Abstract: The main theme of this text is to present the contributions of Ronald Dworkin for the development of a new paradigm for Legal Science, concerning it's four basics structures, that are the theses of Norms, Legal System, Sources and Judicial Decision.
Palavras chaves: Pós-positivismo, Teoria do Direito,
Keywords: Post-positivism, Legal Theory, Legal Science
Sumário: Introdução. 1. Considerações propedêuticas. 2. Características do Pós-positivismo Interpretativista. Conclusões. Referências.
INTRODUÇÃO
Pode-se afirmar que o Positivismo Jurídico, como paradigma central da Ciência Jurídica, vem sofrendo severas críticas, ao ponto de desvelar a instalação de uma crise de tal modelo disciplinar.
Tal assunto foi inicialmente abordado em uma tríade de artigos anteriormente publicados, consistente nos textos A Revolução na Teoria do Direito, A Centralidade Material da Constituição e A Complexidade da Norma Jurídica, nos quais se analisou os modelos juspositivistas de Hans Kelsen e de Herbert Lionel Adolphus Hart e se apresentou as principais críticas aos seus postulados mais elementares, de modo a ilustrar a crise paradigmática, tanto no cenário do Direito legislado (civil law ou code based legal system) como também no padrão consuetudinário (common law ou judge made law).
Posteriormente, foram elaborados dois textos tratando especificamente das principais características centrais do Juspositivismo (Positivismo Jurídico 1 características centrais) e das respectivas críticas (Positivismo Jurídico 2: crítica às características centrais), os quais esmiuçaram os pontos em que tal modelo paradigmático demanda superação. Na oportunidade, restou assentado que o modelo juspositivista demanda retificação quanto a todos os seus cinco elementos típicos, consistentes na separação entre Direito e Moral, na formação do Ordenamento Jurídico exclusivamente (ou prevalecentemente) por Regras positivadas, na construção de um sistema jurídico escalonado só pelo critério de validade formal, na aplicação do Direito posto mediante subsunção e na discricionariedade judicial (judicial discretion ou interstitial legislation) para resolução dos chamados casos difíceis (hard cases).
Prosseguindo em tal linha de pesquisa, propõe-se este novo conjunto de quatro artigos científicos, destinados à apreciação das contribuições mais difundidas no cenário brasileiro para superação paradigmática do Positivismo Jurídico, consistentes nas propostas procedimentalista de Robert Alexy (1), substancialistas de Ronald Myles Dworkin (2) e Lenio Luiz Streck (3) e, ainda, pragmática de Richard Allen Posner (4). Cada um dos textos se dedicará à exposição das contribuições dos referidos autores no tocante às quatro plataformas elementares da Teoria do Direito, consistentes nas teses da Norma, do Ordenamento, das Fontes e da Decisão Judicial.
Outrossim, o referente deste segundo texto do total de quatro consiste em apresentar as contribuições de Ronald Myles Dworkin quanto à proposição de uma nova matriz disciplinar para Ciência Jurídica, para superação dos modelos juspositivistas de Norma, Ordenamento, Fontes e Decisão Judicial.
Assim, na primeira seção, serão traçadas algumas considerações preliminares acerca dos estudos do autor. Na segunda parte, mais substancial, efetua-se a apresentação das principais características da teoria dworkiana, com vistas ao esclarecimento das peculiaridades que identificam esta proposição de base disciplinar, nos aspectos mais importantes para o cientista jurídico. Em sede de conclusão, por fim, serão sintetizadas as contribuições do autor quanto às teorias da Norma, do Ordenamento, das Fonte se da Decisão.
Quanto à metodologia empregada, registra-se que, na fase de investigação foi utilizado o método indutivo, na fase de tratamento de dados o cartesiano, e, o texto final foi composto na base lógica dedutiva. Nas diversas fases da pesquisa, foram acionadas as técnicas do referente, da categoria, do conceito operacional e da pesquisa bibliográfica[1]. Ademais, é muito importante destacar que as menções ao modelo juspositivista partem da análise previamente elaborada acerca das proposições teoréticas de Kelsen e de Hart, exposta nos textos antes mencionados nesta Introdução.
1. Considerações propedêuticas
Ronald Myles Dworkin, professor ocupante das cátedras Sommer na New York University e Bentham na University College London, formulou uma “teoria liberal do Direito”[2] com o objetivo de superar a corrente do Positivismo Jurídico[3]. Para cumprir tal desiderato, o jurisfilósofo norte-americano adotou como alvo a teoria do Direito desenvolvida por Hart, porque entendeu se tratar da “mais influente versão contemporânea do positivismo”[4].
A teoria de Direito de Dworkin se encontra distribuída nos treze artigos que compõem o livro Levando os Direitos a Sério, no qual ele se dedica à construção de uma proposição teórica de feições liberais, contrária à filosofia utilitarista irrestrita e ao modelo juspositivista[5]. Porém, para melhor compreensão do pensamento do autor norte-americano acerca das teorias da Norma Jurídica, do Ordenamento, das Fontes e da Decisão Judicial, importa ainda compor a análise com o conteúdo das obras O Império do Direito[6], Uma Questão de Princípio[7], A Justiça de Toga[8], O Direito da Liberdade: A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana[9] e Justice for Hedgehogs[10] (Justiça para Porcos-Espinhos, em uma tradução livre), nas quais expõe vários temas intrinsecamente ligados com o referente do presente trabalho.
Entretanto, antes de analisar tal vasto substrato doutrinário, de cerca de três mil páginas, para selecionar os elementos relevantes ao referente de pesquisa adotado, cabe tecer algumas considerações preliminares acerca do pensamento de Dworkin.
Inicialmente, cabe assinalar que Dworkin produziu o seu modelo focado no sistema jurídico consuetudinário norte-americano (common law ou judge made law), no qual os precedentes judiciais possuem elevada importância, porquanto os argumentos que deles podem ser extraídos determinam a atividade jurisdicional (stare decisis ou case law), de modo que devem ser levados em consideração quando se apresentarem novos casos estreitamente similares (precisely similar) aos anteriores. Segundo a doutrina estrita dos precedentes, a força gravitacional das decisões anteriores é vinculante, mesmo quando o magistrado entende que estão equivocadas, e, de outro lado, a versão atenuada admite a possibilidade de a jurisdição suplantar a orientação pretérita, acaso seja suficientemente errada[11]. De qualquer modo, independentemente da doutrina adotada (estrita ou atenuada), os fundamentos adotados pela Jurisprudência são tão relevantes no padrão jurisdicional norte-americano que, para alguns, os dispositivos normativos produzidos pelo legislador são considerados anormais ao sistema, sendo melhor assimilados somente depois de interpretados pelo tribunais[12]. Tais peculiaridades do common law discrepam das características mais comumente compartilhadas pelos sistemas enquadrados no padrão europeu continental (civil law ou code based legal system), a exemplo do alemão e do brasileiro, principalmente quanto ao aspecto preponderante da legislação escrita e à ausência de força vinculante da generalidade das Decisões judiciais. Por isto, ao se analisar a teoria jurídica do autor ora sob foco, é preciso ter em mente que, no sistema jurídico que ele toma em consideração para suas proposições, os argumentos que fundamentam os precedentes judiciais figuram como Fontes Jurídicas determinantes, em paralelo ao Direito legislado (statutes) produzido pelo parlamento[13].
Também importa referir que Dworkin parte do pressuposto de que os problemas de teoria do Direito não estão relacionados com estratégias ou fatos jurídicos, mas sim com aspectos morais[14], mais precisamente, de moralidade política[15]. Com efeito, o jurisfilósofo sustenta que as pessoas possuem direitos morais contra o Estado, ainda que não expressamente reproduzidos na legislação ou na Jurisprudência[16]. Muito embora evite uma fundamentação jusnaturalista para tais prerrogativas civis, por reputá-la desqualificada em face de sua dimensão metafísica, propõe um modelo de construção de direitos por interpretação, calcado na posição política de proteger certas escolhas individuais[17]. Tal proposta de hermenêutica construtivista é facilmente compreendida no cenário do common law, exatamente em face da possibilidade de reconhecimento das supostas prerrogativas morais pelo exercício criativo da jurisdição, de acordo com a história institucional do Direito e observada a integridade (law as integrity). Explicitando sua proposição, Dworkin assinala que os rights não devem ser concebidos em uma perspectiva utilitarista (psicológica ou de preferências), porque “se uma pessoa tem um direito a alguma coisa, então é errado que o governo a prive desse direito, mesmo que seja do interesse geral assim proceder”[18].
Cabe assinalar, ainda, que o autor propõe um conceito de democracia constitucional, fundamentando na igualdade de tratamento e de respeito para todos os membros da comunidade. Para ele, é ilegítima e injusta uma democracia que esteja fulcrada apenas na premissa majoritária (majoritarian conception), haja vista que tal visão simples pode implicar o desrespeito das prerrogativas das minorias pela maioria, que conseguiria impor sua vontade pela força estatística. O equilíbrio democrático depende da sua substituição pela premissa comunitária (partnership conception), no sentido de dispensar a todos os membros da comunidade igual consideração e respeito, ainda que se tratem de grupos menores e mais fracos, de modo a tutelar seus direitos morais em face de investidas impulsionadas pela força numérica da maioria[19]. Segundo ele, “a concepção comunitária de democracia explica uma intuição que muitos têm: a ideia de que uma sociedade em que a maioria despreza as necessidades e perspectivas de uma minoria é não só injusta como ilegítima”[20]. Em síntese, “democracia significa o autogoverno com a participação de todas as pessoas, que atuam conjuntamente como membros de um empreendimento comum, em posição de igualdade”[21].
Com lastro em tal conceito de democracia, o autor justifica sua posição favorável ao caráter contramajoritário da teoria constitucionalista, caracterizada por estabelecer que a Constituição deve contemplar um núcleo de direitos morais contra o Estado, capaz de preservar as prerrogativas básicas das minorias contra eventuais desrespeitos pretendidos pelas maiorias, ainda que mediante o controle de constitucionalidade (judicial review)[22]. Sem embargo, no seu entendimento, a confirmação do constitucionalismo depende de uma postura ativa dos tribunais, no sentido de se esforçarem para garantir significados coerentes às cláusulas vagas da Constituição, como aquelas a respeito da legalidade e da igualdade, e, consequentemente, de deliberarem de acordo com tal entendimento quanto à constitucionalidade dos atos praticados pelos Poderes Legislativo e Executivo[23]. Notadamente, considerando que os postulados constitucionais apresentam notável aspecto político, é recomendável que a jurisdição procure ativamente confirmar tais compromissos, de modo a dar respostas satisfatórias em termos de moralidade política[24]. Ele argumenta que, acaso as cortes de justiça não procedam desta forma, acabarão por deixar a apreciação da força das cláusulas constitucionais contramajoritárias justamente ao alvedrio das maiorias contra as quais foram estabelecidas[25].
Todavia, deve-se fazer duas importantíssimas ressalvas quanto ao entendimento de Dworkin acerca do papel institucional dos tribunais. A um, ele sustenta que o Poder Judiciário deve ter uma postura ativa no sentido de ser responsável por respeitar e implementar os pactos expressos na Constituição, de acordo com a história das instituições e os Princípios Jurídicos da comunidade, de modo a evitar um passivismo que possa descambar em desrespeito dos direitos das minorias pelas maiorias políticas[26]. Contudo, seu compromisso com a integridade é igualmente contrário ao chamado ativismo jurídico, entendido este como a prática virulenta de protagonismo da magistratura em face das demais funções estatais, a qual simplesmente ignora o conteúdo da legislação e dos precedentes judiciais, com a finalidade de impor sua visão pessoal isolada sobre qual o melhor destino do Estado e da Sociedade[27]. Segundo ele, o “direito como integridade condena o ativismo e qualquer prática da jurisdição constitucional que lhe esteja próxima. Insiste em que os juízes apliquem a Constituição por meio da interpretação, e não por fiat, querendo com isso dizer que suas decisões devem ajustar-se à prática constitucional, e não ignorá-la”[28]. E, a dois, Dworkin reconhece que o controle de constitucionalidade é apenas uma das formas institucionais das minorias se defenderem de imposições injustas da maioria que contrariarem um modelo comunitário de democracia. Nada veda que sejam construídos outros modelos estruturais, mais adequados para determinadas sociedades políticas. Aliás, o autor admite que, muito embora o balanço histórico da atuação da Suprema Corte Norte Americana no exercício da fiscalização de constitucionalidade tenha se revelado positivo, os últimos anos podem autorizar a conclusão de que a jurisdição está falhando em sua missão, razão pela qual ele pretende “cruzar os dedos” na esperança de boas futuras nomeações de juízes para os assentos do tribunal[29].
Outrossim, as teses de Dworkin precisam ser entendidas de acordo com os parâmetros do common law, sob a ótica do qual foram desenvolvidas, bem como segundo as considerações de moralidade política acima expostas.
2. Características do Pós-positivismo Interpretativista
Feitas essas ponderações propedêuticas, a primeira observação acerca do modelo teórico de Dworkin diz respeito à afirmação de que o Direito é um conceito interpretativo e não semântico (interpretive concept), ou seja, de que as divergências para Decisão de casos difíceis não se encontram na escolha de critérios linguísticos para atribuição de significados aos termos e expressões constantes dos textos legais ou jurisprudenciais, mas sim na interpretação construtiva das próprias palavras.
Para Dworkin, as teorias semânticas seriam caracterizadas por pressupor que os advogados e juízes compartilham os mesmos parâmetros para decidir se proposições jurídicas são verdadeiras ou falsas, de modo que casos limítrofes sejam resolvidos mediante o estabelecimento de linhas divisórias[30]. Consoante tal doutrina, os integrantes da Comunidade Jurídica precisam fixar quais os critérios que melhor identificam os sentidos das práticas jurídicas e, com base neles, exercer as operações decisórias.
Um exemplo de teoria semântica é o Positivismo Jurídico, o qual estabelece que as deliberações são tomadas com bases em simples fatos, ou seja, mediante a verificação empírica da validade de uma proposição jurídica, de acordo com a circunstância histórica de seu cabimento dentro da hierarquia legislativa ou jurisprudencial formalmente estabelecida[31]. Para os juspositivistas, o Direito é previamente dado e, portanto, eventuais divergências não atingem os seus fundamentos, permanecendo apenas no nível de aferição quanto à correta aplicação fática[32]. Sob esta ótica, se um preceito legal ou precedente estabelece uma Regra Jurídica sobre “casas”, a discussão poderia ocorrer sobre se o palácio de Buckingham se enquadra ou não em tal termo[33], ou, acaso o dispositivo normativo fale em “livros”, o debate poderia dizer respeito à viabilidade de sua incidência em um caso envolvendo publicações com menos de cem páginas ou panfletos[34].
O autor discorda de tais teorias, dizendo que elas são feridas pela picada do argumento do ferrão ou aguilhão semântico (semantic sting)[35], porquanto os Juristas não necessariamente compartilham exatamente os mesmos critérios linguísticos para decidir sobre a veracidade ou a falsidade das proposições jurídicas. As divergências entre eles não estão centradas em torno da atribuição de significados aos termos ou expressões constantes de Textos Legais ou expressos em precedentes judiciais, de acordo com certos critérios que compartilham (a exemplo do teste juspositivista para aferição da validade). As dissensões residem no nível teórico (e não empírico) e abrangem os próprios fundamentos da deliberação, de sorte que os advogados e juízes não discutem para fixar os contornos significativos de determinadas palavras, segundo os mesmos critérios semânticos que partilham entre si, mas sim debatem quanto às razões que justificam a Decisão em determinada direção. Logo, a discordância não ocorre no nível semântico (dar significados com base em critérios pré-fixados) e sim no âmbito da hermenêutica criativa (estabelecimento dos fundamentos teóricos para a Decisão)[36].
A interpretação construtiva, proposta pelo autor em tela, consiste no esforço dos Juristas em impor um propósito aos objetos ou práticas em discussão, de modo a torná-los o mais adequado exemplo da forma ou gênero a que pertençam. Assim, quando diante de um dilema, os envolvidos no debate tentarão construir as soluções de acordo com o melhor sentido que podem conferir às práticas jurídicas compartilhadas pela comunidade, de acordo com o peso dos Princípios Jurídicos incidentes na espécie[37]. Ou seja, segundo o autor, “uma proposição de direito é verdadeira se decorrer de princípios de moralidade pessoal e política que ofereçam a melhor interpretação das outras proposições de direito geralmente tratadas como verdadeiras na prática jurídica contemporânea”[38]. Logo, ele entende ser possível a obtenção de verdades objetivas acerca de valores e, consequentemente, de proposições jurídicas, através da interpretação construtiva[39].
Todavia, cabe adiantar duas ressalvas quanto ao entendimento de Dworkin sobre a verdade em sede de Moral e de Direito. A um, o jurisfilósofo em tela entende que a veracidade em temas morais e jurídicos não pode comprovada com o mesmo método das ciências causais (como a física e a química, por exemplo), haja vista que não existem partículas morais (morons), além das demais outras já descobertas (prótons, nêutrons, elétrons etc), que possam ser descobertas e, assim, servirem como evidência da verdade[40]. Tampouco há um fundamento absoluto (master fundamental principle) que, acaso encontrado ou bem elaborado, possa impor racionalmente um consenso acerca da verdade[41]. Isto porque o estudo da moralidade é baseado na discussão lastrada em argumentos e não na apreciação de matéria física bruta, diferentemente das ciências causais[42]. Daí que, em se tratando de moralidade política, a verdade deve ser entendida apenas como o sucesso objetivo em uma determinada discussão acerca de qual a melhor interpretação para determinadas práticas jurídicas. E, a dois, importa consignar que a criatividade do intérprete não reside em forçar significados às palavras que destoem da sua história institucional, como se a a interpretação fosse um ponto de Arquimedes, com cujo apoio se pudesse alavancar todo e qualquer obstáculo fixado pela linguagem. Ao invés disto, Dworkin recorre a Hans-Georg Gadamer para afirmar que o hermeneuta é coagido ao respeito pela tradição interpretativa e, somente nela e através dela, pode atribuir um significado às palavras que reflitam a melhor interpretação possível[43].
Exemplificando a diferença entre as teorias semânticas e interpretativas, teria pouco sentido que os causídicos e magistrados estivessem debatendo se o termo “banco”, encontrado em uma Regra Jurídica extraída de um hipotético precedente judicial, refere-se à instituição financeira ou a móvel para se sentar numa praça pública[44]. Ao invés de tal debate semântico tosco, a questão reside efetivamente em interpretar o texto jurisprudencial para construir os fundamentos da Decisão mais adequada, observados os Princípios Jurídicos que dele podem ser extraídos[45]. Sob esta ótica, a questão acerca da palavra “banco” residiria em estabelecer qual o mais adequado sentido dela para solução do dilema proposto, dentro do contexto fixado pela tradição histórica.
Portanto, diversamente do que pressupõem as teorias semânticas, o Direito é um conceito interpretativo, a ser construído gradualmente, mediante a hermenêutica das práticas jurídicas de uma determinada comunidade[46]. Cabe assinalar, contudo, que tal reformulação conceitual não implica discordância de Dworkin quanto à importância do aspecto coercitivo para identificação do Direito, consoante já apresentado anteriormente pelos juspositivistas, com as modificações expostas na presente síntese teórica[47].
O segundo aspecto relevante também gira em torno do conceito de Direito, mais precisamente sobre a antiga e controversa questão acerca da sua relação com a Moral. Durante os aproximadamente primeiros quarenta anos em que Dworkin criticou a proposição juspositivista da separação (e, posteriormente, indiferença) entre moralidade e juridicidade, as duas esferas eram tratadas separadamente, segundo o modelo dúplice (two-system picture). De acordo com tal visualização do fenômeno, o autor em tela se esforçava em argumentar a necessária relação entre duas ordens sociais diferentes, enquanto os juspositivistas se negavam a aceitar tal explicação, embora alguns tenham feito algumas concessões (do seio desta disputa filosófica, por exemplo, surgiu a bifurcação entre Juspositivismo exclusivo e inclusivo). Todavia, com a edição da obra Justice for Hedgehogs, quando aprofundou o estudo da base valorativa subjacente à juridicidade, o jurisfilósofo em questão intuiu a razão pela qual tal discussão, ao longo de décadas, não havia surtido efeito: o equívoco do referido modelo dúplice[48].
Para Dworkin, a correção na explicação da aproximação entre as ordens sociais é no sentido de que uma é especialização (ou subdivisão) da outra, ou seja, o Direito é um ramo do galho da moralidade política que, por sua vez, brota do tronco maior da Moral, segundo a imagem estrutural de uma árvore (tree structure)[49]. De um lado, sob esta nova perspectiva, resta superada a intenção de separar os temas jurídicos das análises axiológicas e, assim, de conferir-lhe algum critério de cientificidade que seja independente de uma abordagem de valores (a Ciência Jurídica não pode se afastar do estudo da Moral). De outro ângulo, porém, a nova conformação permite responder a questionamentos que não eram bem solucionados no modelo anterior, cabendo mencionar, principalmente, o tema da diferença entre as duas modalidades de prerrogativas políticas (political rights), consistentes nos direitos legislativos (legislative rights) e legais (legal rights). Na perspectiva da árvore, os direitos legislativos são aqueles que condicionam a atividade das autoridades legiferantes (community's lawmaking powers), de modo que seus poderes sejam empregados de determinada forma[50]. Os direitos legais, por sua vez, são aqueles que já são considerados incorporados positivamente e, assim, são imediatamente adjudicáveis através do acionamento direto dos processos já disponíveis[51].
Portanto, para o autor em tela, o Direito é uma disciplina pertencente ao domínio mais amplo da Moral, como um galho de uma árvore maior, de onde extraí sua base valorativa.
A terceira peculiaridade digna de nota, ainda no âmbito conceitual, consiste em definir o Direito como completude ou como integridade (law as integrity), no sentido de afirmar que consubstancia o conjunto completo dos fundamentos principiológicos das decisões políticas da comunidade, que, embora extraído dos Textos Legais e jurisprudenciais escritos no passado, volta-se para a construção do futuro da comunidade, mediante uma constante rearticulação dos postulados básicos da justiça, da equidade e da própria integridade[52].
Segundo Dworkin, o Direito pode ser compreendido em três concepções antagônicas: a um, o convencionalismo estabelece que as pessoas têm somente os direitos expressamente convencionados em textos normativos (legais ou jurisprudenciais) elaborados no passado, com base nos quais as decisões devem ser tomadas, sendo que, em caso de esgotamento da força das convenções pretéritas, a deliberação deverá ser tomada discricionariamente, a exemplo da corrente do Juspositivismo[53]; a dois, o Pragmatismo Jurídico estabelece que as pessoas não tem reais prerrogativas fixadas no passado, pois o que efetivamente importa é que as decisões sejam tomadas com o objetivo de edificar o melhor futuro para comunidade, de forma flexível, segundo os pontos de vista particulares das autoridades públicas (inclusive juízes) sobre as estratégias mais eficientes e eficazes, a exemplo das proposições classificadas como teorias econômicas do Direito[54]; e, a três, o Direito como integridade, que se desenvolve através de uma abordagem de interpretação criativa que procura equilibrar a coerência com, de um lado, os fundamentos subjacentes às Decisões pretéritas e, de outro, a flexibilidade com a construção do futuro da comunidade, articulando os parâmetros de justiça, equidade e integridade[55].
O autor em tela rejeita a primeira concepção (convencionalismo), com lastro nos mesmos argumentos que refletem seu ataque geral declarado à sua modalidade mais difundida, justamente o Positivismo Jurídico, consoante se pode depreender dos assuntos já acima lançados e expostos no restante desta síntese[56]. Também revela aversão à segunda noção (Pragmatismo Jurídico), porquanto ela nega que os fundamentos principiológicos das Decisões políticas do passado legam vantagens jurídicas passíveis de serem invocadas no futuro e, também, delega aos juízes o poder de adotar soluções que atendam a políticas (metas ou objetivos), mesmo em detrimento de Princípios Jurídicos caros à comunidade[57]. Outrossim, vincula-se à terceira ideia, consistente no Direito como integridade, por considerá-la a melhor expressão das práticas jurídicas, ao menos no cenário norte-americano. Sem embargo, o autor “nega que as manifestações do direito sejam relatos factuais do convencionalismo, voltados para o passado, ou programas instrumentais do pragmatismo jurídico, voltados para o futuro”[58]. Ao invés, parte da proposição de que a “integridade instrui os juízes a identificar direitos e deveres legais, até onde for possível, a partir dos pressupostos de que foram todos criados por um único autor – a comunidade personificada –, expressando uma concepção coerente de justiça e equidade”[59].
A opção pela terceira concepção (Direito como integridade) implica a necessidade de se estabelecer o conceito operacional de comunidade. Dworkin conceitua tal corpo social como uma “personificação atuante”, que “pode adotar, expressar e ser fiel ou infiel a princípios próprios, diferentes daqueles de quaisquer indivíduos de seus dirigentes ou cidadãos enquanto indivíduos”[60]. Para ele, da mesma forma que é possível se conceber personalidades jurídicas diferentes das dos sócios ou associados que as compõem (como, por exemplo, as sociedades empresárias) e discutir acerca de seus pontos de vista, por identidade de motivos, é também plausível se falar em uma comunidade personificada, com aspectos culturais predominantes e verificáveis[61]. Assim, com base em tal abstração, os Juristas podem discutir acerca dos princípios básicos de moralidade política de uma determinada comunidade, como um ente personalizado, da mesma forma que debatem acerca dos interesses de uma grande corporação multinacional, da mídia ou da classe trabalhadora, por exemplo[62]. Não se trata da atribuição metafísica de princípios a uma vontade geral, ficção espectral ou algum outro componente onipresente do universo, mas sim de uma análise das projeções reais de um determinado grupo social, com pontos de vista distinto de alguns de seus integrantes[63]. Nesta perspectiva, sua teoria assume que a comunidade é “alguma forma especial de entidade, distinta dos seres reais que são seus cidadãos”, de modo que quando diz que “uma comunidade é fiel a seus próprios princípios”, não se refere “a sua moral convencional ou popular, às crenças e convicção da maioria dos cidadãos”, mas sim que “tem seus próprios princípios que pode honrar ou desonrar, que ela pode agir de boa ou má-fé, com integridade ou de maneira hipócrita, assim como fazem as pessoas”[64].
Logo, o Direito como integridade “exige que as normas públicas da comunidade sejam criadas e vistas, na medida do possível, de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equidade na correta proporção”[65].
Quarto, persistindo no tema atinente ao conceito de Direito, Dworkin afirma que ele não pode ser compreendido como um conjunto fixo de padrões de julgamento de algum tipo. Ao contrário, é composto por um catálogo não taxativo dos diversos argumentos empregados pelos juízes para fundamentarem as suas Decisões, dentre os quais se destacam as Regras, os Princípios e as políticas, sem prejuízo do emprego de outros elementos de justificação[66]. Identificar qual a natureza jurídica de um determinado padrão de julgamento nem sempre é claro ou fácil, podendo consubstanciar o próprio núcleo da controvérsia[67]. Contudo, o Jurista norte-americano estabeleceu algumas diretrizes para distingui-los, as quais foram sintetizadas na sequência.
As Regras Jurídicas (rules) são preceitos com considerável grau de determinação (densidade normativa) e que funcionam segundo o critério da validade. Outrossim, na fase de interpretação e aplicação, “ou a regra é valida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão”, logo, “as regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada”[68].
A validade de uma Regra Jurídica pode ser verificada através de um teste de pedigree, ou seja, mediante a checagem quanto à regularidade formal de sua origem. Sem embargo, esta modalidade de padrão de julgamento somente passa a integrar o Ordenamento Jurídico mediante a observância do procedimento de produção normativa (legislativa ou judiciária), devidamente conduzido pela autoridade competente (congressistas ou juízes)[69].
A abrangência de uma Regra é passível de exceções, que podem estar enunciadas no seu próprio corpo ou em leis e precedentes apartados, os quais não retiram sua validade para as hipóteses não excepcionadas[70].
Eventualmente, a Regra pode conter palavras ambíguas, a exemplo de “razoável”, “negligente”, “injusto” ou “significativo”, hipótese em que assume um certo grau de indeterminabilidade, assemelhando-se (mas não se igualando) a um Princípio[71].
Também é importante salientar que, quando diante de casos difíceis (hard cases), a jurisdição pode criar novas Regras Jurídicas, mediante o emprego de Princípios que justificam a sua formulação, com a finalidade de reger a causa sob julgamento e orientar a formação da Decisão jurisdicional em novas ocorrências similares[72].
O conflito entre Regras merece ser resolvido no plano da validade, com o emprego de critérios dirimentes extraídos da própria ordem jurídica, como aqueles comumente mencionados pelos juspositivistas, que concedem precedência àquela de grau superior (lex superior derogat legi inferiori), de promulgação mais recente (lex posterior derogat legi priori), de definição mais específica (lex specialis derogat legi generali) ou de sustentação por Princípios mais fortes, ou, ainda, mediante o emprego de outras considerações que estão além das próprias Regras[73].
Os Princípios Jurídicos (principles), por sua vez, são postulados cujo peso ou relevância moral recomenda sua incidência como elemento para resolução de casos concretos, ainda que não estejam expressamente previstos em Textos Legais ou jurisprudenciais. Um Princípio “deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de Justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade”[74].
Como característica marcante, cabe referir que os Princípios Jurídicos não possuem o âmbito da validade, ou seja, não podem ser submetidos ao teste de pedigree típico das Regras[75]. Isto porque a aplicabilidade deles não depende de que a sua inserção na ordem jurídica tenha sido promovida por uma autoridade formalmente competente e, tampouco, de que tenha sido observado um determinado procedimento preestabelecido[76]. Ao invés disto, a sua caracterização como padrão de julgamento é determinada mediante argumentação racional, baseada nas práticas jurídicas e nas formas de compreensão partilhadas pela comunidade ao longo da história institucional do Direito, consoante um debate no qual pessoas razoáveis e, mesmo Juristas bem treinados, podem eventualmente discordar[77]. Notadamente, “saber se um princípio é ou não um princípio da comunidade nesse sentido é matéria para argumentação e não para relatórios, embora o que está habitualmente em discussão é peso do princípio e não o seu status”[78]. Acrescenta-se que, justamente por não terem a dimensão da validade, os Princípios Jurídicos não são passíveis de revogação ou anulação, de modo que sua exclusão da ordem jurídica está relacionada com a erosão dos argumentos que o sustentam, de modo a perderem eficácia sobre os casos futuros[79].
Também no momento de aplicação, os Princípios apresentam diferenças de natureza lógica ante às Regras[80], pois não fornecem consequências jurídicas automáticas aos casos dados, limitando-se a estabelecer razões para que a deliberação seja conduzida em determinada direção[81]. Mesmo assim, a sua força cogente consiste em que devem ser necessariamente levados em consideração pelas autoridades públicas em suas decisões, não podendo simplesmente ser desconsiderados[82].
O intercruzamento de Princípios, diferentemente do conflito de Regras, soluciona-se consoante a aferição do peso ou importância daqueles passíveis de incidência em determinada situação concreta, de modo a permitir a definição de qual deve preponderar no caso específico, embora o preterido mantenha o mesmo status no Ordenamento Jurídico[83]. Importa esclarecer que as Regras não tem esta dimensão de peso inerente aos Princípios, razão pela qual, na hipótese de contradição entre tais distintos padrões jurídicos, o magistrado deverá comparar o peso do conjunto de Princípios que ampara a Regra com aquele que lhe é oposto, de modo a definir quanto à incidência dela ao caso concreto. Por isto, “para decidir sobre a manutenção da regra, o tribunal compara dois conjuntos de princípios; é enganoso, portanto, afirmar que o tribunal compara o peso da própria regra com um ou outro conjunto desses princípios”[84].
As políticas (policies), por fim, são padrões calcados em parâmetros utilitaristas, elaborados e operados com vista à promoção do bem estar geral. Sob esta ótica, a política “estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade”[85].
A sua forma de aplicação, em casos concretos, assimila-se muito àquela descrita quanto aos Princípios Jurídicos, haja vistam que ambos operam segundo a dimensão do peso ou importância.
A diferença entre políticas e Princípios consiste em que aquelas são proposições que descrevem objetivos (metas) coletivos, enquanto estes consubstanciam postulados de direitos (prerrogativas) individuais[86]. Explicando de outra forma, os argumentos de feições principiológicas demonstram que a “decisão respeita ou garante um direito de um indivíduo ou de um grupo”, enquanto, de outro lado, os fundamentos de cunho político justificam uma Decisão que “fomenta ou protege algum objetivo coletivo da comunidade como um todo”[87].
Segundo a teoria jurídica de Dworkin, as Decisões Judiciais devem ser geradas por Princípios, não por políticas, mesmo nos casos que entende como difíceis (hard cases), haja vista que a deliberação jurisdicional deve conter argumentos que assegurem os direitos das partes, a despeito de promoverem políticas de interesse da comunidade[88].
Não se pode olvidar que tal classificação de padrões de julgamento difere daquela adotada por Alexy, antes esmiuçada, haja vista que, a um, o professor alemão estabelece que uma Norma Jurídica só pode ser uma Regra ou um Princípio, de modo a deixar de conferir força deontológica a outros padrões de julgamento, embora admita o emprego de argumentos diversos na prática discursiva, desde que observados os acordos procedimentais pertinentes, consoante a síntese acima exposta; a dois, ele não estabelece diferenças peculiares quanto à argumentação política, enquadrando-a dentro do conceito de Princípio Jurídico[89]; e, a três, como o próprio escritor ressalta em sua obra, “a distinção apresentada [entre Regras e Princípios] assemelha-se à proposta de Dworkin […]. Mas, ela dela difere em um ponto decisivo: a caracterização dos princípios como mandados de otimização”[90].
Quinto, Dworkin entende ser inviável a adoção de uma Norma reconhecimento (ou fundamental, na terminologia empregada por Kelsen) como critério decisivo para verificar a pertinência de um padrão de julgamento diferente das Regras a determinado Ordenamento Jurídico[91].
Para o escritor em análise, o teste de pedigree proporcionado por tal preceito normativo máximo permite avaliar somente a pertença das Regras Jurídicas ao sistema, justamente porque elas funcionam segundo o critério de validade. Com efeito, a Regra é considerada válida e, consequentemente, integra a ordem jurídica quando tiver sido produzida em consonância com a delegação de competência e o procedimento formal estabelecidos pela Norma fundamental (ou de reconhecimento). Porém, o exame oferecido por tal preceito supremo não permite aferir o cabimento no sistema de outros parâmetros de julgamento, a exemplo dos Princípios Jurídicos, porquanto estes sequer possuem a dimensão da validade. Notadamente, os mencionados elementos normativos não são necessariamente produzidos segundo as delegações de competência e os procedimentos fixados no preceito máximo. Ao invés disto, a viabilidade de sua utilização como fator de Decisão depende da escorreita justificação quanto à sua importância ou peso em determinada situação, mediante argumentação lastrada na história institucional das práticas jurídicas da comunidade[92].
Logo, a constatação de que a ordem jurídica é também integrada por outros critérios decisórios, extraídos de Fontes Jurídicas diversas da legislação e do acervo de precedentes jurisprudenciais, impede o emprego da Regra fundamental (ou de reconhecimento) como teste para verificação da pertinência da integralidade dos imperativos normativos ao sistema e, consequentemente, “reduz a fragmentos a elegante arquitetura piramidal” exposta na teoria de Hart (e, por consequência, de Kelsen e Bobbio)[93].
Sexto, em decorrência da sua discordância com relação à proposição de que o sistema teria a forma estrutural de uma pirâmide de Regras escalonadas segundo o critério de validade formal, Dworkin propõe uma nova configuração da ordem normativa. Ele sugere que os Juristas assumam que o Ordenamento Jurídico apresenta a forma de uma teia inconsútil (seamless web), ou seja, de uma trama coerente, sem costuras ou remendos, dos diversos padrões de julgamento adotados pelos órgãos de produção normativa, ao longo da história institucional do Direito, em uma determinada comunidade[94].
Sob esta nova forma estrutural, o intérprete e aplicador deve considerar a ordem jurídica como um sistema íntegro, formado pela conjunção concatenada dos diversos fatores levados em consideração para fundamentar as deliberações jurisdicionais, que vão sendo tecidos nas linhas vertical (dos órgãos superiores aos inferiores)[95] e horizontal (no mesmo patamar hierárquico)[96], no decorrer do tempo.
A adoção deste modelo de conformação do sistema jurídico implica a alteração da perspectiva do julgador, haja vista que está inserido em uma nova organização dos elementos decisórios. Outrossim, restaria superada a visão de que as deliberações são tomadas em uma linha descendente, partindo do topo da pirâmide (Regra fundamental ou de reconhecimento) até a base (Norma individual do caso concreto), como haviam concebidos os juspositivistas (notadamente, Kelsen e Bobbio, como já mencionado). Diferentemente, no cenário representado pela presente construção teórica pós-positivista, o magistrado deve ter em perspectiva um Ordenamento Jurídico íntegro, como uma trama não consútil, na qual sua Decisão guarda uma relação de coerência com aquelas tomadas anteriormente, sob a forma de soluções que representam uma nova parcela do tecido jurídico.
Abaixo, encontra-se colacionada uma representação gráfica do Ordenamento Jurídico sob a estrutura de uma teia inconsútil[97]:
Logo, o autor em tela renega a proposição teórica juspositivista de que o sistema normativo tem a forma de uma pirâmide de Regras escalonada pelo critério de validade, cujo ápice seria a Regra de reconhecimento. Como alternativa, ele propõe que os julgadores o tratem como se fosse uma teia inconsútil (íntegra e coerente), formada pelos padrões de julgamento empregados para tomada de Decisão ao longo da história institucional do Direito, em uma determinada comunidade. Não é ocioso esclarecer, contudo, que esta proposta de visualização do sistema jurídico não renega e tampouco contraria a visão antes exposta de que o Direito é um dos ramos da árvore da Moral, haja vista que a aquela imagem diz respeito a relação estática entre subdivisões de áreas de estudo, não à dinâmica de articulação dos diversos padrões de julgamento em um sistema.
Sétimo, cabe acentuar a severa crítica de Dworkin contra a tese juspositivista que confere poder discricionário à jurisdição (judicial discretion ou interstitial legislation) para resolução dos casos difíceis (hard cases), sob os argumentos principais de que pode implicar negação aos direitos morais preestabelecidos por Princípios Jurídicos e, ainda, causar surpresa aos litigantes mediante a imposição de um critério de julgamento não expressamente previsto na ordem jurídica, criado ex post facto para reger o caso concreto. Como alternativa, ele apresenta a teoria dos direitos, segundo a qual as partes possuem prerrogativas e deveres preexistentes à instauração da controvérsia, a serem devidamente reconhecidos pela jurisdição, mesmo na ausência de Regras positivas claras, de acordo com os Princípios Jurídicos incidentes na espécie, que devem ser empregados mediante interpretação construtivista, realizada dentro do Ordenamento Jurídico (teia inconsútil ou seamless web) e de acordo com a história institucional do Direito[98].
Explicando tal entendimento, cabe destacar que uma teoria do Direito completa deve apresentar uma tese para resolução dos chamados casos difíceis ou duvidosos (hard cases), nos quais os métodos tradicionais de resolução de controvérsias não sejam suficientes.
O Positivismo Jurídico, para atender tal exigência teórica, fornece a proposição do poder discricionário (judicial discretion ou interstitial legislation), segundo a qual eventual falha no sistema, decorrente de lacunas, antinomias ou ambiguidades, deve ser corrigida mediante a criação de uma Regra Jurídica pelo juiz competente para resolver o caso, ainda que sua Decisão seja redigida de uma forma que faça pressupor que uma das partes tinha o direito preexistente de ganhar a causa[99].
Com efeito, o conceito de discricionariedade pode ter um sentido fraco, quando visa designar que, “por alguma razão, os padrões que uma autoridade pública deve aplicar não pode ser aplicados mecanicamente, mas exigem o uso da capacidade de julgar”, ou alternativamente, “apenas para dizer que algum funcionário público tem a autoridade para tomar uma decisão em última instância e que esta não pode ser revista e cancelada por nenhum outro funcionário”[100]. Todavia, os juspositivistas entendem o poder discricionário diferentemente, em um sentido mais forte, para referir que a autoridade judiciária, quando diante de um caso difícil (em decorrência de uma lacuna, antinomia ou ambiguidade), pode tomar a Decisão que entender melhor ou mais adequada, de acordo com seu discernimento pessoal ou segundo quaisquer critérios que entender razoáveis, porque não se encontra vinculada por nenhum padrão de julgamento[101].
Dessarte, para o Juspositivismo, quando o juiz não dispõe de Regras Jurídicas específicas, é facultado que aplique seu entendimento subjetivo para resolver a controvérsia, pois não está obrigado por outros parâmetros decisórios e, tampouco, pela Moral[102]. Então, o magistrado juspositivista primeiro escolhe a Decisão que reputa a mais adequada e, depois, expõe uma fundamentação no intuito de racionalizar sua atividade deliberativa. Observada tal operação sob um outro ângulo, é possível afirmar que “ele legisla novos direitos jurídicos (new legal rights), e em seguida os aplica retroativamente ao caso em questão”[103]. Logo, sob a ótica da preservação da segurança jurídica (certeza do Direito), a discricionariedade jurisdicional é altamente criticável, porque “a parte perdedora será punida, não por ter violado algum dever que tivesse, mas sim por ter violado um novo dever, criado pelo juiz após o fato”[104].
A teoria dos direitos dworkiniana se apresenta como uma proposta de superação à tal quebra na segurança jurídica derivada da doutrina juspositivista, ao estabelecer que, mesmo na ausência de Regras Jurídicas específicas ou em caso de dúvida quanto ao Direito aplicável à espécie, a atividade interpretativa e deliberativa do magistrado é vinculada aos Princípios preestabelecidos, de modo a afastar a possibilidade da escolha discricionária de critérios subjetivos[105]. De acordo com a proposição pós-positivista, as partes possuem prerrogativas e deveres preexistentes à instauração da controvérsia, a serem devidamente reconhecidos pela jurisdição, mesmo diante da falta de Regras positivas claras, de acordo com os Princípios Jurídicos incidentes na espécie, que devem ser empregados mediante interpretação construtivista, a ser realizada dentro do Ordenamento Jurídico (teia inconsútil ou seamless web), de acordo com a história institucional do Direito[106].
Para melhor ilustrar o funcionamento da teoria dos direitos, o autor apresenta a figura hipotética do juiz Hércules, caracterizado por ter sagacidade, sabedoria, paciência e capacidade de decisão sobre-humanas, suficientes para superar as dificuldades representadas pelos casos difíceis[107]. Quanto ao seu perfil, pode-se afirmar que “não é um passivista, pois rejeita a ideia rígida de que os juízes devem subordinar-se às autoridades eleitas, independentemente da parte do sistema constitucional em questão”[108]. Porém, “também não é um 'ativista'”, haja vista que “vai recursar-se a substituir seu julgamento por aquele do legislador quando acreditar que a questão em jogo é fundamentalmente de política, e não de princípio, quando o argumento for sobre as melhores estratégias para satisfazer inteiramente o interesse coletivo”[109]. Tal exemplo de Jurista com elevada capacitação filosófica serve apenas como referência ideal para resolução das controvérsias judiciais, para fins de melhor explicitar a proposição teórica sob foco. Na sequência, serão examinados os principais aspectos da aplicação do Direito mediante interpretação construtiva, de acordo com a visão do referido juiz mitológico.
A um, é preciso relembrar que Hércules tem o dever de deliberar com bases em Princípios preexistentes na ordem jurídica, de modo a reconhecer os direitos concretos das partes, ainda que eventuais políticas (objetivos) apontem em outra direção[110], salvo em se tratando de situações de especial urgência[111]. Isto porque é decorrência natural do conceito de direitos que, comumente, eles sejam contrários à consecução de alguns objetivos políticos, consubstanciando salvaguardas (ou trunfos) de respeito às condições das pessoas[112]. E, também, porquanto a descoberta de tais prerrogativas é um ideal institucional, considerando que “os juízes devem aplicar o direito criado por outras instituições; não devem criar um novo direito”[113]. Outrossim, não lhes é dado estabelecer novas Normas Jurídicas, ainda que visem atender anseios políticos da coletividade, devendo, ao invés, estabelecer qual o litigante que tem razão de acordo com os Princípios já devidamente incorporados à ordem normativa[114].
A dois, o magistrado mitológico, embora tenha a responsabilidade por decidir com base em Princípios Jurídicos, não deve desconsiderar as finalidades políticas que engendraram a edição da legislação pelo parlamento[115]. Entretanto, isto não significa que poderá tentar captar um suposto espírito abstrato do legislador, pois perceber os anseios ventilados na casa legiferante durante o processo de criação do Texto Legal é uma tarefa meramente probabilística que, dificilmente, produzirá resultados úteis, principalmente porque os congressistas poderiam ter vários motivos, inclusive colidentes entre si, para produzir o diploma normativo. Ademais, a chamada vontade do legislador é uma figura meramente eventual, haja vista que determinados congressistas podem sequer ter imaginado que a legislação poderia envolver situações como aquelas emergentes no caso concreto apresentado ao juiz[116]. Então, ao invés de cair nesta ilusória e infrutífera busca pelos aspectos convergentes da intenção de um vasto grupo de parlamentares, Hércules deverá adotar a postura interpretativa de levar em consideração o processo legislativo como um evento político integral, analisando apenas os aspectos eventualmente relevantes registrados nos anais do parlamento ou amplamente divulgados. Ou seja, ele não desconsiderará todo movimento político que culminou com a prolação do ato normativo, mas o considerará como um fato histórico específico, e não através de uma análise psicológica de intenções pessoais, conferindo-lhe a importância que deve ter no momento de tomada da Decisão jurisdicional[117].
A três, Hércules deve considerar que o conjunto dos padrões de julgamento formam um Ordenamento Jurídico íntegro, sob a forma de uma teia inconsútil (seamless web), a qual deve conhecer para poder bem deliberar – daí a magnitude de sua função (e o caráter meramente ideal da figura mitológica), considerando a vasta gama de orientações que integram uma ordem jurídica[118]. Sem embargo, a totalidade dos parâmetros normativos não podem ser desconsiderados na tomada de Decisão, haja vista que o órgão julgador tem o dever de manter a coerência com a história institucional do Direito e, assim, deve respeitar a força gravitacional dos precedentes judiciais anteriores (lembrando a importância da Jurisprudência no cenário do common law ou judge made law, tomado como padrão por Dworkin, como já dito)[119]. Tal obrigação de deliberar de forma concatenada com as decisões anteriores decorre, principalmente, do imperativo de igualdade, no sentido de resolver os novos casos da mesma maneira que foram tratados os anteriores, de sorte a evitar a quebra de conexão lógica na tecitura jurídica[120]. Assim, Hércules somente se desincumbirá de sua função se conceber uma teoria completa acerca dos direitos jurídicos, sob a forma de uma trama sem remendos, que satisfaça às exigências de identificar os direitos concretos dos litigantes e de os aplicar de forma equânime (fair) nos futuros casos que se apresentarem, sem recurso à criação discricionária de soluções ad hoc e ex post facto[121].
A quatro, cabe ressaltar que, eventualmente, Hércules poderá se deparar com uma orientação jurisprudencial equivocada na linha de precedentes que formam a teia inconsútil (um erro institucional), hipótese em que deverá negar-lhe o efeito gravitacional e, adicionalmente, justificar suficientemente a negativa de sua aplicação. Notadamente, não há como assegurar a inocorrência de equívocos no Ordenamento Jurídico, os quais podem surgir e implicar uma solução indevida, sob a ótica da avaliação errônea dos pesos dos Princípios Jurídicos que incidem na resolução do caso concreto. Diante de uma situação destas, o juiz deve, como critério geral de conduta, aceitar a deliberação judicial anterior, de modo a gerar uma Decisão igual para o novo caso, por uma questão de equidade no tratamento de questões jurídicas similares, ainda que particularmente discorde do resultado. Todavia, em situações excepcionais, ele deverá corrigir a história institucional do Direito, no sentido de adotar uma solução diversa das pretéritas, justificando quais os Princípios que orientaram a modificação do entendimento e, consequentemente, retificando a tessitura jurídica. Logicamente, ao assim proceder, a jurisdição deverá observar tal alteração no parâmetro de julgamento para as hipóteses similares futuras[122].
A cinco, importa considerar que as novas decisões tomadas devem servir como uma continuidade construtiva do Ordenamento Jurídico, como se cada uma fosse um capítulo acrescido na história institucional do Direito, escrito por juízes diferentes no decorrer do tempo, de sorte a compor um romance em cadeia (chain novel). Consoante a metáfora proposta por Dworkin, o Direito pode ser visualizado como uma grande novela televisiva (ou seriado de televisão), em que cada novo episódio é lavrado por um juiz, que tem a responsabilidade política de guardar coerência com o roteiro que vem sendo redigido por seus antecessores e, simultaneamente, de firmar as bases para um desenrolar mais adequado do futuro. É desta forma que os magistrados, como romancistas em cadeia, vão contribuindo para a formação da rede de Princípios Jurídicos da comunidade, agregando seu ponto de vista e sua experiência a medida que tecem uma parcela da teia inconsútil[123].
A seis, assevera-se que os magistrados devem observar os diversos compartimentos da teia inconsútil e, em caso de divergência quanto ao peso para atribuir a cada Princípio Jurídico relacionado com a solução a ser tomada, devem conferir prioridade local (local priority), ou seja, dar preferência àqueles que regem o ramo do Direito mais especificamente afetado pela sua Decisão. Por exemplo, quando diante de um pedido de reparação de danos materiais ou morais, os preceitos normativos extraídos do ramo da responsabilidade cível, por via de regra, prevalecem em face dos demais, como aqueles emergentes da disciplina penal ou mesmo do departamento cível em geral[124].
A sete, cabe destacar que Hércules deve promover uma leitura moral (moral reading) dos preceitos normativos, mormente daqueles de cunho constitucional, ou seja, precisa construir interpretativamente o significado das cláusulas abstratas de acordo com os critérios de moralidade política que melhor refletem o conjunto que Princípios Jurídicos que regem a comunidade[125]. Todavia, a operação de leitura moral não deverá estar pautada na apreciação subjetiva de Hércules, mas sim se orientar de acordo com a Moral comunitária, consistente “na moralidade política que as leis e as instituições da comunidade pressupõem”[126]. Não se desconsidera ser inevitável que um magistrado, mesmo do porte sobre-humano daquele aqui referido como exemplo hipotético, tenha suas próprias convicções pessoais, das quais não poderá se libertar no momento de tomar uma Decisão, por serem intrínsecas à sua racionalidade. Contudo, não são as opiniões pessoais do juiz que devem servir de fundamento para a sua deliberação, mas sim aquelas externadas pelas instituições sociais, que conformam a Moral da comunidade. Desta forma, opera-se uma desvinculação entre os argumentos pessoais de Hércules, que devem ser desprezados para fins de motivação (ainda que inviável a blindagem quanto à sua formação intelectual), e aqueles fundamentos de moralidade institucional, os quais servirão de justificação para construção da Decisão judicial[127]. Desta forma, Hércules “pode interpretar um conceito que para ela não tem valor, para chegar a uma decisão que, em termos de moralidade básica, ele rejeitaria”[128]. Cabe asseverar, também, que deliberar de acordo com a moralidade comunitária não significa ceder às pressões de grupos majoritários, mas sim levar em sincera consideração os Princípios Jurídicos que dão suporte às instituições sociais. Outrossim, Hércules deverá defender a moralidade constitucional, ainda que para isto tenha que contrariar opiniões amplamente populares[129].
E, a oito, importa ressaltar que o método de Hércules é aplicável igualmente para os casos fáceis como aos difíceis, haja vista que tal classificação de dificuldade não representa uma cissão arbitrária, feita antes de iniciada a interpretação que resolverá uma situação concreta. Na verdade, o juiz inicia a resolução de um caso sem saber se será complicado ou não, pois isto vai depender das considerações complexas emergentes durante a própria operação intelectiva. A teoria dos direitos de Dworkin apenas se refere a um grupo de casos difíceis para demonstrar as diferenças de atitude para resolução de temas controversos. Afinal, o chamado caso Brown vs. Board of Education, que em síntese resultou na vedação a segregação racial nas escolas norte-americanas, certamente foi controverso na época e no cenário em que sua Decisão foi prolatada, embora hoje se trate de tema considerado pacificado, enquanto outras questões que hoje possam ser consideradas simples são passíveis de, futuramente, ensejar uma ampla discussão. Outrossim, ao contrário dos Juspositivistas que resolvem casos simples e complexos de diferentes formas (subsunção nos chamados fáceis e discricionariedade nos ditos difíceis), a proposição de Dworkin é de que o mesmo método é passível de resolver qualquer caso, ainda que alguns se mostrem mais difíceis de resolver e, então, possam tomar mais tempo e dedicação do intérprete[130].
Por fim, importa ressalvar que a interpretação efetuada por Hércules, na construção da teia inconsútil que fundamenta suas decisões, inevitavelmente não poderá ser absolutamente igual àquela eventualmente adotada por outro magistrado[131]. Isto porque não há como uma proposição acerca das deliberações jurisdicionais, a exemplo da teoria dos direitos, descrever ou prescrever uma operação mecânica exata e precisa de como devem ser obtidas as respostas para as mais diversas controvérsias jurídicas[132]. Logo, a tese não desconsidera e nem nega que o provimento jurisdicional “se trata de uma decisão política, ou que juízes diferentes, oriundos de diferentes subculturas, tenderão a tomar decisões diferentes”[133]. Todavia, a proposta demonstra um esforço, ainda que de cunho sobre-humano, para procurar a melhor resposta possível dentro da vasta teia inconsútil de elementos de determinação, de modo a que os magistrados decidam vinculados aos Princípios Jurídicos, ao invés de se sentirem livres para deliberar discricionariamente[134].
Oitavo, importa assinalar que as incisivas críticas de Dworkin contra a discricionariedade judicial, acima expostas, acabam por direcionar sua proposição teórica no sentido de que os direitos a serem descobertos pelos juízes não são controversos, de modo a sugerir que “há uma única resposta certa para questões complexas de direito e moralidade política” (the one right answer thesis)[135].
Tal polêmica proposição dworkiniana é contestada por uma corrente que o autor alcunha de ceticismo, pois integrada por filósofos que não acreditam na existência de condições plausíveis para se atingir a veracidade ou a correção de uma afirmação. Os argumentos céticos podem ser resumidos em duas linhas principais de ataque, replicadas pelo autor consoante a brevíssima síntese abaixo deduzida.
A um, os críticos sustentam ser inútil as partes e o juiz se esforçarem a procurar a única solução correta, porque não terão como saber se efetivamente a alcançaram (argumento prático). Contra tal argumento, o autor está convencido que os envolvidos em uma querela devem sempre se esforçar em buscar a correção da resposta, exercendo seu melhor juízo a respeito do tema controvertido, ainda que não tenham como comprovar ou convencer a todos (obter consenso) que efetivamente atingiram seu objetivo[136]. Ele aduz que o emprego da teoria dos direitos para resolução de controvérsias judiciais, na forma como praticada pelo exemplo de Hércules, pode até acarretar resultados diversos, quando empregada por juízes diferentes. Todavia, eventuais falhas em buscar pela solução mais correta não podem servir de argumento contra a pretensão de encontrar a resposta mais adequada para cada situação concreta[137].
A dois, os adversários defendem que a controvérsia acerca da correção é insolúvel por qualquer teste que possa ser formulado e, portanto, como decorrência lógica, são possíveis várias soluções para um mesmo caso, sem que seja possível se apontar qual delas é efetivamente a correta, em qualquer hipótese que se apresente (argumento teórico).
Para rebater tal tese, em breve síntese dos vários argumentos expostos pelo autor, cabe mencionar a proposição de que a própria afirmação de que não existe resposta correta é, em si mesma, um argumento moral, embora de cunho diverso daqueles que apontam em uma ou outra solução para uma questão controvertida. Para melhor explicar isto, o autor propõe que seja considerada uma escala que começa em um ponto extremo no lado esquerdo, no qual estão os argumentos favoráveis ao demandante, passando por um nó central “de empate”, em que não há resposta correta em favor de nenhuma das partes e, depois, segue para direita, gradativamente caminhando na argumentação em favor do demandado. Diante de tal escala, ele procura demonstrar que a tese de que não há uma resposta correta é tão falível como aquela que propõe a sua existência em algum dos dois lados da linha imaginária, pois implicará em demonstrar que todas as disputas jurídicas incidem no referido juízo intermediário “de empate”. Deste modo, o autor devolve aos céticos a difícil incumbência de comprovar a difícil colocação moral de que toda argumentação deve resultar no ponto central de irresolução, em que não há uma solução correta em nenhum dos dois lados do mencionado vetor hipotético[138].
A crítica sob foco poderia ser atenuada, no sentido de dizer que apenas em alguns casos difíceis, embora nem sempre, não haveria uma resposta correta, ou seja, de que existe apenas a probabilidade do dito juízo “de empate”. Ainda assim, os críticos precisariam contornar o fato de ser impossível que, simultaneamente, uma proposição seja falsa sem ser verdadeira. Afinal, se um dos litigantes está errado, o outro necessário precisa estar correto, pois não há sentido em sustentar que ambas as postulações não merecem ser acolhidas sem que possam ser rejeitadas. Ou seja, é um contrassenso a afirmação cética de que as argumentações de uma das partes “podem não ser verdadeiras, ainda que não sejam falsas”[139].
Ultrapassada a exposição das duas linhas acima expostas, cabe acentuar que autor em foco não desconhece o argumento cético do filósofo David Hume, quanto à inviabilidade da obtenção da verdade em sede de temas morais (que tratam do dever ser), ao menos do mesmo modo que é possível em se tratando das ciências ditas naturais ou naturais (que tratam do ser). O referido filósofo escocês argumentou que não há qualquer descoberta empírica sobre o estado do mundo, da sua história ou da natureza humana que possa permitir estabelecer conclusões sobre o que deve ser feito, ou seja, não é possível extrair um dever ser (ought to be) de um ser (is). Dworkin admite que o argumento é válido, haja vista que não é possível extrair obrigações e deveres morais diretamente de fatos empiricamente verificáveis. Reitera-se que, a um, não existem partículas morais (morons) flutuando no ar (out there), ao lado das demais já encontradas pelos cientistas (prótons, elétrons, nêutrons etc), as quais podem ser descobertas e empregadas como evidências da verdade em sede de moralidade, e, a dois, que não há um fundamento absoluto (master fundamental principle) que possa ser descoberto ou elaborado, do qual se possam valer as alegações morais para justificar sua veracidade[140]. Todavia, o conhecido argumento cético de Hume serve para justificar que a Moral é um domínio do saber independente e apartado das ciências causais, que utiliza métodos de investigação e comprovação específicos, diferentes dos métodos empíricos[141]. Em razão de tal independência, qualquer argumento que vise desqualificar uma proposição moral não pode ser externa a tal ramo do saber (external skepticism), mas sim interno ao respectivo âmbito de estudo (internal skepticism)[142]. Nesta linha de raciocínio, os argumentos morais não devem procurar as justificações de verdade fora da sua disciplina, em algum suposto aspecto físico ou metafísico de caráter não moral, mas sim de acordo com os valores que conformam o seu próprio ramo do saber específico[143]. Em outras palavras, a verdade das proposições morais (e, consequentemente, das teses jurídicas) não depende da comprovação científica da existência de “partículas ou propriedades” que “flutuam no espaço” esperando ser descobertas ou de um fundamento absoluto, mas sim da própria pertinência e relevância dos argumentos, quando comparados com os demais relevantes ao tema, dentro de determinado contexto. Ou seja, um argumento moral não é matéria passível de demonstração empírica ou científica[144] e, assim, sua verdade depende de ser a única proposição bem sucedida (unique sucess)[145]. Logo, a veracidade interpretativa está fulcrada na aceitação daquilo que os melhores argumentos expressam[146].
Nessa linha de raciocínio, todos temos a responsabilidade de tomar as melhores decisões morais, com base nos argumentos mais adequados que possam ser levantados para justificar nossas proposições. Embora o ideal de efetivamente alcançar o total equilíbrio ou integridade dos diversos valores morais seja inatingível, tal responsabilidade deve ser encarada como um objetivo[147]. Como a verdade absoluta, ao final, é inalcançável, a discussão em busca da veracidade somente pode terminar, de modo responsável, quando os interlocutores reuniram todas as proposições que poderiam ser suscitadas e, assim, fechou-se o círculo da unidade dos valores[148].
Quanto a este polêmico ponto, por fim, cabe parafrasear a afirmação de Dworkin de que é da prática comum, inclusive entre historiadores e cientistas, expor proposições sob a forma de argumentos, pressupondo que são verdadeiros, ainda que não possam comprová-los com base em premissas inquestionáveis. Então, “se alguma teoria filosófica nos forçar a admitir que uma proposição só pode ser verdadeira se houver um critério consensual de verificação mediante o qual sua verdade absoluta possa ser demonstrada, tanto pior para a experiência comum, inclusive para experiência jurídica comum”[149]. Para ele, os magistrados devem pressupor que uma proposição jurídica é verdadeira acaso “for mais coerente do que a proposição contrária com a teoria jurídica que justifique melhor o direito estabelecido”[150].
E, nono, considerando toda a descrição antes exposta, é possível concluir que o modelo teórico de Dworkin é afinado com a corrente substancialista, haja vista sua defesa da aplicação dos direitos segundo uma interpretação construtivista, que visa preservar os aspectos morais decorrentes da Constituição[151]. Para encerrar, cabe acentuar que, dentre os valores constitucionais que são invocados em sua argumentação de moralidade política, ele confere especial importância à igualdade, no sentido de uma prerrogativa de igual consideração e respeito (right to equal concern and respect), a qual considera a mais fundamental de todas[152].
CONCLUSÕES
Em breve síntese, é possível apontar que as características da proposição pós-positivista de Dworkin, com relação às quatro plataformas centrais da Teoria do Direito, são as seguintes:
a) as Fontes Jurídicas são todos os argumentos que podem ser construídos para sustentar um determinado julgamento moral ou jurídico, desde que elaborados de acordo com a melhor interpretação das práticas jurídicas que puder ser efetuada, haja vista que o Direito não é um conjunto de padrões fixos de algum tipo;
b) as Normas Jurídicas são concebidas interpretativamente, sob a forma lógica de Regras Jurídicas ou de Princípios Jurídicos, embora ainda possam ser levantados elementos decisórios de outras incontáveis modalidades, cuja legitimidade para resolução do caso pode ser contestada, a exemplo das políticas;
c) no atinente ao Ordenamento Jurídico, o autor argumenta que possui a forma estrutural de uma teia inconsútil (seamless web), formada pela conjunção concatenada dos diversos fatores levados em consideração para fundamentar as deliberações jurisdicionais, que vão sendo tecidos nas linhas vertical (dos órgãos superiores aos inferiores) e horizontal (no mesmo patamar hierárquico), no decorrer do tempo, na medida em que os juízes trabalham como novelistas sequenciais (chain novels); e,
d) a Decisão Jurídica é tomada através de duas formas, consistentes no procedimento lógico dedutivo de subsunção de Regras Jurídicas, mediante o qual o juiz enquadra os fatos que lhe são apresentados dentro dos moldes de uma disposição normativa, ou alternativamente, na operação argumentativa da balanceamento dos demais padrões de julgamento menos densos, a ser desempenhado de acordo com uma interpretação construtivista da história institucional das práticas jurídicas da comunidade, considerando a integralidade do sistema (law as integrity).
Informações Sobre o Autor
Orlando Luiz Zanon Junior
Juiz de Direito. Doutor em Ciência Jurídica pela UNIVALI. Dupla titulação em Doutorado pela UNIPG Itália. Mestre em Direito Pela UNESA. Pós-graduado em Preparação à Magistratura Federal pela UNIVALI. Pós-graduado em Direito e Gestão Judiciária pela UFSC.