram à concorrência atividades que eram exercidas em regime de monopólio, como sucedeu, entre outras, com as telecomunicações?
Talvez a complexidade desse desafio seja uma dos motivos pelos quais o legislador pátrio ainda não foi capaz de obter consenso em torno do Projeto de Lei nº 3.337, de 2004, que se propõe a estabeler um marco jurídico-institucional da regulação dos serviços públicos no Brasil e uma conformação dos entes autônomos responsáveis por essa tarefa.
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Notas:
a) Imperativo de segurança nacional (CF, art., 173, caput)
b) Relevante interesse coletivo (CF, 173, caput)
c) Monopólio outorgado à União (CF, art. 177)
Informações Sobre o Autor
Daniel Martins D’Albuquerque
Mestrando em Direito e Políticas Públicas UniCeub/DF, Especialista em Regulação de Serviços de Telecomunicações