Parecer: Licitação. Pendência de processo judicial. Continuidade do procedimento licitatório pela administração pública. Necessidade do advento de provimento jurisdicional definitivo

Parecer nº. 001/2008 CCPJ-PGE/AP


O Excelentíssimo Senhor Secretário de Transportes do Estado do Amapá, através do ofício nº. 028525, de 23 de abril do corrente ano, solicitou a essa Procuradoria do Estado parecer técnico a respeito da possibilidade de continuidade de procedimento licitatório instaurado no âmbito da referida Secretaria (Concorrência Pública nº. 0004/2007 –  CPL/SETRAP), diante da solicitação da empresa concorrente DOHO MARTINS & JÚLIO LTDA, ainda na pendência de processo judicial que questiona o referido certame.


Acompanhando o ofício, vieram a solicitação da empresa concorrente DOHO MARTINS & JÚLIO LTDA. e cópia do Diário Oficial do Estado no qual consta a decisão do Egrégio Tribunal de Justiça que concedeu efeito suspensivo ao agravo de instrumento nº. 2.100/2008.


I – BREVE RELATO FÁTICO


O Estado do Amapá, através de sua Secretaria de Estado de Transportes (SETRAP), realizou procedimento licitatório para aquisição de materiais de pavimentação asfáltica, conforme consta na Concorrência Pública nº. 001/2007-CPL/SETRAP/GEA. 


Participaram do presente certame duas empresas: DOHO MARTINS & JÚLIO LTDA – ME e a empresa TERRA CONSTRUÇÕES LTDA.


Ambas as empresas participantes foram desclassificadas na fase de habilitação, sendo que houve a interposição de recurso administrativo por parte de ambas.


No julgamento dos aludidos recursos, somente a primeira concorrente – DOHO MARTINS & JÚLIO LTDA – ME – foi habilitada, uma vez que o recurso da empresa TERRA CONSTRUÇÕES LTDA. não foi julgado procedente.


Insatisfeita com a respeitável decisão proferida pela Comissão Permanente de Licitação da SETRAP, a segunda concorrente propôs uma ação cautelar inominada, com o fito de obter liminar e garantir sua participação para a conseqüente fase do processo licitatório – julgamento das propostas.


Analisando, perfunctoriamente, a medida proposta, a MM. Juíza da 4ª Vara Cível e de Fazenda Pública de Macapá entendeu pela concessão da medida liminar pretendida.


Contra a respeitável decisão monocrática, o Estado do Amapá interpôs recurso de agravo de instrumento junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Amapá, requerendo efeito suspensivo, ao fundamento de que, mantida a decisão singular, os danos causados ao Estado seriam de difícil e incerta reparação.


Na análise do agravo de instrumento, o relator do recurso deferiu-lhe o efeito suspensivo requerido pelo Estado do Amapá, conforme consta na decisão que acompanhou o ofício e a consulta.


Diante desse breve relato fático, solicita-se dessa Procuradoria do Estado parecer acerca da continuidade do procedimento licitatório.


Esses são os fatos. Passemos ao parecer.


I – ASPECTOS TÉCNICO-JURÍDICOS


QUANTO AO EFEITO SUBSTITUTIVO DA DECISÃO DE SEGUNDO GRAU


A decisão profligada no agravo de instrumento tem por fim substituir a decisão interlocutória de primeiro grau. Essa é a regra decorrente do efeito substitutivo dos recursos. Todavia, cumpre salientar que tal decisão é uma decisão sumária, pautável em juízo não definitivo.


Desse modo, a decisão do agravo de instrumento pode ser proferida antes da prolação da sentença de primeiro grau, cujo juízo decisório é exauriente.


No caso em tela, ainda inexiste a sentença singular. O que existe é, tão somente, a decisão liminar monocrática (que suspende o andamento da licitação e manda abrir as propostas) e a decisão singular do órgão de segundo grau, proferida pelo relator do recurso, que suspende os efeitos da decisão do juízo de primeiro grau.


Portanto, segundo consta na decisão do relator do agravo de instrumento, não merece vigorar a decisão de primeiro grau, verbis:


“Assim, considerando a vedação do Poder Judiciário em apreciar o mérito administrativo, e não vislumbrando ilegalidade no ato que inabilitou a agravada que mereça anulação por esse Poder, concedo o efeito suspensivo pleiteado, suspendendo os efeitos da decisão do Juízo agravado”.


Para todos os efeitos, o que vige é a decisão singular de segundo grau, e não a de primeiro grau, que suspendeu o prosseguimento do certame, tendo em vista a substutividade da decisão recursal.


QUANTO À PRECARIEDADE DA DECISÃO SINGULAR DE SEGUNDO GRAU E À POSSIBILIDADE DE SUA MODIFICAÇÃO


Em tese, seria totalmente cabível o prosseguimento do certame licitatório, na forma como pleiteado pela empresa DOHO MARTINS & JÚLIO LTDA – ME, na solicitação junto a essa Secretaria (CPL) que acompanhou a presente consulta, uma vez que a decisão de segundo grau está vigente.


Ocorre que a decisão de segundo grau é, também, pautada em juízo sumário, não exauriente, uma vez que proferida em sede de decisão monocrática do órgão ad quem, e não pelo colegiado do Tribunal.


Sendo assim, ainda que as evidências possam demonstrar que o Tribunal, quando do julgamento do agravo de instrumento, mantenha a decisão do relator, a qual revoga a liminar concedida pela magistrada de primeiro grau, trata-se, como se induz, de mera suposição.


É que o efeito suspensivo concedido ao agravo de instrumento ainda é passível de revisão pelo colegiado, veja-se.


Anteriormente ao advento da Lei 11.187/05, que modificou a sistemática do agravo de instrumento, a decisão liminar do relator do agravo era passível de agravo interno. Acontece que a nova sistemática legal vedou a recorribilidade de tal decisão, o que se percebe pela leitura do parágrafo único do art. 527, do Código de Processo Civil, verbis:


Art. 527. omissis


Parágrafo único. A decisão liminar, proferida nos casos dos incisos II e III do caput deste artigo, somente é passível de reforma no momento do julgamento do agravo, salvo se o próprio relator a reconsiderar.”


De se ver, portanto, que a decisão monocrática do relator não é passível de reforma logo de imediato, somente sendo reformada quando do julgamento do recurso pelo próprio colegiado, ou mesmo pelo próprio relator, todavia, através de pedido de reconsideração, que não é recurso.


Seguindo o mesmo raciocínio, seria plenamente possível o prosseguimento do certame licitatório. Todavia, seguindo a exegese do retro mencionado dispositivo legal (parágrafo único do artigo 527 do CPC) combinado com o artigo 5º, II, da Lei 1.533/51 (que dispõe sobre o mandado de segurança), ainda é possível a interposição do aludido remédio constitucional, dentro do prazo decadencial de 120 (cento e vinte) dias, o qual ainda não se esgotou.


De se ver, de tal modo, que a decisão do relator, embora seja a que prepondere no momento, eis que revogou a liminar do juízo de primeiro grau, ainda é passível de reforma.


Sobre o tema, veja-se o que diz Fredie Didier Jr., in Curso de Direito Processual Civil, Vol. III, 7ª ed., Editora Podivm, Salvador, 2007, pág. 149, verbis:


“(…), a lei 11.187/2005, ao conferir nova redação a alguns dispositivos do CPC que tratam do agravo, eliminou a possibilidade de ser interposto o agravo interno da decisão do relator que converte o agravo de instrumento em agravo retido e, igualmente, da decisão do relator que concede ou nega efeito suspensivo ou a tutela antecipada recursal. Haverá, como já se viu, um estímulo ou um retorno ao uso do mandado de segurança contra ato judicial”. (grifou-se).


Sendo assim, por mais que não seja possível a utilização de recurso para atacar a decisão singular do relator do agravo de instrumento, o emprego do mandado de segurança é possível, viabilizando, até mesmo, a modificação do entendimento insculpido na decisão concessiva de efeito suspensivo ao agravo.


Por outro lado, o pedido de reconsideração, por não ser recurso e, portanto, em tese, não sujeito a prazo, pode também ser aviado a qualquer momento enquanto pendente o julgamento definitivo do agravo de instrumento. Dessa feita, mais um motivo, ainda que improvável de acontecimento, para que a decisão concessiva do efeito suspensivo ao recurso de agravo de instrumento possa ser modificada. 


De mais a mais, como alhures mencionado, trata-se de decisão singular do relator, a qual precisa ser confirmada pelo colegiado do Tribunal de Justiça do Estado do Amapá.


Através de uma simples olhadela no acompanhamento processual, percebe-se que o referido agravo de instrumento nº. 2.100/2008 será julgado no dia 29 de abril do corrente ano, oportunidade em que poderá ter seu efeito suspensivo confirmado ou mesmo modificado, ainda que esta última hipótese não seja a mais provável, frise-se.


Logo, existe mais um outro forte motivo demonstrativo da instabilidade da decisão singular do relator do agravo que revoga a liminar do juízo monocrático de primeiro grau.


QUANTO AO AGRAVO DE INSTRUMENTO PENDENTE DE SENTENÇA


Seguindo a mesma esteira, deve-se, também, considerar um outro fato a fim de se esclarecer a dúvida de Vossa Excelência.


O referido agravo de instrumento foi proposto contra decisão interlocutória proveniente de processo cautelar.


Na ação cautelar proposta, ainda inexiste sentença. De igual modo, inexiste, também, a ação principal, a ser proposta em sentido complementar ao caráter acessório da cautelar.


Com efeito, nem existe sentença na ação cautelar e nem muito menos a ação principal, com o seu conseqüente desfecho definitivo.


Diverge a doutrina e a jurisprudência sobre os efeitos da decisão do agravo de instrumento enquanto pendente a sentença e, conseqüentemente, quando proferida a sentença.


Para alguns, prevalece a decisão do agravo de instrumento, em homenagem ao princípio da hierarquia. É dizer, por mais que a decisão profligada na sentença seja uma decisão exauriente, a decisão no agravo de instrumento é proferida por um órgão superior, o que detém, dessa maneira, hierarquia.


Para outros, que se filiam à corrente da cognição, a decisão constante de sentença é sempre superior, haja vista que proferida em cognição exauriente, mais ampla, e não em juízo sumário, precário.


Sobre o tema, mais uma vez segue o escol de Fredie Didier Jr., in Curso de Direito Processual Civil, Vol. III, 7ª ed., Editora Podivm, Salvador, 2007, pág. 150-151, verbis:


A solução dada às questões não é pacífica.


Há quem diga que, admitido o agravo de instrumento, a decisão do tribunal, seja a que acolhe ou a que rejeita, substitui a decisão interlocutória, de modo que a sentença, por ter sido proferida por juízo singular, não poderia ser incompatível com a decisão tomada pelo órgão colegiado nos autos do agravo de instrumento. Esse é o chamado critério da hierarquia e com base nele se entende que, justamente porque há a possibilidade de as decisões serem incompatíveis (acórdão do agravo e sentença), o agravo de instrumento não fica prejudicado por conta da superveniência da sentença. Os efeitos dessa decisão final, portanto, ficariam condicionados ao desprovimento do agravo – isto é, à confirmação da decisão interlocutória.


Há, por outro lado, quem diga que, por ter sido proferida com base num juízo de cognição exauriente, a sentença englobaria a decisão interlocutória impugnada – que fora proferida com base em juízo de cognição sumária -, de modo que o agravo de instrumento perderia seu objeto”.


Há, também, os que entendem que o destino do agravo depende da decisão do caso concreto. Veja-se o que diz a professora Teresa Arruda Alvim Wambier,”O destino do agravo após a sentença”, in Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e de outros meios de impugnação às decisões judiciais. Nelson Nery Jr. e Teresa Arruda Alvim Wambier (coord.). São Paulo: RT, 2003, pág. 689, verbis:


“(…). o destino que deve ser dado ao agravo, depois de proferida a sentença, depende do conteúdo da decisão impugnada”.    


O Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do recurso especial nº. 742.512/DF, cujo relator foi o Ministro Castro Meira, entendeu, após o voto de desempate do Ministro Luiz Fux, que deveria prevalecer a decisão do agravo de instrumento e não a da sentença.


Todavia, o mesmo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento da Reclamação nº. 1.444/MA, cuja relatora foi a Ministra Eliana Calmon, seguiu a corrente que utiliza o critério da cognição, asseverando que a sentença deveria prevalecer ao agravo de instrumento, haja vista que exauriente.


Percebe-se, assim, que não existe um posicionamento concreto e uniforme, no Superior Tribunal de Justiça, bem assim nos outros Tribunais, a ensejar um posicionamento firme por parte dessa Procuradoria.


No caso sob enfoque ainda não existe, nem mesmo, a referida sentença de primeiro grau, nem no processo cautelar, nem no processo principal (este nem sequer foi ainda proposto).


É de se ver, destarte, que existem as mais variadas possibilidades de desfecho do caso, fato este que merece ser relevado pela Administração Pública.


III – CONCLUSÃO


Pelo que se pôde perceber, existe, no caso em tela, tão somente, uma decisão singular do desembargador relator do recurso que suspende os efeitos da liminar do juízo monocrático, ainda não existindo uma decisão definitiva do colegiado do Tribunal.


Em que pese a tendência de o Tribunal, geralmente, confirmar a decisão liminar concedida pelo relator do agravo de instrumento, a pendência de julgamento colegiado faz com que a decisão liminar do relator, que suspendeu os efeitos da liminar de primeiro grau, ainda seja passível de modificação, fato este que propicia a instabilidade da decisão.


Por outro lado, deve-se mencionar que o julgamento do mérito do agravo de instrumento nº. 2.100/2008 é iminente, estando marcado, segundo informação contida no sítio do Tribunal, para o dia 29.04.08.


De mais a mais, tendo em vista a inexistência de sentença de mérito e muito menos de processo principal, percebe-se que a decisão definitiva sobre o caso ainda está por vir, existindo, tão somente, decisões precárias, embora robustas.


Portanto, a imprevisibilidade do provimento jurisdicional definitivo faz com que a Administração Pública aja com cautela no que se refere ao procedimento licitatório em comento, eis que a modificação da atual situação, embora não se apresente como a mais viável e a mais possível de ocorrer, poderá paralisar, posteriormente, o seguimento do procedimento licitatório já reinstalado.


De se ver, portanto, que uma obstaculização posterior do procedimento licitatório poderá vir a causar maiores prejuízos ao Estado, inclusive com possível ação de responsabilidade pelo ressarcimento dos prejuízos causados às empresas envolvidas no certame, fato que impõe maior prudência.


No entanto, caso a urgência na continuidade do procedimento licitatório se demonstre preponderante, essa Procuradoria é da opinião de que se espere, ao menos, o julgamento do mérito do recurso de agravo de instrumento nº. 2.100/2008, que ocorrerá, segundo informações do sítio do Tribunal de Justiça do Estado do Amapá, no dia 29.04.08, quando, então, ter-se-á, pelo menos, um provimento definitivo, ainda que não finalizador do processo, do órgão ad quem.


Com escusas de haver me excedido ao limite meramente técnico que a consulta exigia, e adentrando um pouco na seara administrativa, essa é a opinião da Procuradoria do Estado.


É o que nos parece.


S.M.J.


Macapá, 25 de abril de 2008.


Informações Sobre o Autor

Guilherme Carvalho e Sousa

Procurador do Estado no Amapá


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