Um dos princípios federativos é o da independência e harmonia dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (art. 2º).
A Constituição Federal prescreveu o princípio da independência e harmonia, e não o princípio da independência e autonomia para cada Poder fazer o que bem entender.
A Carta Magna procedeu a tripartição do Poder por “diferentes órgãos independentes para coibir a ação de um deles sem a limitação dos outros, formando um verdadeiro sistema de freios e contrapesos que se subsume no princípio da independência e harmonia entre os poderes.”[1] Dessa forma, não há autonomia e independência absoluta de cada Poder.
Para assegurar a competência de cada Poder existem as Forças Armadas “destinadas à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” (art. 142 da CF).
Em tese, o Chefe de qualquer Poder pode requisitar a atuação das Forças Armadas para assegurar o exercício de seus poderes constitucionais.
Ao Poder Legislativo cabe preponderantemente exercer a função de criar normas jurídicas gerais e abstratas, para regular a convivência harmônica da sociedade. O processo legislativo tem a participação do Executivo, quer por meio de iniciativa legislativa, quer por meio de sanção ou veto ao projeto legislativo aprovado pelo Parlamento Nacional. O Legislativo tem, ainda, a prerrogativa de “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder de regulamentar ou dos limites da delegação legislativa” (art. 49, V da CF).
Ao Poder Executivo cabe preponderantemente a tarefa de executar as leis e administrar os negócios do Estado, ou seja, governar. Para tanto, dispõe do poder de regulamentar as leis para sua fiel execução, incidindo na sustação desses atos normativos na hipótese de ultrapassar os limites do poder regulatório.
O Poder Judiciário é aquele voltado fundamentalmente para promover a administração da justiça mediante aplicação das leis às hipóteses de conflitos de interesses, buscando sua composição. Não participa do processo legislativo, porém, cabe-lhe a prerrogativa de declarar a inconstitucionalidade das leis. Seu órgão de cúpula, o Supremo Tribunal Federal, é o guardião da Constituição Federal (art. 102 da CF).
Inconfundíveis as atuações do Legislativo e do Judiciário. No dizer do Ministro Massami Ueda “a especialização da lei ao caso concreto é que caracteriza a atuação jurisdicional, ou seja, a norma geral e abstrata, formulada pelo legislador, se individualiza e se transforma num comando concreto entre as partes, tornando-se, assim, a decisão jurisdicional, lei que vincula as partes interessadas.” [2]
No que diz respeito à atuação do Poder Executivo e do Poder Judiciário, em princípio, ambos os Poderes aplicam a lei. Só que o Executivo aplica a lei de ofício no desempenho de sua atividade típica, ao passo que, o Judiciário aplica a lei no exercício de sua atividade jurisdicional, limitando-se a agir provocadamente tendo a sua decisão caráter definitivo, o que não acontece com a decisão tomada no âmbito administrativo.
Apesar das claras definições de competência de cada Poder, ultimamente, o Judiciário vem acentuando o chamado ativismo judicial, como que misturando a função técnica com a função política.
Muitas vezes, tem ido bem além da simples interpretação e aplicação das leis vigentes. Têm implicado uma verdadeira inovação legislativa. É verdade que em algumas oportunidades, essas decisões criativas têm o sentido de conferir eficácia ao mandado de injunção, previsto no art. 5º, LXXI da CF, em desuso, porque inútil do ponto de vista prático. Foi o que aconteceu no caso da greve dos servidores públicos, cujo dispositivo constitucional pertinente (art. 37, VII da CF), até hoje, não foi regulamentado pelo Congresso Nacional, causando dúvidas e incertezas jurídicas.
Apesar de alguns constitucionalistas modernos aprovarem a judicialização da política em nome da profunda transformação social porque passa o mundo e o nosso país nos últimos tempos, o certo é que a continuar prescrito na Carta Política o princípio da tripartição do Poder, para preservar a atuação independente e harmoniosa dos poderes do Estado (art. 2º da CF), não será possível um órgão técnico interferir em um órgão político que representa a vontade da sociedade. A soberania popular, que é fonte de direitos e garantias fundamentais, paira acima do próprio poder político do Estado.
Veiculou-se na imprensa a idéia de que o Congresso Nacional pretende aprovar uma Emenda Constitucional para consignar no art. 49, XI da CF a sua competência para sustar, também, os efeitos da decisão judicial que implicar usurpação de competência privativa do Poder Legislativo.
A idéia aparentemente é salutar. O grande problema é o de saber quando e onde se deu essa usurpação de competência, matéria que se insere no âmbito constitucional, que cabe ao Supremo Tribunal Federal dar a última palavra, como guardião da Constituição que é.
Por isso, se aprovada a Emenda em questão estaremos caminhando para um perigoso impasse político-institucional que não interessa a quem quer que seja.
É preciso que cada Poder se conscientize da necessidade de se ater aos limites de sua competência constitucional.
Cada país, cada povo e em cada época tem a sua justiça refletida nas leis em vigor. Nem sempre a legalidade se harmoniza com o conceito de justiça. Uma coisa é deixar de aplicar a lei inconstitucional, a lei desprovida de razoabilidade, ou a lei manifestamente injusta, tendo em vista o fim social do direito. Outra coisa bem diversa é, em nome da justiça, inovar a ordem legal, alterando-a ou fazendo acréscimos, como que pretendendo o julgador substituir-se no critério de justiça do legislador.
Seria bom que essa vontade de fazer justiça implicasse o afastamento das leis que criam inúmeras sanções políticas contra os contribuintes-devedores com nítido desvio de finalidade, que expurgassem do ordenamento jurídico tributos manifestamente inconstitucionais, e que julgassem com a devida celeridade os incentivos fiscais concedidos unilateralmente por diversos Estados-membros ao arrepio da lei de regência da matéria referida no texto constitucional e que, por isso mesmo, não tem muito o que debater.
Enquanto isso não acontecer – aplicação das lei conformes e afastamento da aplicação das leis não conformadas com a Constituição – em tempo razoável (art. 5º, LXXVIII da CF), não se pode entender, por questão de coerência, o acentuado ativismo judicial da Corte Suprema.
Notas:
[1] Cf. nosso Da liminar em matéria tributária. 2ª. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 4-5.
[2] Da competência em matéria administrativa. São Paulo: Ícone Editora, 1997, p. 58.
Informações Sobre o Autor
Kiyoshi Harada
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.