Por uma nova teoria do ilícito civil

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1.Generalidades e definição

Ato jurídico ilícito é toda atuação humana, omissiva ou comissiva, contrária ao Direito.

Enquanto conduta antijurídica, há atos ilícitos em várias esferas do Direito Civil e do Direito em geral.

No Direito Civil, pode falar-se em ilícito na esfera dos contratos, dos atos unilaterais de vontade, da família, dos atos intrinsecamente ilícitos e do abuso de direito. Para além do Direito Civil, há os ilícitos penais, administrativos, tributários, trabalhistas etc. ; todos com um ponto comum: a antijuridicidade.

Restringindo-nos à esfera cível, os atos ilícitos podem ser contratuais, quando consistirem em conduta antijurídica na celebração ou execução de contrato. Exemplos seriam a mora e o inadimplemento definitivo de obrigação contratual.

No campo dos atos unilaterais de vontade, o ilícito pode ocorrer na declaração ou na execução de uma promessa de recompensa (não pagá-la, por exemplo); na execução de uma gestão de negócios etc.

Há alguns atos que são ilícitos intrinsecamente e desde o início. Também estes são ilícitos para o Direito Civil, na medida em que causam danos ressarcíveis. Exemplos seriam o homicídio, as lesões corporais, uma batida de carros, o estilhaçar de uma vidraça etc.

Estes atos intrinsecamente ilícitos se denominaram atos ilícitos em sentido estrito ou delitos por Pontes de Miranda. Podemos também chamá-los de atos ilícitos aquilianos, por força da Lex Aquilia.

Por volta do final do século III a.C., um Tribuno da Plebe de nome Aquilius, dirigiu uma proposta de lei aos Conselhos da Plebe, com vistas a regulamentar a responsabilidade por atos intrinsecamente ilícitos. Foi votada a proposta e aprovada, tornando-se conhecida pelo nome de Lex Aquilia. A Lex Aquilia era na verdade plebiscito, por ter origem nos Conselhos da Plebe. É lei de circunstância, provocada pelos plebeus que, desse modo, se protegiam contra os prejuízos que lhes causavam os patrícios, nos limites de suas terras.[1] Antes da Lei Aquília imperava o regime da Lei das XII Tábuas (450 a.C.), que continha regras isoladas.

Por fim, há os chamados ilícitos funcionais,[2] também chamados de abuso de direito, em que, ao exercer um direito, seu titular extrapola os limites da boa-fé ou da função social. Exemplos seriam as cláusulas contratuais abusivas.

O abuso de direito é ilícito em sentido amplo, não em sentido estrito. Não é intrinsecamente ilícito. Pode denominar-se ilícito funcional. Se há desvio funcional no exercício de um direito, o ato será ilícito. O Direito é calcado em conceitos funcionais (função social da propriedade, dos contratos, da empresa etc.). Estes conceitos integram dois planos, o jurídico e o social. Assim, o prisma puramente normativo não seria mais adequado para abordar o Direito. A grande virada do Direito moderno é a passagem da estrutura para a função. As categorias, institutos, conceitos devem ser lidos de acordo com a função que exercem. Não basta reconhecer a existência de valores consagrados pelo Direito. É fundamental que o intérprete saiba operacionalizar esses valores. Assim, não basta reconhecer o valor função social, se não se souber aplicá-lo. A teoria do abuso de direito milita no sentido de operacionalizar a função social do direito.[3]

A bem da verdade, distinguir entre esses vários tipos de ilícito civil nem sempre é útil, tampouco necessário. O que interessa é que, seja qual for a espécie, ensejará os devidos efeitos.

Para o Direito Civil, tais efeitos podem ser os mais variados, dependendo das conseqüências do ilícito. Assim, teremos, quanto a esses efeitos, ilícitos indenizantes, porque geram como efeito a indenização dos eventuais danos causados; ilícitos caducificantes, porque geram a perda de um direito para seu autor (por exemplo, a perda do poder familiar para o genitor que maltrata os filhos); ilícitos invalidantes, que anulam o ato praticado ilicitamente (por exemplo, o contrato celebrado sob coação); e, finalmente, ilícitos autorizantes, uma vez que autorizam a vítima a praticar um ato, no intuito de neutralizá-los, como o doador que fica autorizado a revogar a doação, nos casos de ingratidão do doador.[4]

Os atos ilícitos, em que pesem doutas opiniões em contrário, são atos jurídicos por repercutirem na esfera jurídica, sendo regulados pelo Direito. Aliás, o adjetivo “jurídico” pode ser empregado em dois sentidos. Num primeiro, enquanto algo que repercute no mundo do Direito, que diz respeito ao Direito; este o utilizado acima. Num segundo, enquanto algo que está conforme ao Direito. É lógico que, neste segundo sentido, os atos ilícitos não seriam jurídicos, mas antijurídicos.

O tema é tratado nos arts. 186 e seguintes do Código Civil.

Segundo o art. 186, ato ilícito é toda ação ou omissão voluntária, negligente ou imprudente que viola direito e causa dano a outrem.

A definição se refere a todas as modalidades de ilícito, embora seja muito restritiva. Ora, nem todo ato ilícito será culpável. O genitor, por exemplo, pode maltratar o filho, com a plena convicção de que está agindo para seu bem. Neste caso, a conduta, apesar de voluntária, não terá sido dolosa, muito menos culposa (negligente ou imprudente). Houve ato ilícito praticado de boa-fé. A conseqüência poderá ser a perda do poder familiar.

Tampouco será todo ilícito lesivo. Se uma pessoa aluga uma fita de vídeo e se atrasa, um segundo que seja, na devolução, será aplicada a multa prevista no contrato, mesmo não tendo havido qualquer dano. Bastou a conduta antijurídica, caracterizada aqui pela mora, para que incidissem as conseqüências.

Muitas vezes também, um ilícito gera efeitos para um ramo do Direito, não gerando para outro. Tal pode ser o caso de avançar um sinal. Se a conduta não provocar danos, não gerará efeitos para o Direito Civil; apenas para o Direito Administrativo, que prevê multa para a hipótese. Dizer que, por isso, o avanço de sinal sem danos não seria ilícito civil, é compartimentar demais o Direito, perdendo-se a visão do todo. Pouco importa que seja ou deixe de ser ilícito civil; o que interessa é que é ilícito, por ser ato antijurídico, contrário ao Direito. Apesar disso não gerará efeitos para o Direito Civil.

Na verdade, o art. 186 do Código Civil procura estipular uma cláusula geral de ilicitude, que vigorará como regra. Em outras palavras, o ato ilícito, seja ele contratual ou extracontratual, como regra, só gerará responsabilidade para quem o pratica, se for culpável e lesivo. Há, entretanto, várias exceções, que serão previstas caso a caso pela Lei.

Em síntese, ato ilícito é conduta humana violadora da ordem jurídica. A ilicitude implica sempre quebra de dever jurídico e pode gerar várias conseqüências. Como regra, só o ilícito culpável e lesivo gera responsabilidade civil, mas há exceções.

Visto o ilícito civil em seus contornos mais gerais, voltemos nosso estudo para a cláusula geral do art. 186.

Como já dito supra, ato ilícito é aquele ato contrário ao Direito. É ato antijurídico.

Mas, segundo a regra do art. 186, não basta a antijuridicidade para a caracterização do ato ilícito. Além desta, são, também, elementos do ato ilícito a culpabilidade, o dano e o nexo causal.

Partindo desses elementos listados no art. 186, podemos definir ato ilícito como todo ato antijurídico, culpável e lesivo.

Tendo em mente que essa definição se refere amplamente aos ilícitos contratuais e extracontratuais, vejamos cada um desses elementos da definição.

2. Elementos do ato ilícito

Por elementos do ato ilícito, devemos entender aqueles elementos essen­ciais, sem o que não haverá delito civil, e os elementos não essenciais. O único elemento essencial é a antijuridicidade. Os demais, culpabilidade, dano e nexo causal entre culpabilidade e dano não são essenciais para a caracterização do ilícito, embora sejam requisitos para a caracterização do ilícito gerador de responsabilidade, segundo a regra imposta na cláusula geral do art. 186 do Código Civil.

Deve-se ter em mente, porém, que, faltando qualquer um desses elementos não essenciais, haverá ato ilícito na esfera civil; só não haverá responsabilidade, a não ser que a Lei expressamente diga o contrário.

Há casos, contudo, em que, realmente, não se configurará o ato ilícito. São os casos em que se exclui a ilicitude por razões de eqüidade. Assim, não constituem atos ilícitos aqueles praticados em legítima defesa, em estado de necessidade, no exercício regular de direito e no estrito cumprimento de dever legal. Tampouco, constituem atos ilícitos aqueles ocorridos em virtude de caso fortuito ou força maior.

A doutrina tende a não fazer distinção prática entre força maior e caso fortuito. Legalmente são tratados como equivalentes. Mas há diferença ontológica entre eles.

Como bem define De Plácido e Silva, em seu Vocabulário jurídico,

“Caso fortuito é, no sentido exato de sua derivação (acaso, im­pre­visão, acidente), o caso que não se poderia prever e se mostra superior às forças ou vontade do homem, quando vem, para que seja evitado.

O caso de força maior é o fato que se prevê ou é previsível, mas que não se pode, igualmente, evitar, visto que é mais forte que a vontade ou ação do homem.

Assim, ambos se caracterizam pela irresistibilidade. E se distinguem pela previsibilidade ou imprevisibilidade.”[5]

Vejamos um exemplo de cada. Se estou dirigindo e tenho um ataque cardíaco, vindo a bater o carro, estarei diante de caso fortuito. O fato é irresis­tível e imprevisível. Está excluída a ilicitude.

Se vejo uma pessoa passando mal na rua e paro o carro para prestar socorro, em seguida, partindo em disparada, acima do limite de velocidade, avançando sinais luminosos etc., e vindo a bater o carro, estarei diante de força maior. O fato é irresistível, tendo sido previsto, quando me dispus a prestar o socorro. De qualquer forma, está excluída a ilicitude.

2.1.Análise dos elementos do ato ilícito civil

a) Antijuridicidade – Antijuridicidade é a contrariedade ao Direito. Não à norma jurídica em si, mas aos objetivos maiores do Direito, como a tranqüilidade, a ordem, a segurança, a paz, a Justiça etc. Sempre que alguma ação ou omissão humana atentar contra esses objetivos, haverá ato antijurídico.

b) Culpabilidade – A culpabilidade envolve o conceito de culpa e de dolo. Não obstante, a doutrina civilística refere-se, na maioria das vezes, só à culpa, subentendendo-se o dolo. Não são, todavia, a mesma coisa para o Direito Civil, apesar de as conse­qüências serem, em princípio, as mesmas, ou seja, responsabilidade pelas conseqüências. Só quando se tratar de ilícito contratual é que varia um pouco, pois nos contratos unilaterais, responde por culpa ou dolo, aquele a quem o contrato aproveita, como o donatário, por exemplo; e apenas por dolo, aquele a quem o contrato não aproveita, como é o caso do doador.[6]

Tendo em vista a intensidade da culpa, pode ser ela apreciada em três graus: grave, leve e levíssima.

Haverá culpa grave, quando o grau exigido de atenção ou de habilidade for mínimo.

Será leve a culpa, sendo médio o grau demandado de atenção ou de habilidade.

Por outro lado, a culpa será levíssima, se o grau necessário de atenção ou de habilidade for muito elevado.

Quanto à imprudência, a culpa será grave se o risco assumido for alto.

Será leve, se médio o risco assumido. E será levíssima, se for mínimo o risco assumido.

Para o Direito Civil, como regra, não importa o grau de culpa, a não ser em casos muito específicos, como na culpa concorrente e no ilícito contratual. Neste, a culpa levíssima pode não suscitar indenização.[7]

A culpa, dependendo das circunstâncias em que ocorra, pode se classificar em culpa in committendo, in omittendo, in vigilando, in custodiendo e in eligendo.

In committendo é a culpa que ocorre em virtude de ação, atuação positiva. Como exemplo, podemos citar o ato de avançar sinal luminoso. Já se a culpa se der por omissão, por conduta negativa, teremos culpa in omittendo. Exemplo seria a enfermeira se esquecer de dar remédio ao paciente.

Será in vigilando a culpa, se for fruto de falha no dever de vigiar. Tal é a culpa dos pais pelos atos dos filhos em sua guarda. O dever, nesse caso, refere-se a vigiar pessoas. Se referir-se a vigiar coisas, como animais, por exemplo, a culpa será in custodiendo, configurando-se por falha no dever de guardar, custodiar. Essa é a culpa do detentor do animal, pelos danos que este venha a provocar.

A culpa in eligendo é aquela que resulta da má escolha. Quando se escolhe mal uma pessoa para desempenhar certa tarefa, resultando danos, a responsabilidade é daquele que escolheu mal. É o caso do patrão, que responde pelos danos causados por seus empregados em serviço; do procurador que responde pelos atos daquele a quem substabelecer.

Haverá, outrossim, culpa no controle, quando provada imperícia no manuseio e controle de coisas perigosas, como tratores, trens, bondes, aviões, navios etc. Há quem diga haver nessas hipóteses responsabilidade por fato de coisa. Porém, na verdade, o dano não foi provocado pela coisa, e sim pelo homem que não soube manejá-la. Haveria responsabilidade por fato de coisa se ela própria causasse o dano, sem interferência direta do homem. São os casos de animais que atacam pessoas, ou de veículos estacionados que, em virtude de fatores não humanos, deslizam rua abaixo, vindo a causar danos.

Normalmente, a incumbência de provar a culpa cabe à vítima do delito. Há hipóteses, entretanto, em que se faz inversão do ônus da prova, havendo culpa presumida. Nessas hipóteses, a vítima não terá que provar a culpa do autor do ilícito. Este é que deverá provar sua inocência. Os casos são raros, mas importantíssimos. Como exemplo, pode citar-se a responsabilidade do dono do animal pelos danos que este provocar. Sua culpa in custodiendo é presumida.

Na maior parte das vezes, apenas o autor do delito age com culpa, mas pode dar-se caso em que também a conduta da vítima seja culposa. Teremos, então, culpa recíproca ou concorrente. Se avanço o sinal de pedestres, sendo atropelado por carro, que trafegava em velocidade acima da permitida, haverá culpa recíproca. A conduta de ambos é culpável. Aqui interessa, sem sombra de dúvida, a intensidade ou grau da culpa. Os danos serão distribuídos propor­cio­nalmente ao grau da conduta culpável.

c) Dano

Definição – Dano é diminuição ou subtração de um bem jurídico. Lesão de interesse. Deve ser contra a vontade do prejudicado.

Espécies de dano – Pode ser positivo ou negativo.

Será positivo ou emergente, quando caracterizada, objetivamente, lesão, subtração ou diminuição patrimonial, já materializada.

Será negativo, também chamado de lucros cessantes, quando a diminuição ou lesão patrimonial for futura.

Exemplificando as duas espécies, poderíamos citar acidente sofrido por motorista de táxi. Os danos no veículo e em sua pessoa são positivos. Já os danos consistentes nos lucros, que deixará de obter, enquanto estiver convales­cendo, ou enquanto seu carro estiver no conserto, serão negativos.

O dano pode ser material ou patrimonial e ainda pessoal, este físico ou moral.

Patrimonial é o dano de que resultem prejuízos materiais, de fácil avaliação em dinheiro. Na esfera do dano pessoal, haverá danos físicos e morais. O dano moral consiste em constrangimento que alguém experimenta, em conseqüência de lesão a direito persona­líssimo, como a honra, a boa fama etc., ilicitamente produzida por outrem. Aqui não se fala em indenização, mas em compensação. Se dúvida havia em relação ao dano moral e sua compensa­bilidade, a Constituição sanou-a, ao admitir, expressamente, no art. 5º, V, a indenização por danos morais. O Código Civil também consagrou o princípio, no art. 186. O difícil é, porém, calcular o montante da indenização por danos morais.

Por fim, o dano será direto, quando resultar do fato como sua conseqüên­cia imediata. E indireto, quando decorrer de circunstâncias ulteriores que agravam o prejuízo, diretamente suportado. De regra, somente se indenizam os danos diretos. Vejamos exemplo: Roberto atropela Juan, que morre no hospital, devido a infecção hospitalar. A morte é dano indireto da conduta de Roberto, que por ela não responderá.

d) Nexo causal – Nexo causal é relação de causa e efeito entre a conduta culpável do agente e o dano por ela provocado. O dano deve ser fruto da conduta reprovável do agente. Não havendo essa relação, não se pode falar em ato ilícito.

3.Teorias subjetiva e objetiva da responsabilidade civil

Por que somos responsáveis pelos danos que causamos? Por que temos que repará-los?

Existem duas teorias que procuram explicar a razão de ser da responsa­bilidade civil. A primeira é a teoria subjetiva, aplicada como regra, pelos arts. 186/927 do Código Civil. Subjetiva, porque parte do elemento subjetivo, culpabilidade, para fundamentar o dever de reparar. Assim, só seria responsável pela reparação do dano aquele cuja conduta se provasse culpável. Não havendo culpa ou dolo, não há falar em indenização. Na ação reparatória, devem restar provados pela vítima a autoria, a culpabilidade, o dano e o nexo causal.

A segunda teoria tem como fundamento, não o elemento subjetivo, culpabilidade, mas o elemento objetivo, dano. Daí se denominar teoria objetiva. Para ela, basta haver dano, para que sobrevenha o dever de reparar. Explica-se esta teoria pelo alto risco de determinadas atividades e pela impossibilidade prática de se provar a culpabilidade, em certas circunstâncias. É aplicada, excepcionalmente, em virtude de disposição expressa de lei. Se ao caso aplicar-se a teoria objetiva, basta à vítima provar a autoria e o dano, para lograr êxito na ação reparatória. O suposto autor do dano só se exime da indenização, se provar que a culpa foi exclusiva da vítima. Do contrário, mesmo em caso fortuito, ou de força maior, deverá indenizar a vítima.

A teoria objetiva é utilizada apenas em algumas situações. O Código Civil ampliou sua esfera de aplicabilidade, ao remeter à teoria objetiva todos os casos em que a natureza da atividade do autor implicar riscos para as demais pessoas.

As principais hipóteses de incidência da responsabilidade objetiva são:

1ª) responsabilidade dos pais pelos filhos menores, sob seu poder e companhia. Configurada a culpa do menor, os pais responderão, independentemente de terem ou não agido com culpa­ in vigilando;

2ª)responsabilidade do tutor ou curador pelos pupilos ou cura­telados, sob seu poder e companhia. Configurada a culpa do pupilo ou do curatelado, o tutor ou o curador responderão, independentemente de terem ou não agido com culpa­ in vigilando;

3ª)responsabilidade das pessoas jurídicas ou naturais que exerçam empresa hoteleira, de hospedaria, casa ou estabe­lecimento em que se albergue por dinheiro, mesmo para fins educativos, por seus hóspedes, moradores e educandos;

4ª)responsabilidade daquele que, gratuitamente, participar nos produtos de crime, praticado por outrem, pelos danos,­ até a quantia com que se haja beneficiado;

5ª)responsabilidade do empregador pelos danos que seus em­pregados, no exercício de suas funções, causarem a terceiros. Configurada a culpa do empregado, o empregador responderá, independente­mente de ter ou não agido com culpa­ in eligendo.

6ª)coisas caídas ou lançadas de prédio. Sempre que um objeto cair ou for lançado de imóvel, o dono deste responde­rá pelos danos, ainda que se prove o fortuito. Tratando-se de condomínio, todos os condôminos responderão, dividindo­ os prejuízos. Sendo identi­ficada a unidade de onde veio a coisa, o condomínio terá assegu­rado direito de regresso­ contra ela.

Apesar de o art. 938 do Código Civil não se referir expressamente à responsabilidade objetiva, neste caso, entende-se que o dever de indenizar subsiste, mesmo na ausência de culpa do dono do prédio, uma vez que a norma se refere a objetos não só lançados, mas também caídos em local indevido. Ademais, não fosse o caso de inversão do ônus da prova ou de responsabilidade objetiva, não haveria a necessidade de um artigo específico para a hipótese. Por outros termos, se o legislador não tivesse a intenção de incluir a queda ou lançamento de objetos de um imóvel em lugar indevido, dentre os casos de responsabilidade objetiva, não lhe teria aberto artigo específico. A questão se solucionaria com a norma genérica dos arts. 186 e 927, provada a culpa do dono do imóvel;

7ª)acidentes de trabalho. A Previdência Social deverá indenizar os danos sofridos pelo trabalhador no exercício de suas funções, a não ser que comprove ter sido dele a culpa;­

8ª)acidentes com aeronaves, trens e bondes. Os donos de aeronaves, trens e bondes são responsáveis pelos danos que estes causem, ainda que provado o caso fortuito. Assim,­ se uma aeronave cai em virtude de raio que tenha incendia­do suas turbinas, a companhia aérea deverá reparar todos os danos causados;

9ª)acidentes nucleares. Havendo acidente nuclear, os respon­sáveis pela guarda do material radioativo deverão indenizar­ todos os danos ocorridos, ainda que se prove caso fortuito;­

10ª)aquele que agir em estado de necessidade, legítima defesa,­ exer­cício regular de direito ou estrito cumprimento do dever legal, apesar de não praticar ato ilícito, deverá reparar­ todos os danos sofridos por terceiros. Se para salvar alguém,­ for necessário arrombar uma porta, o dono da porta, desde­ que nada tenha a ver com o fato, deverá ser indenizado.

11ª)os empresários individuais e as sociedades empresárias respondem objetivamente pelos danos causados por produtos que puserem em circulação.

Esta norma já estava prevista, em outros termos no Códi­go do Consumidor, segundo o qual o fabricante, o produtor,­ o constru­tor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, indepen­den­temente de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumi­dores por defeitos de projeto,­ fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação,­ apresentação ou acondicio­namento de seus produtos, bem como por informações insufi­cientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos. A respon­sa­bi­lidade recairá sobre o comerciante, se o produtor, o construtor, o fabricante ou o impor­tador não puderem ser identificados; se o produ­to for fornecido sem identificação clara de seu fabricante, produtor, construtor ou importador; e se os produtos pere­cíveis não forem bem conservados;

12ª)toda pessoa que exercer atividade, que por sua natureza, importe risco às demais pessoas, responderá objetivamente pelos danos causados por sua atividade. Como exemplo, pode citar-se o caso de uma empresa que produz fogos de artifício. Vindo a fábrica a explodir, causando danos a outras pessoas, a indenização indepen­derá da prova da culpa;

13ª)acidentes ambientais;

14ª)instituições que realizam pesquisas genéticas responderão objetivamente, segundo o art. 14 da Lei 8.974/95.­

Há quem afirme que o caso fortuito e a força maior excluiriam a responsa­bilidade objetiva, uma vez que romperiam o nexo causal. Ora, que nexo causal? O nexo entre a conduta culpável e o dano não pode ser, dado que não se cogita de culpa na responsabili­dade objetiva. Na verdade, o nexo que deve existir é bastante objetivo. O dano deve resultar da simples atividade ou do simples fato objetivo do responsável: exercer o transporte aéreo, ter filhos, ser tutor ou curador, ter empregados, exercer atividade perigosa etc. Se o caso fortuito e a força maior excluíssem a responsabilidade, tratar-se-ia de culpa presumida e não de responsabilidade objetiva. Só se pode admitir a exclusão da responsabilidade, se o caso fortuito ou a força maior excluírem a própria autoria, ficando provado que o dano ocorreria de qualquer maneira. Imaginemos o seguinte exemplo: a Prefeitura de certo Município está realizando obras em uma rua. Cai um temporal, e o muro de uma casa vem ao chão. O dono da casa atribui a queda do muro às obras da Prefeitura e aciona o Município, exigindo indenização, com base na responsabilidade objetiva do Município pelos atos de seus funcionários. Se o Município conseguir provar que a queda do muro nada teve a ver com sua atividade, tendo sido causada exclusivamente pelo temporal, será eximida de responsabilidade pode ter sido comprovada a ausência de nexo entre autoria e dano.

Por fim, deve ser ressaltado que a responsabilidade objetiva também ocorre na esfera contratual. No contrato de comodato, por exemplo, se o comodatário, diante de situação de risco, salvar primeiro suas coisas, deixando perecer as do comodante, responderá independentemente de culpa.

4.Diferenças entre ato ilícito civil, penal e administrativo

Em primeiro lugar, cabe esclarecer que os atos ilícitos ocorrem em praticamente todos os ramos do Direito. Há ilícitos fiscais, financeiros, econômicos, trabalhistas etc. Escolhemos diferenciar o ilícito civil do penal e do administrativo, por mero tradicionalismo. Ademais, seria de todo desnecessário, pelo menos neste livro, um estudo aprofundado, diferenciando todas as modalidades de ilícito, de acordo com o ramo do Direito em que ocorrem. Com a análise das diferenças entre o ilícito civil, penal e administrativo, ficará fácil ao leitor, estamos certos, estabelecer as diferenças entre os demais tipos de ilícito.

A distinção entre ato ilícito civil e penal faz-se sentir em várias esferas. Em sua definição já são diferentes. Por ato ilícito civil, devemos entender toda ação ou omissão antijurídica, em princípio, culpável e lesiva para gerar responsabilidade, com regra. Por ato ilícito penal, ao revés, devemos entender toda ação ou omissão antijurídica, típica e culpável. Na configuração do ilícito penal, a tipicidade e a culpabilidade são elementos essenciais.

Delito civil e penal acham-se, portanto, próximos porque em ambos encontra-se presente a antijuridicidade; ambos podem ocorrer na esfera contratual e extracontratual; distinguem-se, entretanto, porque o ilícito penal deve ser tipificado em lei, sendo necessariamente culpável. Devemos nos lembrar de que em Direito Penal a tentativa também se considera delito, o que não ocorre na esfera do Direito Civil.

Mas há outras diferenças específicas. Partindo da tipicidade, elemento essencial ao ilícito penal, temos que, em relação a este, haverá número certo de condutas consideradas ilícitas. O número de delitos na esfera penal é fechado – numerus clausus. Já considerando-se a desnecessidade de tipificação específica da conduta ilícita no Direito Civil, conclui-se que seu número é aberto – numerus apertus. Vale dizer que toda conduta antijurídica é, em princípio, ilícito civil. Para gerar responsabilidade, em regra, deverá o ilícito amoldar-se ao art. 186.

Outra diferença concerne à sanção. No Direito Civil, a sanção se faz pela reparação dos danos, dentre outras. No Direito Penal é imposta pena, que pode ser restritiva de liberdade, de direitos, podendo ser ainda pecuniária.

Finalmente, a responsabilidade civil pode passar aos herdeiros do autor do ilícito, enquanto que a pena é pessoal, não indo além da pessoa do réu.

Como a maioria dos delitos penais também se ajusta à categoria de delito civil, é importante analisarmos as conseqüências do processo penal na jurisdição cível.

Segundo norma expressa no Código de Processo Penal, arts. 63 e seguintes, a sentença condenatória no crime faz coisa julgada no cível. Em outras palavras, sendo o indivíduo julgado culpado pelo juízo criminal, nada mais restará ao juízo cível que executar a sentença criminal, estabelecendo os limites e o conteúdo da responsabilidade. Isto ocorrerá mesmo que o réu não seja punido. Basta que seja considerado culpado.

A sentença absolutória, entretanto, só faz coisa julgada, quando provada a inexistência do fato ou a inocência cabal do réu. Daí se conclui que, sendo o réu absolvido pelo juízo criminal, nada impede que se instaure ou que se dê continuidade à ação civil, a não ser nesses dois casos, isto é, provada a inexistência do fato ou a inocência cabal do réu.

Outra questão é a do ilícito administrativo, comumente denominado “infração administrativa”.[8] Segundo Hely Lopes Meirelles, infrações admi­nis­­tra­tivas são “atos ou condutas individuais que, embora não constituam crime, sejam inconvenientes ou nocivas à coletividade, como previstas na norma legal”.[9]

Num primeiro momento, para que se configure o ilícito administrativo, denominado infração é necessária e concorrência de três elementos: antijuridicidade, culpabilidade e tipicidade. A toda infração administrativa, corresponderá uma sanção. Tal é a hipótese do estacionamento proibido. Quem estaciona em local proibido, não comete delito penal, uma vez que estacionar em local proibido não é crime nem contravenção.­ Não comete ilícito civil indenizante, porque não houve dano. Comete, isso sim, ilícito administrativo, pelo que será multado.

O ilícito administrativo também poderá ser contratual e extracontratual. Se a conduta antijurídica estiver ligada à formação ou à execução de um contrato administrativo, haverá ilícito contratual administrativo, gerando uma responsabilidade diferente da que geraria um ilícito contratual civil ou penal. O agente público responderá, por exemplo, com a perda de seu cargo.

O ilícito administrativo extracontratual poderá ocorrer em diversas hipóteses, gerando variadas formas de responsabilidade. Um exemplo já estudamos: o do estacionamento proibido. Outro poderia ser os atos de corrupção, de peculato etc. Além das implicações penais (prisão, multa etc.) e civis (reparação do dano causado), o agente público perderá seu cargo e todas as vantagens dele decorrentes.

Por fim, cabe explicar que as três esferas são independentes. Se avanço sinal luminoso, atropelando transeunte, responderei nas três esferas delituais, sendo processado autonomamente em cada uma delas. Serei obrigado a indenizar a vítima, na esfera cível; serei punido criminalmente, na esfera penal e serei multado, na esfera administrativa.

 

Notas:
[1] warnkönig, L. A. Institutiones iuris romani privati. 4. ed., Bonnae: Adolph Mark, 1860, p. 278.
[2] BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos ilícitos civis. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 118.
[3] BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos ilícitos civis, cit., p. 116 et seq.
[4] Mais sobre o tema e sobre essa classificação, ver BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos ilícitos civis, cit., passim.
[5] Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 401-402.
[6] GOMES, Orlando. Obrigações. 5. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1978, passim.
[7] GOMES, Orlando. Obrigações, cit., p. 328.
[8] OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. São Paulo: RT, 1985, passim.
[9] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro, cit., p. 117.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

César Fiuza

 

Doutor em Direito pela UFMG.
Professor titular na Universidade FUMEC.
Professor Adjunto de Direito Civil nos Cursos de Graduação e de Pós-graduação da PUCMG e da UFMG. Professor colaborador na Universidade de Itaúna.
Advogado militante.