Potestades e resistências: antígona de sófocles, o homo sacer e o estado de exceção agambiano

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Resumo: Este artigo transita pelos meandros de um tema que tem sido a causa de profícuos debates sobre questões fundamentais do Direito, como Estado versus indivíduo, autoridade e poder, direito de resistência e desobediência civil. O embate entre diferentes autores e pontos de vista tem como pano de fundo, neste trabalho, a obra imortal de Sófocles, “Antígona”. Partindo da histórica heroína e de suas vicissitudes, o trabalho lança uma reflexão sobre o homem como ser no mundo, cuja condição de ente político e de sujeito de direitos não somente o tem colocado como objeto da tutela do Direito e referência para a existência e atuação do Estado, mas também, muitas vezes, como destinatário das razões e vontades implacáveis da vontade soberana onde a potestade do ente estatal transforma-se em aberta oposição do querer de um homem e ou de muitos homens. As razões dessa luta histórica são discutidas neste artigo, tomando como referência a personagem tebana, cuja mensagem tem se perpetuado pelos séculos e é resgatada neste trabalho, onde se demonstra que o direito de resistência não se esgota na busca do justo, mas na imorredoura condição humana da alteridade frente a quaisquer poderes, mesmo aqueles que encontram a sua legitimidade na livre escolha dos cidadãos, como o Estado democrático. Ainda que este, para atingir seus desígnios, possa exercer a violência legalizada, ou até mesmo subtrair-se ao Direito, como o faz no Estado de Exceção segundo Agamben, não pode eliminar do indivíduo o que dele é inseparável: o direito de resistir ao injusto.

Palavras-chave: Estado. Autoridade. Poder. Direito de resistência. Antígona. Agamben.

Abstract: This article transits through the meanders of a theme that has been the cause of heated debates about fundamental questions of Law, such as State versus individual, authority and power, resistence right and civil desobedience. The clash among different authors and points of view has as its background, in this article, the immortal work of Sophocles, “Antígone”. Having as its starting point the historical heroine and her vicissitudes, this work reflects upon the man as a being in the world, whose condition of political entity and subject has not only been put as the object of tutelage of Law and reference and acting of the State, but also as, many times, the recipient of reasons and wills which are relentless of the sovereign will where the principality of the state entity transforms as a blatant opposition to the will of a man against many men. The reasons for this historical clash are discussed in this article, taking into account the Theban character, whose message has perpetuated for centuries and it is rescued in this article, where the resistence right does not come to an end as the righteous searches for it, but in the undecaying human condition of alterity before any powers, even those who find their legitimacy in the free choice of citizens as the democratic State. Even though it can exert legalized violence to achieve its intents, or even subtract the Law, as the Exception State according to Agamben, cannot eliminate the individual from what is inseparable: his right to resist the unfairness.

Keywords: State, Authority, Power, Resistence Right, Antigone, Angaben

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1. Introdução

Quando se fala em Estado e indivíduo adentra-se num campo marcado por controvérsias, posições filosóficas e doutrinárias opostas, bem como questões de amplo alcance sobre temáticas que tem marcado a trajetória do pensamento humano ao longo dos séculos.

Justo e injusto, sujeito e coletivo, interesse pessoal e vontade geral constituem elementos nem sempre facilmente discerníveis no amplo espectro das divergências sobre as origens do Estado e do Direito.

Do mesmo modo, pensamentos opostos fluem quanto à relação entre normas do Direito Positivo e regras do Direito Natural, e sobre a aplicabilidade destas numa era em que a positivação definiu o sentido e significado do querer, transformado em expressão pura do Estado como aquele que detém a força e, portanto, a capacidade de fazer valer uma suposta “vontade geral” que se materializa nas normas jurídicas.

Subjetividade versus objetividade, pragmatismo jurídico com fundamento somente no que se subsume da norma ou o necessário adensamento da interpretação com a busca de referências no campo axiológico além da razão objetiva? Essas dúvidas desafiam o pensamento jurídico e definem posições muitas vezes inflexíveis, as quais se digladiam na arena jurídica em um combate nem sempre baseado nas armas da racionalidade pura.

É certo que já ultrapassamos o ponto em que a estrita preocupação com a lei, negando qualquer possibilidade de uma interpretação com viés mais flexível, incorporando valores e considerando ideias abstratas e relativas, como o justo e a justiça, estabelecia a certeza e a possibilidade de um Direito estritamente objetivo capaz de superar todas as dúvidas e responder adequadamente ao propósito da regulação da vida coletiva.

Esse “messianismo positivista” foi mitigado inclusive pelo seu maior defensor, Kelsen, o jurista que se bateu por uma ciência do Direito e que, nesse mister, tornou-se o maior dos arautos da objetividade jurídica pura. Se ele não refutou a necessidade de se pensar sobre o que é o justo e a justiça, relegou essa atividade a um campo meramente idealista, uma especulação filosófica que não tinha maior importância para a construção de uma ciência jurídica cujo propósito central era a aplicação prática das normas.

O relativismo pós-moderno de hoje por outro lado define outra seara, não menos problemática, uma vez que substituiu o viés racionalista do passado por uma perspectiva desconstrutiva de toda verdade, e assim tudo pode ser verdade e nada pode ser efetivamente refutado. Constatação que desfigura o pensamento do passado, as grandes teorias e debates, tornando-os inúteis diante da realidade última: somente tem valor o que pode ter fim prático. Fora disso, o que se tem é apenas retóricas vazias, pensamentos que não levam a lugar algum, projetos filosóficos sem significado e utilidade para o homem.

O perigo do relativismo é que autoriza toda decisão e toda ação como sendo justificáveis por si mesmas, não precisando e nem tendo ancoragem em referências externas, no pensamento ou no próprio Direito. Assim age o Estado quando usa a exceção, justificada por si mesma e avessa a qualquer ponderação de ordem moral, bastando a vontade da autoridade segundo desígnios por ela escolhidos e por isso mesmo transformados em ordem e querer irrefreáveis.

Tem-se aqui a perversidade estatal, parafraseando a insigne doutrinadora Maria Garcia, como elemento e objeto de uma reflexão necessária sobre o direito de resistência, propósito deste artigo que é, também, um momento oportuno para lançar um olhar sobre o passado do Direito e, de outro lado, construir uma ponte com reflexões sobre a realidade atual e o futuro da sua existência tendo como reflexo, no outro lado do espelho, o homem, sujeito e propósito desse mesmo Direito que ele, em conjunto com outros homens, deu origem.

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Para isso, tomar-se-á como referência o clássico de Sófocles, “Antígona”, e o pensamento de Agamben, referências essenciais para o diálogo entre ideias e a construção de um olhar crítico sobre as relações entre o homem como ser em si e o ente estatal, a potência elevada à condição de poder superior, levando em conta que a ordem jurídica enquanto sistema não pode se encerrar em si mesma, mas deve partir do indivíduo, origem e fim de todas as normas.

2. Antígona

Na peça Antígona, de Sófocles, essa personagem é impedida de enterrar seu irmão Polinices, morto em uma batalha junto com seu irmão, a quem disputava o reino de Tebas. Acusado de traição à pátria, ficar insepulto é a medida imposta por um édito real de seu tio, o rei Creonte.

O rei ordena que Polinices fique insepulto e seu corpo apodreça, pois assim o determinam as leis de Tebas como castigo derradeiro aos traidores.

Antígona vive então um triste dilema entre obedecer às ordens do rei, ou cumprir o que determinam as leis mais antigas, proferidas pelos deuses, segundo as quais todos os mortos devem ser sepultados.

Ela enfrenta Creonte e o desobedece, não reconhecendo a decisão do rei a quem reputa inferiores àquelas que ditadas pelos deuses em tempos imemoriais.

Após realizar uma primeira tentativa de oferecer ao irmão os ritos básicos de um sepultamento e de, na segunda tentativa, ser capturada em flagrante delito pelos guardas, Antígona é levada à presença de Creonte, por quem é inquerida:

“CREONTE – Agora, dize rápida e concisamente: sabias que um edito proibia aquilo? ANTÍGONA – Sabia. Como ignoraria? Era notório.

CREONTE – E te atreveste a desobedecer às leis?

ANTÍGONA – Mas Zeus não foi o arauto delas para mim, nem essas leis são as ditadas entre os homens pela Justiça, companheira de morada dos deuses infernais; e não me pareceu que tuas determinações tivessem força para impor aos mortais até a obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis; não é de hoje, não é de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que ninguém possa dizer quando surgiram. E não seria por temer homem algum, nem o mais arrogante, que me arriscaria a ser punida pelos deuses por violá-las.”

O rei, irado pela desobediência a sua pessoa, que personifica o próprio Estado e o Direito, ordena então que Antígona seja enterrada viva numa caverna, desdobramento trágico da história da jovem que lutara por um enterro digno para o corpo do seu irmão.

Nessa peça, emerge uma questão fundamental: qual decisão deve prevalecer, aquela do rei, baseado no seu entendimento e na força da sua posição como aquele que dita a lei, ou a lei natural, neste caso aquela emanada segundo a tradição grega dos deuses, atemporal e superior a quaisquer leis humanas como argui Antígona.

Nessa história há o embate entre duas posições opostas, sintetizadas em algumas questões comuns: o que é o Direito? É apenas o que está na lei, resumindo-se à aplicação das normas positivas que definem o seu campo de atuação na vida coletiva?

Essas questões remetem à busca das origens do Direito, propósito que permite reconhecer uma intrínseca relação deste com a justiça, enquanto valor máximo, evidenciando a necessidade de transpor os limites do rigorismo objetivo e científico como aquele presente na obra de Kelsen e dos positivistas.

Antes deles, Ihering (2002) já afirmava que o Direito se confunde com a força, e que só interessa o fim, a utilidade da norma, portanto é, em essência, a lei posta, sendo necessário ater-se à forma para definir o direito das partes e o que cabe a cada um. Embora esse jurista entendesse que os indivíduos devem defender a todo custo o que lhe cabe diante de situação que entendem ser injusta, isso não poderia ocorrer senão segundo o Direito, ou seja, consoante as possibilidades de defesa com base nas normas jurídicas.

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Estendendo esse raciocínio a Antígona, a sua oposição era valida moralmente, movida por um sentimento de injustiça, porém nada poderia questionar sobre a decisão de Creonte sob o ponto de vista jurídico, ainda que, movida por sentimentos pessoais inerentes à relação de proximidade e parentesco, pudesse veementemente opor-se à decisão do rei. A sua justificação moral está fora da esfera do Direito, num campo onde as paixões e sentimentos pessoais somente tem sentido enquanto produto da reflexão íntima sobre a condição humana.

A resistência, em Ihering (2002), encontra-se pois no próprio Direito; consiste na capacidade que o indivíduo tem para exigir o que entende ser justo. Isso fica evidente quando afirma que “O direito concreto que nos pertence pode ser encarado como um poder conferido pelo Estado, que habilita o titular a defender o direito e repelir a injustiça do interior do seu círculo de interesses”.

Não é nesse sentido o mesmo direito de resistência tratado por Thoreau, ou aquele aludido por Arendt e Maria Garcia (2004), segundo os quais essa resistência ou a desobediência civil pode e deve ser exercida independentemente de quaisquer admissibilidades jurídicas, e principalmente, sem depender de anuência do Direito.

Interessante observar que tanto Thoreau como Ihering expressam uma concepção semelhante acerca da relação entre o Direito como produto da luta. Para o primeiro, a resistência é a resposta necessária na forma de oposição aberta a qualquer norma ou decisão que afronte os direitos e garantias assegurados pelo próprio Direito aos cidadãos.

Para Ihering (2002), todo direito pessoal deve ser obstinadamente defendido quando ameaçado ou atingido; a mobilização ou postura ativa do cidadão é a única forma de garantir que o Direito não seja letra morta, mas instrumento perene a socorrer aquele cuja pretensão deve ser reconhecida pela Justiça:

“[…] ninguém pode mover uma roda, apenas lendo diante dela um estudo sobre a teoria do movimento. Precisa, sim, de uma força estranha para mover a roda, no caso da ação do homem. Assim, não basta ter ou conhecer o direito, pois o direito não

é uma teoria pura, mas uma força viva, de defesa da própria pessoa” (1987, p.6).

O que diferencia a resistência segundo a concepção de Thoureau daquela preconizada por Ihering é que neste a luta é a defesa dos direitos dentro das possibilidades asseguradas pelo próprio Direito; por sua vez, a desobediência civil é a recusa a aceitar essas mesmas leis em defesa do que o indivíduo entende serem direitos, ainda que não sejam reconhecidos pela ordem jurídica como tal. A pretensão neste caso não precisa necessariamente valer-se das leis em vigor, mas está amparada em valores e princípios que lhe conferem legitimidade sob o ponto de vista da sua imanência ao que é comum a outras pessoas e grupos: “A resistência é um fato, cuja legitimidade (não legalidade) é questão metajurídica porque depende diretamente, não da lei, mas da consonância desse fato com os autênticos interesses da vida humana” (TELLES JUNIOR, 1955, p. 20).

Em Antígona a legitimidade é alçada à condição de elemento fundamental da pretensão, que mesmo antijurídica não invalida, aos olhos da valente heroína, a sua luta e a resistência à obediência das prescrições da lei de Tebas.

Não o faz apenas na pretensão de satisfazer um sentimento pessoal de solidariedade familiar, mas também de fazer valer a tradição que consubstancia o espírito da cidade, resgatando a herança das crenças que os antepassados legaram como referências para a coesão da comunidade e a constituição de um fundo moral essencial à coexistência ao longo das eras. É esse substrato que confere legitimidade à causa obstinada da personagem, e o status de admissibilidade à causa, ainda que contrariando a lei posta, porque nesse caso acima das leis dos homens estavam as leis dos deuses.

Traduzindo para a linguagem jurídica, sobrepondo-se ao Direito positivo, para além das normas objetivas, existem valores e princípios anteriores a qualquer positivação, mas que continuam válidos pelo seu caráter indissociável do ser humano como ser em si e ser no mundo. Essa é a legitimidade que fundamenta as razões de Antígona – não as razões que justificam a irredutibilidade da lei positiva garantida pela força do ente estatal, mas aquelas que nascem de um significado baseado em uma identidade comum, que não foi criada por leis humanas, mas definida pela ordem das coisas desde os tempos imemoriais e que continua a servir de base para a existência atual e futura de todos os homens.

O que deve prevalecer, segundo Antígona, não são as razões de Estado, mutáveis segundo as interpretações, desejos e vaidades dos governantes, e facilmente justificáveis quando a ordem política lhes confere autoridade e poder para que possam definir o que é ou não admissível à luz da ordem jurídica em vigor. A sua força se exaure justamente nessa linha tênue entre a coercibilidade do Direito, e a liberdade do indivíduo que pode se recusar a cumprir a lei quando é evidente que a norma jurídica não acompanha a pretensão de justiça, o valor fundamental e inseparável da condição humana esclarecida pela razão.

A concepção de justo em Antígona não é uma mera interpretação subjetiva da justiça, mas uma ponderação racional sobre o que é sagrado e fundamental para o viver humano, o que nenhuma lei, mesmo validada e acatada por uma comunidade, pode desconstruir. Com essa visão, a heroína tebana demonstra que o mais importante não é ser obediente às leis, mas obedecer às leis justas e resistir às leis injustas.

A legitimidade do direito de resistência está justamente nesse encontro entre a recusa à obediência da lei posta e o que fundamenta essa posição, que não nasce de mera pretensão subjetiva e pessoal, mas de um propósito comum imanente a todo um grupo e não a um interesse particular em benefício de uma só pessoa.

Mesmo se um único indivíduo se opõe à lei injusta, como o fez Thoreau (o que para alguns configura uma situação de resistência e não desobediência civil propriamente dita, sendo esta um conjunto de pessoas que se recusa cumprir a lei, como entende Hannah Arendt), não fica descaracterizada a legitimidade da pretensão se a motivação for a garantia do que é de interesse de todos, porém desconhecido ou negado pelo Estado.

Essa é a situação vivida por Antígona, para quem a cidadania não se exaure no simples cumprimento das leis da cidade; é um direito acima do próprio Direito. A verdadeira condição cidadã se efetiva na conduta alinhada ao que é comum a todos, a interesse de caráter coletivo que deve ser defendido por cada membro da polis.

Ela assume esse status, ao resistir à decisão de Creonte, demonstrando que o propósito da pretensão de não cumprir a lei está relacionado à busca da satisfatividade de bens morais com um valor superior para a coletividade (dignidade, solidariedade e reconhecimento do valor humano), contra os quais nenhum governante pode se indispor, mesmo se valendo de um embasamento legal e da força imanente à autoridade.

A cidadania não é conferida pela lei, mas definida a partir de um querer coletivo que é, também, o fundamento primeiro da vida em sociedade, o qual nem sempre se confunde com a lei uma vez que esta pode não albergar os valores e princípios compartilhados por todos.

A condição cidadã molda-se a partir desses elementos fundamentais e intrínsecos ao desenvolvimento humano no interior de um grupo social que se organiza politicamente, materializando-se nas liberdades publicas e nos direitos invioláveis. Tendo o indivíduo a sua titularidade, também pode exigir do Estado a sua efetividade como respeito à sua condição humana e a tudo o que a ela se refere: “A cidadania, criando o poder, ao mesmo tempo estabelece quais são os seus limites, ou o perímetro dentro do qual tal poder há de circunscrever-se” (GARCIA, 2004, p. 148).

Embora a força da lei no caso de Antígona não seja aquela atribuída por Agamben (2003) quando fala do Estado de exceção, há um elemento comum que é a exclusão do indivíduo do campo jurídico: no caso da personagem tebana, a resistência se concretiza quando ela por si mesma se exclui; no caso da exceção, é o Estado que toma para si essa incumbência anulando a condição cidadã ao sujeitar o indivíduo ao livre arbítrio da autoridade, sem qualquer possibilidade de defesa dos seus direitos fundamentais, inclusive da sua vida.

Nos dois casos, a exclusão não elimina a norma, não há uma lacuna jurídica, o que ocorre é apenas a retirada do sujeito da órbita do Direito, continuando este a vigorar apesar disso; imposta pelo Estado ou decidida pelo próprio indivíduo, tem sempre como fundamento um propósito que não deixa de ter correlação com a ordem jurídica: na exceção, a pretensão é suspender a aplicação da lei para sujeitar o indivíduo aos propósitos determinados pela autoridade estatal; na resistência, há uma recusa de se submeter à lei tendo em vista direitos considerados atingidos, ou não reconhecidos com a sua aplicação exigindo-se nesse caso a reformulação do próprio Direito:

“[…] sempre se resiste em nome da justiça, cujo ideal pode variar e varia, no espaço e no tempo, mas em cada espaço, e em cada tempo, é um dado real, sensível. Ainda assim, se observarmos bem, notaremos uma diferença: enquanto, em alguns caso, luta-se pela lei que já se tem, em outro se combate pela lei que se quer ter” (VIANA, 1996, p. 42).

A resistência pessoal e a desobediência civil visam o reconhecimento desses direitos, a sua acolhida pelo Direito; a exceção exclui quaisquer direitos e desconhece o Direito num determinado momento:

“A exceção é uma espécie da exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é aquilo que é excluído não está, por causa disto, absolutamente fora da relação com a norma; ao contrário, esta se mantém em relação com aquela na forma da suspensão. A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão. Neste sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora (ex-capare) e não simplesmente excluída” (AGAMBEN, 2002, p. 25).

Na exceção a autoridade se revela em toda a sua potestade, diante da suspensão da aplicação da norma, o que fica bem evidente no caso de Antígona: embora Creonte não decida sobre a sua condenação recorrendo ao recurso da exceção, aplicando o que as leis da polis determinam, deixa evidente em sua postura a irrelevância do cidadão em face da necessária supremacia da decisão da autoridade, mesmo que isso signifique desconsiderar direitos fundamentais da pessoa.

Encontra-se nessa conduta do governante tebano o cerne da questão fundamental levantada por Agamben: a vida sagrada, o caráter sacro da existência humana ao qual está atrelada a dignidade, embora reconhecido pelo Direito, não exclui a possibilidade, mesmo num Estado de Direito, de perder essa condição de sacralidade despindo-se o ser da sua própria condição humana fundamental tão cara a uma ordem jurídica democrática.

Quando Antígona faz menção ao sagrado ao referir-se a sua desobediência como um “santo delito”, é justamente a essa condição da sacralidade que ela se refere ao postular que acima das leis dos homens estão as leis dos deuses, das quais emanam a obrigação de respeito ao corpo como criação divina e como identidade fundamental da criatura humana mesmo depois de morta.

A personagem encontra justificativa para legitimar sua conduta fora do Direito posto, o que é comentado na obra sobre o Estado de exceção: “Para Agamben, se o estado de exceção se estabelece a partir da decisão do poder soberano, a resistência, ao se chocar com esta noção, deve ser buscada em um fato extrajurídico, ou seja, exterior ao poder soberano” (TOEDTER, 2010, p. 12).

Embora Tebas não estivesse sujeita ao Estado de exceção, Creonte representa a figura dessa potestade que se coloca acima da sacralidade dos homens sob o seu governo; a ele não interessam as crenças religiosas, e nem a natureza sacra do ser em si, mas a aplicação pura e simples da lei posta enquanto instrumento necessário para fazer valer o Direito elaborado pela polis, tendo para isso autoridade e poder segundo a posição que assume nessa comunidade.

Da leitura de Agamben se constata também que o corpo político, no Estado de exceção, deixa de ter sentido e significado como conjunto de pessoas com direitos a quem o ente estatal deve o necessário reconhecimento da sua alteridade; nessa condição os indivíduos, destituídos da sua condição cidadã, tornam-se meros objetos submetidos ao arbítrio da autoridade; deixam de serem sujeitos de direito, e passam a constituir meras entidades biológicas aos quais é retirada qualquer significância jurídica:

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“A dupla categoria fundamental da política ocidental não é aquela amigo-inimigo, mas vida nua-existência política, zoé-bíos, exclusão-inclusão. A política existe porque o homem é o vivente que, na linguagem, separa e opõe a si a própria vida nua e, ao mesmo tempo, se mantém em relação com ela numa exclusão inclusiva” (AGAMBEN, 2002, p. 16).

Creonte é a expressão do próprio Estado, a materialidade da polis na pessoa de um governante, dotado de autoridade e de poder para fazer valer a lei, interpretando-a e aplicando-a. Neste caso, assume a condição de juiz e efetivador da norma com base numa outra peculiaridade do Direito posto, que é a imposição de uma vontade superior e que assume coletivamente o papel de decisora final nas questões da vida na polis.

A despeito dessa autoridade superior do Estado, Antígona recorre da decisão de Creonte, o confronta corajosamente, mas desde o início essa é uma batalha perdida, pois a ela falta um elemento essencial para assegurar que o seu entendimento e a sua pretensão sejam acolhidos e concretizados.

Mesmo ressaltando que não se trata de vontade pessoal enquanto mero capricho ou interesse particular, mas da expressão de um direito assegurado em tempos longínquos pelos deuses, que é o de poder enterrar os mortos da família e dar-lhes assim um destino final digno, aos olhos de Creonte as leis divinas só valem sob o ponto de vista religioso. No mundo dos homens, somente são aplicáveis as leis que os próprios homens criaram para viverem em sociedade; embora algumas delas sejam conformes às leis dos deuses, outras nasceram segundo o entendimento dos cidadãos e são inafastáveis em razão dessa origem coletiva fundamental que o Estado deve preservar garantindo a sua aplicação sem restrições.

Não se pode deixar de vislumbrar nesse sentido uma evidente separação entre racionalidade como afirmação da subjetividade e singularidade o homem frente ao mundo, inclusive espiritual, onde as crenças e costumes associados a uma antiga explicação religiosa da realidade dão lugar a uma compreensão e interpretação da vida segundo o conhecimento e entendimento das circunstâncias da vida, no plano das contingências sociais e políticas mais imediatas.

A concepção de traição à polis não é uma questão religiosa, espiritual, é algo que nasceu das relações entre os homens que fazem parte da vida da cidade, servindo de referência para identificar ou tipificar todos os atos dos cidadãos e responder a eles segundo o que determinam as leis construídas coletivamente e aplicáveis pela autoridade que representa a cidade.

A sanção neste caso é parte do Direito da polis, sendo pela sistemática de funcionamento do governo da cidade aplicável pelo rei, a quem foi conferida autoridade que se concretiza pelo exercício do poder que detém frente a todos os governados.

As “leis dos deuses” não tem essa força de concretização; podem ser respeitadas positivamente efetivando-se assim as regras e costumes do passado inspiradas na crença do divino; mas não têm nenhuma garantia de efetividade, servem como norteadoras do agir individual e coletivo, mas não podem garantir que todos as cumpram.

Creonte é a figura central desse drama no que tange a essa questão, pois para ele é indiferente o que os deuses legaram aos homens nos tempos antigos como base de suas crenças e comportamentos sociais; a ele interessa uma questão presente, prática, segundo o que lhe compete como governante máximo da cidade, aplicar a lei criada para a regulação da vida coletiva.

A peça Antígona nos oferece, portanto, algumas reflexões importantes para compreender essa dissociação entre Direito como força da lei, e o Direito como parte de um conjunto maior de normas, algumas delas anteriores às próprias normas jurídicas mas nem por isso passíveis de desconsideração por serem indissociáveis da existência humana.

É justamente contra isso que se insurge Hannah Arendt, grande expoente das liberdades fundamentais no século XX. Para ela, a construção de um sistema totalitário, como os que modelaram grande parte do século XX, esteve ligada a essa superação do indivíduo na lei. A supremacia da lei tornou-se o instrumento pelo qual se justificou a desconstrução da subjetividade, entendida por ela como fundamental na construção de uma ordem coletiva. Em Agamben (2003), essa desconstrução opera a partir do próprio Direito, mas sem que este seja aplicável, pelo contrário, retira-se o indivíduo da ordem jurídica, para sujeitá-lo a uma ordem sem lei.

O apego à objetividade da lei, à legalidade irrestrita, na concepção de Arendt foi também o motor para a despersonalização do homem, para seu jugo, para sua destruição movida pela justificação da lei, expressa na vontade do Estado, acima de tudo e de todos. A exceção, sem recorrer à lei, mas transitando livremente pelo Direito, como ocorre nas democracias, constitui um recurso potencial de que dispõem os governantes para subtrair o indivíduo da ordem jurídica e é também nesse sentido que se tem a sua desconstrução, como ser político, com direitos e garantias.

Seguindo essa linha de pensamento, Antígona é uma personagem que ilustra bem essa questão: apesar de sua recusa, da sua firmeza em aceitar o que lhe imposto sob a alegação de que assim tem que ser porque é a lei, ela acaba sendo destruída por essa mesma lei, que se confunde com o Estado, na pessoa de Creonte, o soberano.

No caso de Antígona, o que se verifica não é a autoridade em sua potestade lastreada na exceção, mas ainda assim alçada à condição de poder irrefreável. Neste caso, é a prevalência do Direito positivo que se mostra também em toda a sua força. Para Creonte, se a cidade precisar escolher entre aquilo que garante a ordem e o que é justo, deve preferir o que garante a ordem: “Aquele que entre os homens todos for escolhido por seu povo, deve ser obedecido em tudo, nas pequenas coisas, nas coisas justas e nas que lhe são opostas”.

Mas as palavras de Antígona não deixam de ecoar, mesmo depois de morta, ao defender que não é a lei segundo Creonte que deve ser aplicada, mas as leis que são anteriores ao próprio Estado, nascidas da vontade dos deuses. Essa resistência da heroína grega é a mesma resistência encontrada em Agamben, quando afirma que toda possibilidade de recusa do indivíduo a se tornar uma mera vida nua aos olhos do Estado, sujeitando-se assim à exceção, encontra-se num querer e num agir extrajurídico.

A questão aqui é: qual seria o fundamento desse querer e dessa ação como resistência. Uma das vias possíveis seria o retorno a uma moral coletiva, não a moral sob o ponto de vista do ser em si, mas da sua condição humana e do reconhecimento da mesma no outro, algo que mesmo o Estado de exceção não pode retirar do homem em sua vida nua; qualquer prisioneiro de Guantánamo não perde essa condição fundamental de ser, mesmo se a sua existência jurídica e política deixaram de existir.

Michael Walzer (2003), tratando da moral privada e coletiva, postula a existência do que chama de moralidade mínima, comum às diferentes culturas humanas, consistindo em princípios e regras que são reiterados em diferentes épocas e locais, e que são vistos como similares ainda que sejam expressos em diferentes idiomas e reflitam diferentes histórias e diferentes versões de mundo.

Certamente o respeito aos mortos faz parte dessa “moralidade mínima e universal”, constituindo para Antígona como algo essencial enquanto justo a ser buscado, mesmo ao preço de parecer estar cometendo uma ilegalidade em face do que dispunham as leis da polis naquele momento.

A opção pela legitimidade constitui então a via de solução mais adequada de resistência, implicando assim o transito necessário pelo campo extrajurídico, com base numa moral coletiva, transindividual e universal.

Não se trata da moral subjetiva, que varia de pessoa para pessoa, mas de uma moral atemporal, envolvendo valores que se perpetuam no tempo e são compreendidos por todos, em qualquer lugar e momento. Outra questão se põe neste caso: e qual seria essa moral? Para Antígona, ela tem relação com o que permite alcançar o justo.

Pode-se tomar aqui como referência o conceito de moralidade de Espinoza em “Ética” (2014), o qual permite entender o que seria o justo ou injusto.

Para Espinoza, deve-se partir do conhecimento da necessidade das coisas para se determinar o que é justo ou injusto, verificando se o ato mantém ou deteriora a natureza do ser. Por esse critério, justo é o que mantém a essência da singularidade, do ser, da coisa; e injusto, o que destrói, destitui o ser ou a coisa da sua essência e singularidade.

Dessa forma, o justo e o injusto podem ser melhor compreendidos quando não se toma por referência uma ideia do que seria a justiça e a injustiça, caso em que cada um pode ter uma concepção própria; afastando-se da influencia da subjetividade, uma concepção mais racional dos termos, baseada no que propõe Espinosa, nos leva a considerar como justo aquilo que não atinge o ser, a sua essência, e injusto o que destrói ou reduz essa essência a condição em que ele perde a sua singularidade.

Fica claro sob esse ponto de vista o injusto no caso de Antígona: a personagem grega insurge-se contra a decisão de Creonte por vislumbrar a injustiça no ato de deixar o irmão insepulto, pois isso o destitui da singularidade de ser humano quando não lhe são concedidas as honras fúnebres e um enterro adequado.

A essência do ser não está apenas em respeitar a integridade do indivíduo em vida, mas também o seu corpo na morte, o que significava para os gregos, assim como para nós, impedir que ele seja de alguma forma vilipendiado – por animais, por outros homens ou por situações que podem ser evitadas por meio do sepultamento.

Este é mais do que uma cerimônia formal para encerrar o ciclo de vida do ser humano, está fortemente atrelado a valores relacionados à condição humana, como a dignidade e o respeito a ela não se dá pelo respeito à subjetividade, ao ser humano como ente singular e igual.

Relembrando a noção de justo e injusto nos termos de Spinoza, injusto é o ato que atinge a essência do ser, o seu corpo, a sua integridade física sede da vida e da sua singularidade como pessoa única no mundo dos homens.

Essa mesma preocupação aparece em Walter Benjamin (1986) quando elabora sua crítica do Direito, considerando de um lado o justo como valor na seara do Direito Natural, e de outro o poder e a violência que legitimam o Estado como aquele que faz valer o Direito Positivo enquanto instrumento de regulação social.

A crítica de Benjamin à violência institucionalizada com o Direito é que a norma positiva pode servir para legalizar a coerção sobre o corpo coletivo, mas ela não legitima esse exercício do poder. Há que se buscar as bases originárias da legitimidade, que se encontram fora do Direito positivo.

Benjamin entende que deve haver uma relação necessária entre o julgamento e o fim justo, e tal julgamento é uma função necessária do sistema jurídico. Ele se preocupa muito com a questão da justiça. A sua crítica à violência institucionalizada coloca o Direito como espaço em que a justiça não pode de todo ser alcançada. Para ele, desde o nascimento o Direito se ampara no exercício da violência, a legaliza tornando-a a essência da soberania do Estado e do seu poder na sociedade.

O poder para Walter Benjamin é mentiroso, porque todo Estado traveste o exercício do seu poder e soberania por meio do exercício da violência como natural e necessário; porém, essa violência positivada não tem origem no Direito Natural, mas na forma como se dá a passagem de uma sociedade sem normas jurídicas, para outra em que elas passam a ser a forma de regulação do convívio humano, ou seja, quando nasce o Direito propriamente dito.

A violência existia quando os homens viviam em estado de natureza, mas não era a violência institucionalizada e concentrada. Com o Direito ela deixa de ser difusa, ela se concentra e é transformada em instrumento pelo qual o indivíduo perde parte da sua identidade como ser autônomo, transforma-se em vontade parcial, segundo o que entende e deseja o Estado através das suas leis.

Ao aplicar a norma, concretiza-se o poder do Estado através do Direito, impondo-se frente à vontade do indivíduo como nos diz Reale (2013). Mas essa é a força explícita da lei, e é a partir dela que outra força, mais sutil e não menos coercitiva mas até maior enquanto expressão da potestade da autoridade, se impõe: aquela que nasce da exceção, ou seja, quando se afasta a aplicação da norma para subjugar o indivíduo enquanto vida nua nos termos de Agamben.

Todavia, para além da vontade do Estado, das razões de Estado, do exercício do seu poder e da força normativa das regras jurídicas que ele pode garantir efetividade pelo exercício da força, ou mesmo a despeito delas por intermédio da exceção, existe um desígnio fundamental, que é a busca da justiça.

O valor justiça não está naquilo que o Estado, por força do poder que está atrelado à imposição da sua vontade, pode tornar aceitável ou mesmo travestir de legalidade como no caso do Estado de exceção.

Está, pelo contrário, naquilo que antecede ao Direito como exercício legal da violência segundo Walter Benjamin; está em retornar ao estado de natureza, onde essa violência não é assimétrica, isto é, não se concentra no Estado, mas faz parte da vida de todos. Nesse caso, contra a vontade de um pode se opor a vontade do outro e nada mais; sem Direito, a solução a ser dada é aquela que se consegue pela contraposição das vontades das partes.

Stammler (1930) afirma que uma forma histórica de Direito que desatender aos pressupostos formais da liberdade das pessoas e de sua igualdade, por sujeitar uma ao arbítrio da outra, ou dar a uma o que à outra se recusa, deverá ser considerada injusta.

Legalidade e legitimidade são igualmente objeto de reflexão para Agamben (2010). Na leitura de sua obra encontramos uma conclusão fundamental para a presente análise: a preocupação apenas com a legitimidade acaba por subverter a ordem eliminando a necessidade da legalidade para justificar os atos, o que ocorre num Estado de exceção que justifica o arbítrio por uma pressuposta legitimidade emanada, por exemplo, da vontade da maioria da população (um caso clássico é o nazismo na Alemanha; o exercício do poder não era apenas legal, mas justificava-se pela suposta legitimidade derivada de uma maioria que escolheu livremente pelo voto os líderes nazistas para governar a Alemanha).

Por outro lado, concentrar-se apenas na legalidade acaba por desvirtuar as bases da necessária legitimidade dos atos ou decisões, transformando-se igualmente em outra espécie de autoritarismo. Nesse caso, o Estado de Direito também pode se transformar num Estado de exceção, quando o irrestrito apego ao que está escrito na lei acaba autorizando atos sem legitimidade, destituídos de moralidade e incompatíveis com o propósito da busca do justo.

Em Antígona, fica clara essa questão quando se observa a ênfase de Creonte nas razões de Estado, deduzidas por meio de raciocínio lógico do pressuposto de que a vontade geral, que representa o interesse da polis, deve sobrepor-se aos interesses particulares:

“Quero vos prometer ouvir sempre os mais sábios, calar quando preciso, falar se necessário e jamais colocar o maior interesse do melhor amigo e do mais íntimo parente acima da mais mesquinha necessidade do povo e da pátria. Com estas regras simples, agirei sempre para que esta cidade de memória curta não esqueça mais uma vez quais foram os resultados da batalha e não confunda, mais uma vez, o suor dos que combateram furiosamente com o suor do medo misturado à poeira da fuga.”

Agamben (2003) mostra que o Estado de exceção na verdade não é o que o termo indica; é mais apropriado falar não em excepcionalidade, mas em regra, pois se tornou comum, inclusive nos sistemas democráticos, o recurso a instrumentos que procuram reforçar os elos fundamentais entre cidadão e Estado.

O propósito não é a garantia da liberdade individual, ainda que os discursos assim o afirmem, mas manter a unidade do sistema por meio da força do nomos, da lei e da autoridade. Esse é o exercício violento da vontade como entende Agamben, expressão do próprio Direito desde que este assumiu seu papel na sociedade substituindo o estado de natureza, quando não existia o nomos.

O que se verifica hoje é a maximização desse poder autoritário travestido de instrumento de defesa do interesse publico e da própria democracia, sob a ameaça, por exemplo, das ações dos terroristas. Sob tal justificativa, os Estados Unidos mantém prisioneiros sem julgamento, por tempo indeterminado, sem quaisquer direitos de defesa e sem acusação formal, na prisão de Guantánamo.

É a versão mais recente e maximizada do biopoder discutido por Foucault em seu livro “Vigiar e Punir” (1987), onde identifica o surgimento da sistematização do exercício do poder a partir de uma dinâmica biológica – o crescimento populacional, a necessidade de redefinir as bases de controle do Estado sobre a população, e mais especificamente sobre o corpo de cada indivíduo, num cenário de mudanças tecnológicas e políticas.

Em direção oposta, Agamben (2003) afirma que é o controle, exercido por meio da violência institucionalizada, que define as bases de dominação sobre o que chama de vida nua, o ser destituído da sua condição humana por força da sua exclusão do Direito – despersonalizado, reduzido a mera circunstância existencial que pode ser aniquilado a qualquer momento sem repercussões jurídicas já que se encontra no âmbito da exceção jurídica; o hoje, mesmo no sistema democrático, existem formas sutis de controle e essa possibilidade de exclusão é uma ameaça permanente.

Estado e exceção são elementos indissociados nessa perspectiva, e isso parece ficar evidente em Antígona, na postura de Creonte, quando reivindica para si, diante do filho Hémon, o papel de governante que se confunde com a própria polis e assim, e por isso não pode submeter-se a juízos valorativos pessoais acerca das suas decisões:

“Por acaso vens envenenado de ódio contra mim ou reconheces que, como chefe de Estado, agi em defesa da Pátria e, como pai, procurei o teu beneficio? Estás comigo em qualquer decisão ou, como outros, procuras analisar maliciosamente cada gesto que faço?”

E mais adiante coloca:

“Não há calamidade pior do que a rebeldia; ela é que arruína os povos, perturba as famílias, e causa a derrota dos aliados em campanha. Ao contrário, o que garante os povos, quando bem governados, é a voluntária obediência. Cumpre, pois, atender à ordem geral, e não ceder por causa de uma mulher.”

Tomando por base a afirmação de Creonte, o exercício do poder é uma forma de defesa social, concebida segundo a razão de ser do Estado, como espaço no qual a decisão do governante é suficiente por si mesma quando colidem o Direito posto, considerado como instrumento a serviço de um interesse maior, normalmente vinculado ao coletivo, e os interesses ou vontades pessoais dos governados.

Cristaliza-se assim, na decisão de Creonte, o que se supõe ser inquestionavelmente o caminho correto para assegurar a existência da polis. Tomar decisão favorável à Antígona equivaleria a retornar, usando os termos de Agamben, à vida nua, ao existir antes do Direito, a uma vida baseada apenas em regras naturais, segundo a vontade de cada um.

Se a condenação de Antígona se faz pela via do Direito posto, não exclui a sobreposição do Estado ao indivíduo; destituída da sua condição de cidadã da polis, ela é encerrada numa caverna, alegoria que coincide com a ideia de exclusão em Agamben; presa e impossibilitada de ter qualquer contato com o mundo, transforma-se em mero sujeito natural, ser biológico a ser mantido indefinidamente naquele local a quem o rei manda enviar tão somente alimento e água.

Ali não tem mais significado o Direito, nem a vida em sua sacralidade como objeto por ele reconhecido; ali só resta o significado e a força da vontade do governante, de quem depende a vida nua; Antígona é reduzida à insignificância total:

“Ismênia (irmã de Antígona):

Só, sem minha irmã, como poderei eu viver?

Creonte:

Não fale mais nela; ela é como se já não vivesse.”

Não é senão com a morte que Antígona pode libertar-se dessa condição, pois naquela caverna escura, sem nenhum contato com o mundo externo, nenhuma regra, humana ou divina, pode servir-lhe como recurso de restituição da sua humanidade, e é isso que fica evidente no último ato da personagem, que pode também ser considerado uma vitória sobre o autoritarismo travestido em Direito.

A morte não é o fim da vida nua, mas neste caso é o retorno de Antígona à sociedade, pois se torna parte da memória do povo, vivificada nos seus atos quando todos passam a comentar sobre o valor da sua coragem e a transformam em heroína da polis.

Conclusão

Agamben chama atenção para o fato de que a existência do Direito não pressupõe o fim da vida nua. Pelo contrário, ela ainda continua a existir em certos espaços, em situações nas quais o Estado se vale da violência institucional para conduzir o indivíduo a um “limbo” no qual sua existência é destituída de valor e importância, onde nenhum direito lhe é reconhecido e onde sua própria condição de ente, subjetivo e natural, não tem qualquer valor.

É isso que ocorre com os presos de Guantánamo, por exemplo, onde fica evidente essa anulação do ser em si diante do poder ilimitado do Estado, onde não há Direito, nem direitos. O indivíduo se torna mero objeto, e fora de qualquer jurisdição, a ninguém pode recorrer, podendo mesmo ser morto sem que isso configure um homicídio. O mesmo ocorre com os refugiados políticos e os sobreviventes dos campos de concentração após a Segunda Guerra Mundial: excluídos sem pátria, a vida nua, o homem natural desvinculado de qualquer referência jurídica e que acabem por ter sua própria humanidade destituída de significado.

Em Antígona, vemos que ela se opõe à decisão de Creonte desde o início, revelando-se assim o distanciamento entre a ordem ideal, que ela defende, e a ordem real estabelecida a partir do nomos que rege a vida da polis.

Ela reconhece que descumpriu a lei da cidade, mas também afirma que acima desta está a busca da efetividade de princípios universais, essências da própria humanidade, os quais estão contidos nas determinações dos deuses e que possibilitam alcançar a themis (justiça divina), tanto quanto fazer com que os homens tomem decisões que conduzam à dikè (uma justiça superior ainda que produto das deliberações humanas).

Na sua concepção, o nomos que emerge como vontade do Estado expressa na pessoa de Creonte é incompatível com esses propósitos, não sendo mais do que mera proibição pessoal sem vínculo com as nomina de origem divina.

Em razão disso, a sua recusa em obedecer a lei é a expressão de uma resistência pessoal frente ao Estado representado por Creonte. Essa postura pode ser interpretada como o exercício do direito à resistência diante da lei injusta. É a ação extrajurídica em contraste com a vontade superior da potestade estatal que se vale da lei para impor exceção, visando não apenas punir Antígona pela desobediência, mas retirar dela sua condição de ente político e jurídico, excluindo-a do viver social para sujeitar-se, como vida nua, à decisão pessoal do governante: deve viver ou morrer?

O fato de um governante se proclamar legítimo representante da sociedade pela escolha da maioria, como ocorre numa democracia, não significa que pode fazer valer sua vontade sempre. Essa legitimidade é para Agamben apenas aparência, pois na prática o Estado democrático tem utilizado a exceção jurídica como instrumento de operacionalização do poder desconsiderando direitos e a existência dos governados, e isso não destitui a legitimidade daqueles que buscam resistir à norma quando ela é considerada injusta.

Em Antígona, portanto, teríamos um exemplo de resistência, adotando uma postura contrária à lei; não é mera negação do Direito, mas atitude consciente pautada em propósito justificado, pois o fim visado é de relevância não somente para a interessada, mas para a sociedade da qual faz parte. No caso em questão, dar efetividade ao elementar direito à dignidade da pessoa, imanente também ao devido respeito ao seu corpo físico uma vez extinto o sopro vital.

Na verdade a resistência é uma faculdade, pois independe de ser reconhecida pela lei. A história de Antígona continua atual. Ela é um exemplo, talvez o mais antigo historicamente, da possibilidade do indivíduo, ou de um grupo, opor-se a um governante cujas decisões, mesmo amparadas no Direito posto, são consideradas injustas frente a certos princípios de humanidade que são reconhecidos pelo ser em si, com base nas suas experiências e vivências com outros indivíduos que compartilham a mesma condição humana.

É amparada nesse propósito que a resistência de Antígona assume o caráter de correto proceder à ótica de uma apreciação que extrapola o Direito, pois inscreve-se na órbita do que por ele não é sancionado, porém tem valor por referir-se ao homem em sua condição mais essencial, a qual independe de normatização para se fazer respeitar.

Em Agamben encontra-se o fundamento da faculdade de resistência, que é a necessidade, e que pode ser vinculada à própria sacralidade da vida, o que torna a existência humana superior a qualquer vontade e poder emanado do Estado, ainda que este possa valer-se da exceção jurídica para anular totalmente o indivíduo excluindo-o da própria órbita do Direito.

A exceção é a violência que destitui o caráter sagrado da vida, e anula a humanidade do indivíduo, é a recondução daquele que é cidadão, com direitos assegurados, para o estado anterior ao Direito, onde nada mais é do que um ser natural, elemento biológico sem quaisquer garantias e direitos, pois deixa de ser sujeito uma vez que a norma é suspensa, imperando a exceção jurídica.

Ao desobedecer a lei de Tebas, Antígona não o faz por puro sentimentalismo em face do irmão; não é um propósito subjetivo centrado no ego, mas um objetivo mais elevado, pois visa exigir do Estado o reconhecimento da alteridade e singularidade do indivíduo que não pode ser destituída por força do tratamento indigno imposto ao seu corpo como se objeto fosse.

A mensagem da grande e imortal obra de Sófocles é inconteste: o direito de resistência é sempre legítimo quando o poder da autoridade, que pretende ser legítimo porque assentado na vontade da maioria, apenas o é na ficção; quando a aplicação da lei nada mais é do que o exercício da violência inerente ao Direito, transformando-se em instrumento operacional da potestade do Estado, contra ele devem se insurgir os que buscam não o propósito imediato da garantia de um direito particular, mas a satisfatividade de um direito eterno por ser imanente a toda a humanidade.

Referências
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WALZER, Michael. Guerras justas e injustas: uma argumentação moral com exemplos históricos. São Paulo: Martins Fontes, 2003.


Informações Sobre o Autor

Hisashi Toyoda

Auditor Fiscal de Tributos Estaduais da Secretaria de Fazenda do Estado do Amazonas. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Especialista em Direito Tributário e Legislação de Impostos pelo Centro Integrado de Estudos da Amazônia (CIESA). Especialista em Planejamento Governamental e Orçamento Público pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Mestre e Doutorando em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)


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