Resumo: O presente artigo tem por escopo analisar a possível incongruência existente entre a penhorabilidade do Bem de Família do fiador e o ordenamento jurídico brasileiro. Observando se há, neste dispositivo, afronta aos direitos constitucionalmente garantidos de moradia e isonomia. O Recurso Extraordinário que julgou o tema, a lei e a doutrina serão as fontes utilizadas para buscar alcançar este mister. Tal analise será procedida sob o prisma da boa-fé, princípio informado do Direito Civil brasileiro.
Palavras-chave: Penhorabilidade, Bem de Família, Moradia, Isonomia, Boa-Fé.
Sumário: Introdução 1. Do Bem de Família. 1.1 Bem de Família Legal. 2. Contato de Fiança. 3. Do Direito Social de Moradia. 3.1 Direito de Moradia – Norma Programática. 3.2 Direito de Moradia e Direito de Propriedade. 4 Da penhorabilidade do Bem de Família do Fiador. Conclusão. Referências. Fontes Legislativas e Jurisprudenciais.
Introdução
O presente artigo se propõe ao árduo trabalho de expor uma possível incongruência entre a exclusão do Bem de Família do fiador à proteção legal dispensada aos bens desta categoria e os direitos constitucionais à moradia e à isonomia.
Os Bens de Família, assim definidos pelo artigo 5°[1] da Lei número 8.009/90 receberam proteção especial de nosso ordenamento jurídico, não podendo ser penhorados para adimplir dívidas cíveis, comerciais, dentre outras, conforme aduz o artigo 1°[2], ressalvados os casos previstos no artigo 3°[3], ambos da supracitada lei ordinária.
Em contrapartida, a Lei número 8.245/91, em seu artigo 82[4] conhecida como Lei do Inquilinato alterou o referido artigo 3° da Lei número 8.009/90 elencando como exceção à impenhorabilidade do Bem de Família a obrigação decorrente de fiança em contratos de locação.
Não obstante, em meados de 2000 foi aprovada a Emenda Constitucional de número 26, alterou o artigo 6°[5] da Constituição da República Federativa do Brasil trouxe para o rol de Direitos Sociais o direito à moradia, restando grande dúvida acerca da recepção do inciso VII, do artigo 3° da Lei 8.009/90, alterado pela lei 8.245/91, uma vez que conforme suscitando pela doutrina e pelos Tribunais, à época, a penhorabilidade dos Bens de Família do fiador no contrato de locação mitiga o direito social à moradia, do artigo 6° da Constituição Federal da República de 1988 e o princípio da isonomia.
A alteração deste dispositivo causou grande alvoroço entre os juristas brasileiros, ao passo que, a lei da impenhorabilidade do Bem de Família tem caráter de ordem pública, e encontra-se arrimada pelo princípio da função social da propriedade do direito à moradia.
Surgiu assim o problema que será abordado no presente artigo. Para alcançar tal mister serão analisados os Bens de Família, passando pelo conceito geral de bens e as espécies de bem de família, delimitando sua aplicação e amplitude. Não obstante será delineado o contrato de fiança e sua posição nas relações locatícias. Em seguida estudar-se-à o direito à social moradia, em contraposição ao direito de propriedade e a sua respectiva função social. Por fim será analisado inteiro teor do julgamento do Recurso Extraordinário de número 407.688-8 – São Paulo, que no ano de 2006 declarou ser constitucional a penhorabilidade do bem de família do fiador.
Ao final de toda esta árdua jornada espera-se aproximar de alguma das correntes acerca do tema.
1. Do bem de família
Bem de família é um instituto do direito civil que visa proteger o mínimo existencial, no que tange a patrimônio, tornando impenhoráveis e imunes a dívidas de natureza cível, tributária, comercial, previdenciária ou de outra natureza os bens que se enquadram neste conceito. Tal instituto é arrimado na dignidade da pessoa humana, vetor axiológico de nosso ordenamento jurídico, e pela proteção à família dispensada pelo texto constitucional.
Nas palavras dos grandes mestres Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona.
“O bem de família é impenhorável, sendo excluído da execução por dívidas posteriores à sua instituição, ressalvadas as que provierem de tributos ou despesas condominiais relativas ao mesmo prédio. (STOLZE e PAMPLONA FILHO, 2003, p. 404).”
Elpídio Donizetti e Felipe Quintella, por sua vez conceituam bens de família.
“Bem de família consiste, portanto, no conjunto de bens que servem de moradia à pessoa ou à família, incluindo o imóvel e suas acessões, bem como os móveis que o guarnecem, o que não pode ser penhorado (DONIZETTI E QUINTELLA, 2012, p. 1057)”
Cumpre ressaltar que a doutrina divide os Bens de Família em duas modalidades: convencional e o legal.
O Bem de Família convencional encontra-se esposado nos artigos 1.711 e seguintes do Código Civil. Deve ser feito por escritura pública ou testamento, onde o cônjuge ou a entidade familiar destinará até um terço de seu patrimônio líquido para receber a proteção dispensada aos Bens de Família.
Aduzem Elpídio Donizetti e Felipe Quintella acerca do Bem de Família convencional.
“No sistema do Código Civil, a instituição do bem de família depende de escritura pública ou testamento, em que sejam destinados bens- que não ultrapassem um terço do patrimônio líquido do instituidor a época – para a constituição de bem de família. Daí se dizer que o Código Civil cuidou do bem de família convencional, ou seja, não daquele automaticamente instituído pela lei, mas de outro, instituído em sua substituição, por ato de vontade (DONIZETTI E QUINTELLA, 2012, p. 1058).”
Tal modalidade de Bem de Família alcançou grande popularidade na sociedade brasileira pela burocracia que a entidade familiar encontra ao fazê-lo, diante da necessidade de escritura pública ou testamente para tanto.
Flávio Tartuce (2013), um dos maiores doutrinadores do Direito Civil Brasileiro atribui, com maestria, a escassa utilização do Bem de Família convencional a dois: o primeiro deles, a necessidade de instituição por escritura pública, trazendo despesas com os emolumentos notoriais, ao passo que o Bem de Família decorrente de lei se dá de forma automática, inexistindo custos; Segundo porque a instituição do Bem de Família convencional limita a autonomia da vontade do proprietário, uma vez que os bens destinados para tal fim, em regra, tornam-se inalienáveis.
O Bem de Família legal, por sua vez, encontra respaldo na já citada Lei 8.009/90 e não depende de escritura pública ou tampouco testamento, decorre do simples fato ser imóvel residencial próprio da entidade familiar.
Se o Bem de Família convencional não obteve grande popularidade o bem de família legal, por sua vez é amplamente usado, uma vez que não depende de burocracias ou trâmites.
1.1. Bem de família legal
Este instituto jurídico foi importado do Estado do Texas nos Estados Unidos da América, de uma Lei promulgada em 1839, Homestead Exemption Act, em virtude uma crise financeira que acabou por endividar grande parte da população. De forma que a supracitada lei tornava isenta de penhora a pequena propriedade do devedor, dando segurança para sua família com o fulcro de atrair mais população para aquela localidade (VENOSA 2010).
Faz-se mister destacar a amplitude do conceito Bens de Família, bem como definir sua abrangência. Sobre o bem de família legal, discorrem Elpídio Donizetti e Felipe Quintella.
“Percebe-se que, segundo a Lei 8.009/90, a instituição do bem de família é automática, vez que decorre de lei. Ou seja, basta que o imóvel sirva de moradia para que se torne impenhorável. Por esta razão, diz-se que a Lei 8.009/90 cuida do bem de família legal. (DONIZETTI E QUINTELLA, 2012, p. 1058)”
Logo em seu artigo 1o, a Lei 8.009/90, refere-se a casal ou entidade familiar como beneficiados pelo instituto. A melhor doutrina e a jurisprudência dão interpretação extensiva aos termos legais, abrangendo casais não casados, homoafetivos, famílias formadas por irmãos e até mesmo o solteiro. Tal interpretação teleológica encontra respaldos na proteção a todas as espécies de família e na dignidade da pessoa humana.
Tal assunto foi alvo de súmula do Superior Tribunal de Justiça.
“Súmula 364: O conceito de impenhorabilidade do bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, casadas e viúvas (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2008).”
Sobre o tema, Elídio Donizetti e Felipe Quintella explanam de forma coesa e acertada.
“Em razão da tutela concedida ao casamento em detrimento de outras entidades familiares, durante muito tempo a doutrina e a jurisprudência somente aplicavam o benefício do bem de família aos núcleos formados por um vínculo matrimonial. Hoje, não obstante, não há mais espaço para esse tipo de discriminação. Um instituto não se interpreta nomen iuris, mas por sua natureza. O bem de família, independentemente de sua nomeclatura, é uma medida protetiva da moradia, enquanto direito fundamental decorrente da dignidade da pessoa humana. Aplica-se, por conseguinte, a qualquer pessoa. Dessarte deve, necessariamente, ser aplicado a pessoas sozinhas e a qualquer entidade familiar, como os núcleos mosaicos, monoparentais, homoafetivos e quaisquer outros. (DONIZETTI E QUINTELLA, 2012, p. 1057)”
Flávio Tartuce comenta os avanços calcados pela jurisprudência sobre o tema.
“Outra aplicação prática a ser citada é que a jurisprudência tem ampliado o conceito de família para fins de impenhorabilidade da referida lei. Isso porque, nos termos do artigo 226 da Constituição Federal, a família seria decorrente do casamento, da união estável ou da entidade monoparental (constituída entre ascendentes e descendentes). Reconhecendo que o rol constitucional é meramente exemplificativo (numerus apertus), o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o imóvel em que residem duas irmãs é Bem de Família e, portanto, impenhorável. (TARTUCE, 2013, p.4)”
Também ressalta-se que os bens que guarnecem o lar, incluindo equipamentos de natureza profissional, plantações e benfeitorias encontram proteção sob o pálio da impenhorabilidade dos Bens de Família. Contudo, são excluídos da impenhorabilidade os veículos, adornos suntuosos e obras de arte, nos termos da Lei 8.009/90[6] (DONIZETTI E QUINTELLA 2012).
A própria lei da impenhorabilidade do Bem de Família excepciona situações onde este instituto não pode ser alegado. O rol esposado no artigo terceiro[7] do diploma legal é taxativo, não devendo receber interpretação extensiva e arrima-se nas obrigações propter rem, créditos de natureza alimentar, obrigações salariais com trabalhadores dentro da própria residência, fiança em contratos de locação, dentre outros.
Destaca-se que o inciso VII do artigo 3o da Lei 8.009/90 foi acrescido pela Lei 8.245/91, suscitando diversas discussões acerca da congruência do dispositivo com nosso ordenamento jurídico. Acerca do tema preceitua Diniz.
“Devido ao acréscimo do inciso VII ao artigo 3º da Lei 8.009, de 1990, a impenhorabilidade de imóvel residencial do casal ou da entidade familiar não será oponível em processo de execução civil movido por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. O fiador não poderá, então, beneficiar-se da impenhorabilidade do imóvel onde reside com sua família, na hipótese de processo de execução relativo à fiança que prestou como garantia de um pacto locatício, assegurado o cumprimento das obrigações contratuais ex locato pelo afiançado (inquilino). (DINIZ, 1992, p.329)”
2. Do contrato de fiança
É cediço que o fiador em contratos de locação foi excluído pela Lei 8.245/91 da proteção dispensada aos bens de família do fiador. Para alcançar a fiel compreensão desta exclusão é imperioso ter um conceito do contrato de fiança, estabelecendo seus limites e delineando sua importância enquanto garantia locatícia.
Pela simples leitura do Código Civil, em seus artigos 818[8] e seguintes, é possível concluir que fiança é um contrato pelo qual uma pessoa (fiador) garante o adimplemento de determinada obrigação, caso o devedor original não o faça. Logo fiança é um contrato de garantia fidejussória que estabelece uma obrigação subsidiária em relação ao devedor da obrigação original.
O contrato de fiança não pode ser tácito ou verbal e não se admite interpretação extensiva do mesmo, consoante se depreende do artigo 819 do Código Civil.
Ressalta-se a natureza acessória do contrato de fiança, logo o valor desta pode ser inferior à do contrato principal, garantindo apenas parte da obrigação, mas nunca superior a este, consoante esposado no artigo 823[9] do Código Civil.
Importante acentuar a distinção entre fiança e aval, termos muitas vezes usados, erroneamente, como sinônimos. Nas palavras de Elpídio Donizetti e Felipe Qintella:
“Primeiramente, deve-se chamar a atenção do leitor para a importante distinção entre fiança, que é garantia contratual, e aval, que é garantia em título de crédito, como um cheque. A fiança concede por meio de contrato escrito; o aval é dado pela simples aposição de assinatura do avalista no final do título (DONIZETTI E QUINTELLA, 2012, p. 610)”
A fiança é assinada entre credor e fiador, não sendo essencial o assentimento do devedor para que esta seja celebrada[10].
A fiança ganha extrema importância nos contratos de aluguel uma vez que, dentre o rol de garantias locatícias estabelecidas no artigo 37 da Lei 8.245/91[11], é a garantia menos onerosa ao locador.
Dessarte, na realidade cotidiana, a fiança é praticamente a única garantia locatícia usada. Logo percebe-se a importância da discussão acerca da penhorabilidade dos bens de família do fiador em contratos de locação.
3. Do direito social de moradia
O direito à moradia foi inserido em nosso ordenamento jurídico, no rol de direitos sociais, no artigo 6o[12] da Constituição Federal, pela emenda Constitucional número 6 do ano de 2000.
Após a inserção deste direito foram fomentadas as discussões acerca da incongruência da penhorabilidade do bem de família do fiador com os preceitos da ordem constitucional, tendo em vista a previsão expressa do direito à moradia e o princípio da harmonia concêntria.
O conceito de direito à moradia é brilhantemente delineado por José Afonso da Silva.
“O direito à moradia significa ocupar um lugar como residência; ocupar uma casa, apartamento etc., para nele habitar. No “morar” encontramos a idéia básica da habitualidade no permanecer ocupando uma edificação, o que sobressai com sua correlação com o residir e o habitar com a mesma conotação de permanecer ocupando um lugar permanentemente. O direito à moradia não é necessariamente o direito à casa própria. Quer se garanta um teto onde se abrigue com a família de modo permanente, segundo a própria etimologia do verbo morar, do latim “morari”, que significa demorar, ficar (…) (SILVA, 2005, p. 313)”
Desta feita temos o direito à moradia como direito de morar, habitar um imóvel, espaço onde desenvolve-se a maior parte da personalidade do ser humano e onde fazem essenciais à privacidade e a intimidade, sem sofrer qualquer restrição imotivada ou arbitrária, por parte do Estado
Destacada importância deste direito constitucional cumpre delimitar sua natureza jurídica e sua aplicabilidade.
3.1 Direito de moradia – norma programática
Consoante aduz a melhor doutrina Constitucional brasileira, os direito sociais são prestações estatais que se dedicam a melhorar a condição social das pessoas, calcada no princípio da dignidade da pessoa humana. Nas palavras de José Afonso da Silva
“Como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressuposto do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições matérias mais propícias ao aferimento de igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade. (SILVA, 2001, p.276-278)”
Cumpre ressaltar que os direitos sociais são normas de caráter programático, ou seja, estabelecem metas para que a administração pública cumpra ou busque cumprir. Desta feita, possuem aplicação mediata.
José Afonso da Silva (2003) assevera que nas normas programáticas ao invés de que constituinte regular direita ou indiretamente determinados interesses, ele limitou-se a traçar princípios e metas a serem cumpridos por seus órgãos, visando a realização dos fins sociais do Estado.
Acerca do tema, preceitua o ilustre Canotilho.
“[…] independente da sua justiciabilidade e exequbilidade imediatas, sua dimensão objetiva e subjetiva supõe previsão legal de prestação aos cidadãos, donde entra a classe dos chamados direitos a prestações, dependentes da atividade mediadora dos poderes públicos (CANOTILHO, 2003, p. 447-448.)”
Logo, o direito a moraria não é um prestação concreta que pode ser exigida, de forma imediata, do Estado, sendo necessária uma análise mais cautelosa do tema, distinguindo o direito à moradia do direito à propriedade.
3.2 Direito de moradia e direito de propriedade
Diversos juristas, inflamados pela discussão acerca da penhorabilidade do bem de família do fiador acabam, erroneamente, por elencar como sinônimos estes dois direitos que são tão distintos.
Observa-se, primeiramente que o direito a moradia é um direito social, uma norma programática, ao passo que o direito de propriedade é um direito individual que encontra respaldo no rol do artigo 5o da Constituição da República Federativa do Brasil.
Não obstante o direito de propriedade não é uma norma programática, é uma norma de eficácia plena que estabelece uma imposição abstensiva ao Estado frente ao direito subjetivo de ser proprietário de cada cidadão, desde que cumprida a sua função social. Ou seja, mesmo após o advento do princípio da função social da propriedade, esta não perdeu seu caráter privativo e individual. Tal caráter foi apenas mitigado, em determinadas situações, tendo em vista o interesse público.
Ademais, destaca-se que apesar de em inúmeras vezes o direito à moradia e o de propriedade coexistirem em uma mesma relação jurídica, um não é “conditio sine qua non” para a caracterização do outro. Tal fato pode ser facilmente vislumbrado em contratos de locação de imóvel residencial, onde o locatário exerce o direito à moradia no imóvel e não tem a propriedade do mesmo, ao passo que o locador possui a propriedade deste sem possuir o direito à moradia.
Feita esta essencial discussão, estabelecida a diferença entre direito a moradia e direito de propriedade resta analisar a congruência da penhorabilidade do bem de família do fiador com nosso ordenamento jurídico.
4- Da penhorabilidade do bem de família do fiador
Conforme o conhecimento exposto até o presente momento percebe-se que existe uma aparente dicotomia entre a exclusão dos bens do fiador em contratos de aluguel da proteção dispensada aos Bens de Família e o direito à moradia.
A corrente doutrinária e jurisprudencial que defende a incongruência da penhorabilidade do bem de Família do Fiador em contratos de aluguel embasa seu raciocínio em dois direitos constitucionais: moradia e isonomia.
Segunda esta corrente, defendida por grandes nomes do direito civil brasileiro como: Rodolfo Pamplona Filho, Pablo Stolze, Flávio Tartuce, a Lei 8.009/91, juntamente com o direito social à moradia devem ser interpretados de forma teleológica, enfatizando que a intenção do legislador é clara ao proteger o único imóvel onde reside a família, ele quer garantir o patrimônio mínimo capaz de assegurar a existência digna das pessoas.
Ademais entendem que seja uma mácula ao princípio da isonomia o fato de bem de família do locador estar protegido pela impenhorabilidade do Bem de Família em detrimento do fiador que não goza de tal proteção.
Neste sentido preceituam Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho.
“Não ignorando que o fiador possa se obrigar solidariamente, o fato é que, na sua essência, “a fiança é um contrato meramente acessório” pelo qual um terceiro (fiador) assume a obrigação de pagar a dívida, se o devedor principal não o fizer.
Mas seria razoável garantir o cumprimento desta obrigação (essencialmente acessória) do fiador com o seu único bem de família? Seria tal norma constitucional?
Partindo-se da premissa de que as obrigações do locatário e do fiador tem a mesma base jurídica- contrato de locação – “não é justo que o garantidor responda com o seu bem de família, quando a mesma exigência não é feita para o locatário”. Isto é, se o inquilino, fugindo de suas obrigações, viajar para o interior da Bahia, e “comprar um único imóvel residencial”, este seu bem será “impenhorável”, ao passo que o fiador continuará respondendo com o seu próprio “bem de família” perante o locador […]
Á luz do Direito Civil Constitucional – pois não há outra forma de pensar modernamente o Direito Civil -, parece-nos forçoso concluir que este dispositivo de lei viola o princípio da isonomia insculpido no artigo 5º da CF, uma vez que trata de forma desigual locatário e fiador, embora as obrigações de ambos tenham a mesma causa jurídica: o contrato de locação.(GAGLIANO & PAMPLONA, 2003, p.289) (grifo nosso)”
Contudo, a corrente contrária, que ganhou a filiação do Supremo Tribunal Federal, aduz que a questão é mais complexa do que aparenta ser, sendo necessário pensar no direito á moradia como norma programática, ou seja uma meta à ser cumprida pela administração pública. Ou que não como uma norma programática, como um ideal que pode ser alcançado de diversas formas, inclusive pelo contrato de locação, acentuando sua diferença face ao direito de propriedade.
O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes (2005), no julgamento do RE 407.668-8, em seu voto aduziu as várias possibilidade de execução do direito social de moradia, garantia com contornos constitucionais. Destacando o enorme equívoco que se apresenta em reduzir o direito de moradia ao direito de ser proprietários de imóvel, concluindo que opor a impenhorabilidade do Bem de Família ao fiador nos contratos de aluguel seria desarrazoado.
A doutrina e jurisprudência adeptas desta corrente asseveram que o aluguel é uma das espécies de contrato que conseguem prover moradia à camada mais hipossuficiente da população, que não consegue tornar-se proprietário de um imóvel.
Conforme esposado no presente artigo a fiança é a modalidade de garantia locatícia que não ocasiona um ônus financeiro ao locatário, por isso alcançou imensa popularidade, figurando em praticamente todos os contratos de locação.
Desta forma, a corrente doutrinária favorável à penhorabilidade do Bem de Família do fiador aduz que o aluguel promove a moradia a uma parcela da população que encontra-se excluída da possibilidade de ser proprietária, logo a fiança nestes contratos é de extrema importância para garantir o adimplemento do crédito do locador, sem onerar o locatário excessivamente.
Não obstante o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 407.688-8 – São Paulo[13], firmou a tese de que a penhora do Bem de família do Fiador sequer viola o direito a moradia. O então ministro do STF no ano de 2006, Cézar Peluso, relator do referido acórdão, sem seu voto, ressaltou a importância da fiança para garantia do adimplemento do crédito do locador e o estímulo que a penhorabilidade do Bem de Família do fiador à oferta de imóveis para locação.
“Daí se vê logo que não repugna à ordem constitucional que o direito social de moradia – o qual, é bom observar, não se confunde, necessariamente, com direito à propriedade imobiliária ou direito de ser proprietário de imóvel – pode, sem prejuízo doutras alternativas conformadoras, reputar-se, em certo sentido, implementado por norma jurídica que estimule ou favoreça o incremento de imóveis para fins de locação habitacional, mediante previsão de reforço das garantias contratuais dos locadores. […]
A respeito, não precisaria advertir que um dos fatores mais agudos de retração e de dificuldades de acesso do mercado de locação predial está, por parte dos candidatos a locatários, na falta absoluta, na insuficiência, ou na onerosidade das garantias contratuais licitamente exigíveis pelos proprietários ou possuidores de imóveis de aluguel. Nem, tampouco, que acudir a essa distorção, facilitando a celebração de contratos e com isso realizando, num dos seus múltiplos modos de positivação e de realização histórica, o direito social de moradia, é a própria ratio legis da exceção prevista no artigo 3o, inc. VII da Lei 8.009, de 1990. São coisas óbvias e intuitivas.
Daí, só poder conceber-se acertada, em certo limite, a postura de quem vê, na penhorabilidade do imóvel do fiador, regra hostil ao artigo 6o da Constituição da República, em “havendo outros meios de assegurar o pagamento do débito” porque essa constitui a única hipótese em que, pretendendo, diante de particular circunstância do caso, a função prática de servir à prestação de garantia exclusiva das obrigações do locatário e, como tal, de condição necessária da locação, a aplicação da regra contradiria o propósito e o alcance normativo (PELUZO, Cezar, voto do ministro relator no RE 407.668-8, 2006 p. 5-6).”
Não obstante a corrente favorável a penhorabilidade do Bem de Família do fiador, no que tange ao princípio da isonomia afirma que há um choque entre este princípio e os da boa-fé objetiva e o “venire contra factum proprium”.
Segundo preceituam neste caso a boa-fé objetiva deve prevalecer na ponderação em detrimento da isonomia, uma vez que trata-se de um princípio informador do Direito Civil que deve permear todas as relações concernentes desta seara. Ao passo que é notoriamente lesivo à boa fé o fiador garantir o adimplemento do contrato de aluguel e posteriormente opor a impenhorabilidade de seus Bens de Família frente a uma execução do mesmo. Cézar Peluzo (2005), ainda no julgamento do RE 407.688/SP, rebate o argumento da mácula ao princípio da isonomia entre fiador e afiançado de forma brilhante prelecionando que a penhorabilidade do Bem de Família protege a condição inerente ao locador, incentivando que mais proprietários de imóveis passem a esta condição
O ministro Joaquim Barborsa, por sua vez, no mesmo julgamento, ressaltou a importância da autonomia privada e o conflito de normas constitucionais.
“A norma é muito clara: o fiador que oferece o único imóvel de sua propriedade para garantir contrato de locação de terceiro pode ter o bem penhorado em caso de descumprimento da obrigação principal pelo locatário.
Sustenta-se que essa penhora seria contrária ao disposto na Constituição Federal, sobretudo após a Emenda 26, que incluiu o direito à moradia no rol dos direito sociais descritos no artigo 6o da Constituição.
Entendo, porém que este não deve ser o deslance da questão. Como todos sabemos, os diretos fundamentais não tem caráter absoluto. Em determinadas situações, nada impede que um direito fundamental ceda o passo em prol da afirmação de outro, também em jogo numa relação jurídica concreta.
É precisamente o que está em jogo no presente caso. A decisão de prestar fiança, como já disse, é expressão de liberdade, do direito à livre contratação. Ao fazer uso dessa franquia constitucional, o cidadão, por livre e espontânea vontade, põe em risco a incolumidade de um direito fundamental social que lhe assegurado na constituição. E o faz, repito, por vontade própria. (BARBOSA, Joaquim, voto do ministro no RE 407.668-8, 2006 p. 5-6).”
5- Conclusão
Frente ao conteúdo esposado no presente artigo perceber-se a importância do instituto da impenhorabilidade do Bem de Família, principalmente em sua modalidade legal, devido à segurança que ele provém às entidades familiares, garantido-lhes o mínimo essencial para que vivam dignamente e desenvolvam suas relações.
Em contrapartida restou demonstrada a essencialidade da fiança nos contratos de locação, visto que é a única opção, dente as fornecidas pela lei, que aumenta a segurança do locador ao cobrar as eventuais parcelas contratuais em mora sem onerar em excesso o locatário. E que, trata-se da garantia locatícia que atualmente é usada em quase a totalidade deste tipo de contrato.
Restou delineado o caráter programático do direito social à moradia, estabelecendo uma meta ao Estado e as diversas possibilidades de se prover o direito a moradia, asseverando-se a diferença entre ele e o direito de propriedade imobiliária.
Ressaltou-se também a importância do aluguel frente ao direito social de moradia, visto que grande parte da população, devido a condições financeiras, não consegue ter acesso à propriedade imobiliária.
Diante da análise destes fatores e do julgamento do Supremo Tribunal Federal, filia-se à corrente de não haver incongruência entre a penhorabilidade do Bem de Família do fiador e o nosso ordenamento jurídico.
Visto que o aluguel é uma forma de prover moradia a uma parcela da população que até não possui condições de adquirir a propriedade um imóvel e, a possibilidade de penhora do bem de família do fiador reveste-se de uma medida capaz de garantir do crédito de locador, incentivando proprietários de imóveis vazios a alugá-los. Ou seja o benefício social ocasionado pelo instituto supera, de forma inequívoca, seus prejuízos.
Não obstante a boa-fé objetiva e a autonomia da vontade devem ser respeitadas em todas as relações jurídicas, de forma que a conduta do fiador de garantir o contrato de locação e depois opor a impenhorabilidade dos seus Bens de Família em uma eventual execução configura uma séria afronta a este princípio, devendo ser repudiada pelo Direito Cível brasileiro.
Ao que aparenta o legislador, ao elencar como exceção a impenhorabilidade do Bem de Família do fiador e não dispor acerca da possibilidade dos Bens de Família do próprio locatário, partiu do pressuposto de que o locatário não seria proprietário de bem imóvel. Gerando a possibilidade da situação pitoresca do fiador poder perder seu bem de família em virtude do contrato de locação enquanto o afiançado goza do benefício da impenhorabilidade. De forma que, demonstra ser o correto excluir o bem de família do locatário, de imóveis residenciais, do véu da proteção dispensada pela Lei 8.009/90.
Desta feita, tem-se o inciso VII do artigo 3o da Lei 8.009/90, introduzido pelo artigo 82 da Lei 8.245/91 é perfeitamente constitucional, não guardando qualquer incongruência insanável com nosso ordenamento jurídico.
Advogado especialista em Direito Imobiliário graduado pelo Centro Universitário UNA pós graduado em Direito Civil pela Universidade Anhanguera pós graduando em Processo Civil pela Universidade Damásio
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