Parto anônimo e a real proteção da criança e do adolescente

Introdução


O tema “parto anônimo” desperta grande interesse público. Trata-se de questão fundamental sobre nascimento e morte, intrinsecamente ligados à maneira como a sociedade cuida da mulher e da criança, e sobre os valores que a consciência e o agir determinam.


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Na verdade, os adeptos ao parto anônimo consideram-no uma boa evolução das rodas dos enjeitados, por permitir à mulher assistência médica, social e psicológica antes, durante e após o parto. Todavia, pela análise jurídica, o parto anônimo traz diversas dificuldades e incertezas legais do que a entrega de uma criança numa roda de enjeitados.


De outra sorte, parece duvidoso, por falta de dados estatísticos, que o parto anônimo tenha, efetivamente, os efeitos prometidos pelos seus defensores.


O presente artigo tem como finalidade, sem a pretensão de exaurir o tema, abordando alguns aspectos considerados relevantes no projeto de Lei 3.220/08 analisar as questões legais e controvertidas, tendo por base a real proteção do Direito das Crianças e dos Adolescentes.


O que é o parto anônimo?


Parto Anônimo, segundo o texto do projeto de Lei n. 3.220/08, é a possibilidade de a mãe, durante a gravidez ou até o dia em que deixar a unidade de saúde, após o parto, não assumir a maternidade da criança que gerou.


Tem o PL como justificativa para a sua implementação o seguinte dispositivo:


“(…) o parto anônimo surge como uma solução ao abandono trágico de recém-nascidos, afastando a clandestinidade do abandono, evitando, conseqüentemente, as situações indignas nas quais os recém-nascidos são deixados.”


O Projeto de Lei denominado Parto Anônimo é desnecessário, em face das disposições previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, afastando, inclusive, a eventual iniciativa de aperfeiçoamento. Ao invés de acrescentar, retrocede, desconsiderando avanços e conquistas importantes na normativa já existente de nosso país.


Assim, prevê a possibilidade de a mãe entregar o filho em adoção sem incorrer em crime ou qualquer outro tipo de responsabilidade civil ou criminal, o que já está previsto no ECA no art. 166. Todavia, o agravante do Projeto é que a entrega passaria a ser efetivada no ambiente hospitalar, aos profissionais da saúde e sem nenhuma assistência do sistema de proteção do Conselho Tutelar, em total descompasso com o art. 227 da Constituição Federal e disposições trazidas pela Lei n. 8.069/90, em especial, art. 136, inciso I.


E mais, no Projeto, os dados sobre a origem, a saúde dos genitores e as circunstâncias do nascimento ficarão armazenados, em sigilo, na unidade de saúde, somente sendo liberadas a pedido do anônimo e por ordem judicial. Na sistemática hoje existente, os dados da família biológica são levados ao processo judicial de adoção, permitindo que, no futuro, possa o filho ter a eles acesso.


Ainda, o art. 3 do Projeto afirma que será assegurado à mulher que desejar manter o anonimato o atendimento pré-natal e durante o parto, pelo SUS, em todos os postos de saúde e hospitais da rede pública de saúde que mantenham serviços de atendimento neonatal.


O Estatuto da Criança e do Adolescente, desde 1990, portanto há dezenove anos, no Capítulo I, que trata do direito à vida e à saúde (arts. 7 a 14), já assegurava à mulher o mencionado direito, além de outros tantos na área da saúde. Segundo dispõe o art. 7, a criança e o adolescente tem direito à proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência, assegurando-se à gestante, através, do SUS, o atendimento pré e perinatal, além de ser atendida, preferencialmente, pelo mesmo médico que a acompanhou na fase pré-natal.


Assim, nada mais é do que a solução imediatista para antigos e complexos problemas sociais brasileiros que, mais uma vez se tenta pelo caminho mais fácil alcançar uma suposta e falsa solução.


As origens das mazelas


O parto anônimo é uma designação recente, mas sua essência toma por empréstimo o que tradicionalmente fora designado como roda dos enjeitados ou roda dos expostos. Este instituto, cuja origem remota à Idade Média, encontrou na França e na Itália o pioneirismo da iniciativa, a qual foi estendida a outros países europeus. Entre nós teve início no Brasil Colônia, por herança de Portugal, sendo largamente utilizado até 1950.


O nome “roda” se deu pelo fato de ser fixado no muro ou na janela, normalmente das Santas Casas de Misericórdias, hospitais ou conventos, um artefato de madeira no qual era colocada a criança e mediante um giro era conduzida ao interior daquelas dependências. Um toque na campainha, ou um badalar de sino era o sinal de que mais uma criança se encontrava na “roda” e que quem a colocou não queria ser identificada.


Todavia, o patriarcalismo e a estrutura hierárquica entre os membros da família eram duas características essenciais da época. Ao homem cabia o papel de provedor e chefe da família e à mulher o cuidado e o zelo com a educação dos filhos e com a esfera interna da casa, por conseguinte, ausente da cena pública e excluída de cidadania jurídica.


Na nossa codificação de 1916 o Direito à igualdade e à cidadania eram questões utópicas que não encontravam eco perante a sociedade brasileira. Esse quadro de negação ao direito da mulher perdurou por muito tempo, mas paulatinamente foi-se conseguindo conquistas, com o ápice na Declaração Universal dos Direitos dos Homens (1948), marco da democracia moderna, que asseverou a igualdade entre homens e mulheres.


Dando um salto temporal chegamos à Constituição de 1988, nomeadamente uma constituição cidadã, rente com os novos valores sociais e uma tábua axiológica comprometida com a dignidade da pessoa humana. A opção da escolha deste princípio, como um dos fundamentos, marca a travessia de uma estrutura construída sob pilares da desigualdade, do despotismo e do sujeito abstrato, para uma estrutura voltada à realização do sujeito concreto, do sujeito de necessidades e de dignidade.


Tratar esses direitos no sentido libertário e igualitário é transformar a qualidade de vida das mulheres e por extensão é transformar a realidade social. Em sede constitucional encontra-se positivado a cidadania feminina, na dimensão da saúde reprodutiva, principalmente a partir da entrada em vigor da Lei n. 9.263/96, que dispõe sobre o planejamento familiar.


Assim, por saúde reprodutiva, entenda-se:


“um estado de completo bem-estar físico, mental e social em todas as matérias concernentes ao sistema reprodutivo, suas funções e processos, e não a simples ausência de doença ou enfermidade. A saúde reprodutiva implica, por conseguinte, que a pessoa possa ter uma vida sexual segura e satisfatória, tendo a capacidade de reproduzir e a liberdade de decidir sobre quanto e quantas vezes deve fazê-lo. Está implícito nesta última condição o direito de homens e mulheres de serem informados e de terem acesso aos métodos eficientes, seguros, aceitáveis e financeiramente compatíveis de planejamento familiar, assim como a outros métodos de regulação de fecundidade a sua escolha e que não contrariam a Lei, bem como o direito de acesso a serviços apropriados de saúde que propiciem às mulheres as condições de passar em segurança pela gestação e parto, proporcionando aos casais uma chance melhor de ter um filho sadio.” [1]


Assim, não se pode defender a utilização de Lei que tem sua essência nos preceitos e nos conceitos da Idade Média. Isso seria um abandono às conquistas, aos Direitos e à vida, na sua forma mais completa e integra de ser.


O proteger desviado 


O abandono acompanha a humanidade. Trata-se de um grave problema até o momento não erradicado. Se, efetivamente, queremos impedir o abandono, há que se começar cuidando das crianças, de suas mães, suas famílias, através de políticas púbicas específicas e adequadas, mediante programas de acompanhamento a curto, médio e longo prazo, de acordo com as necessidades de cada grupo.


Não se pode imaginar que a política de resolução simplista venha a dar a real segurança e o efetivo fim aos problemas do aborto ou do abandono de recém nascidos.


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Além do mais, o Direito à vida não pode mais ser desmembrado dos demais direitos fundamentais, como vem claramente assinalado na redação do art. 227 da Constituição Federal de 1988, onde inúmeros outros direitos ocupam o mesmo patamar que o direito à vida. Como refere Débora Gozzo, “não é possível preferir-se o direito à vida ao conhecimento da ascendência genética. De acordo com Benda, constitucionalista alemão, não se pode deixar aquele que já nasceu sem essa informação de extrema importância para sua saúde/vida psíquica e emocional”[2].


A sonegação da origem biológica, além de graves conseqüências que podem recair sobre a criança, hoje sujeito de direitos, levará, inclusive, nos casos em que não forem encontrados registros sobre a origem da criança, uma vez que caberá ao hospital armazená-lo, à impossibilidade de examinar-se, por ocasião da habilitação, um dos mais severos impedimentos para o casamento, isto é, a proibição de ascendente casar com descendente, de irmão casar com irmã e vice-versa, previsto no art. 1521, incisos I e IV, do CC, transportando-nos ao tempo das cavernas ou, em outras palavras, levando a desconsiderar um dos mais importantes pilares da civilização, a interdição imposta por incesto.


Ainda sobre a questão biológica, discorre José Carlos Teixeira Giorgis:


“Enquanto a investigação da paternidade tem leito no direito de família e procura a genitura biológica com reflexos no nome, parentesco, alimentos e sucessão, a pesquisa da ascendência genética apóia-se no direito constitucional de personalidade; e apenas pretende descobrir a história familiar para adotar medidas de preservação da saúde e da vida, necessidade psicológica de descortinar pais, ou resguardar os impedimentos matrimoniais.”[3]


No mesmo enfoque da obscuridade, o art. 15 estabelece o prazo de seis meses, a contar da data da publicação da lei, caso aprovada, para hospitais e postos de saúde conveniados ao SUS e que mantenham serviços de atendimento de gestantes e crianças em anonimato. O que seria isso? Não bastasse o parto e as mães em anonimato, pretende-se, agora, criar uma “criança anônima”, em plena vigência da Constituição Cidadã?


Desta forma, o que se pretende com o Projeto é acabar de forma trágica com os abandonos ocorrentes, mas para isso se institui o parto, a mãe e o filho anônimo, num verdadeiro conluio de negação e clandestinidade, em plena égide da Constituição Federal de 1988.


Considerações do Direito Comparado Alemão


Na Alemanha, assim como no Brasil, não existe a institucionalização do parto anônimo, mas apesar disso, passou-se a oferecer a possibilidade de realização de parto em anonimato – de forma parecida às previstas em legislações de outros países – de maneira que graves conseqüências passaram a ocorrer.


Inicialmente cabe se referir que a institucionalização de portinholas de bebês ou do parto anônimo, obtíveis por força de lei, impede a obtenção de informações acerca da identidade, de forma que se pode afirmar a ocorrência de lesão a direito fundamental consagrado na Alemanha, assim como no Brasil, na letra da Constituição Federal.


A exigência de implantação do parto anônimo obrigaria, na Alemanha, uma reforma radical e a uma quebra com os princípios fundamentais do direito alemão do estado de filiação. A possibilidade de ser informado sobre as próprias origens genéticas, bem como de ter conhecimento sobre a família onde se criou – se sanguínea ou apenas afetiva – constitui parte integrante do conceito de dignidade humana. Da mesma forma, é direito da pessoa, em casos de adoção, colocar-se à procura de seus pais biológicos a partir de uma determinada idade e impulsionar o encontro com sua identidade. Esse direito não foi apenas confirmado pela Corte Constitucional Alemã, mas encontra-se, igualmente, previsto em convenções internacionais que tratam dos direitos do homem.


Em segundo momento, cabe referirmos que o número de recém-nascidos mortos ou abandonados, na Alemanha, não diminuiu desde que surgiram a utilização das portinholas de bebês e se passou a oferecer a possibilidade do parto anônimo. Porém, o número de crianças que se tornaram anônimas e impossibilitadas de conhecer suas próprias origens aumentou de forma incomensurável. Em resumo, pode-se constatar:


– que não restou comprovado que vidas foram salvas ou abandonos evitados;


– que a mãe de crianças “artificialmente” adotadas aumentou;


– que a mãe, ou conforme o caso, os pais são levados a optar por uma – aparente – solução fácil apresentada;


– que as conseqüências para os envolvidos, em longo prazo, são mascaradas; e, por fim,


– que o perigo de abuso e de comércio de crianças permanece subestimado.[4]


Por esses e outros motivos, profissionais e técnico de todas as áreas insurgem-se contra a legalização das instalações de portinholas de bebês e do parto anônimo.


Assim, pela análise do histórico, da dinâmica social, das necessidades da pessoa humana e, principalmente, das legislações e consagrações de direitos, nacionais e alienígenas, é que se verifica que o parto anônimo não será capaz de garantir segurança e bem-estar às crianças desse país, nem mesmo será capaz de oferecer a proteção integral dos direitos fundamentais da humanidade.


Conclusão


O suposto – ou talvez real – estado de emergência temporário é utilizado como único critério para uma decisão que trará conseqüências para toda a vida de uma pessoa. E as conseqüências atingem não somente a mãe biológica e os pais adotivos, mas, sobretudo, a criança e seu bem-estar.


Se avançar é o que se pretende, há que se começar estudando a lei que já produzimos; valorizando o conhecimento existente; há que se começar reconhecendo os direitos postos na Carta Maior, como garantia constitucional, afastando-se a velha e ultrapassada visão do direito simplista, fragmentado e onipotente.


Se resguardar direitos e proteger as crianças de abortos e abandonos, são os objetivos, deve-se caminhar para uma política de saúde pública adequada, com atendimento especializado, com profissionais da saúde atuantes na sociedade, com planejamento familiar e educação para o povo. Além do mais, vamos deixar de lado as soluções imediatistas, que não resolvem o problema, mas mascaram a realidade.


 


Referências Bibliográficas

GIORGIS, José Carlos Teixeira. Direito à ancestralidade genômica. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?boletim&artigo=200>. Acesso em 07 mar. 2009.

GOZZO, Débora. Nascimento anônimo: em defesa do direito fundamental à vida. Disponível em: <http:www.fieo.br/edifieo/índex.php/rmd/article/view/41/79>. Acesso em: 10 mar. 2009. 

PRATA, Henrique Moraes.  Dissertação Aspectos Jurídicos da Portinhola de Bebês e do Parto Anônimo na Alemanha com Especial Consideração na Tradição Francesa do Accouchement Sous X e do Julgamento do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no Caso Odièvre; apresentada no Instituto de Direito de Família Alemão, Europeu e Internacional, no âmbito do programa de Mestrado em Direito Comparado da Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universitat Bonn, na República Federal da Alemanha. Orientadora Professora Doutora Nina Dethloff, LL.M, titular da Cátedra de Direito Civil, Direito Internacional Privado, Direito Comparado e Direito Europeu Privado. Data da prova oral: 11.07.05.

 

Notas:



[1] Conselho Regional de Medicina – SP.

[2] GOZZO, Débora. Nascimento anônimo: em defesa do direito fundamental à vida. Disponível em: <http:www.fieo.br/edifieo/índex.php/rmd/article/view/41/79>. Acesso em: 10 mar. 2009. 

[3] GIORGIS, José Carlos Teixeira. Direito à ancestralidade genômica. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?boletim&artigo=200>. Acesso em 07 mar. 2009.

[4] Dados retirados da Dissertação intitulada Aspectos Jurídicos da Portinhola de Bebês e do Parto Anônimo na Alemanha com Especial Consideração na Tradição Francesa do Accouchement Sous X e do Julgamento do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no Caso Odièvre, apresentada no Instituto de Direito de Família Alemão, Europeu e Internacional, no âmbito do programa de Mestrado em Direito Comparado da Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universitat Bonn, na República Federal da Alemanha. Orientadora Professora Doutora Nina Dethloff, LL.M, titular da Cátedra de Direito Civil, Direito Internacional Privado, Direito Comparado e Direito Europeu Privado, de autoria de Henrique Moraes Prata. Data da prova oral: 11.07.05.


Informações Sobre o Autor

Laura Affonso da Costa Levy

Advogada. Especialista em Direito de Família e Sucessões, pela Faculdade IDC; Pós-Graduanda em Bioética pela PUC/RS; Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC/RS; Diretora Estadual (RS) da ABRAFAM, Associação Brasileira dos Advogados de Família; Palestrante; Parecerista e Consultora Jurídica.


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