O Direito é fenômeno cultural, e como tal, sujeito aos fluxos e influxos da sociedade cujas relações tem a pretensão de regular. E não poderia ser diferente, sob pena de o descompasso entre a norma vigente e os valores prezados pelos cidadãos relegá-lo ao ostracismo e à inefetividade.
Nesta necessária dialética, no entanto, muitas vezes a positivação não é capaz de alcançar integralmente o pretendido pelos destinatários últimos da norma, o cidadão, e muito menos os operadores jurídicos diretos, carentes de instrumental moderno e servível à prestação da tutela jurisdicional efetiva . Isto se verifica por razões as mais diversas, algumas jurídicas e outras nem tanto, algumas deliberadas e explícitas, outras ocultas e inconfessáveis.
A mediocridade legislativa também contribui para a péssima qualidade do direito objetivo, a desafiar os intérpretes e operadores. Outras vezes, porém, o alcance da regra atinge com precisão cirúrgica a intenção tanto do legislador quanto dos titulares dos bens protegidos. E é exatamente no momento máximo da norma, quando de sua concretização, na subsunção do fato ao direito, que é possível constatar, em toda a sua extensão, a sua razoabilidade e utlidade.
No campo penal, quase sempre, a experiência bem o demonstra, a deflagração da persecução criminal, o primeiro contato com crime e com o delinqüente, se verifica no dia-a-dia das delegacias policiais, notadamente nas noites e madrugadas, onde a “notitia criminis” aporta em contornos fáticos pouco precisos, em situações nebulosas nas quais os envolvidos no fato apresentam as suas impressões e versões sob óticas, perspectivas, e, não poucas vezes, pretensões divergentes.
No “front penal”, incumbe à autoridade policial a primeira linha de defesa social, o que se reveste de profundo significado e relevância jurídicos, já que os primeiros momentos pós-delito são determinantes no correto encaminhamento da ocorrência e seus desdobramentos. Uma análise mal conduzida e interpretações equivocadas certamente terão repercussões mais adiante, tanto para o Estado/Sociedade, quanto para o imputado, e quase sempre de caráter irreversível.
Não se deve negligenciar e desprestigiar o trabalho desenvolvido pela polícia e a coleta de elementos probatórios na fase policial sob o falacioso argumento de que trata-se de “instrução de segunda categoria”, “ de mero procedimento administrativo”, “insuscetível de nulidade”, e isto por uma razão intuitiva. No calor dos fatos, na ardência do flagrante, nos instantes que se seguem à execução do delito, a verdade material, tão perseguida por muitos, fulgura de maneira cintilante, disponível sem rebuços e mascaramentos, conquanto se faça necessária sua decodificação.
O crime apresenta múltiplos significados na relação dialógica surda que se trava entre a vítima (ainda que morta), o autor e a sociedade. O primeiro decodificador é quase sempre a autoridade policial, receptora técnica privilegiada da mensagem contida no contexto do delito. A apreensão dos sentidos e sinais e seu registro no Auto de Prisão em Flagrante marcarão, em um primeiro momento, a tônica da atuação dos demais órgãos da persecução criminal, ainda que posteriormente, na fase judicial, novos sentidos venham a ser construídos pelas partes, respectivamente o dono da ação penal e a defesa. Mesmo que tal ocorra, a reconstrução histórica do fato criminoso (“Teoria da Prova”, Antonio Dellepiane) já estará irremediavelmente comprometida com o registro incial (depoimentos, declarações, interrogatórios, perícia)no IP.
Destaca-se, desta forma, a relevância e a responsabilidade, fundamentais em um Estado Democrático de Direito, de um aparelho policial bem preparado e estruturado, em condições de ser a interface do mundo real com o Ministério Público e o Juiz. Em outras palavras, cabe ao Delegado de Polícia traduzir uma realidade fática criminal flamejante em uma linguagem técnico-científica minimamente compreensível, própria do mundo jurídico, este último essencialmente de papel ( o que não está nos autos não está no mundo).
Bem verdade que posteriormente, na fase instrutória, as demais autoridades terão contato direto com as personagens do drama criminal, mas as condiçoes serão bem outras, já filtradas, condicionadas e, algumas vezes, distorcidas, sobretudo porque os interesses em disputa na lide (Coutinho, Jacinto Nelson Miranda. A Lide e o Conteúdo do Processo Penal ) são quase sempre incomponíveis. O contato secundário dos julgadores, às vezes em terceiro ou quarto graus(caso dos Tribunais Superiores), distante temporalmente do episódio sub judice, inevitavelmente afeta os juízos de valor.
Neste passo, a simbiose do trabalho desenvolvido pela polícia e pelo Ministérico Público deve estar afinada e desenvolver-se em ambiente diferente do que lamentalvemente se verifica em algumas situações Brasil afora. A disputa silenciosa de poder, neste caso, tem como maiores prejudicados as vítimas, as instituições e a sociedade como um todo. A experiência revela que onde há parceria e comprometimento, os índices de criminalidade diminuem drasticamente. Indiscutível que o sistema deve ser aprimorado, o paradigma investigativo se transformar para acompanhar a nova criminalidade do século XXI. Investimentos se fazem necessários, e não apenas financeiros, mas sobretudo na formação do homem, do policial, na remodelação do modelo de inquérito policial atualmente existente e das técnicas investigativas.
A polícia produz conhecimento, um conhecimento fundamental para a compreensão do fenômeno criminal e criminógeno (Jorge de Figueiredo Dias.Criminologia : o homem delinquente e a sociedade criminógena), e para a formulação de uma politica(Criminal) interventiva, ou não, (Direito Penal Mínimo) mais eficaz e menos simbólica(Direito Penal Simbólico). Mas lamentavelmente este conhecimento, não meramente acadêmico, se perde todos os dias na rotina policial, onde policiais cada vez mais desestimulados (propositalmente?) se limitam, quando muito, a transmiti-lo aos policiais recém ingressos de forma oral, prejudicando, desta forma, o aproveitamento, aprimoramento, registro e transmissão científicos do saber.
Algumas transformações estão muito próximas, um novo Código de Processo Penal encontra-se em vias de aprovação. Ainda que tímidas, se comparadas com as potencialidades de modificação, resta saber se, conforme sugerido no início destas ponderações, as mudanças serão efetivas ou apenas semânticas.
Informações Sobre o Autor
Douglas Roberto Ribeiro de Magalhães Chegury
Delegado de Polícia Civil no DF