Pressupostos epistemológicos da ética kantiana

Resumo: Este artigo pretende expor criticamente os pressupostos epistemológicos da Teoria Ética kantiana (Direito e Moral). Nesses termos, procuramos apresentar o diagnóstico que Kant faz a respeito dos problemas da Metafísica e o desafio da causalidade trazido por Hume. Procuramos mostrar, ainda, como Kant pôde superar estas dificuldades mediante uma revolução copernicana em termos de teoria do conhecimento. Por fim, apresentamos os conceitos de juízo (em geral e a priori) procurando demonstrar como a existência dos juízos sintéticos a priori torna possível a ciência de modo geral, e assim também a Ética. [1]


Palavras-chave: Kant; Ética; Pressupostos epistemológicos; Metafísica; Juízos em geral; Juízos sintéticos a priori;


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Abstract: This article intends to expose critically the epistemological presuppositions of Kant’s Ethical Theory (Law and Moral). In these terms, we tried to present the diagnosis that Kant makes about the problems of Metaphysics and the challenge of causality brought by Hume. We tried to show, also, how Kant could overcome these difficulties through a Copernican revolution in terms of theory of knowledge. Finally, we present the concepts of judgment (in general and a priori) trying to demonstrate how the existence of synthetic a priori judgments makes it possible the science in general, as well as the Ethics.


Key-Words: Kant, Ethics, Epistemological Presuppositions; Metaphysics; Judgments in general; Synthetic a priori judgments;


Sumário: 1. O problema da metafísica; 2. Hume e o problema da causalidade; 3. A filosofia teórica de Kant; 3.1. A revolução copernicana e os juízos em geral; 3.2 Os juízos sintéticos a priori; Referências;


Summary: 1. The problem of metaphysics; 2. Hume and the problem of causality; 3. The theoretical philosophy of Kant; 3.1. The Copernican revolution and the judgments in general; 3.2. The synthetic a priori judgments; References;


1. O problema da metafísica


Para se compreender melhor a filosofia teórica de Kant é importante em caráter introdutório atentar para o lugar do pensamento de Kant na história da filosofia, no sentido de assinalar quais são as correntes de pensamento a que este pensador se filia e quais ele pretende combater. Ademais, é importante compreender quais as inovações que Kant propõe na epistemologia e qual é o telos a que este visa.


O século XVIII europeu foi marcado pelas inovações no campo da ciência. O avanço do método científico a partir do século XVII resultou em uma ciência mais bem solidificada, a qual explicava de maneira inequívoca, segundo o pensando da época, os fenômenos naturais. Neste rol de evolução de diversas ciências uma se destaca aos olhos de Kant: a Física newtoniana.


Além da Física, tanto a Matemática, como a Lógica pareciam gozar de um status quo diferenciado em meio às demais ciências, uma vez que os conhecimentos oriundos destas ciências tinham traços de rigorosa universalidade e necessidade. Como são necessários e universais, tais conhecimentos deveriam corresponder a conhecimentos a priori.


Como se verá, o interesse maior deste pensador é mais propriamente na ciência chamada Metafísica, por ser do cerne desta ciência as questões mais importantes para o homem, quais sejam as relacionadas com Deus, com a imortalidade e a liberdade (KANT, 2006, p. 47-48).


Com esta introdução chegamos ao problema, primeiramente aqui enunciado de maneira simplificado, a que Kant procura responder com a sua epistemologia: como são possíveis a universalidade e a necessidade no conhecimento? É possível tal rigor na Metafísica?


A Metafísica, no entender de Kant, apesar da sua enorme tradição não havia ainda enveredado pelo caminho da certeza científica, ao contrário da Matemática, da Física e da Lógica (KANT, 2006, p. 25-27). Tal conclusão advém principalmente do assentimento, parcial (KANT, 2006, p. 55-57), é verdade, que Kant dá às críticas de David Hume ao racionalismo clássico, cujos expoentes são, dentre outros, Descartes, Leibniz e Wolff.


2. Hume e o problema da causalidade


Hume entende que toda ideia é cópia de uma impressão (HUME, 2001, p. 20-21), daí a conclusão de que se não há impressão, também não há idéia. Esta noção será crucial para o entendimento de que nos casos singulares não há idéia de poder ou conexão necessária, ou seja, não há noção de causalidade, ao passo que tais idéias estarão presentes quando da reiteração da experiência (hábito), justamente por surgir daí um sentimento.


Dessa forma, procura mostrar que não temos conhecimento do objeto, ou do atributo de um objeto, que faz com que seja necessária a ocorrência de um determinado evento (que chamamos efeito) quando da presença de outro evento (que chamamos causa). Por outras palavras, a partir de determinada idéia simples não é possível estabelecer os efeitos necessários da mesma, não sabemos como a causalidade é possível (MAIA NETO, 2009).


Esta afirmação é endossada com os argumentos de que tanto as impressões externas, quanto as impressões internas (sentimentos) não nos fornecem conhecimento objetivo do poder ou conexão necessária entre uma causa e um efeito (HUME, 2001, p. 92-100). Com efeito, não temos acesso a nexos causais quaisquer que implicariam em uma necessidade entre uma determinada causa e um efeito. Assim, se tivéssemos acesso à conexão necessária ou poder que ligasse a causa “A” ao efeito “B” se poderia inferir que sempre que tivéssemos a causa “A”, daí resultaria necessariamente o efeito “B”.


O acesso ao nexo causal numa relação de causa e efeito, assim, implicaria da irrelevância da experiência, uma vez que se poderia conjecturar um dado efeito necessário apenas através meramente do raciocínio.


Hume avança dizendo que o fundamento da inferência causal tem origem em um sentimento humano, assim como também a moral e o direito fundamenta-se em sentimento (Moral-sense) (KERSTING, 2009, p. 148-149), pois surge de uma impressão subjetiva, a qual torna a idéia de poder muito forte. Com efeito, a origem da idéia de poder não é objetiva, mas subjetiva, ou seja, é uma projeção.


Mais precisamente, quando da observação de uma experiência singular, na qual se sucederam dois fenômenos, não somos levados a entender que há uma conexão necessária ou poder que faz com que seja necessária a sucessão. No entanto, depois de reiteradas experiências semelhantes, a mente é levada a crer, pelo hábito, que diante da ocorrência de um dado evento, outro necessariamente irá ocorrer. Esta conexão que sentimos na mente é a causa da idéia de poder ou conexão necessária.


Por ser derivada de uma paixão surgida após a experiência reiterada de uma sucessão de eventos semelhantes, a inferência causal não tem origem na razão, como queria Locke (LOCKE, 1999, p. 40-42 e 131-132), mas em um sentimento.


A diferença entre o momento da primeira observação de uma dada associação de fenômenos e o momento posterior à observação reiterada de casos semelhantes, assim, é que no segundo existe um sentimento de que os fenômenos estão conexos na imaginação, ou seja, eles adquiriram uma conexão no nosso pensamento que suscita a nossa inferência (HUME, 2001, p. 76-78).


 É justamente este sentimento surgido após a observação de várias associações entre os eventos semelhantes que fará surgir a noção de conexão entre esses eventos, além de ser a matéria-prima para a ideia de poder (HUME, 2001, p. 78-73).


Kant não é alheio a esta crítica de Hume à causalidade, tal afirmação pode ser comprovada com a leitura do trecho dos Prolegômenos em que Kant, ao referir a crítica de Hume à causalidade, confessa que


“não há possibilidade de ver como do fato de uma coisa existir deva seguir-se necessariamente a existência de outra coisa, nem como se possa introduzir a priori o conceito de semelhante conexão” (KANT, 1959, p. 25-26).


Todavia, Kant certo está também que Hume se equivocou ao considerar que a relação causal é fruto da nossa imaginação. Caso assim fosse, não poderia existir qualquer ciência, pois não haveria necessidade objetiva, mas apenas necessidade subjetiva, o que não condiz com o que se espera dos conhecimentos oriundos das ciências, mas que sejam necessários e universais, pois que advindos de juízos sintéticos a priori, como se verá (KANT, 2006, p. 46-55).


Além disso, não obstante o obstáculo cético imposto por Hume, a investigação metafísica não poderia ser abandonada, pois equivaleria a abandonar as questões mais cruciais da vida humana, as quais os nossos espíritos são irremediavelmente levados, tais como: a imortalidade da alma, Deus e a liberdade.


Coube a Kant, por tudo isso, refletir criticamente a respeito das possibilidades da razão enquanto principal agente de conhecimento. Nesse sentido, cabe assinalar que a ideia de crítica é usada por Kant no seu sentido etimológico mais elementar: o de “discernir” ou “distinguir” o que a razão pode fazer do que ela é incapaz de fazer. Não se trata, todavia, de uma crítica destrutiva como o fazem os céticos, mas uma crítica que visa o exame das possibilidades da razão.


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3. A filosofia teórica de Kant


Coube a Kant, por tudo isso, refletir criticamente a respeito das possibilidades da razão enquanto principal agente de conhecimento. Nesse sentido, cabe assinalar que a ideia de crítica é usada por Kant no seu sentido etimológico mais elementar: o de “discernir” ou “distinguir” o que a razão pode fazer do que ela é incapaz de fazer. Não se trata, todavia, de uma crítica destrutiva como o fazem os céticos, mas uma crítica que visa o exame das possibilidades da razão.


3.1 A revolução copernicana e os juízos em geral


Joaquim Carlos Salgado ensina ser a filosofia de Kant uma filosofia da reflexão, na medida em que se constitui como um processo interiorização do sujeito transcendental a partir da sucessiva aplicação das formas puras a priori da sensibilidade e do entendimento (SALGADO, 1986, p. 81).


Kant, assim, se propôs a fazer uma revolução na filosofia tal como, entre outros, Copérnico e Galileu o fizeram com relação à ciência (KANT, 2006, p. 30). Esta revolução se dá na mudança de perspectiva em teoria do conhecimento da ênfase no objeto para a ênfase no sujeito.


Epistemologicamente, tal mudança de perspectiva equivale a dizer que se trata de uma conversão da hipótese do realismo para a do idealismo. Assim, enquanto a hipótese realista afirma que uma realidade nos é dada, a qual o nosso conhecimento deve modelar-se, no idealismo, ao contrário, o espírito intervêm ativamente no processo de elaboração do conhecimento, sendo o real, assim, uma construção a que uma parte nos cabe (KANT, 2006, p. 29).


Cabe aqui a devida explicação do que se deve entender por conhecimentos a priori e a posteriori. Com efeito, segundo Kant o conhecimento a priori é aquele que independe da experiência, i.e, que é anterior a mesma (KANT, 2006, p. 44-47). Ao contrário, os conhecimentos tidos como a posteriori são aqueles que decorrem necessariamente da experiência.


Diante de tal diferenciação conceitual, podemos avançar dizendo que todo conhecimento, para Kant, significa dar forma a uma matéria dada. Com efeito, para todo objeto passível de conhecimento notamos elementos que dependem do próprio objeto e constituem a matéria do conhecimento e os elementos que dependem do sujeito e constituem a forma do conhecimento. Evidente, assim, a conclusão de que a forma é a priori enquanto que a matéria é a posteriori (SALGADO, 1986, p. 81-82).


E mais, gozamos de um critério infalível para a diferenciação entre os conhecimentos a priori e os conhecimentos a posteriori. Assim, as proposições a priori são aquelas que são necessárias e universais; necessárias porque não poderiam ocorrer de outra maneira sob pena de contradição e universais porque, ao contrário dos conhecimentos empíricos, não advém de uma observação da experiência, sempre singular, mas da própria razão, fonte de conhecimento (KANT, 2006, p. 45-56).


Sobre isso diz Kant que


“Necessidade e rigorosa universalidade se constituem então nos sinais seguros de um conhecimento a priori e são inseparáveis uma da outra” (KANT, 2006, p. 46).


No entanto, nem todo conhecimento a priori tem mesmo valor. Para expor esta questão de maneira clara é mister entender a diferença entre juízos analíticos e juízos sintéticos.


Os juízos analíticos são aqueles que se restringem a explanar um conceito, analisando o seu conteúdo sem fazer referência a nenhum elemento novo. Com efeito, os juízos analíticos apenas expõem de maneira mais clara o que já estava contido em um conceito. Por exemplo, o juízo “todos os corpos são extensos” é um juízo analítico, pois a partir do conceito de corpo eu posso deduzir a priori o predicado extenso. Sendo assim, o predicado nada acrescenta ao sujeito, mas apenas o explana de maneira mais evidente.


Os juízos sintéticos, por sua vez, são aqueles em que há um acréscimo do conceito do sujeito mediante a ligação de um predicado que não estava contido no conceito do sujeito. Por exemplo, o juízo “todos os corpos são pesados” é um juízo sintético, uma que vez que o predicado “pesados” não está de forma alguma contido a priori no conceito de “corpos” (KANT, 2006, p. 49-50).


Assim, podemos dizer que todos os juízos da experiência são juízos sintéticos já que a experiência nos ensina a ligar determinados atributos que conseguimos com ela a outros conceitos. Em contrapartida, os juízos analíticos são a priori já que não preciso recorrer à experiência para esmiuçar um determinado conceito que já possuo.


Entretanto, é mister salientar que, se apenas estes dois tipos de juízos existissem, estaríamos em terrenos infecundos com relação ao conhecimento. Assim, temos que, por um lado, os juízos analíticos, apesar de necessários e universais, não representam uma progressão de conhecimento, uma vez que, como dito, o predicado já estava contido no sujeito, sendo apenas melhor explanado por tal predicado. Por outro lado, os juízos sintéticos, apesar de representarem um verdadeiro acréscimo de um elemento novo a um conceito dado, não são necessários e universais, mas contingentes e particulares, uma vez que a experiência nada nos pode dar de necessário e universal (SALGADO, 1986, p. 88-89).


Ainda resta, não obstante, as certezas alcançadas pela Física e Matemática a que todas as pessoas concordam e aceitam. Como seriam possíveis, pois, tais certezas?


3.2 Os juízos sintéticos a priori


A novidade em Kant é a introdução de uma terceira categoria de juízos, quais sejam os juízos sintéticos a priori. Estes possuem a universalidade dos juízos analíticos e, no entanto, não derivam imediatamente da experiência. Por exemplo, o juízo “a linha reta é a menor distancia entre dois pontos” é um juízo sintético a priori, já que a partir do conceito de “linha reta” não posso deduzir o predicado “menor distância entre dois pontos”, sendo este predicado, ao contrário, totalmente novo ao conceito do sujeito. Não obstante, esse juízo é necessário e universal por decorrer apenas da razão e não da experiência propriamente dita (KANT, 2006, p. 51-52).


Portanto, é a existência dos juízos sintéticos a priori que explica a certeza alcançada nos conhecimentos da Física e da Matemática (KANT, 2006, p. 52-55).


Os juízos sintéticos a priori, para Kant, decorrem justamente das formas puras que possuímos e que, pelas quais, determinamos a matéria de conhecimento.


Em Kant, para conhecer um determinado objeto faz-se necessária a interação entre a matéria do conhecimento, quais sejam, a parte dos fenômenos ligada à sensação, e a forma do conhecimento, a qual é dada pelas chamadas formas puras a priori (KANT, 2006, p. 65-67). As formas puras do conhecimento são esquematicamente divididas em formas puras da sensibilidade e formas puras do entendimento, conforme pertençam, respectivamente, à estrutura da sensibilidade (faculdade das intuições) ou a estrutura do entendimento (faculdade dos conceitos) (KANT, 2006, p. 89-90).


Tais formas puras a priori fazem parte da constituição subjetiva do chamando sujeito transcendental, posto como diverso do sujeito empírico.


Cabe aqui, antes de prosseguirmos, uma observação a respeito do que se deve entender por transcendental, em contraste com o que é empírico, e, assim, analisarmos o que se pode entender por sujeito transcendental em contrapartida ao sujeito empírico.


O empírico é aquilo que provêm e depende da experiência sendo dependente desta. Por depender da experiência, fica claro o caráter de contingência dos juízos sintéticos a posteriori, pois a experiência é sempre relativa a algo singular, para um sujeito determinado e segundo regras determinadas. Não há, portanto, necessidade e universalidade nos juízos dependentes da experiência (KANT, 2006, p. 44-45).


Nesse sentido, é mister atentar para duas afirmações parecidas que, no entanto, não se confundem na filosofia kantiana: a primeira diz que os juízos que dependem da experiência são contingentes e não-universais, a segunda afirmativa diz que todo conhecimento começa com a experiência. O problema é evidente, pois se todo conhecimento começa com a experiência e os juízos da experiência são tidos como contingentes e não-universais, forçoso concluir que não há necessidade e universalidade possível.


É que no caso da primeira afirmativa quer-se dizer que a experiência por si mesma não fornece universalidade e necessidade a nenhum juízo, mas, ao contrário, como se verá, é o sujeito que injeta necessidade e universalidade no fenômeno advindo da experiência. Assim, quando se diz que os juízos dependentes da experiência são contingentes e não universais deve-se entender que à experiência ela mesma não se conferir nenhum atributo de necessidade e universalidade.


 Quanto à segunda afirmação, todavia, deve-se entender que, para Kant, todo conhecimento é fruto da subsunção em conceitos do múltiplo da sensibilidade, ou seja, de inicio faz-se necessária a experiência para que esta mova o aparato transcendental (o priori) do homem, todavia, apesar de todo conhecimento possível advir da experiência, não é certo concluir que todo conhecimento dependa da experiência. Como se disse a experiência, no caso dos juízos sintéticos a priori, apenas movimentam as faculdades do sujeito sem ter, no entanto, participação no produto desta movimentação. Em outras palavras, os juízos sintéticos a priori não derivam de modo algum de elementos encontrados na experiência, e, portanto, como se disse, são considerados por definição como universais e necessários.


Sanada esta dificuldade de interpretação é possível trabalhar melhor a questão do transcendental em Kant. Como se disse, o homem é dotado de certos elementos puros a priori em sua constituição subjetiva. Estes elementos são necessários para o conhecimento científico, ou seja, são condições de possibilidade para os conhecimentos necessários e universais.


Como se disse, os elementos puros a priori são divididos em conceitos puros do entendimento e intuições puras a priori, conforme façam parte, respectivamente, da estrutura do entendimento ou da estrutura da sensibilidade.


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O sujeito portador de tal configuração subjetiva (elementos puros a priori), todavia, não é especificamente o sujeito empírico, o homem de carne e osso. Mas outro sujeito de conhecimento, o sujeito transcendental. Este é composto pelo aparato a priori do ser humano, ou seja, é exatamente o mesmo em todos os seres humanos singulares. Em outras palavras, em todos nós, há uma sensibilidade, um entendimento, uma razão, os quais são idênticos em todos os homens. O fato de compartilhamos destes institutos transcendentais de forma inequívoca torna possível a universalidade e a necessidade do conhecimento. Assim, o conhecimento para os homens tomam a seguinte forma: caso tais conhecimentos refiram-se exclusivamente ao sujeito transcendental, tais conhecimentos são universais e necessários para toda a humanidade em geral[2].


O sujeito empírico, por sua vez, está ligado às determinações da natureza e é o que faz, mais propriamente, sermos diferentes uns dos outros. Ao sujeito empírico é atribuída, desde Platão, a falibilidade e a determinação pela natureza e pelas paixões da alma.


Como se verá na filosofia prática: o sujeito empírico pertence ao âmbito da natureza, ao passo que o sujeito transcendental é do âmbito da liberdade na medida em que a razão vê-se como razão prática (vontade).


Como já dito, as formas puras a priori da sensibilidade são de crucial importância para o conhecimento vez que não há conhecimento possível sem as intuições apreendidas pela sensibilidade transcendental. A ciência própria para abordar os princípios puros a priori da sensibilidade chama-se estética transcendental, ou seja, trata-se do estudo das formas puras da sensibilidade (intuições puras a priori) na medida em que estas são condições de possibilidade do conhecimento para o homem (KANT, 2006, p. 65-67).


São duas as intuições puras a priori: o espaço e o tempo. Com efeito, para Kant não podemos conceber nada que não seja no espaço e no tempo. O espaço se relaciona com o sentido exterior: não podemos conhecer objeto algum se não como localizado em dado espaço; ao passo que o tempo se relaciona com o sentido interior: não podemos conhecer os nossos estados de alma senão em uma determinada fração de tempo (KANT, 2006, p. 66-77).


A intuição pura a priori do tempo, não obstante, é entendida como condição de possibilidade do sentido interno, por possibilitar o conhecimento dos estados da alma, mas também indiretamente dos sentidos externos, pois por determinar o conhecimento ânimo (Gemüt), também determinará a possibilidade da inscrição na alma dos dados da intuição pura a priori do espaço. Este, por sua vez, é condição de possibilidade do sentido externo (VIEIRA, 2009).


A forma pura do espaço justifica os juízos sintéticos a priori na Matemática, enquanto que a forma pura do tempo justifica os juízos sintéticos a priori na Física. Justificam porque é o espaço e o tempo são formas puras e são ao mesmo tempo os principais objetos de tais ciências (KANT, 2006, p. 82-87).


A faculdade dos conceitos, por sua vez, trabalha na constante tentativa de unificar em conceitos o múltiplo advindo das intuições sensíveis. Para tanto, o entendimento é composto por categorias, as quais são propriamente as formas puras do entendimento (SALGADO, 1986, p. 103-104).


Não podemos, por exemplo, entender uma série de fenômenos senão a partir da categoria que se relaciona com a causalidade. Fica clara, aqui, a unificação do múltiplo em conceitos no entendimento: à série de fenômenos será imposta uma noção de causalidade que propicia o nosso conhecimento do múltiplo da experiência.


As categorias, todavia, são heterogêneas com relação aos fenômenos advindos da sensibilidade. Assim, faz-se necessário o que Kant chama de “condição formal e pura da sensibilidade a que o conceito do entendimento está restringido no seu uso” (KANT, 2006, p. 167-170), ou seja, faz-se necessário o “esquema” que há de ser fornecido pela imaginação com o fim de possibilitar a subsunção do fenômeno às categorias do entendimento.


O entendimento, no entanto, por vezes atua na busca pelo incondicionado, quer dizer, um conhecimento que transcende totalmente a experiência. Ao entendimento nesta busca ilegítima pelo incondicionado chama-se razão e aos conceitos obtidos por ele nesta busca chama-se idéias.


No que tange as idéias, todavia, é forçoso concluir que elas não propiciam um conhecimento científico, já que são construções da razão pura que se caracterizam justamente pela não interação com as intuições da sensibilidade (GOMES, 2004, p. 102-103). Ora, por ser necessária ao conhecimento a sua matéria proveniente da sensibilidade, e por serem as idéias justamente as formas puras da razão, as quais não interagem com esta matéria, conclui Kant que as idéias não fornecem conhecimento, pois que são ideais da razão, os quais, todavia, desempenham importante papel regulativo no processo de conhecimento (SALGADO, 1986, p. 82-83).


Este processo regulativo dá-se na medida em que as idéias da razão, por visarem o incondicionado, o inicio da série causal, forçam o entendimento a se aplicar na busca pela maior unidade possível do múltiplo da experiência. Assim, a regulação representa um ideal do trabalho de unificação, apesar de inatingível.


A crítica a essa pretensão da razão teórica de conhecer o incondicionado é subsumida principalmente nos problemas advindos da dualidade entre natureza e liberdade (KANT, 2006, p. 30-31).


A crítica na dialética transcendental à razão teórica dá lugar à outra faceta da mesma razão, qual seja a razão prática. A razão prática usará das idéias da razão, as quais, apesar de não poderem ser conhecidas, podem ser pensadas, principalmente a idéia de liberdade, causa livre, incondicionada, para fazer valer a autonomia da vontade humana, a qual deve poder se determinar o agente moral livremente, ou seja, sem a interferência dos móbiles sensíveis (KANT, 2006, p. 35-37).


 


Referências

GOMES, Alexandre Travessoni. O Fundamento de Validade do Direito: Kant e Kelsen. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.

HUME, David. Tratado de la natureza humana. Edição eletrônica: Libros En La Red, 2001.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Martin Claret, 2006.

KANT, Immanuel. Prolegômenos a tôda metafísica futura que possa apresentar-se como ciência. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.

KERSTING, Wolfgang. O Fundamento de Validade da Moral e do Direito em Kant. In: GOMES, Alexandre Travessoni (Coordenador.). Kant e o Direito, 2009.

LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

MAIA NETO, J. R. Curso de História da Filosofia Moderna I. Belo Horizonte: UFMG, 2009. Notas de aula.

PASCAL, Georges. Compreender Kant. Petrópolis: Vozes, 2008.

SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant. Ed: UFMG, 1986.

VIEIRA, Leonardo Alves. Curso de História da Filosofia Moderna II. Belo Horizonte: UFMG, 2009. Notas de aula.

 

Notas:

[1] Artigo elaborado a título de iniciação científica com financiamento do PROBIC (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica) da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e sob orientação do Prof. Dr. Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno.

[2] Kant vai além ao entender que os conhecimentos racionais válidos para todos os homens (pois que referentes ao sujeito transcendental) são válidos também para todo ser racional em geral.


Informações Sobre o Autor

Vitor Amaral Medrado

Mestrando em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e graduando em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Advogado


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