Resumo: O presente trabalho objetiva analisar os efeitos secundários da condenação penal a partir do advento da Lei n. 9.714/1998, uma vez que o legislador infraconstitucional inseriu no inc. II, do art. 43 do Código Penal a “perda de bens e valores” como pena restritiva de direito frente ao preceito já contido no art. 91, II, “b” do Código Penal, que tem como sanção penal a mesma perda dos bens e valores auferidos pelo infrator com a prática do crime para fins de reparação do dano. Será, ainda, estudada a “perda de bens e valores” como a própria pena restritiva de direito ou mero efeito penal secundário e suas naturezas jurídicas.
Palavras-chaves: Perda de Bens e Valores – Efeitos Secundários da Condenação Penal –
Abstract: This paper aims to analyze the side effects of criminal convictions from theenactment of Law n°. 9.714/1998, once inserted in the legislator infra inc. II, art.43 of the Criminal Code to “loss of property and assets” as a penalty against therestrictive rule of law as contained in art. 91, II, “b” of the Criminal Code, which has the same penalty as confiscation of property and assets earned by theoffender with the crime for the purpose of repairing the damage. It will havestudied the “loss of goods and values” as the very restrictive penalty in law ormerely secondary effect of criminal law and their natures.
Keywords: Loss of Assets and Values - Side Effects of Criminal Conviction – Confiscation –
Introdução
Talvez, tenha sido precipitada a escolha desse tema, pois não existe ainda estudo aprofundado averiguando se a perda de bens e valores continua sendo mero efeito secundário da condenação penal após a introdução da Lei n. 9.714/98 na doutrina pátria, bem como se é possível continuar cumulando a “perda de bens e valores” com a pena privativa de liberdade, uma vez que agora essa perda é pena restritiva de direito, motivo pelo qual, os institutos aqui tratados, são analisados com base nas teorias e naturezas das penas.
Entretanto, o tema é relevante para o Direito Penal e é certo que essa pesquisa irá abrir novos estudos para uma compreensão maior e quiçá melhor na área criminal porque a Lei n. 9.714/98 introduziu no ordenamento jurídico a “perda de bens e valores” como pena restritiva de direito.
O artigo será limitado a realizar uma análise sucinta da finalidade das penas e dos efeitos penais secundários, bem como os demais institutos de natureza penal e as modalidades de sanção, tais como, pena de reclusão, pena restritiva de direitos, ne bis idem e o conflito de leis que informam a “perda de bens e valores”, pelo menos neste momento, com naturezas diversas e efeitos e consequências distintas das ciências sociais, criminológicas e psicológicas.
Por fim, a proposta do presente artigo é suscitar o debate e colocar em dúvida, se é possível continuar cumulando a “perda de bens e valores” com a pena privativa de liberdade, do que propriamente obter uma resposta exata e totalmente adequada à dimensão das inúmeras questões que, direta ou indiretamente, vinculam-se à problemática da pena.
1. NOÇÕES PRELIMINARES SOBRE AS PENAS
As teorias absolutas têm a pena como castigo para compensar o mal praticado dado a necessidade de reparar à moral pela imposição da ética, tendo em vista que a Escola Clássica considera a pena meramente consequência retributiva, sem qualquer preocupação com a pessoa humana, pois a sanção se destina para restabelecer a ordem pública que foi alterada pelo agente que praticou o delito.
As teorias relativas têm a pena com o fim de prevenção geral em relação a todos que viessem a praticar delito na medida em que, na Escola Positiva, o homem passou a ser o centro do Direito Penal, como objeto principal, na qual a pena já não era um mero castigo, mas sim a possibilidade de ressocializar o homem que delinquiu para proteção da sociedade em razão da sua periculosidade.
As teorias mistas têm a pena como retributiva pelo mal praticado e em seu aspecto moral com a finalidade de prevenção, um misto de educação e correção através de um movimento de política criminal humanista com raízes na idéia de que a sociedade só é efetivamente protegida quando proporciona concretamente medidas educacionais e cursos profissionalizantes necessários e satisfatórios a reeducar e inserir o agente ao meio social.
2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS PENAS NO BRASIL
No Brasil, os povos indígenas adotavam valores culturais de punição condizentes à vingança de sangue, a regra de Talião, a perda da paz, a pena de morte através de tacape e as penas corporais, sob a concepção de suas crendices.
Neste sentido, René Ariel Dotti[1], afirma:
“Ter encontrado sinais de punição na forma do talião e da vingança do sangue para as lesões cometidas nas tribos indígenas brasileiras. Acrescenta que a perda da paz também era utilizada, porém predominavam a pena de morte (através do tacape) e as penas corporais.”
Nessa fase, vê-se que a prática desproporcional à ofensa atinge não só o ofensor, como também todo o seu grupo familiar. As relações totêmicas ainda prevalecem, sendo que as práticas punitivas desses povos indígenas em nada influenciaram na legislação brasileira porque elas sobrevieram da Coroa Portuguesa, constantes nas famosas Ordenações do Reino.
No Período Colonial Brasileiro vigoraram as Ordenações Afonsinas (até 1512) e as Ordenações Manuelinas (até 1569). Ambas tratavam do tema penal em que a privação da liberdade era utilizada para garantir o julgamento e meio coercitivo do pagamento da pena pecuniária.
As Ordenações Filipinas foram introduzidas em nosso Direito penal pelo Imperador da Península Ibérica, o monarca Felipe. Nelas estavam contidos muitos delitos e variadas formas de suplício a serem aplicados ao corpo do condenado, sendo esta modalidade confundida com a fundamentação teológica. Porém, vale dizer, que se constituíam nas principais armas políticas do soberano para manter o controle social.
Atualmente, a pena aplicada ao indivíduo que praticou um ato ilícito pode objetivar várias finalidades: puní-lo pelo ato que cometeu e reeducá-lo, de modo que possa ser reintegrado à sociedade e que não cometa tais atos novamente, servindo, portanto, de exemplo para que nenhum outro indivíduo persiga o caminho percorrido por este infrator, além de proteger a sociedade, de modo que o Estado, único titular do direito de punir, aprisione qualquer pessoa capaz de desestabilizar a paz pública e o bem comum.
Portanto, para que a pena imposta pelo Estado alcance essas finalidades, ela deverá estar revestida de notável discrição para que cumpra o seu papel sem precisar ser injusta, desnecessária ou cruel. Sucede que o ser humano ao longo de sua evolução chegou à conclusão que as penas extremamente severas não eram suficientes para reduzir os delitos – o sistema de “vingança institucionalizada” não produzia os efeitos desejados.
Isso vem sendo discutido desde épocas mais remotas, como evidencia MONTESQUIEU[2] em sua singular obra, “O Espírito das Leis”:
“Os homens não precisam, absolutamente, ser levados pelos caminhos extremos; deve-se procurar os meios que a natureza nos oferece para os conduzir.”(…)
“É, entre nós, um grande erro aplicar o mesmo castigo ao que assalta estradas e ao que rouba e assassina. É evidente, para a segurança pública, que se deveria estabelecer alguma diferença na pena.
Indubitavelmente, o sistema carcerário é um grande fracasso do Direito Penal, seja porque não diminui o índice de criminalidade, seja porque especializa o infrator no crime, seja também porque devolve a sociedade o condenado em condição pior do que quando ele entrou, ou ainda, porque permite a perda paulatina da sua aptidão para o trabalho.
3. FUNÇÃO DAS PENAS NO BRASIL
As penas impostas pelo Estado por meio da ação penal ao agente causador do delito têm como finalidades retribuir o crime perpetrado e prevenir a prática de novos delitos através do poder intimidativo que as sanções do Direito Penal representam para o autor do crime com a proposta de ressocialização do condenado para o melhor retorno ao convívio social, conforme consta expressamente no art. 59 do Código Penal:
“Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:”
A Lei n. 7.210/1984 (Lei de Execução Penal), também, expressamente determina o ônus ao Estado de prevenir o crime e orientar o retorno do agente à convivência em sociedade, impondo ao Estado a responsabilidade de mudar o comportamento criminoso:
“Art. 10. A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.
Art. 22. A assistência social tem por finalidade amparar o preso e o internado e prepará-los para o retorno à liberdade.”
Sucede que o Estado não presta a devida assistência ao liberado, pois não concede meios adequados e necessários ao seu egresso, visando a sua subsistência através de trabalho digno para a sua reinserção social. Esse processo não existe embora conste expressamente na lei. O que é visto é o abandono e o retrocesso da juridicidade do sistema, de modo que, em boa hora, o CNJ intervém, por meio dos mutirões carcerários, para fazer valer os direitos daqueles que são submetidos ao arbítrio do Estado. Aliás, como já afirmava Michel Foucault, a Justiça Penal libertar-se da sua má consciência ao argumento de que busca a cura escolhendo técnicas que não mais atua diretamente sobre o corpo do condenado, mas sobre a sua alma para moldar-lhe segundo determinados padrões politicamente comprometidos.
Todavia, é certo que seus corpos permanecem empenhados ao Estado, não mais dispostos a todo tipo de crueldade. Agora estão nas mãos dos seus companheiros de cárcere, que impõem a regra do submundo do sistema carcerário, eis que as penas não são cumpridas “de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”, conforme disposto no art. 5º, XLVIII, da CR/88. Veja-se:
“XLVIII – a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado;”
Há séculos a experiência tem demonstrado que nenhuma espécie de tratamento penitenciário tem obtido os resultados esperados quanto à prevenção do crime. A prisão tem servido apenas para aliviar a alma da vítima e a consciência de que o Estado puniu sem se preocupar com a cura, isto é, com efetivo objetivo de prevenir o crime.
A partir deste raciocínio, a Resolução nº. 45/110, da Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou as Regras de Tóquio, como o resultado dos debates e intercâmbio de experiências mundiais, iniciados em Tóquio pelo Instituto da Ásia e do Extremo Oriente, para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente, órgão das Nações Unidas, que introduziu no Brasil como baliza para a implantação, execução e fiscalização das medidas alternativas à pena privativa de liberdade como solução para pequena e média criminalidade, enfatizando a necessidade da substituição da prisão pela pena alternativa e a redução do número de reclusos.
4. AS REGRAS DE TÓQUIO
A Assembleia Geral das Nações Unidas, através da Resolução 217 de 10/12/1948, proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos e reconheceu a dignidade da pessoa humana como fundamento da liberdade, da justiça e da paz, cujo preâmbulo enfatizou que o desrespeito pelos direitos humanos constitui atos bárbaros e que os direitos humanos devem ser protegidos pelo Estado para que o homem não seja compelido à opressão. Veja-se:
“(…) Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum,
Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão, (…)”
A Assembleia Geral das Nações Unidas expediu a Resolução 45/110, aprovada em 14/12/90 na 68.ª sessão plenária, adotando as Regras de Tóquio que estabelecem em síntese, a necessidade de soluções alternativas à prisão, visando à redução do número de reclusos e a reinserção social dos delinquentes, e no item 4., solicita aos Estados membros, na qual o Brasil faz parte, que apliquem as Regras de Tóquio e deem especial publicidade a elas, levando-as ao conhecimento dos responsáveis pelas suas aplicações, inclusive “do Ministério Público, dos Juízes, dos funcionários encarregados de controlar a liberdade condicional, dos advogados, das vítimas, dos delinqüentes, dos serviços sociais e das organizações governamentais que participam na aplicação das medidas não privativas de liberdade, e dos representantes do poder executivo e do corpo legislativo assim como da população”.
Assim, surgiram as Regras Mínimas das Nações Unidas sobre as Medidas Não-privativas de Liberdade, como resposta à Escola Clássica, que vê o delito como uma ofensa ao Estado, punindo com pena rigorosa, visando retribuir ao infrator o mal por ele praticado para inibir a ocorrência de novos delitos, sem qualquer caráter de ressocialização.
Considerando que a pena-prisão constitui punição desumana, eis que degradante, cruel e torturante, surgiram as penas restritivas de direito como medidas alternativas à prisão, inclusive para evitar os abusos, arbitrariedades e submissão do condenado aos mais fortes, sempre presentes no sistema prisional, para aqueles casos de pequena e média criminalidade.
5. AS ESPÉCIES DE PENAS NO BRASIL
A partir deste raciocínio, depois de uma longa e lenta evolução o legislador brasileiro em 1984 introduziu no nosso sistema penal as penas restritivas de direitos para substituir as penas de prisão com uma experiência pioneira, conforme se verifica no art. 32 do CP:
“Art. 32 – As penas são:
I – privativas de liberdade;
II – restritivas de direitos;
III – de multa.”
As penas privativas de liberdade são aquelas de reclusão que devem ser cumpridas em regimes abertos, semi-abertos e fechados. As penas de detenção somente podem ter início de cumprimento em regimes abertos ou semi-abertos, salvo necessidade de transferência a regime fechado, conforme consta no art. 33 do CP:
“Art. 33 – A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semi-aberto ou aberto. A de detenção, em regime semi-aberto, ou aberto, salvo necessidade de transferência a regime fechado.
§ 1º – Considera-se:
a) regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média;
b) regime semi-aberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar;
c) regime aberto a execução da pena em casa de albergado ou estabelecimento adequado.”
As penas restritivas de direitos são substitutivas e autônomas das penas privativas de liberdade, ou seja, primeiramente, o Juiz ou Tribunal fixa a pena privativa de liberdade e, quando presentes os requisitos legais, procede-se a substituição pelas penas restritivas de direitos.
Já a pena de multa tem sua natureza pecuniária e o seu cálculo é elaborado considerando o sistema dias-multa. Consiste no pagamento pelo condenado ao fundo penitenciário de quantia fixada pelo Poder Judiciário, conforme estabelece o art. 49 do CP:
“Art. 49 – A pena de multa consiste no pagamento ao fundo penitenciário da quantia fixada na sentença e calculada em dias-multa. Será, no mínimo, de 10 (dez) e, no máximo, de 360 (trezentos e sessenta) dias-multa”.
Essas são as modalidades de penas em nosso país, visando proteger os direitos de todos aqueles que, estão ou não temporariamente em território nacional.
6. AS PENAS E SEUS PRINCÍPIOS
As penas são regidas pelos princípios da legalidade, da reserva legal e anterioridade, devendo ser prevista por lei vigente à época do fato, podendo retroagir para beneficiar ao condenado, conforme disposto no art. 1º do CP:
“Art. 1.º Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.”
O Professor André Estefam Araújo Lima, leciona, com mestria, que o princípio da legalidade está previsto no art. 5.º, XXXIX, CF e no art. 1.º, CP, a partir dos quais (nullum crimen, nulla poena, sine previa lege) e que se pode destacar os seguintes aspectos:
“a) Aspecto político – o princípio da legalidade, no campo penal, corresponde a uma aspiração básica e fundamental do homem, qual seja, a de ter uma proteção contra qualquer forma de tirania e arbítrio dos detentores do exercício do poder, capaz de
lhe garantir a convivência em sociedade, sem o risco de ter a sua liberdade cerceada pelo Estado, a não ser nas hipóteses previamente estabelecidas em regras gerais, abstratas e impessoais.
b) Aspecto histórico – surgiu pela primeira vez na Magna Charta Libertatum. Documento de cunho liberatório imposto pelos barões ingleses ao rei João Sem Terra, em 1215, cujo art. 39 dizia que nenhum homem livre poderia ser submetido à pena não prevista em lei local. Tal princípio foi traduzido na conhecida fórmula em latim nullum crimem, nulla poena sine praevia lege, por Feuerbach, considerado o pai do Direito Penal moderno.
c) Aspecto jurídico – somente haverá crime quando existir perfeita correspondência entre a conduta praticada e a previsão legal. Sendo assim, torna-se impossível sua existência sem lei que o descreva. Segundo a teoria de Binding, as normas penais incriminadoras não são proibitivas, mas sim descritivas, portanto, quem pratica um crime não age contra a lei, mas de acordo com esta”. (Pós-graduação UNAR, Módulo I, Direito Penal da Aplicação da Lei penal, pág. 2).
Sendo assim, não pode haver pena sem lei anterior defina os limites mínimos e máximos para quem praticar determinado comportamento em respeito à segurança jurídica e à garantia de liberdade, impedindo que alguém seja punido por uma conduta que não era considerada delituosa à época de sua prática.
7. AS PENAS RESTRITIVAS DE DIREITO
Com o passar dos anos, não foi mais plausível, sustentar a afirmação de que é possível, mediante cárcere, castigar o condenado e, ao mesmo tempo, ressocializá-lo, porque o sistema carcerário se mostrou falido a esse propósito de ressocialização, exigindo a escolha de novas penas alternativas às privativas de liberdade.
Ainda, comprovou-se que os vínculos familiares, afetivos e sociais são preponderantes para afastar o condenado da delinquência mesmo para aqueles que não acreditam nas penas alternativas, pois não negam a necessidade de um vínculo afetivo entre o preso e a sociedade para que ocorra a sua humanização, eis que esse vínculo afetivo é que faz nascer no agente o desejo de retorno à sociedade em condições de convivência normal.
A tendência moderna é de que as penas privativas de liberdade sejam impostas cada vez menos e tão-somente aqueles crimes brutais, violentos e de grande comoção social praticados por agentes de alta periculosidade e que efetivamente retiram a paz social, eis que ao longo do tempo restou demonstrado que as penas privativas de liberdade não servem para reeducar o condenado, pois o que importa na pena é que ela produza sobre o condenado a consciência de uma represália da sociedade para pacificar a comoção social pela prática do crime. Neste ponto, ouçamos as palavras do Professor Élio Morselli:
“Associando-se a uma série de grandes dogmáticos, como ERNST BELING, RICHARD SCHMIDT, HELLMUTH MAYER e outros, e inspirando-se sobretudo na psicologia dinâmica ou do profundo, muitos observaram, entre eles STRENG que a pena constitui uma reação da sociedade às suas profundas e inconscientes “necessidades emocionais”. Em outros termos, diante de um delito, surge na sociedade uma profunda exigência de represália, voltada a desencadear sobre o réu as cargas agressivas suscitadas pela frustração derivada do alarme social ou coletivo.
Com essa teoria das necessidades emotivas de punição latentes no âmago da sociedade, a concepção retributiva encontraria, então, uma nova força, e pode, pois, ser chamada de “neo-retributiva”. Não se trataria mais de uma exigência abstrata e mecânica de compensar o malum actionis com o malum passionis, como os grandes pensadores – de PLATÃO a TOMAZ DE AQUINO, de KANT a HEGEL – teriam configurado a instância retributiva. Tratar-se-ia, ao contrário, de um fenômeno com profundas raízes na natureza humana. Tal fenômeno – por mais que possa parecer irracional e pouco apreciável do ponto de vista ético -, tem uma profunda e necessária justificação na Natur der Sache, ou seja, na natureza das coisas.
Todavia, esta solução para o problema do fundamento da pena, voltado para um “revival”, o revivamento da retribuição não satisfaz uma parte considerável da doutrina. O reconhecimento de tais necessidades emocionais de punição não constitui, para aqueles autores, motivo suficiente para que possam aceitá-lo, e, nem tampouco, legitimá-lo. Aliás, argumenta-se que a sociedade deveria se opor a tais exigências inconscientes, exatamente porque são irracionais e não respeitáveis da dignidade humana: o homem – afirma, por exemplo, EUSEBI – não pode ser instrumentalizado para a satisfação dessas suas baixas exigências. De qualquer maneira – insiste DOLCINI -, ainda que a consciência social aceitasse incondicionalmente tais exigências, nem por isso o legislador deveria fazer outro canto. Aliás, seria seu dever controlar e reprimir as mesmas o mais possível, em nome de superiores instâncias ético-jurídicas.
Apesar disto, tais críticas estão bem cientes de que, se por um lado rejeita-se a concepção retributiva por ser cruel e desumana, ainda que iluminada pela nova ética psicológica, por outro não é nem mesmo possível aceitar, sic et simplicitur a explicação geral-preventiva do punitur ne peccetur, fundada na força ameaçadora da sanção penal. É, na verdade, sempre válida a objeção de KANT segundo a qual, se a razão da pena consiste em impedir, através da ameaça, que outros membros da sociedade caiam no delito, então acaba-se por instrumentalizar – em função desta ameaça – o sujeito sobre o qual recai o castigo. Com certeza, como disse HEGEL, a teoria da prevenção geral por meio da ameaça considera o homem “como quando se levanta um bastão contra um cão“, e, portanto, “a pessoa ao invés de ser respeitada, é tratada exatamente como se trata a um cão“. Do momento em que o homem é fim de si mesmo, ele não pode se tornar nem objeto, nem meio ou instrumento para a realização de outras finalidades a ele estranhas. Nisto reside o grande ensinamento contido no imperativo categórico de EMMANUEL KANT”. (FUNÇÃO DA PENA À LUZ DA MODERNA CRIMINOLOGIA, Publicada na Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal nº 03 – AGO-SET/2000, pág. 5).
Por tais razões, o legislador introduziu no nosso ordenamento jurídico as penas restritivas de direito visando incutir na sociedade o mesmo sentimento de justiça e fidelidade a lei e a ordem que representa as penas privativas de liberdade, sem retirá-lo da sociedade, mas mostrando agora, que ele pode ser útil a ela, permitindo que mantenha os vínculos de afeto para que ocorra a sua humanização em condições de convivência normal.
Assim, as penas restritivas de direito servem para satisfazer a comoção social provocada pelo fato delituoso, reconstituindo o equilíbrio da consciência da sociedade, de modo, a restabelecer a ordem jurídica constituída e suas consequências negativas do crime que perturbaram o equilíbrio intrapsíquico da vítima e da sociedade.
Pois bem, as penas restritivas de direito agem como instrumento de regeneração do equilíbrio da sociedade, pois ao punir o infrator, retira da consciência da sociedade o crime, dando-lhe a satisfação das necessidades emocionais da punição aos seres humanos.
8. A INTRODUÇÃO NO ORDENAMENTO PENAL DA LEI 9.714/98
A Lei n. 9.714/98 foi inserida no ordenamento jurídico penal com este propósito de neutralização ou de retirada do alarde social, acionada pela punição do condenado para alcançar os sentimentos de Justiça coletivos, agora, por outros meios alternativos de penas.
Tendo as penas restritivas de direitos a função reintegradora da paz social em razão do seu caráter retributivo pelo mal infligido à vítima e à sociedade pelo condenado que agiu diversamente de como se deveria, o legislador ampliou as espécies de penas restritivas de direitos e a incidência de sua aplicação, conforme disposto no art. 43 do CP:
“Art. 43 – As penas restritivas de direitos são:
I – prestação pecuniária;
II – perda de bens e valores (Alterado pela L-009.714-1998);
III – (vetado)
IV – prestação de serviços à comunidade ou às entidades públicas;
V – interdição temporária de direitos;
VI – limitação de fim de semana.”
Vê-se, pois, o legislador inseriu no inc. II do art. 43 do CP a perda de bens e valores como pena restritiva de direitos. Assim, a “perda de bens e valores” não pode mais ser considerada como meros efeitos penais secundários da condenação penal para tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo agente do delito por ter ofendido um bem tutelado pelo Estado como disposto no art. 91, II, “b” do Código Penal:
“Art. 91 – São efeitos da condenação: (…)
II – a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé: (…)
b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso.”
Se assim não for, ao atribuir a perda de bens e valores como meras consequências penais automáticas do proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso, então não mais se conseguirá discernir qual é a pena justa, isto é, capaz de compensar o mal cometido.
Vale dizer, terminar-se-ia por não se entender o que são exatamente as penas restritivas de direitos, ou então, não se compreenderá mais qual é o próprio fundamento da perda de bens e valores no conceito das penas restritivas de direitos, se considerado ainda como meros e automáticos efeitos penais secundários da condenação penal.
Chegar-se-á, portanto, a inaceitável consequência de se conceber a dogmática do art. 43. II, do CP em base não mais ontológica, mas somente de política criminal, renunciando a idéia da retribuição para fundamentar a pena exclusivamente no objetivo de prevenção geral.
De outra banda, o art. 44 do CP, modificado pela Lei nº 9.714/1998, que deu novo tratamento legislativo ao sistema de penas alternativas ao determinar que as penas restritivas de direito sejam autônomas e substituam as privativas de liberdade quando o apenado enquadrasse nos requisitos daquele dispositivo. Confira-se:
“Art. 44 – As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:” (Alterado pela L-009.714-1998)
Neste contexto, não há como conceber que a perda de bens e valores seja mera consequência dos efeitos penais secundários, seja porque a hipótese prevista no inc. II do art. 43 do CP, por opção do legislador, passou a ser considerada pena restritiva de direitos, seja porque são autônomas e substituem as penas privativas de liberdade, seja porque violaria a proporcionalidade da pena e o princípio da suficiência da pena alternativa, restando inócua e sem qualquer sentido prático a modificação das penas introduzida pela Lei nº 9.714/1998.
Desta forma, a perda de bens e valores é uma sanção penal e não mero efeito secundário da condenação penal porque o delito perpetrado é motivo mais que justo para aplicar o caráter aflitivo dessa pena de forma autônoma em substituição a pena privativa de liberdade em detrimento do patrimônio lícito do condenado, isto é, dispensando-se, neste caso, perquirir a prova da origem dos bens que integram a sua riqueza.
Por outro lado, já se encontram no nosso ordenamento pátrio exemplos de penas restritivas, que alcançaram a finalidade de introduzir na sociedade o sentimento de justiça, independentemente da substituição das penas privativas de liberdade, como no CTB (lei 9.503/97) no seu art. 292, que dispõe:
“Art. 292. A suspensão ou a proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor pode ser imposta como penalidade principal, isolada ou cumulativamente com outras penalidades”.
Há outros mecanismos penais que autorizam ao juiz também deixar de aplicar as penas privativas de liberdade, no caso de condenação penal, quando “as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária”, poupando, desta forma, o agente da reprovação e prevenção do Estado pelo crime praticado na medida em que a sociedade incutiu o mesmo sentimento de justiça e fidelidade a lei e a ordem, como no caso do § 5º, do art. 121, do Código Penal, que assim, dispõe:
“§ 5º – Na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária.”
O perdão judicial isenta o agente das penas, porque se entende que a punição sofrida pelo próprio destino da sua conduta é mais que suficiente para demonstrar a reprovação e prevenção do Estado, tendo em vista que ele já foi satisfatoriamente punido pelo próprio fato que de alguma forma deu causa ou poderia evitá-lo, restando satisfeita a comoção social e o equilíbrio intrapsíquico da sociedade.
É o que ocorre com a perda de bens e valores, pois atua como mecanismo de regeneração do equilíbrio social, com a finalidade de evitar os males do encarceramento, dando a sociedade à satisfação das necessidades emocionais da punição aos seres humanos.
Ademais, o princípio ne bis in idem também veda a possibilidade de cumular a pena restritiva de direito com a pena privativa de liberdade, isto é, a perda de bens e valores com a pena privativa de liberdade ao argumento de que se trata de mero efeito penal secundário ou pluralidade de sanções, seja porque implica duplicidade de sanções, seja porque a perda de bens e valores pode ser mais aflitiva do que a pena privativa de liberdade, seja ainda, porque a perda de bens e valores é a própria pena restritiva de direitos, seja também, porque mais que suficiente para demonstrar a reprovação e prevenção do Estado, seja, por fim, porque as penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as penas privativas de liberdade.
Nesse sentido, vem decidindo os nossos Tribunais:
“CRIME – FALTA DE RECOLHIMENTO – CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS – PENA – DOSIMETRIA – SUBSTITUIÇÃO.
Se o réu é primário, tem bons antecedentes e não ostenta personalidade criminosa, a pena deve ser fixada no mínimo, caso não haja outras circunstâncias que recomendem particularmente maior severidade.
O aumento decorrente da continuidade não precisa obedecer, necessariamente, critério objetivo ou matemático, em função do número de fatos.
Nos crimes patrimoniais, salvo quando praticados com violência ou em circunstâncias que evidenciem especial periculosidade, a melhor pena é, de regra, a que atinge o bolso do delinqüente. Para tanto, nada mais indicado do que a substituição da pena privativa de liberdade pela perda de bens e valores no montante do prejuízo causado ou do proveito obtido pelo agente ou por terceiro em conseqüência do crime.
Se a pena for superior a um ano é recomendável aplicar uma segunda pena restritiva de direitos, preferentemente a de prestação de serviços à comunidade ou a de limitação de fim de semana.
Substituição, no caso concreto, da pena privativa de liberdade, fixada em 2 anos e 8 meses de reclusão, pela pena de perda de valor patrimonial e, ainda, pela limitação de fim de semana”. (TRF4, ACR 96.04.58814-1, Rel. P/ Acórdão Des. Fed. Amir José Finocchiaro Sarti).
Assim, a perda de bens e valores se relaciona com o direito de punir do Estado, criando nova modalidade de pena restritiva de direito de forma autônoma e em substituição a pena privativa de liberdade, ampliando o jus puniendi estatal, já que afeta a modalidade do direito de punir do Estado por meio da perda de bens e valores.
A novatio legis in mellius (Lei nº 9.714/1998), ao acrescentar a perda de bens e valores no rol das penas restritivas de direitos, traduz um beneficio para o agente e uma nova releitura ao art. 91, II, “b” do Código Penal, pois não mais pode considerar a perda de bens e valores mero efeito secundário da condenação penal a partir da vigência da Lei nº 9.714/1998.
Destarte, a perda de bens e valores é pena restritiva de direitos derivada da pena privativa de liberdade, até porque uma das finalidades da substituição é justamente evitar o encarceramento daquele que teria sido condenado ao cumprimento de uma pena privativa de liberdade, evitando o desnecessário contato com presos pela prática de graves infrações e afastando-o do ambiente promíscuo e dessocializador do sistema penitenciário. Veja-se:
“HABEAS CORPUS”. SENTENÇA CONDENATÓRIA CONFIRMADA PELO TRF. RECURSO EXTRAORDINÁRIO ADMITIDO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DAS PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS. POSSIBILIDADE. CONVERSÃO DAS PENAS SUBSTITUTIVAS EM PRIVATIVA DE LIBERDADE. MANUTENÇÃO DA DECISÃO. ORDEM DENEGADA. 1. Não tendo o recurso extraordinário o efeito suspensivo, impõe-se o início da execução provisória. E se isso ocorre com as penas privativas de liberdade (Súmula 267 do STJ), que têm caráter restritivo mais gravoso, também a solução é aplicável em casos de penas restritivas de direitos aplicadas em substituição. 2. Se o réu, injustificadamente, deixar de cumprir as penas substitutivas determinadas, deve retornar à situação anterior, que é a imposição de pena privativa de liberdade. 3. A perda de bens e valores do condenado, classificada no Código Penal como pena restritiva de direitos (art. 43, II, do CP), pode ser objeto de execução provisória. 4. A pena substitutiva de “perda de bens e valores do condenado: (art. 43, I e 45, § 3º do CP) não se confunde com a “perda do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso”, prevista no art. 91, II, b, do mesmo diploma legal. 5. Ordem denegada. (TRF4, HABEAS CORPUS” Nº 2003.04.01.016982-0/RS, Rel. Des. Fed. FÁBIO ROSA).
Destarte, a perda de bens e valores do condenado não mais pode ser aplicada cumulativamente com a pena privativa de liberdade, eis que não mais se trata de mero efeito secundário da condenação penal previsto no art. 91, inciso II, alínea b, do Código Penal, mas sim da própria pena restritiva de direito (art. 43, II e 45, § 3º do CP), de forma, autônoma e substitui a pena privativa de liberdade (art. 44, caput), sobretudo, quando a Lei nova nº 9.714/1998 passou a regular a perda de bens e valores como pena restritiva de direitos de que se tratava anteriormente de mero efeito secundário da condenação penal.
9. CONCLUSÃO
Diante do que foi exposto e sem esgotar o assunto sobre o tema, verifica-se que o legislador vem abrandando a aplicação de pena privativa de liberdade, bem como optou por inovar as penas restritivas de direitos, pois embora a norma jurídica prevista no art. 91, inciso II, alínea b, do Código Penal, já contemplasse a perda de bens e valores do condenado como mero efeito secundário da condenação penal decidiu eleger a perda de bens e valores a categoria de pena restritiva de direitos, de modo, que não é mais possível cumular a pena privativa de liberdade com a pena da perda de bens e valores, sobretudo, porque as penas restritivas de direitos são autônomas e substitui a pena privativa de liberdade.
O presente trabalho demonstra ainda a necessidade de um aprofundamento maior às teorias das penas e a correta disposição das penas restritivas de direitos no ordenamento jurídico e o seu enquadramento no Direito Penal Público à luz das mais recentes contribuições das ciências sociais, criminológicas e psicológicas, para melhor se entender a necessidade do ser humano em insistir em punir com a pena privativa de liberdade, pois, certamente, esses mesmos membros da sociedade, na qual circulam, tanto quanto seus parentes e amigos, têm tudo para virem ser, tanto quanto seus familiares, cedo ou tarde, penalizados por essa pena privativa de liberdade as quais todos conhecemos o anacronismo do sistema penitenciário, tão-somente para retribuir com sofrimento, o mal acarretado, com o fim em si mesmo, de modo, a suprir as necessidades emotivas de punição latentes no âmago da sociedade.
Informações Sobre o Autor
Cristovam Dionísio de Barros
Advogado; Pós-graduado em Processo Penal; Pós-graduado em Direito Penal; Pós-graduando em Direito Tributário (Faculdade Milton Campos)