Resumo: Ab initio, como é cediço, a Constituição Federal de 1988 determinou, de maneira expressa, a proteção do consumidor e a elevou a categoria de direito fundamental e princípio a ser obedecido no referente à estabilidade da ordem econômica, conforme se depreende da redação dos artigos 5º, inciso XXXII e 170, inciso V. O artigo 5º do Texto Constitucional, ao estabelecer que o Estado deve promover a defesa do consumidor, com clareza solar, assegura ao cidadão essa proteção como um direito fundamental, implicitamente, reconheceu a vulnerabilidade do consumidor na relação de consumo. Nesta linha, o Estatuto Consumerista em razão do princípio protecionista constitucional, cujos influxos passaram a influenciar a legislação infraconstitucional, coloca em destaque que o mencionado diploma não permite que suas disposições sejam afastadas por convenção entre as partes, já que a natureza de ordem pública e interesse social, notadamente diante da vulnerabilidade do consumidor, obsta a mitigação da incidência do diploma multicitado. Ao lado disso, a essência protecionista, alçada ao status de princípio orientador, comporta a intervenção do Ministério Público em questões envolvendo demandas que se centrem em discussões acerca das relações de consumo. No mais, o corolário em comento estabelece que a proteção dispensada pelo Texto Constitucional deve, de ofício, ser reconhecida pelo magistrado, a fim de assegurar que a discrepância que orbita em torno do consumido, no que se refere à vulnerabilidade, seja ainda mais agravada.
Palavras-chaves: Defesa e Proteção do Consumidor. Princípio do Protecionismo do Consumidor. Tábua Principiológica.
Sumário: 1 Comentários Introdutórios; 2 A Valoração dos Princípios: A Influência do Pós-Positivismo no Ordenamento Brasileiro; 3 O Preceito da Vulnerabilidade enquanto Axioma Sustentador do Direito do Consumidor; 4 Ponderações ao Princípio do Protecionismo do Consumidor: Breve Painel
1 Comentários Introdutórios
Inicialmente, ao se dispensar um exame acerca do tema colocado em tela, patente se faz arrazoar que a Ciência Jurídica, enquanto um conjunto multifacetado de arcabouço doutrinário e técnico, assim como as robustas ramificações que a integram, reclama uma interpretação alicerçada nos plurais aspectos modificadores que passaram a influir em sua estruturação. Neste alamiré, lançando à tona os aspectos característicos de mutabilidade que passaram a orientar o Direito, tornou-se imperioso salientar, com ênfase, que não mais subsiste uma visão arrimada em preceitos estagnados e estanques, alheios às necessidades e às diversidades sociais que passaram a contornar os Ordenamentos Jurídicos. Ora, em razão do burilado, infere-se que não mais prospera o arcabouço imutável que outrora sedimentava a aplicação das leis, sendo, em decorrência dos anseios da população, suplantados em uma nova sistemática.
Com espeque em tais premissas, cuida hastear como flâmula de interpretação o “prisma de avaliação o brocardo jurídico 'Ubi societas, ibi jus', ou seja, 'Onde está a sociedade, está o Direito', tornando explícita e cristalina a relação de interdependência que esse binômio mantém”[1]. Destarte, com clareza solar, denota-se que há uma interação consolidada na mútua dependência, já que o primeiro tem suas balizas fincadas no constante processo de evolução da sociedade, com o fito de que seus Diplomas Legislativos e institutos não fiquem inquinados de inaptidão e arcaísmo, em total descompasso com a realidade vigente. A segunda, por sua vez, apresenta estrutural dependência das regras consolidadas pelo Ordenamento Pátrio, cujo escopo primevo é assegurar que não haja uma vingança privada, afastando, por extensão, qualquer ranço que rememore priscas eras em que o homem valorizava a Lei de Talião (“Olho por olho, dente por dente”), bem como para evitar que se robusteça um cenário caótico no seio da coletividade.
Ademais, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, imprescindível se fez adotá-la como maciço axioma de sustentação do Ordenamento Brasileiro, precipuamente quando se objetiva a amoldagem do texto legal, genérico e abstrato, aos complexos anseios e múltiplas necessidades que influenciam a realidade contemporânea. Ao lado disso, há que se citar o voto magistral voto proferido pelo Ministro Eros Grau, ao apreciar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF, “o direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[2]. Como bem pontuado, o fascínio da Ciência Jurídica jaz justamente na constante e imprescindível mutabilidade que apresenta, decorrente do dinamismo que reverbera na sociedade e orienta a aplicação dos Diplomas Legais.
Ainda neste substrato de exposição, pode-se evidenciar que a concepção pós-positivista que passou a permear o Direito, ofertou, por via de consequência, uma rotunda independência dos estudiosos e profissionais da Ciência Jurídica. Aliás, há que se citar o entendimento de Verdan, “esta doutrina é o ponto culminante de uma progressiva evolução acerca do valor atribuído aos princípios em face da legislação”[3]. Destarte, a partir de uma análise profunda de sustentáculos, infere-se que o ponto central da corrente pós-positivista cinge-se à valoração da robusta tábua principiológica que Direito e, por conseguinte, o arcabouço normativo passando a figurar, nesta tela, como normas de cunho vinculante, flâmulas hasteadas a serem adotadas na aplicação e interpretação do conteúdo das leis.
2 A Valoração dos Princípios: A Influência do Pós-Positivismo no Ordenamento Brasileiro
Em sede de ponderações introdutórias, tendo como pilares de apoio as lições apresentadas por Marquesi[4] que, com substancial pertinência, dicciona que os postulados e dogmas se afiguram como a gênese, o ponto de partida ou mesmo o primeiro momento da existência de algo. Nesta trilha, há que se gizar, com bastante ênfase, que os princípios se apresentam como verdades fundamentais, que suportam ou asseguram a certeza de uma gama de juízos e valores que norteiam as aplicações das normas diante da situação concreta, adequando o texto frio, abstrato e genérico às nuances e particularidades apresentadas pela interação do ser humano. Objetiva, por conseguinte, com a valoração dos princípios vedar a exacerbação errônea do texto da lei, conferindo-lhe dinamicidade ao apreciar as questões colocadas em análise.
Com supedâneo em tais ideários, salientar se faz patente que os dogmas, valorados pelas linhas do pós-positivismo, são responsáveis por fundar o Ordenamento Jurídico e atuar como normas vinculantes, verdadeiras flâmulas desfraldadas na interpretação do Ordenamento Jurídico. Desta sorte, insta obtemperar que ter conhecimento dos preceitos e dogmas permite adentrar no âmago da realidade jurídica. Afora isso, toda sociedade que se encontre politicamente organizada ostenta uma tábua principiológica, a qual, com efeito, oscila e evolui em consonância com a cultura e os valores adotados. Ao lado disso, em razão do aspecto essencial que apresentam, os preceitos podem variar, de maneira robusta, adequando-se a realidade vigorante em cada Estado, ou seja, os corolários são resultantes dos anseios sagrados em cada população. . Entrementes, o que assegura a característica fundante dos axiomas é o fato de estarem alicerçados em cânones positivados pelos representantes da nação ou de regra costumeira, que foi democraticamente aderida pela população.
Nesta senda, os dogmas que são salvaguardados pela Ciência Jurídica passam a ser erigidos à condição de elementos que compreendem em seu bojo oferta de uma abrangência mais versátil, contemplando, de maneira singular, as múltiplas espécies normativas que integram o ordenamento pátrio. Ao lado do apresentado, com fortes cores e traços grosso, há que se evidenciar que tais mandamentos passam a figurar como super-normas, isto é, “preceitos que exprimem valor e, por tal fato, são como pontos de referências para as demais, que desdobram de seu conteúdo”[5]. Os corolários passam a figurar como verdadeiros pilares sobre os quais o arcabouço teórico que compõe o Direito se estrutura, segundo a brilhante exposição de Tovar[6]. Com efeito, essa concepção deve ser estendida a interpretação das normas que integram o ramo Consumerista da Ciência Jurídica, em especial devido à proteção dispensada pelo Ordenamento Pátrio aos consumidores, em razão da vulnerabilidade desses.
Salta aos olhos, desta sorte, o relevo indiscutível que reveste o Direito do Consumidor, sendo considerada, inclusive, como irrecusável importância jurídica, econômica e política, sendo dotado de caráter absolutamente inovador, eis que elevou a defesa do consumidor à posição eminente de direito fundamental, atribuindo-lhe, ainda, a condição de princípio estruturador e conformador da própria ordem econômica. Verifica-se, portanto, que com as inovações apresentadas no Texto Constitucional erigiram os consumidores como detentores de direitos constitucionais fundamentais, conjugado, de maneira robusta, com o relevante propósito de legitimar todas as medidas de intervenção estatal necessárias e a salvaguardar as disposições entalhadas na Carta de 1988.
Em decorrência de tais lições, destacar é crucial que o Código de Defesa do Consumidor deve ser interpretado a partir de uma luz emanada pelos valores de maciça relevância para a Constituição Federal de 1988. Isto é, cabe ao Arquiteto do Direito observar, de forma imperiosa, a tábua principiológica, considerada como essencial e exaltada como fundamental dentro da Carta Magna do Estado Brasileiro, ao aplicar a legislação abstrata ao caso concreto. A exemplo de tal afirmativa, pode-se citar tábua principiológica que orienta a interpretação das normas atinentes à Legislação Consumerista. Com o alicerce no pontuado, salta aos olhos a necessidade de desnudar tal assunto, com o intento de afastar qualquer possível desmistificação, com o fito primordial de substancializar um entendimento mais robusto acerca do tema.
3 O Preceito da Vulnerabilidade enquanto Axioma Sustentador do Direito do Consumidor
Ab initio, como é cediço, a Constituição Federal de 1988 determinou, de maneira expressa, a proteção do consumidor e a elevou a categoria de direito fundamental e princípio a ser obedecido no referente à estabilidade da ordem econômica, conforme se depreende da redação dos artigos 5º, inciso XXXII[7] e 170, inciso V[8]. O artigo 5º do Texto Constitucional, ao estabelecer que o Estado deve promover a defesa do consumidor, com clareza solar, assegura ao cidadão essa proteção como um direito fundamental, implicitamente, reconheceu a vulnerabilidade do consumidor na relação de consumo. Foi, justamente, no princípio da vulnerabilidade do consumidor que o movimento consumerista se baseou para chegar a atual legislação protetora, tendo sido, inclusive, expressamente burilado no inciso I do artigo 4º do Código de Defesa do Consumidor[9]. Como bem acentua Almeida, o princípio da vulnerabilidade “é a espinha dorsal da proteção ao consumidor, sobre o qual se assenta toda a linha filosófica do movimento”[10].
O dogma em comento considera o consumidor a parte mais fraca da relação de consumo, uma vez que o consumidor se submete ao poder de quem dispõe o controle sobre bens de produção para satisfazer suas necessidades de consumo. Em outras palavras, o consumidor se submete às condições que lhes são impostas no mercado de consumo. Trata-se de técnica utilizada para aplicar as normas consumeristas de maneira harmoniosa com a realidade concreta, conferindo-lhe instrumentalidade para iluminar a aplicação daquelas de modo protetivo e reequilibrado, promovendo a igualdade e a justiça equitativa. Neste sentido, é possível fazer alusão ao entendimento explicitado pelo Ministro Massami Uyeda, ao relatoriar o Recurso Especial N° 1.293.006/SP, em especial quando salienta que “a relação jurídica estabelecida entre as partes é de consumo e, portanto, impõe-se que seu exame seja realizado dentro do microssistema protetivo instituído pelo Código de Defesa do Consumidor, observando-se a vulnerabilidade material e a hipossuficiência processual do consumidor”[11].
Com efeito, a vulnerabilidade está relacionado a um estado do indivíduo, uma situação inerentes de risco ou um sinal de excessiva confrontação de interesses identificados no mercado, podendo ensejar um cenário provisório ou permanente. “Todo consumidor é sempre vulnerável, característico intrínseca à própria condição de destinatário final do produto ou serviço”[12], como bem sublinham, em seu magistério, Flávio Tartuce e Daniel Amorim Assumpção Neves. Verifica-se, desta sorte, que o consumidor, por sua natureza, está envolto no princípio da vulnerabilidade. A figura da vulnerabilidade, outrossim, para fins de aplicação das normas protetivas do Código de Defesa do Consumidor, tanto pode ser a econômica, a jurídica, a social, a técnica e outras mais. Neste sentido, oportunamente, colaciona-se o entendimento jurisprudencial construído pelo Superior Tribunal de Justiça, conforme se extrai:
“Ementa: Direito Marcário e Processual Civil. Recurso Especial. Competência para julgar pedido de perdas e danos decorrentes do uso da marca, cujo registro pretende-se a anulação. Lide que não envolve a União, Autarquia, Fundação ou Empresa Pública Federal. Competência da Justiça Estadual. Registro da marca “Cheese.Ki.Tos”, em que pese a preexistência do registro da marcha “Chee.Tos”, ambas assinalado salgadinhos “Snacks”, comercializados no mesmo marcado. Impossibilidade, visto que a coexistência das marcas tem o condão de propiciar confusão ou associação ao consumidor. […] 5. A possibilidade de confusão ou associação entre as marcas fica nítida no caso, pois, como é notório e as próprias embalagens dos produtos da marca "CHEE.TOS" e "CHEESE.KI.TOS" reproduzidas no corpo do acórdão recorrido demonstram, o público consumidor alvo do produto assinalado pelas marcas titularizadas pelas sociedades empresárias em litígio são as crianças, que têm inegável maior vulnerabilidade, por isso denominadas pela doutrina – o que encontra supedâneo na inteligência do 37, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor – como consumidores hipervulneráveis. 6. O registro da marca "CHEESE.KI.TOS" violou o artigo 124, XIX, da Lei da Propriedade Industrial e não atende aos objetivos da Política Nacional de Relações de Consumo, consoante disposto no artigo 4º, incisos I, III e VI, do Código de Defesa do Consumidor, sendo de rigor a sua anulação. 7. Recurso especial parcialmente provido.” (Superior Tribunal de Justiça – Quarta Turma/ REsp 1.188.105/RJ/ Relator: Ministro Luis Felipe Salomão/ Julgado em 05.03.2013/ Publicado no DJe em 12.04.2013).
“Ementa: Consumidor. Definição. Alcance. Teoria finalista. Regra. Mitigação. Finalismo aprofundado. Consumidor por equiparação. Vulnerabilidade. 1. A jurisprudência do STJ se encontra consolidada no sentido de que a determinação da qualidade de consumidor deve, em regra, ser feita mediante aplicação da teoria finalista, que, numa exegese restritiva do art. 2º do CDC, considera destinatário final tão somente o destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa física ou jurídica. 2. Pela teoria finalista, fica excluído da proteção do CDC o consumo intermediário, assim entendido como aquele cujo produto retorna para as cadeias de produção e distribuição, compondo o custo (e, portanto, o preço final) de um novo bem ou serviço. Vale dizer, só pode ser considerado consumidor, para fins de tutela pela Lei nº 8.078/90, aquele que exaure a função econômica do bem ou serviço, excluindo-o de forma definitiva do mercado de consumo. 3. A jurisprudência do STJ, tomando por base o conceito de consumidor por equiparação previsto no art. 29 do CDC, tem evoluído para uma aplicação temperada da teoria finalista frente às pessoas jurídicas, num processo que a doutrina vem denominando finalismo aprofundado, consistente em se admitir que, em determinadas hipóteses, a pessoa jurídica adquirente de um produto ou serviço pode ser equiparada à condição de consumidora, por apresentar frente ao fornecedor alguma vulnerabilidade, que constitui o princípio-motor da política nacional das relações de consumo, premissa expressamente fixada no art. 4º, I, do CDC, que legitima toda a proteção conferida ao consumidor. 4. A doutrina tradicionalmente aponta a existência de três modalidades de vulnerabilidade: técnica (ausência de conhecimento específico acerca do produto ou serviço objeto de consumo), jurídica (falta de conhecimento jurídico, contábil ou econômico e de seus reflexos na relação de consumo) e fática (situações em que a insuficiência econômica, física ou até mesmo psicológica do consumidor o coloca em pé de desigualdade frente ao fornecedor). Mais recentemente, tem se incluído também a vulnerabilidade informacional (dados insuficientes sobre o produto ou serviço capazes de influenciar no processo decisório de compra). 5. A despeito da identificação in abstracto dessas espécies de vulnerabilidade, a casuística poderá apresentar novas formas de vulnerabilidade aptas a atrair a incidência do CDC à relação de consumo. Numa relação interempresarial, para além das hipóteses de vulnerabilidade já consagradas pela doutrina e pela jurisprudência, a relação de dependência de uma das partes frente à outra pode, conforme o caso, caracterizar uma vulnerabilidade legitimadora da aplicação da Lei nº 8.078/90, mitigando os rigores da teoria finalista e autorizando a equiparação da pessoa jurídica compradora à condição de consumidora […] 7. Recurso especial a que se nega provimento.” (Superior Tribunal de Justiça – Terceira Turma/ REsp 1.195.642/RJ/ Relatora: Ministra Nancy Andrighi/ Julgado em 13.11.2012/ Publicado no DJe em 21.11.2012).
Nessa esteira, Cláudia Lima Marques[13] obtempera acerca da existência de três espécies de vulnerabilidade, a saber: técnica, na qual o consumidor não é detentor do conhecimento específicos a respeito do objeto que está adquirindo, sendo, em decorrência disso, suscetível de ser enganado mais facilmente, no que tange às características ou, ainda, quanto à unidade do bem ou do serviço prestado. A segunda espécie de vulnerabilidade é a jurídica ou científica, cujo aspecto característico está arrimado na ausência de conhecimento jurídica específicos, de contabilidade ou mesmo de economia. Ademais, a terceira espécie de vulnerabilidade é denominada de fática ou socioeconômica, atrelada à posição de monopólio, fático ou jurídico, por meio do qual o fornecedor, que em razão de sua posição de monopólio, fático ou jurídico, abalizado em seu grande poderia econômico ou mesmo em decorrência da essencialidade do serviço, impõe a sua superioridade a todos que contratam com ele.
Nessa senda, ainda, cuida salientar que a concepção estruturante da vulnerabilidade técnica é presumida para o consumidor não-profissional, como também pode ser estendido, de forma excepcional, ao profissional, destinatário fático do bem ou do serviço. Ao lado do expendido, a vulnerabilidade jurídica, conquanto seja presumida para o consumidor não-profissional e para o consumidor pessoa natural, “para os profissionais e para as pessoas jurídicas, vale a presunção em sentido contrário, presume-se que possuem conhecimentos jurídicos e econômicos mínimos, ou que possam consultar advogados e profissionais”[14], antes de firmarem a obrigação. No que concerne à vulnerabilidade fática, há que se frisar, com cores quentes, que subsiste uma presunção em favor do consumidor não-profissional, entrementes, tal conjectura não prospera em relação ao consumidor profissional e para o consumidor pessoa jurídica.
Importante ressaltar ainda que a doutrina tem convergido no sentido de que há a possibilidade de a pessoa jurídica, mesmo não sendo a destinatária final do produto ou serviço adquirido, receber a proteção das normas inseridas no Código de Defesa do Consumidor quando provar, na concretude do caso, a sua situação de vulnerabilidade frente ao fornecedor. Com efeito, é possível elencar a vulnerabilidade técnica, isto é, ausência de conhecimentos específicos sobre o produto ou serviço adquirido, podendo, em função disso, ser mais facilmente iludido, a vulnerabilidade jurídica, ou seja, a ausência de conhecimentos jurídicos que o auxiliariam a melhor portar-se na relação negocial, a vulnerabilidade fática, qual seja, a situação de desvantagem real, seja pelo grande poderio do fornecedor, sua situação econômica, seja pela essencialidade do bem, do qual necessita, impreterivelmente, o consumidor e por fim, a vulnerabilidade informacional que é aquela que decorre da especial importância das informações recíprocas prestadas no bojo das relações negociais, que, em regra, revelam-se deficitárias quanto ao consumidor. Colhe-se o seguinte precedente jurisprudencial, proveniente do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, o qual acena no seguinte sentido:
“Ementa: Agravo Interno na Apelação Cível – Preliminar de não conhecimento do recurso em razão da ausência de dialeticidade – Rejeitada – Código de Defesa do Consumidor – Inaplicabilidade – Critério do Consumidor Final – Recurso a que se nega provimento. […] 2- A priori, não somente as pessoas físicas, como também as jurídicas, podem figurar como consumidoras em uma relação comercial e, portanto, desfrutar da proteção regulamentada pela lei 8078⁄90, devendo o intérprete, ao proceder a tal identificação, atentar-se à dicção do artigo 2º do mencionado diploma, que nos mostra como aspecto caracterizador de consumidor a sua posição como destinatário final do objeto negocial. 3- Deste modo, tem-se que para que o consumidor seja considerado destinatário econômico final, o produto ou o serviço não pode guardar qualquer relação, direta ou indireta, com a atividade econômica por ele exercida, devendo, assim, ser utilizado para o atendimento de uma necessidade própria, pessoal do consumidor, o que não fora demonstrado no caso em comento. 5- Importante ressaltar ainda que a doutrina tem convergido no sentido de que há a possibilidade de a pessoa jurídica, mesmo não sendo a destinatária final do produto ou serviço adquirido, receber a proteção das normas inseridas no CDC quando provar, no concretude do caso, a sua situação de vulnerabilidade frente ao fornecedor. 5- Assim, percebe-se que a agravante não demonstrou a existência do estado de vulnerabilidade que pudesse ensejar à aplicação do Código de Defesa do Consumidor. 6- Recurso a que se rejeita a preliminar e no mérito, nega-se provimento.” (Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo – Quarta Câmara Cível/ Agravo Interno – (Arts. 557/527, II CPC) em Apelação Cível Nº. 24070327713/ Rel. Desembargador Maurílio de Almeida de Abreu/ Julgado em 17.08.2010/ Publicado em 05.10.2010)
Mister se faz aduzir que não há que confundir a vulnerabilidade, enquanto princípio orientador para a aplicação do Código de Defesa do Consumidor[15], com a denominada hipossuficiência econômica ou técnica da parte autora, eis que, em razão do corolários emanados pelo aludido dogma, nem todo consumidor deverá ser coberto pelo véu da hipossuficiência, mesmo sendo sempre vulnerável. Plus ultra, dado ao aspecto geral da vulnerabilidade, verifica-se que as flâmulas por ela hasteadas deflui da simples situação de consumidor, ao passo que a hipossuficiência, ao reverso, reclama a presença de condições pessoais e relativas a cada consumidor, devendo-se, por extensão, confrontá-las com as condições pessoais do respectivo fornecedor.
Com efeito, a vulnerabilidade se reveste de presunção, quando o consumidor for pessoa natural, enquanto a vulnerabilidade da pessoa jurídica deve ser demonstrada e será aferida, quando o magistrado analisar a situação concreta trazida a Juízo. O Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, ao relatoriar o Agravo Regimental no Agravo de Instrumento N° 1.409.273/RS, manifestou que a “incidência do Código de Defesa do Consumidor somente nas hipóteses em que a pessoa jurídica se apresenta em situação de vulnerabilidade”[16]. Com efeito, em não sendo demonstrada a vulnerabilidade, pela pessoa jurídica, inaplicável é o corolário em comento, assim como as disposições alocadas no diploma protecionista[17]. Ao lado disso, acinzele-se que a hipossuficiência reclama um exame acurado, analisando cada caso, já a vulnerabilidade do consumidor é inerente à sua própria condição. No mais, o princípio em estudo é traço universal de todos os consumidores, independente de sua condição econômica ou grau de instrução, motivo pelo qual seu ponto de escora está alicerçada na ausência de conhecimento técnico para a elaboração do produto ou para a prestação do serviço.
4 Ponderações ao Princípio do Protecionismo do Consumidor: Breve Painel
Diante do cenário pintado, salta aos olhos, desta sorte, o relevo indiscutível que reveste o Direito do Consumidor, sendo considerada, inclusive, como irrecusável importância jurídica, econômica e política, sendo dotado de caráter absolutamente inovador, eis que elevou a defesa do consumidor à posição eminente de direito fundamental, atribuindo-lhe, ainda, a condição de princípio estruturador e conformador da própria ordem econômica. Verifica-se, portanto, que com as inovações apresentadas no Texto Constitucional erigiram os consumidores como detentores de direitos constitucionais fundamentais, conjugado, de maneira robusta, com o relevante propósito de legitimar todas as medidas de intervenção estatal necessárias e a salvaguardar as disposições entalhadas na Carta de 1988. Em decorrência de tais lições, destacar é crucial que o Código de Defesa do Consumidor, enquanto diploma que apresenta em sua redação conjunto de normas responsáveis por traçar mecanismos de proteção e defesa do consumidor, deve ser interpretado a partir de uma luz emanada pelos valores de maciça relevância para a Constituição Federal de 1988, consubstanciando verdadeiro reflexo dos direitos de terceira dimensão.
Nesta linha, o Estatuto Consumerista em razão do princípio protecionista constitucional, cujos influxos passaram a influenciar a legislação infraconstitucional, coloca em destaque que o mencionado diploma não permite que suas disposições sejam afastadas por convenção entre as partes, já que a natureza de ordem pública e interesse social, notadamente diante da vulnerabilidade do consumidor, obsta a mitigação da incidência do diploma multicitado. Ao lado disso, a essência protecionista, alçada ao status de princípio orientador, comporta a intervenção do Ministério Público em questões envolvendo demandas que se centrem em discussões acerca das relações de consumo. No mais, o corolário em comento estabelece que a proteção dispensada pelo Texto Constitucional deve, de ofício, ser reconhecida pelo magistrado, a fim de assegurar que a discrepância que orbita em torno do consumido, no que se refere à vulnerabilidade, seja ainda mais agravada.
À sombra das ponderações explicitadas, verifica-se que a construção dos direitos humanos reflete a assimilação das lutas e anseios da sociedade, configurando verdadeiro processo de robustecimento e alargamento do rol das garantias e direitos fundamentais. Neste aspecto, é possível colocar em realce os direitos de primeira e segunda dimensão, os quais foram o ápice de um sucedâneo de lutas, tanto contra o Estado absolutista, no caso daquele, e quanto contra o Estado liberal, no que pertine a esse. Ao lado disso, os direitos de terceira dimensão conferiram concreção aos aspectos de valores abalizados em vetores de solidariedade, tal como direitos transindividuais. É possível verificar que a construção dos direitos encampados sob a rubrica de terceira dimensão tende a identificar a existência de valores concernentes a uma determinada categoria de pessoas, consideradas enquanto unidade, não mais prosperando a típica fragmentação individual de seus componentes de maneira isolada, tal como ocorria em momento pretérito. Ao lado disso, os direitos de terceira dimensão são considerados como difusos, porquanto não têm titular individual, sendo que o liame entre os seus vários titulares decorre de mera circunstância factual.
O Código de Defesa do Consumidor, enquanto diploma que apresenta em sua redação conjunto de normas responsáveis por traçar mecanismos de proteção e defesa do consumidor, deve ser interpretado a partir de uma luz emanada pelos valores de maciça relevância para a Constituição Federal de 1988, consubstanciando verdadeiro reflexo dos direitos de terceira dimensão, tal como os princípios estruturantes da ordem econômica. Isto é, cabe ao Arquiteto do Direito observar, de forma imperiosa, a tábua principiológica, considerada como essencial e exaltada como fundamental dentro da Carta Magna do Estado Brasileiro, ao aplicar a legislação abstrata ao caso concreto. Trata-se, consoante os entendimentos jurisprudenciais consolidados no cenário jurídico, de confirmação dos instrumentos imprescindíveis à proteção daqueles que se apresentam, em sede de relação consumerista, vulneráveis, em razão de não disporem de mecanismos ou mesmo conhecimento técnico, econômico ou jurídico eficiente para combater práticas abusivas ou indevidas estruturadas pelos fornecedores. Com efeito, a proteção e defesa do consumidor, no atual cenário de garantismo propiciado pelo Texto Constitucional, se revelam como mecanismo de materialização de salvaguarda dos direitos difusos e coletivos.
Informações Sobre o Autor
Tauã Lima Verdan Rangel
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES