Joel Eliseu Galli
Resumo: O presente artigo busca estudar as ligações aparentes entre a cultura do dinheiro, na forma demarcada por Georg Simmel, e a perda de operatividade do ente estatal moderno, compreendido à luz do contratualismo de Rousseau e Hobbes, especificamente no que toca ao deficit na realização dos ideais programados de liberdade, igualdade e fraternidade. O cidadão, nesse cenário, reveste-se de importância crucial, posto que, ontologicamente considerado, sua emergência é resultado da blindagem valorativa advinda da realização, ainda que parcial, desses ideais políticos modernos. Todavia, o crescente espaço ocupado pelo dinheiro, monetarizando a vida em decorrência de sua transformação em meta da existência, indica um potencial comprometimento na manutenção dessa condição jurídico-política, na medida em que o cidadão é substituído pelo consumidor, fazendo depender a inclusão sócio-política da aptidão ou inaptidão para se pertencer ao mercado de consumo.
Palavras-chave: Estado, dinheiro, modernidade, contratualismo, cidadão, consumidor, indivíduo, sociedade.
Sumário: 1.Introdução; 2.O Contratualismo de Rousseau e Hobbes; 3.Dinheiro e Estado; 4.Considerações Finais
1. Introdução
Decorridos mais de dois séculos do marco formal da abertura da era moderna, permanece incrustada no cotidiano a promessa de liberdade, igualdade e fraternidade, construída no limiar de um tempo circunscrito à memória daqueles que apostaram em sua transformação de idéia simbólica em princípio prático na arena política.
Ocorre que os valores construídos ou derivados do ideal de liberdade, igualdade e fraternidade apenas fazem sentido no contexto de uma sociedade composta por indivíduos titulares da condição normativa de cidadão, o que os torna sujeitos de direitos e garantias em face dos poderes gerais; porém, a sociedade do agora, ao que tudo indica, não mais pode ser entendida como um agrupamento de cidadãos, mas sim como uma sociedade de consumidores, valendo registrar, acompanhando Bauman, que uma sociedade de consumidores não é um simples agrupamento de consumidores, mas uma sociedade na qual os indivíduos são interpelados, exclusivamente, como consumidores[1], desprezando-se qualquer outra característica que possa lhes reconhecer a titularidade de direitos ou garantias, inclusive a liberdade, a igualdade e a fraternidade, salvo se a liberdade for utilizada para consumir, a igualdade para massificar o consumo e a fraternidade como elemento de pacificação da consciência para que se possa, livre da culpa, consumir mais[2].
Objeções poderão ser levantadas, por exemplo, no sentido de que a liberdade ainda existe e é, de fato, gozada por muitos indivíduos.
Por certo que sim!
Todavia, a fruição gratuita da liberdade encontra-se obstada pela inserção do dinheiro como referencial absoluto de valoração e significância dos bens da vida, impossibilitando que, sem dinheiro ou cartão de crédito, seja possível trilhar os muitos caminhos que podem conduzir à liberdade, cuja franquia reclama, no mínimo, o dinheiro para pagar o ônibus.
Essa suspeita que a cidadania derivada das promessas de modernidade foi solapada pela transformação do dinheiro em equivalente da finalidade da existência, despojando, portanto, o indivíduo da fruição gratuita da liberdade, da igualdade e fraternidade, parece submetê-lo a uma nova condição descritiva de sua inclusão social, delineada pela aptidão ou inaptidão para pertencer ao mercado de consumo.[3]
Ignora-se, no entanto, que sob essa nova condição “direitos e significações mais sutis” também são abandonados[4], com a implicação de que esse novo enraizamento social do indivíduo não se realiza sem a emergência de focos críticos de tensão, destacando-se, entre eles, o reforço dado aos interesses individuais egoísticos que circundam a obtenção, a posse e o dispêndio do dinheiro, transfigurado, agora, de meio de troca em finalidade da vida, desafeiçoando as relações sociais, neutralizadas e esterilizadas nas relações monetárias. [5]
Desse modo,
“[…] a modernidade, dominada pelo dinheiro, entroniza a lógica social dos interesses no lugar da lógica comunitária das paixões. Sem se preocupar com os outros, cada um persegue estrategicamente seus próprios interesses. A “fria razão” e o “rigor lógico” são postos a serviço das pulsões egoístas. O utilitarismo triunfa.”[6]
Esse triunfo do utilitarismo ligado à monetarização da vida e à transmutação da condição sócio-individual do cidadão, interpelado, a partir de então, em função de sua capacidade monetária, desperta, além da ambiguidade resultante da conclusão de que o consumo quantitativo não satisfaz[7], uma nota de identidade com o estado hobbessiano, levantando a suspeita, objeto de estudo no presente artigo, da aproximação do esfacelamento do corpo social em virtude do predomínio dos interesses individuais egoístas ligados ao dinheiro como objetivo da vida.
O cenário evoca a célebre cena shakespeariana representada pelo apaixonado Romeu e o boticário da cidade de Mântua, responsável pela venda do veneno posteriormente utilizado no suicídio dos ilustres amantes.
Surpreso com a resistência do boticário em lhe vender o fármaco, Romeu profere um discurso utilitarista, invocando a força do dinheiro e sua superioridade a qualquer outro valor, inclusive qualitativo, dobrando, assim, seu interlocutor, que, vencido pela necessidade, declara estar vendendo sua miséria, mas não sua vontade[8].
Pois bem! Fixados esses pontos e partindo-se da teoria contratualista, com especial ênfase em Rousseau e Hobbes, o presente estudo pretende pontuar as potenciais ligações entre a cultura do dinheiro, na forma explicita por Georg Simmel e seus comentadores, e a higidez do corpo social, identificando as possibilidades imanentes de um triunfo dos interesses individuais egoísticos contribuírem com a fecundidade de um terreno propício à emergência de um modelo de estado hobbesiano, procurando, ainda, não perder de vista a dubiedade que transpassa a liberdade individual, seja na condição de consumidor, seja na de cidadão.
2. O Contratualismo em Rousseau e Hobbes
Para Rousseau, a formação do corpo social, assim como sua forma de regência, é resultado do consenso derivado do fato de, num dado momento, as dificuldades da vida no chamado estado de natureza superaram as vantagens de se viver nesse mesmo estado.
Formar-se-ia, por conta disso, uma associação apta a defender e proteger “de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado e pela qual cada um se unindo a todos obedeça, todavia, apenas a si mesmo e permaneça tão livre como antes.”[9]
De acordo com o teórico do contrato social, as cláusulas orientadoras da conformação desse ente associativo poderiam ser reduzidas à
“[…] alienação total de cada associado com todos seus direitos à toda a comunidade, pois primeiramente, cada um se dando por inteiro, a condição é igual para todos, e a condição sendo igual para todos, ninguém tem o interesse de torna-la onerosa para os outros.”[10]
A sociedade estabelecida pelo pacto consensual exposto por Rousseau pressupõe, fácil perceber, a harmonia entre o modo de vida de cada contratante com seus correlatos interesses, pois “Se houvesse um conflito entre esses dois motivos, nunca seria possível saber qual prevaleceria”. [11]
O acordo civil para possibilitar a vida em sociedade teria por objetivo, de qualquer sorte, conservar e fortalecer a liberdade e a igualdade, sendo que aquela “se baseia agora, não na quantidade de energia disponível a ele, mas em sua obrigação, vinda do contrato fundamental de respeitar a vontade geral. É isso que torna a liberdade individual um direito.”[12]
Se para Rousseau, a vida em sociedade explica-se a partir de um consenso individual cujo escopo seria superar as dificuldades imanentes ao estado de natureza, classificado, portanto, como situação negativa, para Thomas Hobbes o interesse individual egoístico conduziria os homens a uma situação de guerra de todos contra todos, criando-se, em consequência, a necessidade de submissão a um ente moral capaz de frear os apetites individuais pela força e pelo medo do castigo[13].
Enquanto para Rousseau a situação negativa que enseja o pacto civil são as dificuldades do estado de natureza, Hobbes não identifica nesse estado a contraposição necessária ao estabelecimento de uma sociedade civil, mesmo por que sua preocupação não se encontra direcionada a explicar a formação do corpo social, mas os motivos pelos quais os indivíduos que o compõem devem obedecer ao poder de um soberano, seja ele uma assembleia ou uma única pessoa.[14]
Conforme Hobbes, a prevalência dos interesses individuais conduziria a uma situação de caos, caracterizado pela divergência de opiniões e pela oposição mútua que reduziriam ao nada a força do todo.
“Por isso, não apenas facilmente serão subjugados por um pequeno número que se haja posto de acordo, mas, além disso, mesmo sem haver inimigo comum, facilmente farão guerra uns aos outros, por causa de seus interesses particulares.”[15]
Portanto, a essência do estado hobbesiano, cuja característica específica remonta à capacidade de constituir e ordenar, a partir de cima, a sociedade que a ele se submete, pode ser assim definida:
“Uma grande multidão institui a uma pessoa, mediante pactos recíprocos uns com os outros, para em nome de cada um como autora, poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que julgar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum.”[16]
Tanto em Hobbes como em Rousseau há uma preocupação com as causas que podem, respectivamente, desestabilizar o poder estatal ou a comunidade consensual.
Hobbes enumera diversas coisas que podem enfraquecer o Estado ou provocar sua dissolução, destacando, entre elas, a “doença” derivada de todo o indivíduo poder ser juiz acerca do bem e do mal. Admitida na denominada condição de natureza, tornar-se-ia perniciosa quando concorrente com as leis civis, sendo elas a única “a medida das boas e das más ações”.
Assim,
“Partindo desta falsa doutrina, os homens adquirem tendência para debater consigo próprios e discutir as ordens do Estado, mais tarde para obedecê-las ou desobedecê-las conforme acharem conveniente em seus juízos particulares, advindo um Estado perturbado e enfraquecido.”[17]
Esse destaque dado por Hobbes ao enfraquecimento do Estado em face de ficar reservada ao indivíduo parcela da capacidade de julgamento revela sua compreensão sobre o homem – moralmente carente – e a necessidade de que seu aperfeiçoamento se faça por meio de sua incondicional submissão às leis do Estado[18], culminando por contradizer a matriz aristotélica, prevalente em sua época, segundo a qual o homem seria naturalmente um animal político e, corolário lógico, destinado “a viver em sociedade”.[19]
As leis dadas pelo Estado, presumivelmente purificadas dos vícios da natureza humana, seriam, dessa forma, uma espécie de tutor por meio do qual o homem poderia ser coercitivamente aperfeiçoado, evoluindo de um indivíduo valorativamente decadente a um cidadão[20] habilitado a administrar suas paixões e “fazer aos outros o que queremos que nos façam”.[21]
O cidadão hobbesiano, com o desiderato de alcançar a liberdade política proposta pelo ente estatal ao qual se encontra submetido, deve sacrificar sua liberdade de consciência e julgamento, uma vez que sua conservação poderia provocar a ruína do Estado.
Rousseau, por seu turno, identifica a decadência do corpo político no desinteresse pelo público por parte dos cidadãos[22] que o compõem. Antes, porém, de analisar sua exposição acerca do tema, faz-se mister uma prévia observação.
Ocorre que Rousseau – diverso de Hobbes, que dilui soberania e governo em um único ente – atribui a soberania emergente do consenso instituidor do pacto social tão somente ao povo, seu portador absoluto e, consequentemente, titular exclusivo da vontade geral. Em vista disso,
“[…] somente a vontade geral pode dirigir as forças do Estado segundo o objetivo de sua instituição, que e o bem comum, pois se a oposição dos interesses particulares tornou necessário o estabelecimento das sociedades, foi o acordo desses mesmos interesses que o tornou possível. E o que há de comum nesses interesses diferentes que forma o vínculo social e se não houvesse qualquer ponto em que todos os interesses concordassem, não poderia existir nenhuma sociedade. Ora, é unicamente baseado nesse interesse comum que a sociedade deve ser governada.
Digo, pois, que sendo a soberania tão-somente o exercício da vontade geral, não pode jamais alienar-se e que o Soberano, que não passa de um ser coletivo só pode ser representado por ele mesmo; pode-se muito bem transmitir o poder, mas não a vontade.”[23]
Sendo a vontade geral a portadora da soberania, qualificada como inalienável e indivisível, somente o ente coletivo congregado pelo consenso pode expressa-la.
Todavia, se o povo não pode outorgar sua vontade, é lícito que transmita o poder dela decorrente, estabelecendo-se, desse modo, o governo, a quem serão entregues as funções executivas do Estado.
Partindo da premissa segundo a qual a ação livre é conformada a partir de uma causa moral (a vontade) e outra física (o poder que a executa), Rousseau reafirma sua posição inicial de que a vontade pertence, enquanto expressão da soberania, exclusivamente ao povo, admitindo, contudo, que a execução dessa mesma vontade esteja a cargo de
“Um corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o Soberano para sua mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade tanto civil quanto politica.”[24]
Nessa conjectura, Rousseau aponta e separa vícios que podem enfraquecer ou degenerar[25] o governo dos defeitos que podem enfraquecer o corpo político representado pelo Soberano.
As causas de degeneração do governo estariam ligadas, segundo Rousseau, a um esforço incessante contra a vontade geral e
“Quanto mais aumenta esse esforço, mais se altera a constituição, e como não há aqui, de modo algum, outra vontade do corpo que resistindo àquela do Príncipe se equilibre com ela, deverá ocorrer cedo ou tarde que o Príncipe oprima, por fim, o Soberano e rompa o tratado social.”[26]
No que tange às causas ensejadoras do perecimento do corpo político (rectius: de sua vontade), Rousseau imputa-as ao cidadão, explicando que
“Quando estes são avaros, covardes, pusilânimes, mais amantes do repouso do que da liberdade, não se opõem por muito tempo aos esforços redobrados do governo; é assim que a força da resistência aumenta incessantemente, a autoridade soberana desaparece e a maioria das cidades rui e perece prematuramente.”[27]
O dinheiro, nesse contexto, assume a função da vontade, substituindo-a e corrompendo-a a ponto de eliminar a liberdade que a sustenta.
Dessarte,
“Desde que o serviço público deixa de ser a atividade principal dos cidadãos e eles prefiram servir com sua bolsa a fazê-lo com sua pessoa, o Estado já se acha próximo de sua ruína. É preciso marchar para o combate? Eles pagam tropas e permanecem suas casas. É necessário comparecer ao Conselho? Eles nomeiam deputados e permanecem em suas casas. À força de preguiça e de dinheiro eles contam, enfim, com soldados para submeter a pátria à servidão e com representantes para vendê-las.
É a confusão do comércio e das artes, o ávido interesse do ganho, é a indolência e o amor às comodidades que transformam os serviços pessoais em dinheiro. Cede-se uma parte do lucro para aumenta-lo ao próprio bel prazer. Dai dinheiro e logo tereis correntes. […] Num Estado verdadeiramente livre os cidadãos fazem tudo com os seus braços e nada com o dinheiro.”[28]
A expressão monetária da vida, ou sua redução ao quantitativo, operando-se, em consequência, uma sobreposição do utilitarismo econômico sobre o ideal político do corpo social são apontados, como se viu, por Rousseau e Hobbes como as causas conducentes à ruína da associação derivado do contrato, seja ela resultado da submissão ou do consenso.
Ainda que Hobbes não seja tão explícito quanto ao papel do dinheiro enquanto causa da desestabilização do Estado ou da corrupção de seus valores, certamente que os interesses individuais egoístas que movimentam a situação de “guerra de todos contra todos” incluem o dinheiro em seu elenco, restando analisar se seu uso como substitutivo da vontade teria, como insiste Rousseau, o condão de resgatar o não-Estado hobbesiano, fazendo perecer o corpo politico.
Para tanto, recorrer-se-á, como se disse na introdução, ao escólio de Georg Simmel, perscrutando-se, a partir de seu ponto de vista sobre o dinheiro, qual sua ingerência sobre o corpo político e a vontade dos indivíduos que o compõem.
3 . Dinheiro e Estado
Georg Simmel, relevante destacar desde logo, não imputa ao dinheiro uma função absolutamente negativa. Apesar de suas considerações trágicas acerca do tema, Simmel considera o dinheiro como um importante fator de agregação social, na medida em que “gera uma ligação extremamente forte entre os membros de um setor econômico pela necessidade de trocar dinheiro para obter valores definidos e concretos.”[29]
Além disso, o dinheiro seria portador da aptidão de fortalecer a liberdade e a independência individual, pois “Com o dinheiro na bolsa, estamos livres, enquanto antes o objeto nos fazia dependentes das condições de sua conservação e frutificação.”[30]
Embora se possa extrair do dinheiro realizações positivas, sua transformação de meio para aquisição dos bens necessários à existência em finalidade última da vida provocaria um esvaziamento do sentido da vida e uma realização minguada das satisfações definitivas[31], ligadas, agora, ao dinheiro como agente do sucesso e do poder.[32]
Essa busca incessante do dinheiro como catalisador da felicidade individual condicionada ao poder e sucesso proporcionados pelo dinheiro gera, contudo, uma pequena perplexidade.
Contrariando a tese de Rousseau de que o dinheiro alimentaria a indolência do indivíduo[33], Simmel afirma que o dinheiro faz crescer, de modo continuo,
“[…] a motivação do homem moderno para a ação (para viver ativamente). Agora ele tem um alvo que se impõe como elemento de resistência (piéce de résistence), tão logo outros alvos abram um espaço, o dinheiro, está sempre lá, potencialmente, como objetivo alternativo. Disto vem a inquietude, a febre, a falta de pausas na vida moderna, vida propulsionada pelo motor desenfreado do dinheiro que torna a máquina da vida um perpetuum mobile.”[34]
A ação individual constante abre-se como possibilidade, não se pode esquecer, a partir do espaço dado por outros alvos, definitivos ou instrumentais, tornando-se perniciosa apenas a partir do ponto em que o dinheiro assume a vontade e não a força que o executa.
Nesse contexto, parece sem importância para o Estado Moderno, assim como para seus objetivos declarados (liberdade, igualdade, fraternidade), que o braço que executa sua vontade seja mercenário ou pertencente a seus próprios cidadãos. De outro vértice, extremamente perigoso que a vontade do Soberano (o povo)[35], mesmo que representada, possa ser persuadida pelo dinheiro. Nesse caso, o corpo político corre perigo.
De fato, não poderia ser de outra forma, pois
“Para que o processo de desmaterialização e de funcionalização do valor se realize, é importante que certas condições sociológicas sejam satisfeitas previamente: é preciso que a sociedade tenha atingido um tal grau de coesão social que o público possa confiar na capacidade do organismo oficial, que emite as cédulas e representa como tal a globalidade da ordem social, em garantir a estabilidade do valor monetário. Se essas condições forem satisfeitas, pode-se então passar a um nível superior de emergência, em que as relações entre os homens podem ser mediatizadas por estruturas suprapessoais representando o conjunto do corpo social. Com Habermas [1987, II, p. 167-216], poder-se-ia dizer que o meio regulador do dinheiro deve estar ancorado no mundo vivido antes que o subsistema econômico possa se autonomizar e se desconectar do mundo vivido.”[36]
Nessa quadra, o dinheiro não pode ser interpretado como um mal em si ou como o agente desencadeador da ruína do Estado ou, ainda, como o palco construído para protagonizar o individualismo egoístico propício à encenação da tragédia hobbesiana do “homem que devora o homem”, visto que a monetarização da vida depende, estreitamente, da solidificação prévia de outros fatores, incluído entre eles a confiança do individuo no Estado que emite a moeda e atribui a ela um valor de troca.
Por certo que essa compreensão balança as bases da teoria contratualista ao negar à racionalidade individual a capacidade de determinar o curso da sociedade e da política que a orienta, avizinhando-se, dessa feita, da doutrina holística de Durkheim, para quem
“[…] a sociedade moderna não se baseia no contrato, como a divisão do trabalho não se explica a partir de decisões racionais dos indivíduos em repartir as ocupações para aumentar a produção coletiva. Se a sociedade moderna fosse “contratualista”, poderia ser explicada pelo comportamento dos indivíduos. […]
Mas esse elemento contratual é um derivado da estrutura da sociedade, e até mesmo um derivado do estado de consciência coletiva na sociedade moderna. Para que haja uma esfera cada vez mais ampla, em que os indivíduos possam concluir livremente acordos entre si, é preciso que a sociedade tenha uma estrutura jurídica que autorize essa decisões autônomas dos indivíduos.[37]
Impossível ignorar, de outro vértice, que esse predomínio do dinheiro e sua inversão de meio em fim diferencia-o das demais instituições sociais e estatais, caracterizando-se, nesses termos,
“[…] pelo fato de ter uma relação de conteúdo com o fim particular que ele permite atingir. O dinheiro é um instrumento absoluto; não tendo relação com nenhum fim particular, ele encontra um na totalidade de fins.”[38]
Essa instrumentalidade absoluta do dinheiro, permitindo que o indivíduo, por seu intermédio, possa “atingir objetivos que permaneceriam inacessíveis se dirigissem seus esforços diretamente a eles[39]”, faz com que a ação individual, na sociedade moderna, fique reduzida à “ação instrumental ou estratégica[40]”, facilitando a conduta individual orientada pela obtenção da maior vantagem individual possível, culminando por promover, sem intenção, ao que parece, o utilitarismo liberal moderno defendido por Bentham e Mill. Para este,
“A doutrina que admite como fundamento da moralidade a utilidade ou o principio da máxima felicidade sustenta que as ações humanas são justas na medida em que tendem a promover a felicidade, e injustas na medida que tendem a promover o contrário da felicidade.”[41]
Ressalve-se, no entanto, que o individualismo moderno enquanto princípio do liberalismo politico,
“[…] se preocupa não com a utilidade do individuo isolado com respeito a dos outros indivíduos, mas com a utilidade social, não com “a felicidade singular de quem age, mas com a felicidade de todos os interessados.”[42]
A despeito dessa ressalva, há um interessante ponto de identidade que merece ser notado. Para o utilitarismo liberal, a liberdade individual que interessa ao cidadão é a liberdade negativa, isto é,
“[…] a liberdade entendida como situação na qual se encontra um sujeito (que tanto poder ser um individuo quanto um grupo que age como um todo único) que não está impedido por qualquer força externa de fazer aquilo que deseja e não está constrangido a fazer aquilo que não deseja.”[43]
A liberdade negativa, porém, permanece negativa unicamente em razão da ausência de atribuição de sentido à liberdade positiva, entendida como a possibilidade de ser livre para qualquer coisa.[44]
O sufocamento do sentido da liberdade positiva em face da prevalência da liberdade negativa faz do individuo moderno
“[…] um homem sem qualidades (Musil). Desenraizado e isolado, ou envolvido em um grande número de relações superficiais, o homem moderno soçobra no vazio do absurdo. Mais do que nunca, ele tem “necessidade de uma finalidade absoluta, mas ele perdeu seu conteúdo persuasivo. […]
Ele busca um sentido nos meios e nos bens que a sociedade mercantil coloca à sua disposição, mas insinuando-se diante dos objetivos últimos da vida, os quais, no final das contas, não podem nada mais do que mascarar os fins, repelindo-os.”[45]
A liberdade, no panorama dado, encontra seu significante por excelência no consumo, fazendo que o indivíduo que dela faz uso com a finalidade de consumir extraía desse ato o completo significado da existência e a própria justificação do Estado, contribuindo para a materialização de
“[…] duas exigências políticas contraditórias, mas mutuamente corroboradas, dirigidas para o estado. Uma é a exigência, por parte dos livres consumidores, de aumentar mais a liberdade do consumidor: privatizar-se o uso dos recursos, reduzindo toda a intervenção coletiva nos negócios privados, desmantelando as coações politicamente impostas, cortando tributos e despesas públicas. Outra exigência é de negociar mais energicamente com as consequências da primeira exigência: ao vir à tona, no discurso público, com o nome de “lei e ordem”, essa segunda exigência é sobre a prevenção do protesto igualmente desregulamentado e privatizado das vítimas da desregulamentação e privatização. Aqueles que a expansão da liberdade do consumidor privou das habilidades e poderes do consumidor precisam ser detidos e mantidos em xeque.”[46]
A efervescência consumista amolda todos os objetos, reais ou ideais, ao padrão monetário, valorando-os em função do dinheiro e obrigando o individuo a submeter-se a um estágio de crescente calculabilidade em que todas as vantagens e desvantagens de sua ação individual devem ser necessariamente mensuradas com a finalidade de alcançar o meio que se tornou o fim: o dinheiro.
Morre, assim, o cidadão, e vem à luz o consumidor, orientado por uma capacidade pressuposta de “organizar e de calcular racionalmente os dados: o entendimento”[47].
Vanderberghe explica que
“Nas sociedade modernas, o entendimento – faculdade que, incapaz de propor fins, se limita a integrar os encadeamentos causais na série teleológica – se desenvolve em detrimento da vontade, que fixa os fins. Na medida em que o entendimento e o intelecto predominam e os meios proliferam, a vontade e a afetividade se enfraquecem. Assim, a modernidade, dominada pelo dinheiro, entroniza a lógica social dos interesses no lugar da lógica comunitária das paixões. Sem se preocupar com os outros, cada um persegue estrategicamente seus próprios interesses. A “fria razão” e o “rigor lógico” são postos a serviço das pulsões egoístas. O utilitarismo triunfa.
Como no estado hobbesiano, cada um é inimigo do outro, e é o mais forte, ou, antes, o mais maligno, que ganha.”[48]
A retirada do cidadão da cena resgata o estado hobbesiano em nova matriz cujo caracter principal repousa, absurdamente, no regresso à guerra de todos contra todos em razão do triunfo do utilitarismo, sendo sua manutenção a tarefa constante do Estado.
4. Considerações Finais
Na organização social marcada pelo consumo não há cidadania sem dinheiro, pois o sucesso, o prazer e a felicidade são determinados pelo pertencimento ou exclusão do jogo consumista, feito para ser ganho por aquele que melhor entender a dinâmica do jogo.
Com a função de organizar uma sociedade de consumidores, o Estado Moderno abandona os ideais políticos que acompanharam seu surgimento (igualdade, liberdade, fraternidade), filiando-se a uma postura voltada a assegurar, a despeito de uma suposta igualdade de direitos, a fruição dos bens de consumo materiais e imateriais postos à disposição dos aptos a consumir.
O Estado revive, pelo avesso, a função hobbesiana da ordem, determinando-se de modo a garantir a vitória do “mais maligno” e legitimando, estranhamente, que “o homem seja o lobo do homem”.
Por mais paradoxal que possa parecer, o Estado Moderno mantem-se com o encargo de permitir, autorizar, legalizar ou, pelo menos, não interferir, na guerra de todos contra todos, situação que, conforme Hobbes, justificou a criação de um ente moral cuja atribuição seria manter a paz entre os indivíduos unidos e colocar freio as suas paixões.
O Estado ainda anseia pela manutenção da integridade do corpo social e zela por ela; contudo, não mais para manter a paz, mas sim com o interesse de manter o fornecimento de vítimas de guerra aos vencedores do jogo consumista.
Conclui-se, por conta disso, que a monetarização da vida, com reflexos indissociáveis sobre a relação interpessoal e a esfera política, exclui da alçada individual a titularidade de direitos inerentes à condição de cidadão, reservando-os aqueles que, por um sagaz entendimento, conquistam essa posição jurídico-politica por intermédio do dinheiro, concomitantemente meio e fim, incumbindo ao Estado a tarefa de assegurar que os aptos a consumir possam faze-lo sem ser molestados pelos consumidores inaptos.
Informações Sobre o Autor
Joel Eliseu Galli
Advogado Criminal. Mestrando em Sociologia Politica pela Universidade Federal de Santa Catarina.