“Pacote Anticrime” e o Reforço Ao Sistema Acusatório“

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Anticrime Package” And The Reinforcement OThe Accusatory System 

 Rodrigo Resende Scarton1

Resumo: A Constituição Federal de 1988, ao outorgar ao Ministério Público a função institucional de promover a ação penal pública, na forma da lei, consagrou, no entendimento de parcela significativa da doutrina, o sistema acusatório como sistema estruturante do processo penal pátrio. A despeito de tal disposição constitucional, o Código de Processo Penal brasileiro, cuja vigência deu-se em plena ditadura militarem momento anterior à promulgação da Bíblia Política, prevê distintas disposições legais sujeitas a críticas pela doutrina e pela jurisprudência, por consubstanciarem, no entendimento de alguns, resquícios de um sistema processual penal inquisitório. Nesse contexto de celeuma entre os juristas, tornou-se latente a necessidade de modificação da legislação infraconstitucional para que a estrutura do processo penal fosse, enfim, adaptada à nova ordem constitucionalÉ dentro dessa conjuntura que surge, então, a Lei 13.964/19, também conhecida como Pacote Anticrime. Nessa linha de raciocínio, o objetivo do presente trabalho é discorrer acerca dos impactos no ordenamento jurídico pátrio ocasionados pelas principais inovações legislativas da Lei 13.964/19, especialmente no que tange à estrutura do processo penal brasileiro.  

Palavras-chave:Sistema acusatório. Lei 13.964/19. Pacote Anticrime. Gestão da prova penal. Juiz das garantias. 

 

Abstract: The Federal Constitution of 1988, when granting to the Public Prosecutor Office the institutional function of promoting public criminal action, in the form of the law, enshrined, according to a significative amount of doctrine, the accusatory system as a structuring system of the national criminal process. In spite of such constitutional provision, the Brazilian Code of Criminal Procedure, which was valid during the military dictatorship, prior to the promulgation of the Political Bible, foresees different legal provisions subject to criticism by the doctrine and jurisprudence, for substantiating, in the understanding of some, remnants of an inquisitorial penal procedural system. In this context of uproar among jurists, there was an implied need to modify the infraconstitutional legislation so that the structure of the criminal process was finally adapted to the new constitutional and conventional order. It is within this conjuncture that Law 13.964/19, also known as Anticrime Package, emerges. In this line of reasoning, the objective of this paper is to discuss the impacts on the national legal system caused by the main legislative innovations of Law 13.964/19, especially when it comes to the structure of the Brazilian criminal process. 

Keywords: Accusatory system. Law 13.964/19. Anticrime package. Evidence management. Guarantees judge. 

 

Sumário: Introdução. 1. Dos sistemas processuais penais. 1.1 Do sistema inquisitório. 1.2 Do sistema acusatório. 1.3 Do sistema misto. 1.4 Do sistema processual penal adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro. 2. Do “Pacote Anticrime” 2.1 Do reforço ao sistema acusatório. 2.1.1 A vedação da iniciativa acusatória e probatória do juiz. 2.1.2 O juiz das garantias. 2.2 Demais disposições legais que reafirmam o sistema acusatório. 2.2.1 Do novo procedimento de arquivamento do inquérito policial. 2.2.2 Da descontaminação do julgado. 2.2.3 Da vedação à decretação de medidas cautelares de ofício na fase investigatória e na fase processual. 3. Da eficácia da suspensão sine die do art. 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-E e 3º-F; do art. 28, caput; e do art. 157, §5º, do Código de Processo Penal. Considerações Finais. Referências. 

 

INTRODUÇÃO 

A doutrina processual penal observa que, ao longo da evolução histórica, três foram os principais sistemas processuais penais adotados pelos ordenamentos jurídicos das distintas civilizações: inquisitório, acusatório e misto.  

O estudo acerca da estrutura do processo penal de determinado sistema normativo é imprescindível para a compreensão de aspectos fundamentais referentes ao exercício da pretensão punitiva estatal, na medida em que se relaciona com os princípios fundantes e com os procedimentos do processo penal, os quais refletem, fatalmente, na liberdade dos cidadãos. 

Objeto de discussão entre os juristas, o sistema processual penal adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro é, consoante parcela majoritária, o acusatório, por previsão constitucional, insculpida no art. 129, I, da Constituição Federal. 

Todavia, é sabido que o Código de Processo Penal brasileiro entrou em vigor em pleno Estado-Novo – 1º de janeiro de 1942 -, tendo nítida inspiração no modelo fascista italiano.  

Nesse contexto, a dissonância temporal entre a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a vigência do Código de Processo Penal fez surgir debates acirrados no que tange à constitucionalidade de diversas disposições processuais penais infraconstitucionais, por possível afronta ao sistema acusatório. Diante desse cenário, entãoa doutrina dividiu entendimentos acerca do sistema processual adotado pelo Brasil: para uns, inquisitório; para outros, acusatório; e, ainda, para uma terceira corrente, misto. 

Nessa linha de raciocínio, o advento da Lei 13.964/2019, comumente conhecida como Pacote Anticrimevisa a encerrar a celeuma demonstrada, na medida em que promove profundas alterações nas legislações penal e processual penal pátrias, instituindo disposições normativas que consubstanciam verdadeiros reforços ao sistema acusatório. 

O objetivo deste trabalho, portanto, é esmiuçar as inovações legislativas da Lei 13.946/19 referentes ao sistema acusatório. Para tanto, abordar-se-á os sistemas processuais penais, o “Pacote Anticrime” em sua origem e em suas motivações políticas, bem como as respectivas inovações legislativas de significativo impacto na estrutura processual penal brasileira, tais como a vedação de iniciativa acusatória e probatória do juiz, a instituição da figura do Juiz das Garantias, o novo procedimento de arquivamento de inquérito policial, a descontaminação do julgado e a vedação à decretação de medidas cautelares de ofício na fase investigatória e na fase processual. 

 

1 DOS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS 

Grande parcela da doutrina brasileira, ao abordar a matéria atinente aos sistemas processuais penais consagrados ao longo da evolução histórica, discorre acerca de seus aspectos básicos, de suas principais características, de sua origem e de sua aplicabilidade nos distintos sistemas normativos; olvidando-se, contudo, de conceituar no que consistee para que serve, de fato, um sistema processual penal.  

Em que pese o raciocínio jurídico básico, que induz à inferência de que  tal sistema se relaciona com a maneira como se estruturam os princípios fundantes e os procedimentos relacionados ao processo penal de determinado ordenamento jurídico, é nas lições de Mauro Fonseca Andrade que se encontram os aspectos nevrálgicos para a compreensão aprofundada do tema. 

Com efeito, o mencionado professor conceitua os sistemas processuais penais como “subsistemas jurídicos formados a partir da reunião, ordenada e unificada, de elementos fixos e variáveis de natureza processual penal” (ANDRADE, 2008). acrescenta: 

 

seja qual for o sistema adotado por um país, seu processo sempre exercerá a função de promover a paz social, cuja perturbação está intrinsicamente ligada ao que o poder dominante entenda justamente por paz social. [] não se pode confundir a função exercida pelo processo penal com a função atribuída aos sistemas processuais penais. Enquanto ao processo cabe promover a paz social, os sistemas processuais atuam como um instrumento fundamental de auxílio ao legislador, à hora de estabelecer a política criminal, em âmbito processual, que vigorará em seu país. [] a função dos sistemas processuais penais é servir como um instrumento de auxílio ao legislador, à hora de estabelecer a política criminal em âmbito processual. Eles são responsáveis por determinar o grau de eficiência da repressão criminal, o grau de imparcialidade do juiz e o grau de tecnicidade da persecução penal (Ibid., p. 465). 

 

No mesmo diapasãoAury Lopes Júnior preceitua que a estrutura do processo penal variou ao longo dos séculos, conforme o predomínio da ideologia punitiva ou libertária (LOPES JR., 2017). Não obstante, aduz que os sistemas processuais penais são reflexos da resposta do processo penal frente às exigências do Direito Penal e do Estado da época (Id., 2013). 

Em síntese, portanto, infere-se que os sistemas processuais penais nada mais são do que manifestações históricas de como o processo penal de um determinado período da humanidade foi regulamentado (ANDRADE, op. cit., p. 340). 

Diante desse cenário, portanto, importa abordar os três principais sistemas processuais penais identificados e consagrados pela doutrina: sistema inquisitório, sistema acusatório sistema misto. 

 

1.1 DO SISTEMA INQUISITÓRIO

Também chamado de inquisitivo, possui raízes na Idade Antiga. Propagou-se, paulatinamente, a partir do século XIII, por toda a Europa, estendendo-se até o final do século XVIII e início do século XIX, momento em que os novos movimentos filosóficos e os novos postulados de valorização do homem decorrentes da Revolução Francesa repercutiram no processo penal. 

 

Sobre o tema, destaca Mauro Fonseca Andrade que: 

 

[…] é o sistema processual penal mais antigo entre os três conhecidos. Surgiu para salvaguardar os interesses persecutórios do poder central, ampliando o leque de opções para a abertura do processo repressivo, prescindindo da iniciativa popular. […] Durante o Império Romano, a Igreja Católica incorporou esse modelo de persecução penal a suas práticas processuais, voltando a utilizá-lo, na Idade Média, como instrumento de combate à heresia em terras europeias. Assim o foi porque a atuação popular não era suficiente para frear a expansão de outras seitas e doutrinas religiosas distintas do cristianismo. 

A prevalência do sistema inquisitivo se deu nas Idades Média e Moderna, em virtude das perseguições religiosas e políticas realizadas pela Igreja Católica em conjunto com o poder central de cada país. O início de sua decadência se deu a Revolução Francesa, mas se consumou a partir de 1808, em razão da difusão do Code d’Instruction Criminelle francês em terras europeias e entre os países colonizados por Espanha e Portugal. (ANDRADE, op. cit., p. 466) 

 

E complementa: 

 

Mais conhecida como juizado de instrução, a investigação criminal judicial foi adotada em larga escala na Europa, primordialmente, em razão da influência que o Code d’Instrucction Criminelle francês, de 1808, provocou em todo aquele continente no início do século XIX, substituindo o temido juiz inquisidor – como autoridade investigante – pela figura do juiz instrutor(ANDRADE, BRANDALISE, 2019, P. 496-497). 

 

Conforme ensina Renato Brasileiro Lima (2019), a principal característica desse sistema processual penal reside no fato de que as funções de acusar, defender e julgar encontram-se concentradas em uma única pessoa, que assume, assim, as vestes de um juiz acusador, chamado de juiz inquisidor. Essa concentração de poderes nas mãos do juiz compromete, invariavelmente, sua imparcialidade, na medida em que julgador que atua como acusador fica psicologicamente adstrito ao resultado da demanda, perdendo a objetividade necessária ao julgamento. Dessa forma, portanto, não há se falar em contraditório, haja vista a falta de contraposição entre acusação e defesa. 

Percebe-se, então, que, no processo inquisitivo, o juiz inquisidor é dotado de ampla iniciativa probatória, determinando de ofício a colheita de provas no curso das investigações e no curso do processo penal; fato que acarreta a desigualdade de armas e de oportunidades entre os sujeitos processuais. Na lógica de tal sistema processual, o acusado é mero objeto do processo, não sendo considerado sujeito de direitos. Não obstante, na busca da verdade material, admite-se que o acusado seja torturado para obtenção de uma confissão, razão pela qual doutrina majoritária entende que essa forma de estruturação do processo penal afronta, fatalmente, direitos e garantias individuais, bem como princípios processuais penais (LIMA, op. cit.), traduzindo-se em estrutura manifestamente autoritária. 

 

1.2 DO SISTEMA ACUSATÓRIO 

Didaticamente, Rogério Sanches Cunha (2020) ensina que, no sistema acusatório, cada sujeito processual tem uma função bem definida no processo. A um caberá acusar (como regra, o Ministério Público), a outro defender (o advogado ou o defensor público) e, a um terceiro, julgar (o juiz).  

Nesse sistema processual, o princípio da verdade real é substituído pelo princípio da busca da verdade, devendo a prova ser produzida com fiel observância ao contraditório e à ampla defesa; há igualdade de oportunidades no processo; há plena publicidade de todo o procedimento (ou de sua maior parte); não há se falar em tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicional; há a instituição da coisa julgada, bem como da possibilidade de impugnação das decisões judiciais; há a incidência do duplo grau de jurisdição; e, por fim, a gestão da prova recai sobre as partes. 

No que tange especificamente à gestão das provas no sistema processual penal acusatório, é o entendimento de parcela renomada da doutrina, ilustrada por Renato Brasileiro: 

 

Na fase investigatória, o juiz só deve intervir quando provocado, e desde que haja necessidade de intervenção judicial. Durante a instrução processual, prevalece o entendimento de que o juiz tem certa iniciativa probatória, podendo determinar a produção de provas de ofício, desde que o faça de maneira subsidiária. (LIMA, op. cit, p. 43) 

 

Representando corrente doutrinária divergente, entretanto, Aury: 

 

É absolutamente incompatível com o sistema acusatório (também violando o contraditório e fulminando com a imparcialidade) a prática de atos de caráter probatório ou persecutório por parte do juiz, como, por exemplo, a possibilidade de o juiz decretar a prisão preventiva de ofício, a decretação, de ofício, de busca e apreensão [] e vários outros dispositivos do Código de Processo Penal que atribuem ao juiz um ativismo tipicamente inquisitivo. (LOPES JR., 2017, p. 49). 

 

A despeito de certo debate doutrinário acerca dos limites da gestão da prova no sistema processual penal acusatório, fato é que tal modelo reflete a posição de igualdade dos sujeitos, cabendo às partes a produção do material probatório com a devida observância dos princípios do contraditório, da ampla defesa, da publicidade e do dever de motivação das decisões judiciais, razão pela qual o traço peculiar mais importante do sistema acusatório é que o juiz não é, por excelência, o gestor da prova (LIMA, op. cit.). 

 

1.3 DO SISTEMA MISTO 

Considerado um meio termo entre o sistema inquisitório e o sistema acusatório, o sistema misto, também conhecido como sistema francês, inquisitório reformado ou napoleônico, desdobra-se em duas fases distintas: a primeira, tipicamente inquisitorial, com instrução escrita e secreta, sem acusação e, por isso, sem contraditório, na qual objetiva-se apurar a materialidade e a autoria do fato delituoso; a segunda, de caráter acusatório, pela qual o órgão acusador apresenta a acusação, o réu se defende e o juiz julga, vigorando a publicidade e a oralidade. 

Segundo Marcos Zilli: 

 

[…] O descontentamento com as formas essencialmente inquisitórias, expresso durante o Iluminismo e posteriormente concretizado na legislação revolucionária francesa, traduziu uma mudança radical de rota na tentativa de se buscar, no sistema inglês, inspiração para mudanças da legislação processual penal até então predominante na Europa continental. [] Na verdade, trata-se da subsistência no inquisitório que recebeu uma roupagem emprestada do acusatório. (ZILLI, 2003, p. 38) 

 

Conforme restará demonstrado, renomados juristas entenderam – alguns, ainda entendem -, tratar-se do sistema estruturante do processo penal nacional. 

 

1.4 DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL ADOTADO PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO 

É entendimento recorrente na literatura jurídica que a Constituição Federal de 1988, ao outorgar ao Ministério Público a função institucional de promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei, consagrou o sistema processual penal acusatório2. 

Em que pese a disposição constitucional mencionada, fato é que o Código de Processo Penal brasileiro entrou em vigor em pleno Estado-Novo – 1º de janeiro de 1942 -, tendo nítida inspiração no modelo fascista italiano. Desde então, sem embargo da abertura democrática consumada no Brasil com a Constituição Federal, o diploma processual penal brasileiro sofreu apenas alterações pontuais, mantendo a estrutura básica alicerçada em bases inquisitoriais oriundas do regime totalitário vigente durante a 2ª Guerra Mundial (LIMA, 2020). 

Corroborando o entendimento expresso, salientam-se as seguintes observações atinentes a determinadas disposições legais do Código de Processo Penal brasileiro, feitas por renomada doutrina: 

 

É absolutamente incompatível com o sistema acusatório – também violando o contraditório e fulminando com a imparcialidade – a prática de atos de caráter probatório ou persecutório por parte do juiz, como, por exemplo, a possibilidade de o juiz decretar a prisão preventiva de ofício (art. 311); a decretação, de ofício, da busca e apreensão (art. 242); a iniciativa probatória a cargo do juiz (art. 156); a condenação do réu sem pedido do Ministério Público, pois isso viola também o Princípio da Correlação (art. 385); e vários outros dispositivos do CPP que atribuem ao juiz um ativismo tipicamente inquisitivo. (LOPES JR., 2017, p. 44) 

 

[] Prova disso, aliás, é a subsistência de dispositivos legais – de duvidosa constitucionalidade e convencionalidade – que autorizam o próprio juiz a requisitar a instauração de um inquérito policial (art. 5º, II, CPP), a decretar de ofício a produção de provas consideradas urgentes e relevantes ou a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante, seja na fase investigatória, seja na fase processual (art. 156, I e II, CPP). (LIMA, 2020, p. 88) 

 

Como se vê, distintas disposições normativas do Código de 1940 conflitam, ao menos aparentemente, com o sistema acusatório. Tal cenário acarretou verdadeiro celeuma entre os operadores do Direito, especialmente na definição de qual o verdadeiro sistema processual penal vigente no Brasil. 

Nesse sentido, Nucci, para quem o ordenamento jurídico pátrio adota o sistema misto: 

 

O sistema processual adotado, no Brasil, é o misto, também denominado inquisitório-acusatório, inquisitivo garantista ou acusatório mitigado. [Os princípios norteadores do sistema, advindos da Constituição Federal, possuem inspiração acusatória (ampla defesa, contraditório, publicidade, separação entre acusação e julgador, imparcialidade do juiz, presunção de inocência, etc.). Porém, é patente que o corpo legislativo processual penal, estruturado pelo Código de Processo Penal e leis especiais, utilizado no dia-a-dia forense, instruindo feitos e produzindo soluções às causas, possui institutos advindos tanto do sistema acusatório quanto do sistema inquisitivo. Não há qualquer pureza na mescla dessas regras, emergindo daí o sistema misto. [] O advento de um sistema acusatório puro, afastando-se completamente dos resquícios do trato inquisitivo, depende da edição de lei, pois somente os princípios constitucionais não são suficientes para comandar a instrução do feito, desde a ocorrência do crime até o trânsito em julgado da decisão condenatória. O senso de realidade nos impulsiona a admitir como misto o nosso sistema, apontando-se, entretanto, várias falhas, de modo a serem corrigidas pelo legislador. (NUCCI, 2009, p. 25) 

 

Com opinião divergente, porém igualmente bem fundamentada, o professor Aury Lopes Júnior: 

 

Pensamos que o processo penal brasileiro é essencialmente inquisitório, ou neoinquisitório, se preferirem, para descolar do modelo histórico medieval. [] Ainda que se diga que o sistema processual brasileiro é misto, a fase processual não é acusatória, mas inquisitória ou neoinquisitória, na medida em que o princípio informador é o inquisitivo, pois a gestão da prova está nas mãos do juiz. [] Nesse contexto, dispositivos que atribuam ao juiz poderes instrutórios, como o famigerado art. 156, I e II do CPP, externam a adoção do princípio inquisitivo, que funda um sistema inquisitório, pois representam uma quebra da igualdade, do contraditório, da própria estrutura dialética do processo. Como decorrência, fulminam a principal garantia da jurisdição, que é a imparcialidade. (LOPES JR., 2017, p. 48) 

 

Por fim, salienta-se terceiro entendimento, representado por coerente posicionamento do professor e Promotor de Justiça Militar Renato Brasileiro: 

 

Quando o Código de Processo Penal entrou em vigor, prevalecia o entendimento de que o sistema nele previsto era misto. [] Porém, com o advento da Constituição Federal, que prevê de maneira expressa a separação das funções de acusar, defender e julgar, estando assegurado o contraditório e a ampla defesa, além do princípio da presunção de não culpabilidade, estamos diante de um sistema acusatório. (LIMA, 2019, p. 43) 

 

É nesse contexto, então, que surge a Lei 13.964/2019, comumente conhecida como Pacote Anticrime, promovendo profundas alterações nas legislações penal e processual penal pátrias, instituindo disposições normativas que consubstanciaverdadeiros reforços ao sistema acusatório, a fim de encerrar a celeuma até então demonstrada. Objeto do presente estudo, tais inovações legislativas serão, portanto, esmiuçadas.  

 

2. DO PACOTE ANTICRIME 

O denominado “Projeto Anticrime” foi apresentado, por Sérgio Fernando Moro, ex-juiz federal e, à época, Ministro da Justiça e Segurança Pública, ao Congresso Nacional, no dia 31 de janeiro de 2019 (PL 882/2019), cujo intuito era o de estabelecer medidas efetivas contra a corrupção, o crime organizado e os delitos praticados com violência à pessoa.  

Em paralelo, em março de 2019, a comissão da Câmara dos Deputados instaurada no afã de apreciar o referido projeto, passou a trabalhar com uma proposta alternativa (PL 10.372/18 na Câmara dos Deputados; PL 6.341/19 no Senado Federal), elaborada em 2018, encabeçada pelo atual Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes. 

Entretanto, na contramão do “Projeto Moro” e do “Projeto Moraes”, os quais estipularam medidas convergentes na busca de um maior rigor penal e processual penal, fora apresentado, por maioria do Congresso Nacional, um substitutivo, cujos preceitos foram extraídos, em grande parte, do Projeto de Lei 8.045/2010 (Projeto de Lei do Senado n. 156/09), destinado à criação de um novo Código de Processo Penal. Fruto de tal substitutivo, podem-se destacar os seguintes dispositivos legais presentes no “Pacote Anticrime”: juiz das garantias (CPP, arts. 3º-A a 3º-F); descontaminação do julgado (CPP, art. 157, §5º); vedação à decretação de medidas cautelares pessoais de ofício pelo juiz (CPP, art. 282, §§2º e 4º, e 311); audiência de custódia (CPP, art. 310); entre outras. 

Nesse cenário de embate entre forças antagônicas existentes dentro e fora do Congresso Nacional surge, resultante de três projetos de lei distintos, a Lei 13.964/19, cuja vigência deu-se em 23 de janeiro de 2020, acarretando, indubitavelmente, a maior mudança da legislação criminal brasileira desde a vigência da Lei 7.209/84, responsável pela reforma da Parte Geral do Código Penal. 

Isso porque, os vinte artigos da Lei 13.964/19 provocaram mudanças não apenas no Código Penal e no Código de Processo Penal, mas também em diversos diplomas da legislação penal especial, como, por exemplo, na Lei de Execuções Penais, na Lei dos Crimes Hediondos, na Lei de Improbidade Administrativa, na Lei de Interceptações Telefônicas, entre outras. 

Nesse contexto, portanto, aprofundar-se-á o estudo referente às principais alterações legislativas do famigerado “Pacote Anticrime” que denotam verdadeiro reforço ao sistema acusatório. 

 

2.1 DO REFORÇO AO SISTEMA ACUSATÓRIO 

O art. 3º-A, introduzido no Código de Processo Penal pelo Pacote “Anticrime”, é responsável por encerrar a discussão existente na doutrina acerca do sistema processual penal adotado pelo sistema brasileiro, na medida em que veda a iniciativa acusatória e probatória do juiz. Não obstante, por meio dos artigos 3º-B e seguintes – os quais, frise-se, acarretaram as maiores polêmicas no que diz respeito à novel legislação -, o legislador instituiu, no ordenamento jurídico pátrio, a figura do Juiz das Garantias, figura até então desconhecida no Direito comparadoFaz-se mister, portanto, atentar às particularidades dessas disposições legais. 

 

2.1.1 A vedação da iniciativa acusatória e probatória do juiz

Preconiza o art. 3º-A, do Código de Processo Penal, com redação dada pela Lei 13.964/19: 

 

CPP, art. 3º-A: O processo penal terá estrutura acusatória, vedada a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.  

 

Inicialmente, o artigo supramencionado reafirma a estrutura acusatória, coadunando a legislação processual penal pátria à Constituição FederalA norma, ainda, veda a iniciativa do juiz na fase de investigação criminal. Tal forma de atuação já era considerada inconstitucional antes das alterações da nova legislação. Nesse sentido, o pacífico entendimento acerca da inconstitucionalidade do art. 156, I, do Código de Processo Penal3.  

Especificamente sobre a expressão “vedada a iniciativa na fase de investigação”, Mauro Andrade ensina: 

 

Em um primeiro momento, essa iniciativa poder ser entendida de modo restrito, ou seja, como a vedação de o magistrado instaurar procedimentos na fase de investigação. Assim, não só estaria o magistrado proibido de ordenar a produção antecipada de prova (hoje prevista no inciso I do artigo 156 do atual Código de Processo Penal), senão também determinar a realização de interceptações telefônicas, buscas e apreensões temporárias sem que, em caráter prévio, houvesse requerimento do sujeito legitimado para apresenta-lo. 

Já em um segundo momento, essa iniciativa pode ser entendida de modo amplo, ou seja, não só como a proibição de instaurar procedimentos voltados à investigação, senão também como a vedação de o magistrado, por assim dizer, aditar pedido formulado por terceiro. Em outras palavras, estaria o juiz proibido de ampliar, de ofício, o objeto do pedido apresentado – via de regra – pela autoridade investigante ou pelo Ministério Público, sempre que esse pedido estivesse voltado a restringir algum direito fundamental do investigado. (ANDRADE,  2009, P. 172) 

 

Entretanto, ao preceituar a vedação da “substituição da atuação probatória do órgão de acusação, o legislador fez surgir entre a doutrina o questionamento acerca da validade da iniciativa probatória do magistrado durante a fase processual. Isso porque diversos são os artigos do Código de Processo Penal que admitem a produção de provas pelo julgador4, e que não foram expressamente revogados pelo “Pacote Anticrime”. 

Sobre o ponto, assim manifesta-se consagrada doutrina: 

 

Conquanto o dispositivo não seja, quanto à fase processual, tão claro quanto o é em relação à investigação, uma interpretação sistemática da Lei 13.964/19 como um todo nos leva a crer que, doravante, não será mais admitida qualquer iniciativa do magistrado, nem mesmo no curso do processo penal[] 

Não se pode mais continuar a insistir, contra a Constituição, em manter um sistema inquisitorial porque assim o preveem os incisos I e II do art. 156 do CPP, em permanente conflito com o modelo acusatório extraído do art. 129, I, da Constituição Federal, e do próprio art. 3º-A, do CPP. [] 

Operou-se, pois, a revogação tácita do art. 156, II do CPP, bem como de todos os demais dispositivos constantes do CPP que atribuíam ao juiz da instrução e julgamento iniciativa probatória no curso do processo penal. É bem verdade que o legislador poderia ter sido mais direto e objetivo, revogando-os expressamente, de modo a privilegiar a técnica e a própria segurança jurídica. Mas tal omissão não impede que se produza uma interpretação sistemática, coerente com o próprio espírito das mudanças produzidas pela Lei 13.964/19 e com o sistema acusatório. (LIMA2020, p. 99-100) (grifo nosso).  

 

 

De maneira diversa, Mauro Fonseca Andrade, em seu artigo Reflexões em torno de um novo Código de Processo Penal: 

 

 Por certo que a imparcialidade, tal como a entendemos hodiernamente, não se fazia presente no sistema inquisitivo. Mas o que por nós deve ser questionado é se o fato de o juiz exteriorizar sua inconformidade com o material probatório apresentado pelas partes pode vir a macular essa imparcialidade, e transformá-lo em juiz que atuaria segundo a ideologia do sistema inquisitivo. 

[…] 

Países que adotam o sistema acusatório admitem, sem qualquer constrangimento, a possibilidade de o juiz produzir provas de ofício, sempre que a atividade probatória das partes não tenha sido suficiente para dirimir as dúvidas que a ele se apresentem no momento de julgar. Assim se dá, por exemplo, na Alemanha, Portugal e Itália, que expressamente admitem a atividade probatória ex officio judicis em suas legislações processuais penais. (ANDRADE, 2008, P. 122-123). 

 

Demonstrado o expresso reforço ao sistema acusatório brasileiro, insculpido pelo art. 3º-A, faz-se mister, então, a análise, ainda que breve, acerca do Juiz das Garantias. 

 

1.1.2 Do juiz das garantias

As disposições acerca do famigerado “Juiz das Garantias” introduzidas na legislação processual penal, foram, indubitavelmente, as inovações legislativas responsáveis pelos mais polêmicos debates doutrinários. A análise aprofundada do tema, tendo em vista a complexidade que lhe é inerente, exige a redação de monografia própria. A proposta do presente trabalho, portanto, é abordar aspectos básicos acerca do assunto. 

Pode-se conceituar o juiz das garantias como o magistrado responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário. Trata-se, portanto, de outorga exclusiva, a determinado órgão jurisdicional, da competência para o exercício da função de garantidor dos direitos fundamentais na fase investigatória da persecução penal, o qual ficará, na sequência, impedido de funcionar no processo judicial do mesmo caso.  

Parte da doutrina já ventila possível inconstitucionalidade formal e material dessa nova figura. Entre os principais argumentos, destacam-se: a) inconstitucionalidade formal em face de vício de iniciativa relativo à competência legislativa do Poder Judiciário para alterar a organização e a divisão judiciária; b) inconstitucionalidade material em razão de violação à regra de autonomia financeira e administrativa do Poder Judiciário (art. 99, caput, CF), em razão da ausência de prévia dotação orçamentária para a implementação das alterações organizacionais acarretadas pela Lei (art. 169, §1º, CF), e, em razão da violação do novo regime fiscal da União instituído pela Emenda Constitucional n. 95 (ADCT, arts. 104 e 113); c) inconstitucionalidade formal do art. 3º-D do CPP, introduzido pela Lei 13.965/19, em face de vício de iniciativa relativo à competência legislativa do Poder Judiciário para alterar a organização e a divisão judiciária.   

Não obstante, também a título de direito comparado suscitaram-se debates. Isso porque, parcela doutrinária renomada e respeitável (JUIZ…, 2020) argumenta que o “Juiz das Garantias” é diretriz traçada pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, o qual teria posição no sentido de que a atuação do juiz na investigação geraria perda da sua imparcialidade e isso o impediria de atuar na fase de julgamento. Tal vertente argumentativa ampara-se em dois julgados: Caso De Cubber VS. Bélgica – 1984 e Caso Piersack VS. Bélgica – 1982.  

Entretanto, estudo aprofundado do ponto, realizado por Mauro Fonseca Andrade (2020), demonstra certa confusão conceitual entre os termos Juiz Investigador e Juiz das Garantias. Na esteira do que demonstra Mauro, no caso Piersack VS. Bélgica, reconheceu-se a perda da imparcialidade de um julgador que tomou as rédeas da investigação, atuando como se membro do Ministério Público ou autoridade policial fosse. No mesmo sentido, o mencionado caso Cubber VS. Bélgica. 

Nos dois julgados citados, portanto, o que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos fez foi confirmar que, nos países em que o juiz pode investigar, ele não poderá participar da fase do julgamento, afastando-se, por conseguinte, a figura do Juiz Investigador, que em nada se assemelha com o “Juiz das Garantias”. Ora, a possibilidade da autoridade judiciária realizar atos de investigação é rechaçada pelo ordenamento jurídico pátrio desde 1941, nos termos do art. 252, II, do CPP5. 

Consoante Mauro Andrade, então, percebe-se que, na verdade, a diretriz traçada pelo Tribunal Europeu de Direitos do Homem, na linha dos julgados expostos, não fundamenta a figura do Juiz das Garantias. Ora, o referido Tribunal não vê ofensa à imparcialidade do juiz quando este analisa a situação prisional de um investigado ou julga pedidos de natureza cautelar. O Tribunal afirma que o juiz que investiga não pode julgar; contudo, tal situação não se assemelha a eventuais análises de pedidos cautelares e prisões na primeira etapa da persecução penal.  

Dessa formasalienta-se que a figura instituída pela Lei 13.964/19 não possui amparo em ordenamentos jurídicos alienígenas, razão pela qual alerta-se o leitor acerca da importância de aprofundar o assunto em fontes diversas e mais específicas. 

 

2.2 DEMAIS DISPOSIÇÕES LEGAIS QUE REAFIRMAM O SISTEMA ACUSATÓRIO 

2.2.1 Do novo procedimento de arquivamento do inquérito policial

O Pacote Anticrime alterou o procedimento de arquivamento do inquérito policial. Trata-se de alteração restrita à Justiça Estadual, à Justiça Federal e à Justiça Comum do Distrito Federal. A grande novidade em relação a essa matéria está no arquivamento não apenas do inquérito policial, mas também de outras peças de informação, como os termos circunstanciados.  

Antes da lei atual, o arquivamento era realizado por meio de promoção de arquivamento, pelo Ministério Público, levada à apreciação do julgador. Com a nova redação do art. 286, do Código de Processo Penal, o promotor natural dará uma ordem de arquivamento, não havendo mais promoção pelo Parquet, mas, sim, uma ordem. Após essa determinação, o promotor remeterá os autos, de plano, à instância de revisão ministerial. 

Em que pese o formato insculpido pelo art. 28 do Código de Processo Penal, na sua forma originária, nunca tenha sido desvinculado do sistema acusatória pelos Tribunais Superiores, tal modificação legislativa pode ser considerada, de fato, reafirmação do sistema acusatório. Isso porque, pelo sistema antigo, o controle do arquivamento era exercido pelo juiz, situação bastante criticável para parcela doutrina. De fato, sob a ótica do sistema acusatório, bem como da garantia da imparcialidade, não faz sentido que o juiz tenha a função anômala de fiscalização do princípio da obrigatoriedade se o titular da ação penal é o Ministério Público. Outrossim, a imparcialidade era questionada na medida em que, caso o julgador divergisse do perdido de arquivamento feito pelo órgão ministerial, os autos eram remetidos ao procurador geral para eventual oferecimento de denúncia. Assim, o mesmo julgador responsável por recusar a promoção do arquivamento, seria o responsável pelo julgamento da ação penal.   

Sobre o ponto, as observações do professor e Promotor de Justiça Rogério Sanches Cunha: 

 

Havia quem censurasse o dispositivo em análise [em sua redação antiga] sob o argumento de que, inspirado no modelo acusatório e, portanto, em um processo de partes, não caberia ao Poder Judiciário nenhuma espécie de controle a respeito do pedido de arquivamento formulado pelo Ministério Público. [...] Assim, a ingerência do Poder Judiciário, autorizada pelo art. 28, não teria sido recepcionada pela Carta em vigor, por grave violação ao sistema acusatório, estruturado dialeticamente de maneira a resguardar a função de cada parte no processo. [] Sugeria-se que os pedidos de arquivamento de inquéritos policiais não mais dependessem de uma decisão judicial que os homologasse, mas, ao revés, que seu controle ficasse restrito ao âmbito interno do Ministério Público, quando o órgão da administração superior daria a última palavra. [] Esta corrente crítica foi ouvida pelo Congresso Nacional, na Lei 13.964/19. (CUNHA, 2020, p. 112-113) 

 

2.2.2 Da descontaminação do julgado

Preconiza o art. 157, §5º, do Código de Processo Penal, com redação dada pela Lei 13.964/2019, in verbis: 

 

Art. 157, §5º, CPP. O juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão. 

 

A descontaminação do julgado não é novidade no ordenamento jurídico pátrio. Por ocasião da tramitação do Projeto de Lei que deu origem à Lei 11.690/08, o art. 157, §4º já trazia previsão semelhante, embora tenha ele sido vetado pelo Presidente da República, sob o argumento de que o referido dispositivo ia de encontro à celeridade e à simplicidade da prestação jurisdicional em condições adequadas. 

Nesse contexto, preconiza Renato Brasileiro: 

 

Percebe-se que o dispositivo foi vetado por razões de eficácia processual, mais precisamente celeridade e simplicidade processuais. Atribui-se valor alto à celeridade, e nenhum valor para as garantias do acusado, em especial, de ser julgado por juiz imparcial. A imparcialidade do juiz, mormente no processo penal, que guarda correspondência imediata com o “ius libertatis” do cidadão, constitui uma das principais garantias inerentes ao consagrado princípio “due processo f law”. A imparcialidade se constitui em uma das maiores expectativas da justiça. (LIMA, 2020, P. 172). 

 

A inclusão do referido §5º ao Código de Processo Penal deu-se sob o fundamento de que, por mais que o juiz determine o desentranhamento e subsequente inutilização da prova, o mero contato daquele com esta já tem o condão de afetar o julgamento, influenciando a decisão do julgador. O grande problema desta alteração legislativa, porém, centra-se no plano da boa-fé, tendo em vista que os sujeitos processuais (sejam da acusação, sejam da defesa) podem agir de má-fé e utilizar-se deste instrumento para desqualificar o juiz natural do caso. Foi com base neste entendimento que o Ministro Dias Toffoli e, em seguida, o Ministro Luiz Fux, suspenderam a eficácia do dispositivo, conforme restará, no momento oportuno, abordado. 

Especificamente sobre o novo §5º do Código de Processo Penal: 

 

[] seu objetivo é cristalino: não basta a mera exclusão física das provas ilicitamente obtidas. Isso é necessário, mas insuficiente. Todo processo que contenha prova dessa natureza deve ser anulado, total ou parcialmente. Caso já tenha decisão, esta também deve ser anulada. O processo será refeito ou nova sentença será proferida, não se admitindo nessa reconstrução a participação do magistrado que conheceu seu conteúdo, agora presumidamente não parcial. A autoridade judiciária que tomou conhecimento do conteúdo da prova declarada inadmissível, psicologicamente contaminado, não poderá proferir decisão. 

[] entendemos que o magistrado na mira da norma deve ser aquele que não apenas tomou conhecimento formal da prova declarada inadmissível, mas sim aquele que, de qualquer modo, contribuiu para a sua produção ou, ainda que indiretamente, julgou-a admissível. O juiz que, de pronto, a refutou, merece ser prestigiado, demonstrando mais compromisso com o processo e com a verdade processual do que com a prova obtida ilicitamente. Raciocínio diverso poderia servir de campo fértil para uma simples juntada de prova ilícita afastar do feito o juiz natural. (CUNHA, 2020, p. 172-173) 

 

Como se vê, o novel §5º do art. 157 do Código de Processo Penal é mais uma expressão de reforço ao sistema acusatório, na medida em que busca afastar, do processo, o magistrado psicologicamente comprometido com a prova ilícita.  

 

2.2.3 Da vedação à decretação de medidas cautelares de ofício na fase investigatória e na fase processual

A partir da leitura dos antigos artigos 282, §2º7, e artigo 3118, do Código de Processo Penal, a doutrina entendia que o juiz nunca poderia decretar uma medida cautelar de ofício na fase investigatória, mas apenas no curso da ação penal. Esse entendimento era corroborado pela Lei da Prisão Temporária (Lei 7.960/89), que, desde 1989, não admite decretação ex ofício pelo juiz. 

O “Pacote Anticrime” alterou os artigos supramencionados pela simples supressão da expressão “de ofício”, vedando-se ao julgador decretar medidas cautelares sem que haja prévio requerimento, seja na fase investigatória, seja no curso da ação penal. Ao que tudo indica, essa nova sistemática valerá não apenas para as cautelares pessoais, mas para toda e qualquer medida cautelar, inclusive as patrimoniais e probatórias, visto que não há lógica de se trabalhar com sistemáticas distintas, consoante a máxima hermenêutica de que “onde impera a mesma razão há de prevalecer o mesmo direito”. A observação vale também para as medidas assecuratórias, pois se o juiz não pode decretar a prisão preventiva de ofício, tanto menos poderá decretar medida assecuratória sem que haja prévio requerimento.  

Nesse contexto, faz-se mister ressaltar que a Lei 13.964/19 olvidou-se a modificar a Lei 11.340/06 que, em seu art. 20, preceitua que “em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofícioa requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policialEmbora haja defensores da vigência do referido artigo, com base no princípio da especialidade, não há como se concordar com essa afirmação, sob pena de fatal ofensa ao sistema acusatório. A despeito da violência doméstica ser um problema social grave, isso não justifica o tratamento diverso ao autor deste tipo de delito, sob pena de se criar verdadeiro Direito Penal do Inimigo nestas situações.  

Por fim, interessantes são os apontamentos do professor Renato Brasileiro, ao abordar tal alteração legislativa e sua relação com o sistema acusatório: 

 

A mudança em questão vem ao encontro do sistema acusatório. Acolhido de forma explícita pela Constituição Federal de 1988 (art. 129, I), o sistema acusatório determina que a relação processual somente pode ter início mediante a provocação de pessoa encarregada de deduzir a pretensão punitiva (ne procedat judex ex officio). Destarte, deve o juiz se abster de promover atos de ofício, seja durante a fase investigatória, seja durante a fase processual. Afinal, graves prejuízos seriam causados à imparcialidade do magistrado se se admitisse que este pudesse decretar uma medida cautelar de natureza pessoal de ofício, sem provocação da parte ou do órgão com atribuições assim definidas em lei. (LIMA, 2020, p. 269) 

 

3. DA EFICÁCIA DA SUSPENSÃO SINE DIE DO ART. 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-E e 3º-F; DO ART. 28, CAPUT; E DO ART. 157, §5º, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL 

Na condição de Relator das ADI’s 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 (julgadas em 22/01/2020), todas ajuizadas em face da Lei 13.964/19, o Ministro Luiz Fux suspendeu sine die a eficácia, ad referendum do Plenário, da implantação do juiz das garantias e dos seus consectários (CPP, arts. 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-E, e 3º-F), afirmando, ademais, que a concessão da medida cautelar não teria o condão de interferir nem suspender os inquéritos e processos então em andamento. 

Não obstante, o art. 28, caput, do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei 13.964/19, abordado neste trabalho também fora suspenso em virtude de medida cautelar concedida pelo Ministro Luiz Fux nos autos da ADI 6.305. Atendendo a um pedido formulado pela CONAMP, entendeu o renomado Ministro relator que a aplicação do dispositivo em um prazo tão curto de tempo causaria um verdadeiro caos no âmbito do Ministério Público, que não saberia lidar com o grande fluxo de inquéritos a serem apreciados.  

De fato, andou mal o legislador ao estabelecer, no art. 20 da Lei 13.964/199, o prazo de vacatio legis de 30 (trinta) dias para a entrada em vigor do Pacote Anticrime. Isso porque o “Pacote Anticrime”, consubstancia, conforme outrora já alegado, a maior alteração processual penal do ordenamento jurídico brasileiro desde 1984. É impossível que tamanhas e profundas mudanças sejam implantadas em um prazo tão exíguo.  

Nessa linha de raciocínio, a contradição legislativa é ainda mais latente se observarmos que a Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.689/2019), recentemente promulgada, cujas alterações são muito menos profundas se comparadas com a Lei 13.964/19, estipulou, no seu art. 4510vacatio legis de 120 (cento e vinte) dias – período de “adaptação” à nova legislação quatro vezes maior do que o estabelecido pelo Pacote “Anticrime”.  

Com efeito, especificamente no que tange às disposições concernentes ao juiz das garantias, todas suspensas, Renato Brasileiro faz importante ressalva: 

 

A despeito de o art. 3º-A ter sido introduzido no Código de Processo Penal pela Lei 13.964/19 no capítulo denominado ‘Juiz das Garantias’, ao lado, portanto, dos arts. 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-F, 3º-E e 3º-F, com eles não guarda nenhuma relação. Trata-se, na verdade, de mera ratificação da estrutura acusatória do nosso processo penal, em fiel conformidade com o artigo 129, I, da Constituição Federal. [] Daí a nossa surpresa com a decisão proferida pelo Min. Luiz Fux por ocasião da medida cautelar nos autos das ADI’s 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305. (LIMA, 2020, p. 90) 

 

Por fim, salienta-se que o art. 157, §5º, conforme exposto alhures, também fora suspenso no julgamento das supramencionadas ações diretas de inconstitucionalidade. 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

A proposta do presente estudo foi abordar, ainda que de maneira sucinta, as principais alterações legislativas relacionadas com a estrutura acusatória decorrentes da promulgação do famigerado Pacote Anticrime 

A história das legislações hoje em vigor é rica em demonstrar a dificuldade do debate legislativo em contextos democráticos que considere profundas e estruturais mudanças. Não era de se esperar outro cenário na aprovação de um diploma legislativo que pretendesse aperfeiçoar de maneira tão drástica as legislações penal e processual penal pátriasFica nítida a percepção de que, no afã de se aprovar o Projeto que deu origem à Lei 13.964/19 de modo a dar uma resposta aos anseios da sociedade responsáveis pela eleição do atual Presidente da República, aprovou-se o que era possível, e não o que realmente era almejado pelos autores da proposta, por conta da tormentosa construção dos consensos políticos necessários a essas tramitações (LIMA, 2020) 

O contexto de embate político em que promulgado o “Pacote Anticrime” deu origem a um diploma normativo repleto de dispositivos legais antagônicos e contraditórios entre si. A despeito do relativo consenso acerca da reafirmação do sistema acusatório – objeto desse estudo -, diversas outras alterações legislativas do “Pacote Anticrime” exigem sistemática e contextualizada análise de todo o ordenamento jurídico pátrio para compreensão.  

O alerta, portanto, é o de que, para além das considerações feitas neste trabalho, impõe-se ao jurista estudo meticuloso do “Pacote Anticrime” em sua íntegra. Benéfico à sociedade ou não, este diploma normativo representa um novo marco legal no Direito Penal e Processual Penal pátrios, já que fixa institutos, parâmetros e critérios completamente distintos dos anteriores. 

 

REFERÊNCIAS 

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ANDRADE, Mauro Fonseca.  O Juiz das Garantias na interpretação do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Revista da Doutrina da 4ª RegiãoPorto Alegre, n. 40, fev. 2011. Disponível em: http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao040/Mauro_andrade.html. Acesso em: 20 jun. 2020. 

 

ANDRADE, Mauro Fonseca. BRANDALISE, Rodrigo da Silva. Caso Favela Nova Brasília: A convencionalidade de uma imposição (in)constitucional. Zeitschrift fur Internationale Strafrechtsdogmatik (ZJS). Alemanha, 2019. V. 14, n.10 (2019), p. 496-500. Disponível em: http://www.zis-online.com/dat/artikel/2019_10_1322.pdf. Acesso em:29 de junho de 2020. 

 

ANDRADE. Mauro Fonseca. O sistema acusatório proposto no projeto de novo codex penal adjetivo. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 46, n. 183, p. 167-188, jul./set. 2009. 

 

ANDRADE, Mauro Fonseca. Reflexões em torno de um novo Código de Processo Penal. Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 61, p. 113-131, mai./out. 2008.  

 

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008.  

 

CUNHA, Rogério Sanches. Pacote Anticrime – Lei 13.964/2019: Comentários às Alterações no CP, CPP e LEP. Salvador: Editora JusPodivm, 2020. 

 

JUIZ das Garantias – Aury Lopes. [S.l.: s.n.), 2017. 1 vídeo (8min43s). Publicado pelo canal de Alexandre Muniz. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=b-tcQvNfp8M. Acesso em: 20 de jun. 2020. 

 

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. Salvador: Ed. JusPodivm, 2019. 

 

LIMA, Renato Brasileiro de. Pacote Anticrime: Comentários à Lei No 13.964/19. Salvador: Editora Juspodivm, 2020. 

 

LOPES JR., AuryDireito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2013.  

 

LOPES JR., AuryDireito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2017. 

 

NUCCI, Guilherme de Souza. Provas no Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.  

 

ZILLI, Marcos. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.