Sumário: 1. Apresentação. 2. Limites do reconhecimento institucional da primeira infância no Brasil. 2.1 Creche, primeira infância e gênero. 2.2 A inclusão da creche na pauta política nacional. 2.2.1 Entre descompromissos do Estado e demandas das trabalhadoras. 2.2.2 Mulheres colocam creche na agenda coletiva. 2.2.3 A creche na “CPI da Mulher”. 2.2.4 A creche na Assembléia Nacional Constituinte. 2.2.4.1 “Filho não é só da mãe”. 3. Um padrão de relações sociais de gênero. 3.1 Superar o antagonismo entre o direito à maternidade e os direitos da cidadã. 4. Algo novo sob o sol. 4.1 Atores institucionais entram ineditamente nessa cena. 4.2. Cortes Superiores do país e posições anti-sexistas. 5. A igualdade não é uma utopia. 6. Referências bibliográficas.[1]
1. APRESENTAÇÃO
É no quadro geral do reconhecimento[2] que deve ser inserido o reconhecimento geracional da primeira infância pelo Estado e pela sociedade. A questão do reconhecimento vem sendo vinculada a igualdade, a justiça, a melhores padrões de cidadania e de sociabilidade, auto-estima, solidariedade, redistribuição de poder entre mulheres e homens (FRASER, 2002; FRASER and HONNETH, 2003). As sociedades expõem seus valores, limites, possibilidades, contradições, por meio de suas instituições, ao oferecerem (ou não) reconhecimento e acolhimento às novas gerações.
Vinculo essa questão não só ao pensamento político de Fraser, mas também ao pensamento de Honneth, para quem, aí, a pedra fundamental é uma dialética do combate. A “luta por reconhecimento” é da ordem do necessário — pois com ela identidades pessoais e sociais se constituem — e da ordem do contingente — pois é transitória, precisando permanentemente ser outra vez empreendida. As lutas por reconhecimento deságuam na proteção e promoção dos Direitos Humanos civis e políticos da igualdade e, também, dos direitos econômicos, sociais e culturais da solidariedade. Contra a resignação, Honneth insiste na dinâmica da “luta por reconhecimento”[3] e por uma solidariedade ampliada (HONNETH, 2003).
2. LIMITES DO RECONHECIMENTO INSTITUCIONAL DA PRIMEIRA INFÂNCIA NO BRASIL
4 Os padrões ainda frágeis de reconhecimento institucional das crianças brasileiras se revelam na rede de creches disponível no país. Outras situações também manifestam o frágil reconhecimento da criança no espaço público, como, por exemplo, casos amplamente noticiados de parques infantis e Conselhos Tutelares, freqüentemente à beira do colapso, no Distrito Federal.[4]
A rede de creches é emblemática e importante referência dos padrões de reconhecimento pela universalidade requerida por esse direito da cidadã-criança, pela materialidade dos cuidados e atenção que oferece à cidadã-criança, além do caráter simbólico que detém. Campos (1998) enfatizou ter constatado um especial exercício do reconhecimento social das crianças na primeira infância no interior das creches, movendo os adultos em seu cotidiano de trabalho com elas, em experiências ao norte do equador. É uma função do adulto “reconhecer e apoiar o trabalho da criança, não só quando ela completa uma actividade, mas durante todo o processo. A aceitação, o apoio e o encorajamento podem demonstrar-se por acções ou por uma simples atitude. Um aceno de cabeça ou um sorriso de um adulto, do outro lado da sala, podem ser tão importantes para a criança como uma conversa em intimidade sobre aquilo que está a fazer” (HOHMANN, BANET & WEIKART, 1992. p. 103-104, apud CAMPOS, 1998:339). E complementa:
“…ainda que as maneiras de garantir cada proposta sejam diversas, o profundo respeito pela criança como sujeito encontra-se presente e bastante visível nas experiências suecas, italianas e do currículo High Scope” (id., p. 340).
Em 2007, apenas 17,1% de nossa população com até três anos de idade eram atendidas em creches, mas essa tzxa deve ser relativizada em favor de um processo que vem se instaurando nos últimos anos, em favor da cidadã-criança com até 3 anos, com taxas de acolhimento em creches passando de 7,4% em 1996, para 8,1% em 1997, 11,7% em 2002, 15,5% em 2006 (IBGE, 1997, 1998, 2003, 2007, 2008).
Essa situação é agravada pelas desigualdades de distribuição de riqueza e reconhecimento social. Em 2007 foram acolhidas em creches somente 10,8% de crianças pobres ─ vivendo em domicílios com renda de até 1/2 salário mínimo per capita, critério adotado pelo IBGE para definir a linha de pobreza ─, e 43,6% das crianças vivendo em domicílios com renda de mais de 3 salários mínimos per capita (Taberla 1).
Constitui agravante, ainda, a realidade de 72,4% de nossas crianças entre 0 e 6 anos viverem em domicílio com renda de até 1 salário mínimo per capita e 1,6% estarem em lares com mais de 5 salários mínimos per capita, constituindo o segmento da população mais vulnerabilizado pela pobreza e suas intercorrências. Esse quadro econômico recai sobre as crianças e o acolhimento que recebem na rede pública ou na rede privada, observa-se, entretanto, um crescimento – ainda que lento – de oferta de vagas na rede pública (Tabela 2).[5]
As crianças com até seis anos de idade vêm representando faixa menor da população brasileira, passando de 13,6%, em 1997, para 12,5%, em 2002 e 10,5%, em 2007, mas persistem as dificuldades para reconhecê-las integralmente. A realidade mantém suas ambigüidades e tensões entre esforços por alocar no espaço público responsabilidades pelos cuidados com essas crianças e tentativas por preservar a primeira infância como questão privada, com as responsabilidades por seus cuidados recaindo mais especialmente sobre as mulheres.
Ainda que o Plano Nacional de Educação (Lei 10.172, de 09.01.2009) tenha estabelecido a meta de oferecer creche para 50% das crianças até 2010, o Ministério da Educação admite, por meio da Secretária de Educação Básica, Maria do Pilar: “Estamos longe de chegar aos 50% previstos pelo PNE”. E acrescentou com toda razão: “Demorou para que o cuidado com a criança de zero a seis anos saísse da ótica da assistência social e fosse assumida pela educação”[6] Atualmente o MEC está apoiando municípios participantes do compromisso “Todos pela Educação”, por meio do programa ProInfancia que, entretanto, responderia somente por 10% das necessidades. Esse contexto nos permite constatar o quanto a infância ainda está distante de constituir, na vida real, a “prioridade absoluta” do país, como prescrevem a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
2.1. Creche, primeira infância e gênero.
Podemos lembrar, em termos de faixa etária, que o Brasil possui 10,9 milhões de crianças com até três anos de idade e 9 milhões entre quatro e seis anos (IBGE, 2008). Entretanto, se é importante dispormos de dados oficiais ─ e eles nos indicam termos em torno de 20 milhões de crianças com até 6 anos de idade ─, eles nos são insuficientes. A primeira infância está longe de constituir somente um período cronológico. É um domínio complexo, revelando e sofrendo as tensões e as dinâmicas sociais.
Características dessas pessoas e dos adultos que se ocupam com elas na família e fora dela, reunidas à natureza de mecanismos ligados à renovação da sociedade conferem especial importância ao domínio da primeira infância, campo propício a interrogações relativas às relações de gênero.
A pequena humana, o pequeno humano é portador de dignidade e está em condição de imaturidade, trazendo como conseqüência imediata, a falta de autonomia. Assim, o cuidado na primeira infância tem significado especial, pois as necessidades são particularmente elevadas. Pais, familiares, vizinhança, profissionais de diversas áreas compartilham presença ativa junto a essas crianças. Os atores sociais adultos são, entretanto, massivamente femininos: mães e profissionais.
A primeira infância se encontra no coração de interações, colaborações, concorrências de pessoas e grupos diferentes. Mas, a quem cabem os cuidados com ela e sob que normas? eis uma das questões que emerge ao adotarmos gênero como uma dimensão relevante nesse quadro. Como chegamos à situação presente? Quais são as justificativas e análises possíveis? Que alternativas existem e como reiterariam ou colocariam em questão aspectos da definição do masculino e do feminino?
As profissões ligadas à primeira infância são tidas como “profissões femininas” ─ como o conjunto de serviços e cuidados às pessoas ─, desvalorizadas em termos de prestígio e salários, mesmo significando funções relevantes para a reprodução da sociedade.
As políticas para a primeira infância precisam ser analisadas considerando as conseqüências sobre as relações entre homens e mulheres. Medidas que permitem a conciliação família-trabalho estão voltadas especialmente para as mulheres, tornando-se recursos para interferir sobre as carreiras femininas. As creches são apresentadas como serviços oferecidos às mulheres e não às famílias. A questão do gênero nas políticas sociais aflora aqui: elas reforçariam as desigualdades de oportunidades, a divisão sexual do trabalho ou colocariam tudo isso em questão? (COULON et CRESSON, 2007).
Oferecer uma rede de creches a nossas crianças pode significar transformações nas relações sociais entre mulheres e homens. A creche pode significar, também, respeito à dignidade da cidadã-criança entre zero e três anos, reconhecimento geracional, lançamento das bases de uma educação não-sexista e não-racista.
Após longa trajetória, com enfrentamento a desafios legais e políticos, a Educação Básica no Brasil passou a incluir expressamente a Educação Infantil — creches e pré-escolas ─ ao lado do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. As resistências, entretanto, têm continuado. Cabe, então, uma interrogação: que significa a existência, de uma rede pública de creches tão aquém de nossas necessidades? Uma resposta possível: a confirmação de contradições persistentes na sociedade brasileira, entre a efetivação dos princípios de igualdade entre mulheres e homens e a divisão sexuada do trabalho não remunerado, do trabalho parental ─ paterno e materno ─ de cuidados à criança. Enfim, a creche é uma questão gendrada, sexuada, não podendo ser interpretada e situada para além das relações sociais entre os sexos.
2.2. A inclusão da creche na pauta política nacional
Há mais de 50 anos a creche — como direito da criança, apoio à maternidade e à paternidade — vem sendo reivindicada pelo movimento de mulheres e pelo movimento feminista. Barreiras formais — legais e constitucionais — foram vencidas. Culturalmente, entretanto, não foram superadas as resistências às mudanças necessárias na ordem sócio-sexual para consagrar, na vida coletiva, o princípio de igualdade de compromisso de todos os adultos — homens e mulheres — ao reconhecimento e ao acolhimento das gerações que chegam.
2.2.1. Entre descompromissos do Estado e demandas das trabalhadoras
Na história brasileira recente a creche surge muito timidamente, na Consolidação das Leis do Trabalho, em 1943, e é demandada pela primeira vez pelas mulheres trabalhadoras em 1956.
A Consolidação das Leis do Trabalho, de 1º de maio de 1943 (Dec. Lei 5.452), propunha a creche restrita às empresas privadas, empregadoras de mais de 30 mulheres com idade acima de 16 anos. A CLT pretendia proteger a amamentação do bebê, sem preocupação com a socialização dessa criança, com os direitos da mãe e do pai a receberem apoio e solidariedade do Estado e da sociedade. Conforme essa primeira legislação, o empresariado deveria oferecer algum serviço à população de zero a seis meses, mas o Estado em qualquer de suas instâncias — federal, estadual ou municipal — era mantido inteiramente desobrigado (ROSEMBERG, 1989). Em 1956, trabalhadoras reunidas em Conferência Nacional, pioneiramente demandaram creches.
A ampliação dessa legislação não foi reivindicada pelo movimento sindical, que incluiu cláusulas relativas à primeira infância e à creche, somente em 1983, no dissídio do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo.
2.2.2. Mulheres colocam creche na agenda coletiva
Nos anos setenta, essa reivindicação surgiu no movimento de mulheres e no movimento feminista, veiculada na imprensa feminista. Em 1975, o “Brasil Mulher” divulgou o “Encontro para diagnóstico da mulher paulista” e sua carta programática: “É necessário que todas as mulheres, os representantes das sociedades, amigos de bairro, clube de mães e interessados em geral, desenvolvam juntos um programa que venha a resolver o problema de creche na cidade de São Paulo” (nº 5, 1976).
Integrando a imprensa designada por uns como “democrática ou alternativa” e, por outros, “imprensa nanica” – uma imprensa de oposição ao regime, artesanal e comercializada de mão em mão – a “imprensa feminista” foi inaugurada com o “Brasil Mulher”, o primeiro jornal feito por mulheres, para mulheres.
Em 1976, militantes que voltaram do exílio bem antes da anistia, dispostas a editar um jornal feminista, de oposição, divulgando as lutas sociais e as demandas das mulheres, criaram o jornal “Nós, Mulheres”. No editorial do primeiro número, interrogava: “Quem somos nós?” Falando na primeira pessoa do plural, rompeu com um padrão de linguagem e com o tratamento consagradamente dado às mulheres, na imprensa feminina tradicional, onde imperava um editor assexuado, impessoal, ditando normas e aconselhando a leitora, tratada por “você, mulher” (LEITE, 2003). Esse primeiro editorial denunciava a educação sexista com os papéis que a sociedade tem reservado às mulheres:
“Desde que nascemos, Nós Mulheres, ouvimos em casa, na escola, no trabalho, na rua, em todos os lugares, que nossa função na vida é casar e ter filhos. Que Nós Mulheres não precisamos estudar, nem trabalhar, pois isto é coisa para homem. Os próprios brinquedos de nossa infância já nos preparam para cumprir essas funções, que dizem ser a função natural da mulher: mãe e esposa. Nós, meninas, devemos sempre andar limpinhas e brincar (de preferência dentro de casa) de boneca, de comidinha, de casinha. E os meninos podem andar sujos e brincar na rua, porque são moleques e porque devem se preparar para tomar decisões, ganhar a vida e assumir a chefia da casa.”
A pesquisadora Rosalina Leite em 2003, assim interpretou a perspectiva com que esses primeiros jornais eram produzidos e distribuídos:
“As feministas põem os jornais a serviço da organização popular de mulheres da periferia das grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, reivindicando direitos, superando a perspectiva de trocá-los por favores, avançando na prática para além da política reivindicatória dos bairros e da relação fisiológica e tutelar que caracterizava essa ação política no passado. Esses novos sujeitos coletivos, as feministas, criam seu próprio espaço de representação e favorecem com sua militância, o debate das questões relacionadas com o convívio familiar, a intimidade, a sexualidade e as relações de poder entre homens e mulheres, pais e filhos, etc., introduzindo-as no movimento popular.”
Ainda que concentrada nas regiões sudeste – onde surgiram 46 das 75 publicações feministas encontradas pela pesquisadora Elizabeth Cardoso (2004) – e nordeste – com a criação de 12 publicações – essa imprensa feminista é um fenômeno nacional, contínuo e vigoroso socialmente, podendo ser dividida em duas gerações, em simetria com os processos que perpassaram o próprio movimento feminista. “A primeira geração está marcada pelo debate entre “a questão da mulher” e “a questão geral” (…), por reivindicações de ações públicas que coloquem as mulheres em igualdade com os homens. (…) …já a segunda geração da imprensa feminista incorpora o conceito de gênero, assume os temas relacionados direta e exclusivamente às mulheres (como sexualidade, planejamento familiar e violência contra a mulher); tende para a especialização por temas…” (CARDOSO, 2004:38). Tais características refletem tensões e embates presentes no feminismo brasileiro dos anos 70 e 80 (ver ALVES e PITANGUY, 1981; TELLES, 1993; PINTO, 2003, entre outras).
Pode-se dizer que, sem ter tido vida longa ─ vinte edições de “Brasil Mulher”[7] em cinco anos, de 1975 a 1980, e oito edições de “Nós Mulheres”[8], em dois anos, 1976 a 1978 ─, esses jornais produziram intensamente, refletindo um período histórico com embates e transformações rápidas e profundas.
Em 1979, foi criado, como resolução do 1º Congresso da Mulher Paulista, o “Movimento de Luta por Creches”, que recebeu, no início dos anos oitenta, promessas da construção de 830 creches no município de São Paulo. Foram instaladas 120, em 1983, uma Comissão Especial de Inquérito sobre creches, concluiu que a construção e a manutenção de creches seria cara. O Estado passou, então, a contribuir, indiretamente com as creches por meio de convênios (CAMPOS et al., 1988).
Esse movimento abriu espaços, foi corajoso em agendar questões novas, até um limite: a exclusão – ou a recusa explícita – das relações sociais de gênero, seus antagonismos, suas hierarquias, com a ordem sócio-sexual que fundam, estruturam, mantendo-se na tensão entre preservar ou transformar essa ordem.
Em seu primeiro número, o jornal “Nós Mulheres”[9] colocava a demanda por creche na agenda social, vinculando-a ao imperativo de participação da mulher “na vida econômica, social e política em igualdade de condições com o homem” e da divisão sexual do trabalho – ainda sem essa designação. O editorial de sua primeira edição registrava:
“Achamos que nós mulheres devemos lutar para que possamos nos preparar, tanto quanto os homens, para enfrentar a vida (…) Queremos, portanto, boas creches e escola para nossos filhos, lavanderias coletivas e restaurantes a preços populares, para que possamos, junto com os homens, assumir as responsabilidades da sociedade. Queremos também que nossos companheiros reconheçam que a casa em que moramos e os filhos que temos são deles e que eles devem assumir conosco as responsabilidades caseiras e nossa luta por torná-las sociais”.
Eis um depoimento comovente de Fúlvia Rosemberg, militante feminista, historicamente comprometida com as questões da creche e da primeira infância: “Quando tento capturar o significado da força arrebatadora dessa reivindicação em mim, e entre certas feministas, encontro sua razão de ser num projeto radical de transformação da família, que pudesse resgatar não só a mãe, mas também o pai e o filho” (1989:101).
Enfim, “o trabalho doméstico é necessário para a sociedade, porém, não deve ser de responsabilidade exclusiva das mulheres” (CAMPOS et al., 1988:33). Entretanto, esse tom e essa disposição de reinventar a divisão sexual do trabalho doméstico e a parentalidade ─ no masculino, no feminino ─, de reorganizar a esfera privada e a esfera pública, não perdurou. Nas edições seguintes, o tema sumiu das páginas de Nós Mulheres, apresentando um feminismo repudiando “a luta entre os sexos”. Quem seriam os opressores das mulheres? O Estado e o empresariado, interlocutores na reivindicação por creche. Havia no jornal uma proteção aos homens e uma solidariedade com as mulheres das classes populares, identificadas como as oprimidas. Nem a proteção, nem a solidariedade eram universalizadas a todas as mulheres (CAMPOS et alli, 1988). Antes de proteger os homens, havia uma despolitização das relações sociais de sexo, abolindo as dimensões de poder aí presentes. As questões ligadas à divisão sexual do trabalho doméstico e parental são situadas, privilegiadamente, na esfera pública e as discussões sobre a maternidade, a paternidade, transformações no arranjo doméstico e na organização do trabalho seriam dispensáveis.
No sentido de desqualificar o pensamento e a prática feministas, caricaturas têm apresentado o antagonismo existente nas relações sociais de sexo como uma “guerra dos sexos,” como uma luta com uma só via, em que, supostamente, só as mulheres, estariam envolvidas (DEVREUX, 1988). Ora, uma dimensão importante dessa dinâmica, implicando relações de poder, é mantida oculta. Como reflete Devreux, “os homens também lutam nessa relação social. Lutam, às vezes, violentamente para preservar seus interesses de sexo. (..) [É] a noção de antagonismo (…) [que] permite compreender a luta específica das mulheres e, sobretudo, a luta específica dos homens e suas resistências à mudança social, em favor das mulheres” (2005:578).
Com pesquisas que se multiplicaram ao longo das últimas décadas, com grupos que se formaram, encorajando quebrar o silêncio, com as denúncias que se multiplicaram,[10] já não é possível deixar de admitir que a violência contra as mulheres constitui a face de uma guerra efetiva e contínua, em que mulheres têm sido abatidas mesmo no século XXI. Com fortes raízes culturais, a violência é uma estratégia de controle das mulheres pelo poder masculino, pretendendo reafirmar quem detém a autoridade, também nas relações afetivas e familiares, pretendendo confirmar e eternizar os papéis sexuais estabelecidos para cada um e uma. Ações de violência estrutural ─ incluindo assassinatos recorrentes de mulheres, verdadeiro femicídio ─ compõem uma guerra cotidiana que busca modelar corpos e subjetividades para a incorporação e a aceitação da violência como normatizadora, normalizadora das relações afetivas e familiares (BANDEIRA, 2007; BANDEIRA e THURLER, 2009).
2.2.3. A creche na “CPI da Mulher”
Nos anos setenta, a luta por incluir e manter na agenda nacional a questão do reconhecimento institucional das crianças na primeira infância, com a creche, chegou à pauta do Parlamento Nacional, por meio da criação de uma Comissão Mista de Inquérito, a CPI da Mulher.[11] A questão da creche esteve presente já na primeira audiência — em 28 de abril de 1977, nas intervenções de Maria Malta Campos e Fúlvia Rosemberg —, até a última audiência — em 22 de setembro, na participação de Moema Toscano (SENADO FEDERAL, 1978).
A dupla jornada de trabalho da mulher e a persistência da busca por solucionar individual e privadamente o problema da guarda dos filhos, articulando-se com a questão de classe, centralizaram a exposição de Maria Malta Campos. “…Na falta de um local adequado onde possam deixar seus filhos menores durante o horário de trabalho, muitas mães são obrigadas a apelar para soluções que vão desde a ajuda de parentes e vizinhos, muitas vezes em troca de algum dinheiro, até ao recurso de deixá-los aos cuidados dos irmãos um pouco maiores ou mesmo a solução extrema de deixá-los sozinhos”(SENADO FEDERAL, 1978:47). Na oportunidade, ela analisava: “se considerarmos que o processo de incorporação da mão-de-obra feminina ao sistema produtivo tem se intensificado nos últimos anos (…) a necessidade de uma solução adequada para o problema da guarda dos filhos durante o horário de trabalho da mulher configura-se como cada vez mais necessário e urgente” (id.). E ela demandou o cumprimento de disposição contida no Plano de Ação da Conferência Mundial das Nações Unidas do Ano Internacional da Mulher, realizada no México, em 1975, que estabeleceu: “Constitui responsabilidade do Estado criar as necessárias facilidades para que as mulheres possam se integrar na sociedade enquanto suas crianças recebem cuidados adequados.”
Nas recomendações apresentadas, Fúlvia Rosemberg destacou a criação de creches, endossando estudo do Ministério do Trabalho/SENAI/SENAC, que sugeria constituir a creche “um ônus desvinculado da existência (ou não) de mulheres trabalhando na empresa”, devendo “vincular-se tão-somente a determinado número total de trabalhadores, tal como ocorre nos casos da alimentação e bolsas de estudo fornecidas pelos empresários” (SENADO FEDERAL, 1978:93).
“Como é que está a situação das creches no Rio de Janeiro?” interrogava Moema Toscano na última audiência. E respondia: “O Ministério da Saúde arrolou, em 1975, cerca de 90 creches registradas no seu órgão especializado. O número de vagas proporcionadas era de 6.800, estimando-se, portanto, que apenas 1,3% da efetiva procura por parte das mães pode ser atendida” (SENADO FEDERAL, 1978:426). Na oportunidade, ela já denunciava a ocorrência de privatização: “Há que se denunciar que a iniciativa privada, nesse setor de creches, tem aumentado bastante. No Rio de Janeiro, por exemplo, há uma média de uma creche nova por mês. Agora, são creches destinadas a famílias de maior nível de renda, cobram em média 2 mil a 3 mil cruzeiros de mensalidade e que, nos últimos tempos, têm chegado ao requinte de cobrar por hora, nos moldes dos estacionamentos de automóveis” (id, p. 427). E, com justeza, demandou a participação dos sindicatos: “Em qualquer sociedade industrial, principalmente na do tipo capitalista, o sindicato é aquela entidade de representação de classe que reivindica os direitos da classe trabalhadora. Seria justo, portanto, que os sindicatos se mobilizassem, principalmente aqueles cujo número de filiados é majoritariamente feminino, que se interessassem por reivindicar junto a empresas, junto ao Estado, a ampliação da rede de creches”(id., p. 428).
É com uma expectativa otimista que Hermínia Fernandes marca sua participação:
“esperamos que a CPI, em tão boa hora criada por iniciativa do ilustre Senador Nelson Carneiro – porque me parece que foi sugestão dele –, que tem como Relatora a Deputada Lygia Lessa Bastos (…), chegue a conclusões objetivas ao estudar os problemas de deficiências de apoio à mulher e encontre uma solução para indicar os meios, a fim de se sanar o sofrimento de tantas mulheres que vivem em estado de angústia, porque necessitam trabalhar e não têm com quem e onde deixar seus filhos. Aqui eu pergunto: gostaríamos de saber o que têm feito os poderes públicos (SENADO FEDERAL, 1978:360).”
A insuficiência de oferta de vagas em creches penaliza, sobretudo, mulheres-mães em situação social e econômica precária, em famílias monoparentais,[12] tornando-se obstáculo à inserção profissional de muitas entre elas.
2.2.4. A creche na Assembléia Nacional Constituinte
Nos anos oitenta, a creche chegou ao Poder Executivo. O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher promoveu eventos importantes, atuou permanentemente na Comissão “Criança e Constituinte”, contribuiu para manter informadas e mobilizadas as mulheres no país, mediou diálogos entre o movimento social de mulheres e o Congresso Constituinte.
Em fevereiro de 1986, o CNDM assim se posicionou no documento final do “1º Encontro Nacional de Políticas de Atendimento à Criança de 0 a 6 anos”, iniciativa do próprio Conselho Nacional: “Para o CNDM o direito à creche significa ultrapassar a era do assistencialismo e da benevolência, reconhecê-la como instituição legítima em si, não usurpadora ou substituta da família, onde o Estado deve com ela compartilhar a educação do cidadão criança” (CNDM, 1986:5).
Durante todo o período Constituinte, houve intenso debate provocado pelas mulheres organizadas no movimento social e em espaços governamentais, pelas feministas, em torno da incorporação de uma rede de creches ao texto Constitucional. Analisando o processo Constituinte, Campos constata o fato de “esse tema [ter] estado muito mais presente nos grupos de mulheres que discutem a Constituinte, do que nos grupos de educadores” (1989:298). As mulheres foram as mais fortes demandantes de creche no processo constituinte nos anos oitenta e isso não acidentalmente.
Em 1987, entre 30 de agosto e 03 de setembro, o CNDM teve forte participação na reunião anual da Comissão para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, naquela oportunidade realizada no Brasil. A então coordenadora da Comissão de Creche do CNDM, Ana Maria Wilheim, fez a seguinte avaliação relativamente à questão da creche trabalhada no âmbito dessa reunião da CEDAW:
“Muitas resistências, no plano ideológico, ainda existem, que dificultam a mudança da creche de equipamento que serve de assistência à miséria para sua redefinição enquanto equipamento de direito da criança e de sua família. Observam-se alguns movimentos populares e de agentes governamentais no sentido de incorporarem a creche como equipamento educacional de direito. É assim que tem sido expresso nas reivindicações aos Constituintes, e assim que as mulheres, seja através dos Conselhos, seja através dos movimentos sociais, vêm exigindo (WILHEIM, 1987).”[13]
No âmbito da Assembléia Nacional Constituinte, o trabalho das mulheres em favor da creche para crianças de 0 a 6 anos[14], colocou a questão no debate público, com intensa mobilização nacional e levando a questão para seu eixo central: a creche significa espaço de educação e de socialização. Assim, foi retirado da creche o caráter assistencialista em que vinha histórica e ideologicamente mantida. A educação e a socialização no espaço da creche é um direito do cidadão-criança na primeira infância, opção da família, sendo dever do Estado e da sociedade investir no atendimento e na formação de seus novos integrantes.
Entre argumentos apresentados, um deles era de que o investimento social em creche significa prevenir acidentes domésticos e reduzir gastos com saúde e assistência.[15] Outro argumento se referia à realidade de que, mesmo as limitadas e desatualizadas determinações da CLT de 1943, não virem sendo cumpridas. A CLT tornava os berçários obrigatórios para crianças até seis meses, em toda empresa com mais de trinta empregadas, discriminando boa parte das trabalhadoras e todos os trabalhadores-pais. Não existia, entretanto, fiscalização. As empresas optavam pagar as multas irrisórias a cumprir o mínimo que estabelecia a lei. Multiplicavam-se as creches fantasmas, resultantes de convênios mal explicados, com creches distantes do local do trabalho e da moradia, com horários de funcionamento não compatíveis com os horários da jornada de trabalho das mães.
2.2.4.1 “Filho não é só da mãe”.
“É também do pai. É responsabilidade da sociedade e do Estado”, complementava no subtítulo, o “documento elaborado pelo CNDM, em atendimento à solicitação dos movimentos de mulheres brasileiras.” Esse documento foi produzido duas vezes: uma em 1987, com formatação menor, outra em 20 de abril de 1988, estabelecido como “Dia Nacional de Luta pela Manutenção [no Projeto Constitucional] das Licenças Maternidade (120 dias), Paternidade (8 dias) e Creche”. As mulheres reivindicavam que “a segunda rodada de votações referende essas disposições para que tenhamos uma Constituição em harmonia com as exigências da vida do país.”
Foi constante a demanda das mulheres brasileiras por reconhecimento institucional e social da primeira infância – por meio da oferta universal de serviços de creches -, com acompanhamento de todo processo Constituinte. A creche esteve presente desde a Carta aos Constituintes de 1987, produzida em Encontro Nacional, em agosto de 1986[16] e mantida na pauta em todas as edições do Boletim do CNDM “Informe Mulher”. Registro alguns destaques: “Creche: direito da criança, dever do Estado e da sociedade” (nº 2, maio de 1987); na Edição Especial, com a chamada “Lobby do batom para dar o nosso tom. Saiba nossos ganhos” (julho de 1987); “Constituinte: o terceiro tempo”, focalizando os trabalhos da Comissão de Sistematização (nº 3, outubro de 1987); “Creche urgente” (nº 4, dezembro de 1987).
Em 1988, o “Informe Mulher” continuou incluindo em sua pauta a questão da creche. Divulgando, na edição nº 5 (abril de 1988), a coleção de manuais referência produzida pelo CNDM em conjunto com o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher de São Paulo – “Criança, compromisso social”, “Organização e funcionamento”, “Espaço físico”. A edição nº 6 (julho de 1988) acompanhava passo a passo o processo, apresentando a chamada: “Constituinte, o lance final – nossa situação no último projeto constitucional”. Era a etapa da votação definitiva do projeto e, então, só poderiam ser encaminhadas emendas supressivas. A creche estava nesse projeto em duas passagens: “As creches são consideradas unidades de guarda e educação” e “Incumbe ao Estado promover a criação (…) de uma rede nacional de creches (…) sem prejuízo das obrigações atribuídas dos empregadores.”
A última edição do Informe Mulher (nº 7, de outubro de 1988) trouxe a palavra das mulheres parlamentares constituintes, avaliando o processo. Diversas se referiram diretamente à pioneira incorporação da creche em texto constitucional em nosso país.
Por justiça, devemos creditar às mulheres organizadas no movimento social e em espaços governamentais – CNDM e, também, os Conselhos Estaduais e Municipais dos Direitos da Mulher – o mérito da conquista histórica do reconhecimento institucional pelo Estado brasileiro do cidadão-criança de zero a seis anos como sujeito de direito ao acolhimento, à educação na primeira infância. É como decorrência desse reconhecimento que o direito à creche foi inscrito à Constituição-cidadã, promulgada em 05 de outubro de 1988. Assim, foi esse direito incorporado, sem ambigüidades e com a maior clareza, à Lei Maior do país, nos seguintes dispositivos:
“Art. 7º – São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem a melhoria de sua condição social: […]
XXV – Assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até os 5 anos de idade em creches e pré-escolas (Emenda Constitucional 53/2006).[17] Art. 208 – O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de […]
IV – educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 cinco anos de idade[18] (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006).”
3. UM PADRÃO DE RELAÇÕES SOCIAIS DE GÊNERO
Cabem algumas interrogações: por que homens-pais não foram igualmente demandadores de creche? Por que após mais de meio século de insistente demanda das mulheres e mesmo de incorporação à Constituição do país, homens-governantes muito resistiram para efetivar esse direito reconhecido e admitido? Homens no governo da sociedade — majoritários nos espaços de deliberação e de decisão — são demandados ao reconhecimento institucional das crianças pelas mulheres-mães. Nesse jogo de poder, elas estão situadas como demandadoras e eles se reservam a prerrogativa de decidir efetivar — ou não — essa reivindicação histórica das mulheres-mães. Devreux registra: “ “No ponto de partida da análise das relações homens/ mulheres, em termos de relações sociais de sexo, encontra-se o postulado do antagonismo.” E prossegue: “Os resultados empíricos das pesquisas sobre a situação social das mulheres mostram claramente que, do ponto de vista do devir da dominação de sexo, os interesses dos homens e das mulheres opõem-se radicalmente” (2005:577).
A efetividade do reconhecimento institucional das crianças de zero a três anos requer a universalização do direito à creche[19] e o envolvimento dos homens-governantes, hegemônicos e articulados nos mais altos espaços de decisão e de deliberação no Estado e na sociedade. A insuficiência de oferta de vagas em creches pela rede pública de ensino penaliza sobretudo as mulheres-mães social e economicamente precarizadas, em famílias monoparentais, tornando-se obstáculo à inserção profissional de muitas mães. Uma rede pública precária de creches no país, após mais de 50 anos de reivindicação pelas mulheres, manifesta a persistência de forte sexismo e o ainda frágil reconhecimento institucional das crianças brasileiras.
3.1. Superar o antagonismo entre o direito à maternidade e os direitos da cidadã.
Historicamente, ciclos de expansão e de retraimento de redes públicas de creches ligaram-se mais a políticas buscando o incentivo ou o cerceamento do trabalho das mulheres do que às necessidades das crianças na primeira infância (WELTZER, s/d, apud ROSEMBERG, 1989:90). Foi o caso do investimento nos EUA em programas de desenvolvimento de creches para filhas e filhos de empregadas na indústria bélica, durante a Segunda Guerra, garantindo 1,6 milhão de vagas em creches e pré-escolas. Com o fim da guerra, esses investimentos cessaram e, em 1965, as vagas caíram para 300 mil.
Também na França, a Licença Parental, aprovada em 1994, é um outro exemplo de como Políticas para a Família se subordinam a Políticas de Emprego. Em 2000, 540 mil pessoas usufruíam dessa licença que possibilitava a um dos pais acompanhar a criança durante seus três primeiros anos de vida: 98% dessas pessoas eram mulheres-mães. Em um contexto de desemprego, era um mecanismo de retirar as mulheres do mercado de trabalho e levá-las a subordinar a vida profissional à vida familiar, consagrando-se aos cuidados dos filhos na primeira infância (FAGNANI, 2001).
Em decorrência da divisão sexual e social do trabalho parental, a responsabilidade pelo acompanhamento e educação da criança recai desigualmente sobre a mãe. Debates e incipientes políticas relativas à primeira infância omitem a realidade das relações sociais de sexo, especialmente o fato de a maioria das mulheres continuarem a assumir as tarefas domésticas e parentais, mantendo salários inferiores aos salários de seus cônjuges. Essas políticas deixam de prover os meios para combater as discriminações devidas ao sexo no mercado de trabalho e de encorajar uma implicação real dos homens-pais na vida familiar. O oferecimento de creches, como alternativa de guarda e educação das crianças, possibilita uma crítica aos papéis tradicionais da mãe e do pai, cria condições reais para a mulher exercer a cidadania na esfera pública, abrandando um antagonismo entre o direito à maternidade e o exercício dos direitos da cidadã. Uma política de universalização da creche para cuidados e socialização da criança de zero a três anos torna-se condição para viabilizar a promoção dos direitos de cidadania da mulher-mãe.
Entre 1996 e 2006, houve no Brasil um aumento do número de matrículas em creches, passando de 7,4% para 15,5% a oferta de atendimento à população de cerca de 11 milhões de crianças com até três anos de idade. Devemos lembrar, entretanto, que a maior parte desse progresso ocorreu no setor privado e apenas 9,9% das crianças das famílias mais pobres estavam com esse direito garantido.
Vinte anos após a promulgação da Constituição, o Estado patriarcal ainda não honrou o compromisso de oferecer educação ao cidadão-criança na primeira infância. Mesmo a Proposta de Emenda Constitucional Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (PEC/Fundeb) — entregue pelo MEC à Presidência da República, em 15.12.2003 e enviada ao Congresso Nacional em junho de 2005 — silenciou sobre a educação na primeira infância, prevendo recursos somente para a pré-escola (para crianças de 4 e 5 anos). Continuavam a ser penalizadas pesadamente, sobretudo, as crianças e as mães de mais baixa renda, nada contribuindo para amenizar a gravidade das desigualdades de sexo, etcnicidade e classe. Após grande mobilização social e a participação da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, em favor da Educação Infantil e do Projeto que resultou na Lei 11.494 — conhecida como Lei Fundeb (Fundo da Educação Básica) —, finalmente a Educação Infantil, com a criação de uma rede de creches, foi incorporada à política de educação nacional.
Se há mais de cinqüenta anos as mulheres reivindicam creches, por que a PEC/Fundeb não fez qualquer previsão de atendimento a essa demanda? O projeto da Deputada Iara Bernardi (PT-SP) pela inclusão da educação infantil no texto da PEC/Fundeb foi aprovado em 08.12.2005, mas três dias depois, em torno de 400 prefeitos ─ quase a totalidade homens ─ estavam no Congresso Nacional pressionando por encaminhamentos contra a proposta. Governadores igualmente pressionaram, resistindo à destinação de verbas para o atendimento de crianças nessa faixa etária. O argumento reiterado é: a criança usuária desses serviços seria muito cara para o Estado. É verdade, especialmente se considerarmos o contraponto dessa conta: o trabalho gratuito das mulheres — sem qualquer registro na contabilidade nacional — se ocupando, diuturnamente, com milhões de crianças brasileiras. O Estado tem ocultado o trabalho não remunerado, invisibilizado e naturalizado das mães que têm se ocupado com essa população de 11 milhões de cidadãos-crianças, ainda pouco reconhecidas institucionalmente, em sua dignidade e em sua condição de sujeito de direitos constitucionalizados.
4. ALGO NOVO SOB O SOL.
Se o problema persiste, constatamos, entretanto, novos atores sociais[20] e institucionais — especialmente operadores do Direito — surgindo nesse cenário, com atuações inovadoras. Iniciativas inauguram o século XXI no âmbito municipal (Defensoria Pública e o Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro), estadual (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Ministério Público de São Paulo e do Paraná), federal e, mesmo, das Cortes Superiores de Justiça do país. Os novos atores sociais vêm provocando transformações legais, conceituais e culturais, na realidade não cristalizada ─ que construímos e desconstruímos coletivamente ─ relativamente ao reconhecimento institucional e social da primeira infância brasileira. 4.1. Atores institucionais entram ineditamente nessa cena. A resolução do problema não está próxima, mas verificamos a questão da creche chegando em espaços inéditos, envolvendo novos segmentos sociais e novas instituições.
Em 2004 o Ministério Público de São Paulo, por meio da Promotoria da Infância e da Adolescência, propôs uma ação civil pública contra a Prefeitura de Araraquara. Com sentença proferida em 2008, a Vara da Infância condenou a Prefeitura a pagar multa diária de R$ 100,00 por criança com até 3 anos que houvesse tido matrícula recusada na rede municipal nesse ano. Há uma estimativa de 650 crianças não acolhidas na rede pública, segundo a Secretaria Municipal de Educação.[21] No estado de São Paulo, o Ministério Público já teria movido mais de 1400 ações, pressionando e obrigando municípios a atender meninas e meninos em creches.[22]
No Rio Grande do Sul, a 7ª Câmara Cível do TJ reafirmou a obrigação de o município garantir vaga em creche e pré-escola para crianças com até seis anos ou, na impossibilidade, oferecer vaga na rede privada, determinando ao município de Canoas cumprir a lei. O direito à educação deve prevalecer sobre qualquer outro interesse do Estado. O relator Ricardo Raupp Ruschel lembrou que a Constituição Federal dispõe ser a educação um direito social e o dever do Estado será efetivado mediante a garantia “de atendimento em creche ou pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade” (artigo 208, inciso IV). O ECA (artigo 54) e a LDB (artigo 4°, I e IV) repetem a determinação constitucional. (Processo 70017460387).[23]
No Paraná, foi o Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Proteção à Educação, por meio da atuação do Promotor de Justiça Cleyton Maranhão que se preocupou com a população estimada de 25 mil crianças que, em Londrina, estariam à espera de vagas em creche. E, também do MP-PR, a Promotora de Justiça da Vara da Infância e da Juventude, Édina Maria Silva de Paula, acordando com a estimativa, declarou: “O problema não vem recebendo a prioridade que merece, nem investimentos capazes de impedir que ele aumente a cada ano.”[24]
Ainda no Paraná, o Ministério Público manteve a primeira infância na agenda do estado, lançando em abril deste ano a cartilha “Município que respeita a criança: Manual de orientação aos gestores municipais”, com informações sobre a legislação e as obrigações legais do poder público com a infância. O objetivo é o governante conhecer e cumprir a lei, efetivando o que estabelece o art. 227 da Constituição Federal: dar efetivamente à infância a condição de “prioridade absoluta”. Ao lado do Prefeito, o Tribunal de Contas do Estado deve acompanhar os recursos empregados na área da infância e o MP cobrar ações e fiscalizá-las. A cartilha indica órgãos e serviços indispensáveis para o município nessa área, como o Conselho Tutelar, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, serviços de prevenção ao trabalho infantil e à exploração sexual. Um dos participantes da elaboração do documento, o Promotor de Justiça Murillo Digiácomo declara que o investimento na infância “não é uma opção, é uma obrigação constitucional”.[25]
No Rio de Janeiro, o Tribunal de Contas do Município, em relatório produzido a partir de inspeção realizada no final de 2006, afirmou que somente 10,2% das crianças até quatro anos estão sendo atendidas pela Prefeitura e entidades conveniadas. A Defensoria Pública do Rio de Janeiro abriu inquérito para investigar a questão da carência de oferta de vagas em creches na cidade do Rio de Janeiro. A coordenação de Defesa dos Direitos da Criança da Defensoria Pública do RJ declarou: “Temos recebido reclamações constantes dos Conselhos Tutelares e das associações de moradores. Estamos levantando a situação em cada região da cidade para entrar com uma ação civil pública contra o município.”[26]
No Rio Grande do Norte, a transferência, em 2008, em Natal, de 46 creches da área da assistência para a educação[27] ─ da Secretaria Municipal de Assistência Social (Semtas) para a Secretaria Municipal de Educação (SME) ─ deu visibilidade à precária situação dos centros infantis até então em operação. O secretário municipal da educação declarou: “Não sei como essas instituições estavam funcionando nessas péssimas condições.”[28]
No Distrito Federal, em 15 de abril de 2009, o Juiz Renato Rodovalho Scussel, da 1ª Vara da Infância e da Juventude, determinou ao Governo do Distrito Federal a criação de mais 23 conselhos tutelares, um para cada Região Administrativa do DF, e complementando Brasília, Taguatinga, Ceilândia e Planaltina com dois conselhos tutelares, por ultrapassarem o contingente de 200 mil habitantes. Em caso de descumprimento, incorrerão solidariamente em multa diária de mil reais, as pessoas físicas do Governador do DF e dos Secretários de Estado de Planejamento e Gestão e (SEPLAG) e de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania (SEJUS). O juiz determinou também que seja disponibilizado espaço físico adequado para instalação de cada um dos novos conselhos tutelares, devidamente equipados e prontos para ocupação até 5 de outubro de 2009. O Distrito Federal deverá informar à 1ª VIJ, no prazo máximo de 90 dias, quais serão esses espaços físicos e as ações desenvolvidas para o cumprimento da decisão.[29]
O Ministério da Educação declarou disposição de, em 2009, ajudar prefeituras com assessoria e recursos para a construção de creches, priorizando municípios com Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) inferior à média nacional (4,2, em 2007), que atendam a pré-requisitos como comprovação de terreno legalizado, planta altimétrica. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) oferece opções de projetos arquitetônicos de creches para 120, 180 e 225 crianças, com apoio em recursos de R$ 550, R$ 780 mil e R$ 1,2 milhão, respectivamente.
4.2. Cortes Superiores do País e posições anti-sexistas
Desejo registrar ainda o promissor envolvimento das Cortes Superiores do país com as questões ligadas aos cuidados com a primeira infância. O Supremo Tribunal Federal, em outubro de 2007, determinou o arquivamento de Ação Penal então em curso na Justiça Militar do Rio de Janeiro (4ª Auditoria), contra o cabo da Marinha Sidney Rogério Moreira, em decisão anti-sexista. Temendo não obter autorização, ele deixou o trabalho sem informar a seus superiores. Optou por dar assistência ao filho, hospitalizado às pressas para retirar um rim. O relator, ministro Celso de Mello, considerou tipificar-se estado de necessidade, aplicando ao caso, o princípio de insignificância. A 2ª Turma do STF acompanhou o voto do relator no julgamento do pedido de Habeas Corpus (92.910). Com a liminar concedida pelo STF, foi suspenso o trâmite da ação contra o pai atento ao filho.[30]
O Superior Tribunal de Justiça (1ª Turma), em ação movida pelo Ministério Público de São Paulo, em decisão de fevereiro de 2007, obrigou o município de São Paulo a matricular crianças em creches próximas de suas casas. O MP-SP buscava garantir a matrícula de duas crianças. A primeira instância atendeu ao pedido, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo mudou a sentença. A ação chegou ao STJ, que reconheceu o direito das crianças a atendimento em creche e pré-escola, conforme estabelecem a Constituição, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/96).[31] A jurisprudência das duas Cortes Superiores de Justiça foram evocadas: não atender ao direito de alguns menores e atender a outros é violação do princípio de isonomia, “pilar não só da sociedade democrática anunciada pela Carta Magna, mas também ferir de morte a dignidade humana” (REsp 736.524).[32]
5. A IGUALDADE NÃO É UMA UTOPIA
O reconhecimento social e institucional da primeira infância brasileira vem sendo demandado e construído em uma trajetória não linear que remonta há mais de seis décadas (Quadro 1). A igualdade entre todas as crianças não é uma utopia e se efetiva mediante a oferta universal da Educação Infantil, por meio de uma rede de creches e pré-escolas, que contribuirão também para mitigar desigualdades devidas à raça/etnia e à classe.
Nesse processo, o Estado que iniciou parcimoniosamente propondo berçário para crianças até seis meses ─ dever que não lhe concerneria, mas estritamente ao empresariado ─ chega ao século XXI aprovando a Lei 11.494 ─ Lei FUNDEB ─ reconhecendo o direito à educação do cidadão-criança de zero a cinco anos e incluindo a Educação Infantil na Educação Básica.
Em toda essa trajetória, as mulheres foram as grandes protagonistas. De trabalhadoras organizadas demandando creche pela primeira vez, em 1956 até as grandes mobilizações contemporâneas. Em plena vigência da ditadura militar nos anos setenta, as feministas incluíram a creche na agenda nacional, em um contexto de lutas para o restabelecimento da democracia e do Estado de direito no país e em um processo de internacionalização das questões feministas, com o estabelecimento pelas Nações Unidas do Ano Internacional da Mulher (1975) e da Década da Mulher, a promoção da I Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher, no México, naquele mesmo ano. Essas datas internacionais catalizaram um movimento já em andamento no país, pois já em 1969, Heleieth Saffioti, pioneiramente, publicava “A mulher na sociedade de classes. Mito e realidade”, uma obra de referência.
Ao se organizarem, as mulheres buscaram interlocutores em todas as instâncias ─ no governo, na sociedade civil ─ conquistando aliados, como, por exemplo, sindicalistas, e outros, conforme registrado (quadro 1). Ainda no século XX, avançando na questão do reconhecimento institucional da primeira infância, tivemos a Constituição Federal, promulgada em 1988, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de 1989 e o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990.
Momento privilegiado da mobilização e da organização nacional das mulheres na sociedade civil ocorreu com a produção da “Plataforma Política Feminista”, com o envolvimento de mais de 5.200 mulheres, em 2002, ano dos 70 anos do voto feminino no Brasil. Relativamente aos temas aqui analisados a Plataforma registra alguns desafios que destaco a seguir:
“182. Incentivar e promover as transformações culturais que possibilitem o exercício pleno do direito à maternidade e à paternidade e o compartilhamento das responsabilidades pela educação e cuidado com os filhos entre mulheres e homens, comunidade e Estado.
183. Garantir que tanto o Estado quanto a iniciativa privada assumam as suas responsabilidades no que se refere à reprodução social, implementando políticas sociais que assegurem a universalidade da educação infantil (…).”
Em 2004, o Estado, por meio da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, ligada à Presidência da República, fez um chamamento às mulheres, para a elaboração de um I Plano Nacional de Políticas para Mulheres, produzido com a mobilização de 120 mil mulheres por todo o país. Em 2007, a SEPM fez uma convocação para a produção do II Plano Nacional de Políticas para Mulheres, que mobilizou 200 mil ativistas brasileiras em todos os estados. Norteadores das ações da SEPM, esses planos são presididos pelos mesmos princípios de igualdade e respeito à diversidade, eqüidade, autonomia das mulheres, laicidade do Estado, universalidade das políticas, justiça social, transparência dos atos públicos, participação e controle social.
O I PNPM registra no aspecto que aqui nos interessa:
“Para concretizar estes princípios, o Estado e as esferas de governo federal, estadual e municipal deverão seguir as seguintes diretrizes: (….) Reconhecer a responsabilidade do Estado na implementação de políticas que incidam na divisão social e sexual do trabalho; a importância social do trabalho tradicionalmente delegado às mulheres para as relações humanas e produção do viver; a importância dos equipamentos sociais e serviços correlatos, em especial de atendimento e cuidado com crianças e idosos.” (p. SEPM, 2004:34)
O sucesso na instauração de um processo irreversível de implementação uma rede de creches no país no século XXI coloca também o imperativo de uma educação infantil não racista e não-sexista, com atividades lúdicas envolvendo jogos e brinquedos não sexistas, voltadas para a valorização da diversidade e da equidade de gênero, beneficiando toda a sociedade. Necessidades dessa ordem de uma sociedade democrática inclusiva requerem investimentos na formação de suas educadoras e educadores e clara definição de seu papel na educação infantil.
“A construção de um novo perfil de professor, adequado às instituições que recebem crianças pequenas, encontra-se, portanto, em processo. Registrar, analisar e refletir sobre as experiências que se desenvolvem nas redes municipais, nas escolas de educação infantil das universidades, nas entidades conveniadas, nas escolas privadas são tarefas que podem contribuir para essa missão complexa e urgente” (CAMPOS, 2008:128).
O reconhecimento institucional da primeira infância abre novas possibilidades para a superação de discriminações devidas ao sexo, ameniza desigualdades devidas à classe e à raça/etnia, favorecendo a consolidação de um país mais igualitário e justo.
O oferecimento universal de creches é importante tanto para a promoção de políticas de educação infantil, quanto para a implementação de políticas para a igualdade entre mulheres e homens, pois no Brasil, a maioria das crianças até três anos ainda é cuidada pela mãe que, não raramente, deve interromper parcial ou integralmente sua carreira profissional. A divisão tradicional dos papéis entre mulheres e homens assegurou, durante séculos, cuidados cotidianos gratuitos das crianças pelas mães, situação resultante de escolhas políticas. Esse quadro foi subvertido com o questionamento desses papéis sexuais, com a entrada das mulheres no mercado de trabalho, com a impossibilidade de uma ordem democrática sem uma ampla inclusão das mulheres na esfera pública. A exigência contemporânea de igualdade de direitos e oportunidades entre mulheres e homens requer o reconhecimento institucional e social das crianças, pelo Estado e pela sociedade ─ com a universalização do atendimento em creches ─ e o reconhecimento legal e afetivo pelos pais e pelas mães, com uma divisão sexual igualitária do trabalho parental, no âmbito privado (THURLER, 2007, 2006).
A necessidade de oferecer cuidados e condições de socialização em creches à primeira infância decorre tanto de um imperativo ético e político de reconhecimento institucional e social das crianças pelo Estado e pela sociedade, quanto da exigência de redistribuição de poderes e de redução das desigualdades entre os sexos, para um real aprofundamento da democracia. A criação de uma rede de serviço público à primeira infância responderia, ainda, à articulação contemporânea entre os tempos profissionais e os tempos familiares. Cada mãe e cada pai devem ter a possibilidade de preservar sua relação parental e uma vida profissional ativa. Quando a grave questão da conciliação entre vida familiar e vida profissional se colocar igualmente para homens e mulheres – isto é, o problema da conciliação da paternidade com a vida profissional e da maternidade com a vida profissional – teremos, certamente, atingido outro patamar civilizatório.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Ana Liési Thurler
Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria, é pesquisadora associada ao Departamento de Sociologia da UnB e integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (NEPeM-UnB). Coordena o Projeto Paternidade e Cidadania nas Escolas, parceria UnB e CNTE, que está sendo implementado no Estado do Piauí, com o protagonismo do SINTE-PI.