1 – INTRODUÇÃO
Com a edição da Lei 11.705, de 19 de junho de 2008 e do Decreto 6488, da mesma data, foram promovidas importantes alterações no Código de Trânsito Brasileiro (CTB – Lei 9503/97), especialmente no que tange à regulamentação dos casos de embriaguez ao volante nos aspectos administrativo e criminal.
O presente trabalho tem por escopo realizar uma primeira reflexão sobre as conseqüências jurídicas das referidas inovações, justificando-se tal exercício interpretativo pela necessidade de estabelecer parâmetros conformados pela legalidade para a atuação dos Operadores do Direito a partir da nova normatização.
Proceder-se-á uma análise comparativa entre o que dispunha anteriormente a legislação respectiva e os novos textos legais, de modo a chegar a um panorama mais claro acerca da transição entre os referidos sistemas.
Ao final serão retomadas as principais idéias desenvolvidas ao longo do texto e formuladas as respectivas conclusões.
2 – EMBRIAGUEZ AO VOLANTE: ASPECTOS ADMINISTRATIVO E PENAL FACE À LEI 11.705/08 E AO DECRETO 6488/08
2.1 – ASPECTO ADMINISTRATIVO
A anterior redação do CTB em seus artigos 165, 276 e 277, dispunha sobre as penalidades administrativas e formas de comprovação da embriaguez ao volante.
No artigo 165 era considerada infração administrativa “gravíssima” o fato de “dirigir sob influência de álcool ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”. Quanto à descrição da conduta a Lei 11.705/08 não procedeu a grandes mudanças, tão somente enxugando o texto legislativo. Assim sendo, manteve a descrição de “dirigir sob a influência de álcool”, apenas lapidando o texto restante ao estabelecer como infração também dirigir sob a influência “de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”. A nova lei extirpou do texto a palavra “entorpecente”, aliás em consonância com a nova Lei de Drogas (Lei 11.343/06), que atualmente evita o emprego da mesma palavra, um tanto quanto restrita, para utilizar o termo mais amplo (“Drogas”). [1] Ademais, a nova redação da Lei 11.705/08, ao não mencionar “entorpecentes” ou mesmo “drogas” em seu texto e sim “substância psicoativa que determine dependência”, deixa claro que as substâncias que impedem o condutor de dirigir não se restringem somente ao álcool e às drogas ilícitas, mas abrange qualquer espécie de estupefacientes ou excitantes provocadores de dependência física ou psíquica e que atuem sobre o sistema nervoso, provocando alterações em seu funcionamento que possam ser prejudiciais à segurança do tráfego. [2]
A natureza da infração administrativa não mudou. Continua sendo uma falta “gravíssima”. Também não se alterou a penalidade de multa, a qual permanece sendo agravada “cinco vezes”. No entanto, enquanto sob a égide do diploma anterior era prevista pena de “suspensão do direito de dirigir”, cujo prazo da penalidade variaria de acordo com o disposto no artigo 261, CTB (1 mês a 1 ano para primários e 6 meses a 2 anos para reincidentes no período de 12 meses), prazos estes regulamentados especificamente pela Resolução Contran 182/05; atualmente se prevê uma sanção fixa para todos os casos de 12 meses de suspensão do direito de dirigir, o que significa uma derrogação do disposto no artigo 261, CTB e na Resolução 182/05 do Contran. Agora aquele que infringir o artigo 165, CTB, sofrerá a penalidade fixa de 12 meses de suspensão. Isso para o infrator primário, eis que o reincidente, no prazo de 12 meses, no artigo 165, CTB, submete-se à “cassação” da habilitação, conforme dispõe o art. 263, II, CTB, que não sofreu alteração.
Destaque-se neste ponto o fato de que possivelmente haverá alegação de inconstitucionalidade da penalidade fixa de 12 meses de suspensão, sem previsão de balizas mínima e máxima, impossibilitando uma proporcionalidade e individualização sancionatórias. Afinal, se um motorista dirigir sob efeito de um copo de cerveja terá a mesma punição de um indivíduo que conduzia seu carro entorpecido pela ingestão de uma quantidade absurda de bebidas alcóolicas.
Finalmente, não se alterou a “medida administrativa” prevista, qual seja, “retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação”. A retenção do veículo é medida salutar e de bom senso, pois seria mesmo surreal imaginar a autuação do condutor e sua posterior liberação, dirigindo o veículo e colocando a segurança do tráfego viário, e com ela a vida, a integridade física e o patrimônio próprios e alheios em perigo. Quanto ao polêmico “recolhimento” imediato do documento de habilitação, é preciso, como sempre, empregar uma interpretação e uma prática condizentes com as garantias constitucionais. Assim sendo, esse “recolhimento” jamais pode ser confundido com a “apreensão” da CNH por ocasião da aplicação da sanção administrativa de “suspensão do direito de dirigir”. Para a tomada destas últimas providências mister se faz o devido processo legal no âmbito administrativo, com garantia de ampla defesa e contraditório (artigos 5º, LIV e LV, CF; 265, CTB, e Resolução Contran 182/05). Dessa forma o “recolhimento” da CNH é ato provisório e cautelar praticado pela Autoridade tão somente enquanto dure o estado de embriaguez do condutor, devendo o documento ser liberado tão logo não se apresente mais esse quadro, eis que a restrição ao direito de dirigir somente poderá dar-se em definitivo após o devido processo administrativo, conforme acima consignado. Esse recolhimento provisório pode parecer despiciendo e abusivo, mas justifica-se pela mesma razão da retenção do veículo, senão o condutor poderia voltar a dirigir outro veículo de posse da habilitação. É claro que ele poderá voltar a dirigir embriagado, mesmo sem a habilitação, mas nesse caso os agentes públicos tomaram todas as medidas possíveis para evitar novas infrações.
Anote-se, portanto, que o “recolhimento do documento de habilitação” previsto no CTB não é, em si, inconstitucional por violação do devido processo legal, vez que alicerçado na cautelaridade e razoabilidade. [3] Porém, sua interpretação e aplicação em equiparação à “apreensão” da CNH com aplicação imediata de “suspensão do direito de dirigir”, seria francamente inconstitucional. Esta é a lição da doutrina especializada:
“A rigor, porém, devendo ser notificado da autuação, para o exercício de defesa, unicamente depois de aplicada pela autoridade de trânsito a penalidade é que a suspensão será cumprida. Nestas circunstâncias, verificado o recolhimento, restituir-se-á a habilitação tão logo superado o estado de embriaguez. Somente depois da aplicação da pena e de seu trânsito em julgado recolhe-se novamente o documento, agora para o cumprimento da sanção”. [4]
Outras modificações relevantes sob o prisma administrativo operaram-se nos artigos 276 e 277, CTB, que versam sobre a comprovação da embriaguez e o nível de concentração de álcool no sangue que caracteriza a infração administrativa.
O antigo artigo 276, CTB, estabelecia que “a concentração de seis decigramas de álcool por litro de sangue” comprovava que o condutor estava impedido de dirigir veículo automotor. Agora a nova redação do mesmo dispositivo estabelece uma verdadeira “tolerância zero” para a combinação do álcool com a direção. Atualmente “qualquer concentração” de álcool por litro de sangue impede o condutor de dirigir e o submete às sanções do artigo 165, CTB.
Vale retomar, neste momento, a questão da possível alegação de inconstitucionalidade da suspensão fixa de 12 meses para a infração do artigo 165, CTB, por violação da individualização e proporcionalidade. O problema é complexo e certamente, como já exposto linhas volvidas, gerará polêmicas. Entretanto, um argumento em defesa do dispositivo questionado pode ser a interpretação sistemática do CTB, considerando que o legislador equiparou para todos os fins a direção sob o efeito de qualquer concentração etílica no sangue, não permitindo distinções ou gradações. Sem dúvida, sob o ângulo ordinário o argumento procede, resta saber se o legislador infra – constitucional podia proceder a essa indistinção sem ferir Princípios Constitucionais. Também deve-se indagar se a equiparação de qualquer concentração para a configuração da infração poderia conduzir a uma pena fixa para a dita infração, desconsiderando a individualização dos casos concretos. . Afinal, o fato de que se admita uma “forma livre” de cometimento da infração, pode induzir à adoção de uma pena fixa? E neste passo a resposta parece ser negativa, eis que, fazendo um paralelo com o campo penal, certamente não seria viável entender que nos casos dos chamados “crimes de forma livre” [5] seria possível a previsão de uma pena fixa tão somente pelo fato de que são aceitas inúmeras maneiras de praticar a conduta incriminada.
A seguir o novo Parágrafo Único do artigo 276, CTB, prevê a possibilidade de estabelecimento excepcional de “margens de tolerância” de concentração de álcool no sangue “para casos específicos”. Sobre o tema tratou o Decreto 6488/08, que em seu artigo 1º reafirma a “tolerância zero” já estabelecida pelo artigo 276, “caput”, CTB. Quanto às “margens de tolerância” excepcionalmente aceitas “para casos específicos”, determina o Decreto sobredito que serão objeto de definição em Resolução do Contran a ser expedida de acordo com proposta a ser formulada pelo Ministério da Saúde.
Ocorre que enquanto não expedidos tais regulamentos, não poderia ficar em suspenso a definição das margens de tolerância, de forma que o artigo 1º, § 2º, do Decreto sob comento, estabelece provisoriamente, até a edição das ditas normas, que a margem de tolerância será de “duas decigramas por litro de sangue para todos os casos” ou de “um décimo de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões”, em caso de aferição por “etilômetro” [6] (art. 1º, § 3º, do Decreto 6488/08).
Bem agiu o Poder Público nessa regulamentação, pois que se deixasse as margens de tolerância em aberto, causaria uma situação de dúvida e insegurança jurídica, que fatalmente beneficiaria o infrator (Princípio do “favor rei”), tornando temporariamente inaplicáveis os artigos 165 e 276, CTB. [7] O que ainda permanece em aberto é a definição de quais sejam os “casos específicos” mencionados na lei e no ato regulamentar como ensejadores da aplicação das “margens de tolerância”. Por agora a tolerância abrange quaisquer casos, conforme dispõe o artigo 1º, § 2º, do Decreto 6488/08. Espera-se que essa lacuna seja rapidamente colmatada pela atuação do Contran e do Ministério da Saúde, a fim de dar efetividade à “tolerância zero” entre álcool e direção, somente excepcionando casos especialíssimos taxativamente relacionados.
A nova lei não mudou a redação do “caput” nem do § 1º do artigo 277, CTB, de forma que os testes para aferição da alcoolemia ou efeito de substâncias psicoativas permanecem os mesmos (exame de sangue, exames clínicos, etilômetro, constatação pelo senso comum do agente de trânsito etc.).
Porém, o antigo § 2º, do artigo 277, CTB, foi cindido em dois novos parágrafos (§§ 2º e 3º). O atual § 2º aperfeiçoa a redação do anterior, reiterando com melhor técnica a determinação de que a infração do artigo 165, CTB, poderá ser caracterizada pelos agentes de trânsito por todos os meios legais de prova em direito admitidos, “acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor”. Isso eqüivale a liberar, para fins administrativos, a forma de comprovação da embriaguez ou efeito de substância psicoativa, desatrelando a prova de uma única modalidade imprescindível que poderia ser a prova pericial. Na verdade tal providência legislativa já havia sido levada a efeito pela Lei 11.275/06, que incluiu o anterior § 2º, no artigo 277, CTB, hoje ligeiramente modificado.
Quando se afirma que as ligeiras modificações do § 2º, do artigo 277, CTB, propiciaram a manutenção do sistema anterior, apenas aprimorando a técnica da redação, refere-se ao fato de que a nova conformação do dispositivo deixa muito mais claro que seu campo de incidência é estritamente administrativo, não devendo extrapolar para a seara penal, com vistas ao artigo 306, CTB. Isso porque na nova redação o legislador diz expressamente que é “a infração do artigo 165, CTB”, (administrativa), que pode ser comprovada por outros meios legais de prova. No que tange à parte criminal segue imprescindível a prova pericial ou ao menos a documentação formal do teste do etilômetro, a qual poderia ser equiparada à primeira [8], não se podendo olvidar o disposto no artigo 158, CPP. [9]
Por seu turno o novo § 3º acrescentado ao artigo 277, CTB, determina que o condutor que se negar a colaborar com os testes e exames previstos no “caput” será penalizado com as sanções previstas para a infração administrativa do artigo 165, CTB.
Considerando esse comando, passa o condutor a ser obrigado a submeter-se aos testes e exames previstos no artigo 277, CTB. O que o legislador fez foi criar uma espécie de infração administrativa por equiparação. Ele equiparou a negativa de submissão aos testes e exames à infração efetiva ao artigo 165, CTB.
É incrível que o legislador ainda insista nessa espécie de coação inconstitucional à produção de prova contra si mesmo (Princípio da não auto – incriminação), acrescentando a isso agora também uma flagrante violação ao Princípio da Presunção de Inocência, Estado de Inocência ou não culpabilidade”. O dispositivo sob comento certamente sofrerá as críticas da doutrina em seu confronto com os Princípios Constitucionais sobreditos, aplicáveis ao caso mediante analogia a disposições constitucionais (art. 5º, LVII e LXII, CF) e diplomas internacionais que versam sobre Direitos Humanos e garantias individuais de que o Brasil é signatário. [10] Ainda que se considerasse que o “nemo tenetur se detegere” não tem aplicação no campo administrativo, o que não se sustenta a partir da solar constatação de que nossa Constituição estende o Devido Processo Legal, no bojo do qual encontra-se o referido princípio, aos processos administrativos (art. 5º, LV, CF), não se poderia esquecer que para além da infração administrativa em casos de embriaguez ao volante, estamos ante a real possibilidade de responsabilização criminal do suposto infrator (artigo 306, CTB, sem falar do novo artigo 291, § 1º, I, CTB).
Ademais, como aventado anteriormente, o legislador acrescenta ao seu rol de afrontas à Lei Maior uma violação à “Presunção de Não – Culpabilidade” (art. 5º, LVII, CF). Isso porque ao equiparar a negativa aos testes e exames à infração de embriaguez ao volante (art. 165 c/c 277, § 3º, CTB), está presumindo que o condutor estava sob efeito de álcool ou de substância psicoativa. Há neste momento uma verdadeira inversão de valores, com a criação de uma espúria “Presunção de Culpabilidade” em franca oposição ao comando constitucional que estabelece uma “Presunção de Não – Culpabilidade”.
A única maneira de interpretar o disposto no artigo 277, § 3º, CTB, evitando uma colisão frontal com a Constituição é considerar que quando da negativa do condutor aos testes e exames, a expressão “serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no artigo 165 deste Código”, significa que o agente de trânsito diligenciará para comprovar a infração por todos os meios lícitos de prova, nos estritos termos do § 2º, do mesmo artigo, sob o crivo do devido processo legal e seus corolários da ampla defesa, do contraditório e da Presunção de Inocência. E mais, inclusive do Princípio da não auto – incriminação, pois que a previsão da recusa do condutor no § 3º sob discussão dá mostras de que ela pode realmente operar-se, inclusive não caracterizando o crime de desobediência (art. 330, CP), mas tão somente sujeitando o suposto infrator ao devido processo administrativo para apuração de possível falta. [11]Dessa forma pode-se salvar o § 3º em destaque da pecha de inconstitucionalidade, já que assim preservaria a obediência ao Devido Processo Legal e, ao invés de prever a coação à auto – incriminação, tornaria expressa a possibilidade de negativa do condutor a colaborar com sua persecução administrativa e, por reflexo, penal.
É relevante mencionar o trabalho de Cássio Mattos Honorato, que empreende interessante estudo comparativo entre as sanções de trânsito da “Common Law” (Inglaterra e Estados Unidos) e o sistema brasileiro. O autor diagnostica que no sistema da “Common Law” foi dada uma determinada resposta ao dilema acerca de tratar-se a condução de veículos na via pública de um “Direito Fundamental do Indivíduo” ou “um ato administrativo (i.e. licença) conferido pelo Poder Público”, fazendo surgir no “mundo jurídico um “Direito Criado”. Mesmo na doutrina pátria, com fulcro nos ensinamentos de Celso Antonio Bandeira de Mello, Eduardo García de Enterría e Tomás – Ramón Fernández, rechaçou-se a tese de “Direito Fundamental”, restando, porém, especificar “a natureza jurídica” de tal “Direito Criado”. Na “Common Law” pareceu mais adequada a formulação desse direito como um “privilégio conferido pelo Poder Público àquele que preencher determinados requisitos e sujeitar-se ao cumprimento de normas relacionadas à segurança do trânsito”. Tanto isso é fato que a Lei de Trânsito do Estado de Nova York usa “a expressão holder of privilege (ou seja, detentor de um privilégio)”. [12] Também o “Manual para Condutores do Estado da Pensilvânia (Penn Code)” afirma textualmente que a licença para dirigir é “um privilégio de conduzir veículo” (“operating privilege ou driving privilege”), sendo lícito concluir que a carteira de habilitação naquela legislação “consiste em um ato administrativo (denominado licença para dirigir) que possibilita a alguém a execução de uma atividade constantemente sujeita ao controle estatal, e que muito se aproxima da categoria jurídica conhecida como privilégio de dirigir”. [13]
No seio dessa perspectiva formula-se na common law uma presunção de que “aquele que detém um privilégio consente na realização” de exames que atestem o cumprimento ou descumprimento das obrigações que assume para o exercício regular do referido privilégio (v.g. etilômetro, sangue, urina e saliva). Em conseqüência “a recusa aos exames é considerada descumprimento dos requisitos impostos pela licença, e sujeita o infrator à penalidade de suspensão do privilégio de dirigir”. [14]
Percebe-se que o legislador brasileiro intentou, com o disposto no § 3º, do artigo 277, CTB, promover uma transposição a fórceps para o sistema pátrio de toda uma tradição do sistema de common law sobre a matéria enfocada. Ainda que seja sob o mero prisma da legislação ordinária, é cristalina a incompatibilidade de tal sistema com a conformação de nossa legislação de trânsito. Note-se que o CTB não utiliza em nenhum momento a palavra “privilégio” para designar a licença para condução de veículos automotores. Usa, na verdade, inúmeras vezes, inclusive na dicção imposta pela Lei 11.705/08, a expressão “direito de dirigir”.
O intercâmbio das experiências legislativas através do estudo do Direito Comparado é extremamente salutar para o aperfeiçoamento de qualquer sistema jurídico. Entretanto, é preciso tomar a cautela, antes de promover qualquer integração açodada, de realmente proceder a uma profunda reflexão comparativa e avaliação de compatibilidade no âmbito legal (ordinário e constitucional), tradicional, social etc. Somente no campo ordinário legal, a incorporação do sistema sobredito ao ordenamento brasileiro dependeria de uma profunda alteração na própria redação dos diversos dispositivos do CTB que mencionam a expressão “direito de dirigir”, substituindo-a por “privilégio de dirigir”. Mas, além disso, outras peculiaridades deveriam ser levadas em conta, principalmente as questões constitucionais de fundo anteriormente expostas, as quais, a nosso ver, configuram entraves intransponíveis à implantação de uma espécie de cópia do sistema alienígena acima abordado.
Feitas estas observações acerca do novo tratamento administrativo do tema enfocado neste trabalho, passa-se à análise das alterações promovidas na seara criminal.
2.2 – ASPECTO PENAL
Também na seara penal a nova legislação promoveu mudanças importantes. Nas disposições gerais dos crimes de trânsito foi mantida a redação do “caput” do artigo 291, CTB, que trata da aplicação das normas gerais do Código Penal, do Código de Processo Penal e da Lei 9099/95, naquilo que não for disposto de modo diverso. Entretanto, o antigo Parágrafo Único desse artigo foi dividido em dois novos parágrafos, de maneira a modificar sensivelmente as regras de aplicação de institutos da Lei 9099/95 aos crimes de trânsito e, conseqüentemente, os instrumentos processuais de investigação.
Alguns crimes de trânsito, por força do “caput” do artigo 291, CTB, já ensejavam plena aplicabilidade das regras da Lei 9099/95, tendo em vista na quantidade máxima de pena cominada “in abstrato” nos preceitos secundários dos tipos penais, que não ultrapassa dois anos (art. 61, da Lei 9099/95). Este é o caso dos crimes previstos nos artigos 303, “caput”; 304; 305; 307; 308; 309; 310; 311 e 312, CTB.
Em virtude de ultrapassarem a quantidade máxima de pena em abstrato de dois anos, ficaram excluídos da aplicabilidade dos dispositivos da Lei 9099/95 os crimes de homicídio culposo do trânsito (art. 302, “caput” e também seu Parágrafo Único, CTB); lesão corporal culposa do trânsito com aumento de pena (art. 303, Parágrafo Único, CTB) e embriaguez ao volante (art. 306, CTB).
No entanto, de acordo com a redação original do Parágrafo Único, do artigo 291, CTB, permitia-se a aplicação dos artigos 74, 76 e 88, da Lei 9099/95, aos crimes de trânsito de lesão corporal culposa (art. 303 e também seu Parágrafo Único, CTB); participação em competição não autorizada (“racha” – art. 308, CTB) e embriaguez ao volante (art. 306, CTB), incondicionalmente e independentemente do máximo da pena cominada.
Permita-se uma digressão para anotar que com as alterações promovidas na Lei 9099/95 por força das Leis 10.259/01 (Juizados Especiais Cíveis e Criminais Federais) e 11.313/06, quanto à definição de infração penal de menor potencial ofensivo, parte da antiga dicção do Parágrafo Único do artigo 291, CTB, tornou-se obsoleta. Isso tendo em vista que para os crimes dos artigos 308 e 303, “caput”, CTB, passou a ser desnecessária a exceção do referido Parágrafo Único. Ela só tinha razão de ser na época em que a pena máxima prevista abstratamente num tipo penal para configurar infração penal de menor potencial ofensivo não podia superar 1 ano. Naquela época os artigos 303, “caput” e 308, CTB, não seriam considerados de menor potencial porque suas penas máximas são de 2 anos, daí a então utilidade do artigo 291, Parágrafo Único, CTB, para tais casos. Com o aumento do patamar para 2 anos, os artigos 303, “caput” e 308, CTB, tornam-se naturalmente infrações abrangidas pela Lei 9099/95.
Mas, o Parágrafo Único do artigo 291, CTB, não chegou a perder totalmente sua utilidade, pois que a lesão corporal culposa com aumento de pena (art. 303, Parágrafo Único, CTB) e a embriaguez ao volante (art. 306, CTB) continuaram tendo penas máximas que excluiriam a aplicabilidade dos dispositivos da Lei 9099/95. No caso do artigo 306, CTB, a pena máxima é de 3 anos e no caso do artigo 303, Parágrafo Único, a pena máxima de 2 anos ultrapassará o referido patamar tão logo aplicado o aumento previsto de 1/3 à 1/2. Assim sendo, permaneceria útil a autorização de aplicação dos artigos 74, 76 e 88 da Lei 9099/95 a esses tipos penais. [15]
Acontece que com a revogação do antigo Parágrafo Único sob comento e sua substituição pelos novos §§ 1º e 2º, ocorreram relevantes mudanças.
Uma primeira alteração foi que agora o § 1º, do artigo 291, CTB, não estende o disposto nos artigos 74, 76 e 88, da Lei 9099/95, aos crimes dos artigos 306 e 308, CTB, mas somente à lesão corporal culposa. Observe-se que com relação ao crime de “racha” (art. 308, CTB), sua não menção no atual § 1º ora tratado não traz maiores conseqüências. É que o artigo 308, CTB, é naturalmente uma infração penal de menor potencial ofensivo, pois sua pena máxima, como já dito, não ultrapassa 2 anos. Portanto, para ele, desde a alteração do patamar máximo de pena para infrações de menor potencial (Leis 10.259/01 e 11.313/06) para 2 anos, vale a aplicação “in totum” da Lei dos Juizados Especiais Criminais. Sua retirada do antigo rol de extensão constitui mera atividade de adequação legislativa, excluindo do texto legal uma disposição inútil porque redundante.
O mesmo não se pode dizer da exclusão do artigo 306, CTB (embriaguez ao volante), pois que ele tem pena máxima de 3 anos, não sendo, portanto, por natureza, uma infração de menor potencial. O alcance dos institutos da Lei 9099/95 ao artigo 306, CTB, somente se dava por força do antigo artigo 291, Parágrafo Único do mesmo diploma. Com a inovação legislativa o artigo 306, CTB, fica definitivamente excluído da aplicabilidade de quaisquer institutos relativos a infrações de menor potencial ofensivo. A partir de agora o único instituto da Lei 9099/95 cabível para a embriaguez ao volante é a chamada “suspensão condicional do processo” ou “sursis processual”, que abrange infrações cuja pena mínima não supere 1 ano (art. 89, da Lei 9099/95), espraiando-se, desse modo, a infrações que não são de menor potencial.
Não resta dúvida que a partir de agora não se pode cogitar de apuração de embriaguez ao volante por intermédio de Termo Circunstanciado, aplicação de composição civil de danos e transação penal em audiência preliminar do Jecrim, e nem de aplicação do procedimento sumaríssimo da Lei 9099/95 (artigos 77 e seguintes). Também em casos de flagrância nada impede a lavratura do respectivo Auto de Prisão em Flagrante, sendo possível arbitramento de fiança pela Autoridade Policial, já que não houve alteração da pena detentiva (art. 322, CPP).
Na atual conformação a extensão dos institutos dos artigos 74, 76 e 88, da Lei 9099/95 só se opera para o crime de lesões corporais culposas (art. 303, CTB). Mas, é preciso ter cuidado:
Quando houver lesão corporal culposa simples (art. 303, “caput”, CTB), não se tratará de extensão apenas de certos institutos da Lei 9099/95 a um crime que, por natureza, não seria de menor potencial. A lesão culposa simples do artigo 303, “caput”, CTB, é mesmo infração de menor potencial ofensivo, pois tem pena máxima de 2 anos. Assim sendo, é abrangida pela Lei 9099/95 em sua totalidade por força do artigo 291, “caput”, CTB e não devido ao § 1º do mesmo dispositivo. Então, para a lesão culposa simples são aplicáveis inclusive as disposições que substituem a Prisão em Flagrante e o Inquérito Policial pelo Termo Circunstanciado, além dos dispositivos dos artigos 74, 76 e 88 e do procedimento sumaríssimo dos Juizados Especiais Criminais.
Por outro lado, em se tratando de lesão corporal culposa com aumento de pena (art. 303, Parágrafo Único, CTB), tem aplicação a norma extensiva do artigo 291, § 1º, CTB. Isso considerando que havendo aumento de pena fatalmente o patamar máximo de 2 anos será superado e, em tese, a lesão culposa deixaria de ser abrangida pelos institutos da Lei 9099/95.
Na verdade, quanto ao artigo 88, da Lei 9099/95, que trata da ação penal, não nos parece, conforme já explicitado em nota de rodapé anterior, necessária a menção legal. Constitui ela um certo excesso de zelo do legislador, o qual acaba sendo bem vindo, pois evita possíveis polêmicas. No entanto, em nosso parecer, o disposto no artigo 88, da Lei 9099/95 refere-se a quaisquer casos de lesões culposas, uma vez que referido artigo acha-se nas “Disposições Finais” da Lei 9099/95 e não se dirige especificamente a infrações de menor potencial, fazendo, na verdade, menção a espécies de crimes, a saber, lesões dolosas leves e lesões culposas. Na realidade, o que seria necessário, acaso o legislador quisesse afastar a necessidade de representação nesse caso de lesão culposa ou em qualquer outro, seria a expressa disposição em contrário ao regrado pelo artigo 88 da Lei 9099/95. Por exemplo, se fosse criada uma lesão culposa especial em um novo diploma legal, tivesse ela a pena que fosse, no silêncio do legislador, a ação penal seria pública condicionada a representação por força do artigo 88 da Lei 9099/95, norma de caráter geral, que faz referência genérica a “lesões culposas” e não a “lesões culposas deste ou daquele artigo ou lei específicos”.
A grande utilidade da norma de extensão nesse caso refere-se à aplicabilidade dos institutos da composição civil de anos (art. 74 da Lei 9099/95) e da transação penal (art. 76, da Lei 9099/95) aos casos de lesões culposas no trânsito, mesmo com aumento de pena. Nesses casos, a considerar o máximo cominado com o aumento, ficaria afastada a aplicação dos referidos institutos, o que somente não ocorre graças à dita norma extensiva.
Observe-se, porém, que a extensão dos artigos 74, 76 e 88, da Lei 9099/95 ao artigo 303, Parágrafo Único, CTB, não constitui novidade da Lei 11.705/08. Isso já era normal de acordo com o revogado Parágrafo Único do artigo 291, CTB, que não distinguia entre lesões culposas simples ou com aumento de pena.
A inovação surge com a criação pelo § 1º, do artigo 291, CTB, de limitações a tal extensão. São previstas 3 exceções em que não ocorrerá a dita extensão, mesmo tratando-se de lesões culposas.
A partir de agora não basta que o caso seja de lesões culposas no trânsito com aumento de pena para que se amplie a aplicação dos institutos da Lei 9099/95 ali arrolados. É preciso doravante que o autor do crime não o tenha cometido:
I – Sob influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência;
II – Participando, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística, de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente;
III – Transitando em velocidade superior à máxima permitida para a via em 50 km/h.
Nestes casos o legislador afastou o benefício de extensão dos institutos despenalizadores da Lei 9099/95. Inclusive, nestas situações, regulou de forma expressamente contrária ao disposto no artigo 88 da Lei 9099/95. Portanto, em havendo lesões culposas do trânsito com aumento de pena, a ação penal será pública incondicionada sempre que ocorrer uma das hipóteses do artigo 291, § 1º, I, II ou III, CTB.
O inciso II, do § 1º, do artigo 291, CTB, descreve conduta que, por si só, configuraria crime autônomo. Trata-se do conhecido “racha” (art. 308, CTB). Entretanto, conforme orientação doutrinária dominante, o crime de dano (lesão) absorverá o crime de perigo (“racha”), [16] isso tendo em vista a subsidiariedade tácita que normalmente caracteriza os crimes de perigo. [17] Agora com a previsão do artigo 291, § 1º, II, CTB, essa interpretação ganha um relevante reforço. Com a vedação ao infrator das benesses da Lei 9099/95, inclusive institutos despenalizadores, pelo fato de haver perpetrado a lesão culposa durante um “racha”, constituiria dupla apenação espúria (“bis in idem”) caso se cogitasse de eventual concurso com o crime do artigo 308, CTB.
Registre-se também que no caso do artigo 291, § 1º, I, CTB, o crime de embriaguez ao volante já era absorvido para evitar dupla apenação pelo mesmo fato, eis que já previsto como causa de aumento de pena (art. 303, Parágrafo Único c/c Parágrafo Único, inciso V, do art. 302, CTB). Agora, embora revogada a causa de aumento de pena da embriaguez pelo artigo 9º., da Lei 11.705/08, também se reforça essa tese, pois que tal circunstância passa a vedar as benesses da Lei 9099/95, inclusive com repercussão na punibilidade. A embriaguez ao volante segue sendo absorvida, mesmo não mais prevista como causa de aumento de pena porque certamente constitui o elemento da imprudência que caracteriza o crime culposo e sua aplicação em concurso configuraria “bis in idem”.
Por derradeiro neste tópico vale comentar acerca do disposto no inciso III, do § 1º, do artigo 291, CTB. A grande questão nesses episódios será a aferição da velocidade imprimida ao veículo nos casos concretos, o que dependerá muito de apurada prova pericial e da disponibilidade de aparelhagens adequadas. Também aqui se vislumbra a possibilidade de cometimento de crime autônomo, como, por exemplo, o artigo 311, CTB (velocidade inadequada em certos lugares). Novamente e pelas mesmas razões antes expendidas com relação aos casos anteriores, esse crime será absorvido pela lesões corporais culposas.
Havia, antes do advento da Lei 11.705/08, certo dissenso na doutrina quanto ao alcance da extensão promovida a crimes de trânsito que a rigor não seriam de menor potencial, das normas da Lei 9099/95.
Os entendimentos divergiam, formando duas correntes básicas:
a)Alguns defendiam a tese de que a norma extensiva do artigo 291, Parágrafo Único, CTB, teria o efeito de propiciar aplicação total da Lei 9099/95 aos crimes em questão, mesmo sendo eles dotados de penas não típicas de infrações de menor potencial. Para essa linha de pensamento a Lei 9099/95 deveria ser aplicada desde o início, impedindo-se a Prisão em Flagrante, nos termos do artigo 69, Parágrafo Único, da Lei 9099/95 e substituindo-se o Inquérito Policial por Termo Circunstanciado. A justificativa seria os respeito à razoabilidade, pois a possibilidade de despenalização pelos institutos da composição civil de danos e transação penal tornaria abusiva, por exemplo, a Prisão em Flagrante de alguém para, ao depois, em Juízo, proceder a simples transação de pena não privativa de liberdade.[18]
b)Outros entendiam que a norma extensiva era expressa em conferir apenas e tão somente as benesses dos institutos previstos nos artigos 74, 76 e 88, da Lei 9099/95, não alcançando, por exemplo, a fase pré – processual, de modo que seria plenamente possível a Prisão em Flagrante e a apuração por meio de Inquérito Policial. Isso considerando que o legislador somente possibilitou a “aplicação de apenas três institutos da lei”, deixando explícita a vedação de tudo mais que se refira aos Juizados Especiais Criminais, pois que em momento algum o legislador converteu aqueles delitos em verdadeiras infrações de menor potencial ofensivo, ao passo que se o desejasse o faria de forma expressa. [19]
Na época acabou prevalecendo o segundo entendimento, o qual nos parecia realmente mais correto. Agora, com a norma extensiva do § 1º, do artigo 291, CTB, restringindo-se somente aos casos de lesões corporais culposas do trânsito com aumento de pena, tirante as exceções dos incisos I, II e III, conforme demonstrado, estabelece o § 2º da mesma norma que “nas hipóteses previstas no § 1º deste artigo, deverá ser instaurado inquérito policial para a investigação da infração penal”.
A nosso ver tal dispositivo põe cobro à vetusta polêmica anteriormente descrita. [20] Hoje a lei é expressa no sentido de que em todos os casos do § 1º, do artigo 291, CTB, a apuração dar-se-á em sede de Inquérito Policial. Não importará se for um caso de lesão culposa com aumento de pena que permita a extensão dos artigos 74, 76 e 88, da Lei 9099/95 ou que não permita por força de um dos incisos impeditivos. O § 2º não faz referência somente aos casos dos incisos proibitivos, menciona explícita e literalmente as “hipóteses previstas no § 1º” do artigo 291, CTB.
Assim, se forem casos de extensão dos dispositivos da Lei 9099/95, o caso será de Inquérito Policial, eventual Prisão em Flagrante etc. Depois, em Juízo, serão aplicados os institutos da Lei 9099/95. Exceção deve ser feita à questão da representação da vítima (artigo 88, da Lei 9099/95), a qual necessitará ser colhida como condição de procedibilidade para a lavratura do flagrante e/ou instauração de Inquérito Policial (art. 5º, § 4º, CPP), não podendo ser postergada.
Em se tratando de lesão culposa do trânsito com aumento de pena em que esteja presente um dos três incisos limitativos, não será, em nenhum momento, aplicado qualquer instituto da Lei 9099/95, [21] havendo obviamente apuração em sede de Inquérito Policial, Prisão em Flagrante, se for o caso, e inclusive, prescindindo-se de representação, eis que nesses episódios, conforme já exposto, a ação passa a ser pública incondicionada. [22]
O artigo 296, CTB, também foi objeto de reforma pela Lei 11.705/06. O legislador aumentou o rigor repressivo nos casos de condenação de reincidentes pela prática de crimes de trânsito. Antes a lei estabelecia uma faculdade do Juiz de impor, além das demais sanções penais cabíveis, a penalidade acessória de “suspensão da permissão ou habilitação para dirigir veículo automotor”. [23] Atualmente a norma, em sua nova redação, não mais estabelece uma faculdade do julgador, mas sim determina imperativamente que o Juiz “aplicará” a referida sanção sempre que o réu for reincidente em crimes de trânsito. Não há mais margem alguma conferida ao magistrado para análise de eventuais peculiaridades de cada caso concreto.
Anote-se que a reincidência que enseja a pena acessória sob comento é a específica em crimes de trânsito (artigos 302 a 312, CTB). Eventual reincidência em outros tipos penais não propiciará a aplicação dessa sanção. [24]
Outro aspecto relevante quanto ao presente tema é que a sanção de suspensão sobredita não poderá ser aplicada em casos de condenações por crimes de trânsito que já a prevêem como pena principal no preceito secundário dos tipos penais. Nesses casos, de que são exemplos os artigos 302, 303, 306, 307 e 308, CTB, a reincidência atuará como “circunstância agravante preponderante”, nos termos do artigo 61, I, CP. Nos demais casos, em que os crimes de trânsito não prevêem a penalidade em destaque de forma principal (artigos 304, 305, 309, 310, 311 e 312, CTB), o Juiz deverá aplicar a suspensão, sendo que nessas circunstâncias a reincidência não poderá ser utilizada como agravante genérica de acordo com o artigo 61, I, CP, para evitar “bis in idem”. [25]
Mais uma mudança de relevo operou-se pela Lei 11.705/08. Trata-se da nova redação dada ao artigo 306, CTB, que tipifica o crime de embriaguez ao volante.
A partir de agora a lei estabelece como crime a simples conduta de conduzir veículo automotor, na via pública, em duas situações:
a)Estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 decigramas;
b)Estando sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência.
Embora o legislador não tenha alterado a pena prevista para o crime em destaque, percebe-se que forma levadas a efeito alterações profundas que inclusive mudam a natureza do tipo penal.
A redação anterior do dispositivo também mencionava a condução de “veículo automotor, na via pública”. Nesse ponto não houve mudança. A definição de “veículo automotor” segue sendo encontrável no Anexo I, intitulado “Dos conceitos e das definições”. [26] Também o palco da conduta deve ser as “vias públicas”, de modo que se a direção embriagada se passa em local particular, sem sequer acesso ao público, não se configura a infração. [27]
Uma primeira alteração de monta se processa na situação de embriaguez por álcool. Antes a lei incriminava a direção “sob influência de álcool”, sem delimitar um grau específico de concentração de álcool no sangue.
Agora, quando da ebriedade por álcool, exige a lei, para que o crime se perfaça, a comprovação de ao menos 6 decigramas de álcool por litro de sangue.
Anteriormente a esta mudança, quando a lei mencionava a fórmula mais aberta da “influência de álcool”, conformou-se o debate doutrinário, havendo dois posicionamentos básicos: [28]
a)Um pensamento de que a embriaguez somente seria caracterizada com a comprovação da concentração de 6 decigramas de álcool por litro de sangue, embora o artigo 306, CTB, não a aventasse. Tal raciocínio baseava-se em uma interpretação sistemática do CTB, fazendo uma correlação entre sua parte penal e sua parte administrativa. Na época se correlacionava o artigo 306, CTB, com o artigo 276, CTB, o qual estabelecia aquela concentração para a caracterização da infração administrativa. Afinal, se tal parâmetro não fosse adotado, estar-se-ia criando uma anomalia legal, vez que a infração meramente administrativa somente se configuraria com um grau de exigência maior, enquanto que a infração penal ocorreria mesmo com níveis menores de alcoolemia, ao passo que o natural é que o Direito Penal atinja infrações mais graves, deixando para o campo administrativo as menores. [29]
b)Outra corrente apregoava que em face do silêncio do tipo penal acerca de qualquer concentração, a análise deveria ser casuística, devendo-se aferir se a quantidade de álcool ingerida pelo infrator teria provocado alteração em seu sistema nervoso, de modo a reduzir suas funções motoras e perceptivas, ocasionando perigo na condução de veículos automotores.
Este segundo entendimento prevaleceu na doutrina. Inclusive, na literatura internacional, encontra-se Pavón defendendo esta tese quanto à interpretação da lei espanhola, que também mencionava “influência” de álcool, sem definir uma determinada concentração etílica. Para a autora a fixação de uma certa taxa à revelia da lei não encontra sustentação.[30]
Não obstante, o quadro se modifica drasticamente após a Lei 11.705/08, pois que, no caso do álcool, não faz mais menção à simples “influência” como outrora. Exige agora a lei, para a comprovação da ebriedade, a constatação de uma determinada concentração de álcool por litro de sangue (0,6 g/l).
Hoje não resta dúvida de que somente a comprovação da referida concentração por meio de exames periciais e testes legalmente previstos ensejará a responsabilização criminal.
É importante perceber que a questão do motorista sob efeito de álcool tem distinto tratamento no âmbito administrativo e no penal. Na seara administrativa o legislador é mais rigoroso. Impõe a “tolerância zero”, dispondo que qualquer concentração de álcool enseja a infração ao artigo 165, CTB pelo motorista (vide art. 276, CTB e art. 1º do Decreto 6488/08). Eventuais margens de tolerância e os casos especiais em que sejam admitidas estão por ser definidas pelo Contran e pelo Ministério da Saúde, sendo que, provisoriamente, acata-se uma margem de tolerância para todos os casos da ordem de 0,2g/l (vide art. 1º, §§ 1º a 3º, do Decreto 6488/08).
Já no campo penal somente configura crime a conduta daquele que dirige sob efeito de álcool, mas com a concentração de 0,6 g/l de sangue ou mais. [31]
Portanto, na atualidade, não bastará a mera constatação da “influência de álcool”, nem mesmo da embriaguez do condutor por outros meios de prova ou até mesmo pelo exame pericial médico – legal clínico. Isso porque em nenhum desses procedimentos é possível aferir o grau de concentração de álcool no sangue, imprescindível para a caracterização da infração em destaque na atual conformação legal.
Para a comprovação de infração ao artigo 306, CTB, devido ao álcool, mister se faz atualmente o exame químico – toxicológico de sangue e/ou o teste por aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro), ou seja, exames e testes que determinam com segurança a taxa de alcoolemia, cujas respectivas equivalências estão definidas no artigo 2º, I e II, do Decreto 6488/08, nos termos do artigo 306, Parágrafo Único, CTB. [32]
É interessante notar que o discurso de rigor do legislador, embora bem aplicado na seara administrativa, não seguiu a mesma senda no âmbito criminal. Afinal de contas, a partir da alteração legal, na verdade, por direção sob efeito de álcool, só é preso em flagrante e, principalmente, condenado, quem quiser!
Como já mencionado, é notório o conhecimento de que ninguém pode ser compelido a produzir prova contra si mesmo. Assim sendo, os exames e testes sobreditos só serão realizados se o suspeito decidir livremente colaborar. Quando ele se negar, a prova será impossível, já que ninguém, nem mesmo um médico ou policial mais experimentado, é capaz de determinar taxas de alcoolemia por meio de um mero exame clínico ou de uma simples passada de olhos sobre o suposto infrator. Lembremos que a “tolerância zero” e os meios variados de comprovação da infração previstos nos artigos 276 e 277, CTB, referem-se tão somente à infração administrativa do artigo 165, CTB, hoje claramente distinguida pela lei da infração penal do artigo 306 do mesmo diploma.
E mais, com relação à prisão em flagrante, mesmo ante à colaboração do suspeito, esta só será possível quando for procedido o teste do etilômetro, o qual fornece resultado imediato. No caso de coleta de sangue, mesmo com a autorização do condutor, é sabido que o exame químico – toxicológico demanda procedimentos de pesquisa laboratorial, cujos resultados não são imediatos. Aliás, nem um pouco imediatos. Por vezes passam-se meses para o retorno de um laudo químico – toxicológico.
Dessa forma não será possível a Prisão em Flagrante, mesmo que o suspeito autorize a coleta de seu sangue, salvo no caso de realização do teste do etilômetro. Naquelas circunstâncias a Autoridade Policial não terá condições de formar seu convencimento seguro para lavratura de um flagrante e, caso o faça, será facilmente relaxado por ser desprovido de um mínimo de lastro probatório ou indiciário (art. 304, § 1º, CPP). Como já exposto antes, como poderá a Autoridade Policial, o Médico – Legista ou qualquer Policial, determinar, sem exames apurados, o grau de concentração etílica? A não ser que houvesse um quadro de profissionais “paranormais” e que esse tipo de prova “esotérica” fosse admitida, trata-se de uma “missão impossível”.
Afigura-se-nos que a única saída para esse impasse criado pelo legislador será o aparelhamento dos IMLs para a feitura de exames imediatos e, principalmente, para a divulgação imediata dos respectivos resultados, ainda que seja por meio de laudos provisórios. Ou, pelo menos, a disponibilização de etilômetros em todas as unidades policiais operacionais da Polícia Civil, Militar, Rodoviária etc. Mesmo assim, como já exposto, a Prisão em Flagrante e a produção da prova ficam a critério da boa vontade do suspeito!
Uma hipótese que acontecia antes da alteração legal e era facilmente solucionada através do exame clínico, é a situação em que o suspeito está em estado de torpor tão intenso, que é incapaz de manifestar-se, inclusive sobre seu assentimento para exames e testes. Com o exame clínico tranqüilamente o legista constatava a ebriedade, a anterior “influência de álcool” em estado que gerava perigo potencial na direção de veículo automotor. Mas, e agora, quando o exame toxicológico e/ou o teste do etilômetro são imprescindíveis? Como poderão ser realizados sem a autorização do investigado?
Parece-nos que essa autorização não pode ser suprida por ninguém, sendo estritamente pessoal. Nem mesmo um parente próximo ou o próprio advogado do interessado podem sobrepor-se à sua vontade. [33] Nestes casos será impossível aferir a dosagem etílica e se o exame for levado a efeito nessas condições a prova será ilícita, já que não haverá consentimento válido do investigado. Talvez a única alternativa que reste à Autoridade Policial, em um esforço hercúleo para colher a prova, seria aguardar a recuperação razoável do ébrio e somente então, quando ele tiver condições de fornecer seu consentimento válido, proceder aos exames e testes respectivos. No entanto, pode ser que nesse momento a prova já se tenha deteriorado, em face de possíveis intervenções médicas, efeitos medicamentosos etc. Na verdade é quase certo que na maioria dos casos dessa situação a prova será perdida. Isso sem falar da possibilidade de negativa do suspeito quando de sua recuperação!
Não há outra conclusão a não ser que o legislador foi muito infeliz ao substituir a velha fórmula da “influência de álcool” pela dosagem de 0,6 g/l de álcool no sangue ou mais, tornando o outrora utilíssimo exame clínico praticamente inútil para as situações de suposta embriaguez etílica.
Agora restou somente o recurso do etilômetro como meio de obtenção imediato de prova da dosagem alcóolica. Nesses casos, desde que haja consentimento do investigado, realizado o teste, parece-nos que o melhor procedimento será a juntada do seu resultado aos autos e também a elaboração de uma espécie de prova inominada que seria um “Auto de Constatação”, narrando todo o teor da diligência, devidamente firmado pela Autoridade Policial, pelo Escrivão e pelo Policial encarregado da realização do teste. Inclusive no caso de etilômetros que não permitam a impressão do resultado, somente o indicando num visor, o referido “Auto de Constatação” torna-se mesmo imprescindível para a correta instrução dos autos.
Na eventualidade da realização do teste por meio de etilômetro, não nos parece necessário o concurso de peritos, podendo consistir na prova documental do resultado impresso pelo próprio aparelho e/ou do “Auto de Constatação” acima proposto. Este é um teste legalmente previsto (art. 277, CTB c/c art. 1º, § 3º e art. 2º, II, do Decreto 6488/08), onde um aparelho homologado pelo Contran faz a medição exata da alcoolemia, sendo prescindível para sua leitura e interpretação conhecimentos técnicos especializados, diversamente do que ocorre, por exemplo, com um exame clínico ou toxicológico. Essa a razão pela qual no decorrer de todo este texto têm sido utilizadas palavras diversas para designar o emprego do etilômetro e a pesquisa toxicológica. Para o primeiro tem-se utilizado a palavra “teste” e para a segunda a palavra “exame”. Essa distinção terminológica não é arbitrariamente adotada pelo autor deste trabalho. Baseia-se na própria dicção legal e regulamentar, pois que tanto o artigo 277, “caput”, CTB, como os artigos 1º, § 3º e 2º, II, do Decreto 6488/08, usam as referidas designações distintas para cada caso enfocado, jamais nominando como “perícia” o procedimento com o etilômetro e muito menos exigindo o concurso de “peritos” para a sua realização. Por outro lado, são expressamente denominados como “perícia” os “exames” toxicológico e clínico. Acontece que a prova pericial caracteriza-se pela necessidade de que seu produtor detenha conhecimentos técnicos, científicos, práticos ou artísticos especiais. Na lição de Mittermaier:
“Tem lugar o exame de peritos sempre que se apresentarem na causa criminal questões importantes, cuja solução, para poder convencer o juiz, exija o exame de homens, que tenham conhecimentos e aptidão técnicos e especiais”. [34]
Não resta dúvida que o exame clínico e o exame químico – toxicológico do sangue são verdadeiras perícias, dependentes de profissionais que realizam procedimentos para os quais são imprescindíveis conhecimentos especiais. Como assevera Maranhão, “a interpretação do ocorrido em cada caso exige uma análise pericial, que levará em conta as informações do indigitado autor do delito, as circunstâncias que envolvem o fato, os dados processuais e o quadro clínico apurado”. [35] Percebe-se facilmente que não é qualquer pessoa que detém capacidade técnico – científica para proceder a uma análise tão ampla e complexa. No dizer de Croce e Croce Júnior, “a embriaguez não se presume; diagnostica-se” (“ebrietas non presumitur; onus probandi incumbit alleganti”). [36]
O mesmo não se aplica ao teste do etilômetro. Seu procedimento é muito simples e qualquer pessoa com um treinamento básico é capaz de aplicá-lo. A interpretação consiste também em procedimento extremamente despido de dificuldades, bastando a mera leitura do resultado em um visor e/ou impresso e sua comparação com as taxas regulamentar e legalmente estabelecidas. O aplicador do teste nem sequer necessita manusear qualquer material, empregar técnicas laboratoriais especializadas etc., pois que o aparelho procede automaticamente às aferições necessárias. Malgrado isso, o teste com o etilômetro, devido à “estreita correlação entre a concentração de álcool no ar alveolar e no sangue circulante”, tem sua eficiência cientificamente aceita e demonstrada. [37]
Portanto, pode-se dizer com segurança que no caso do teste do etilômetro afasta-se a natureza de prova pericial, considerando o fato de que essa modalidade está afeta à necessidade de detenção de conhecimentos técnicos, científicos, artísticos ou práticos para sua produção. Ora, para a aplicação e interpretação do teste do etilômetro não é necessária nenhuma especialização, podendo ser realizado por qualquer pessoa alfabetizada, com conhecimentos rudimentares de matemática e unidades de medida e dotada do sentido da visão para a leitura dos resultados. É preciso atenção para o fato de que o desenvolvimento tecnológico possibilita, em alguns casos, a substituição do elemento humano, às vezes com certo ganho de agilidade e eficiência. É exatamente o que ocorre com a descoberta do etilômetro e seu emprego hoje disseminado. O aparelho faz todo o trabalho que demandaria a atuação especializada de um homem dotado de conhecimentos técnicos e científicos apurados que dominasse procedimentos de pesquisa laboratorial e/ou de exames clínicos. Ele fornece rapidamente o resultado final que pode ingressar no mundo do processo pela forma de prova documental. E não parece restar dúvida de que na atual conformação da infração penal prevista no artigo 306, CTB, esta prova documental será suficiente para comprovar a materialidade. No presente a lei exige apenas a direção de automotor com certa taxa de alcoolemia no sangue (0,6 g/l), de modo que não é imprescindível constatar a efetiva embriaguez ou estado perigoso, o qual é presumido nessas condições. Portanto, um simples teste capaz de aferir com segurança científica a taxa de alcoolemia, doravante será suficiente para prova da materialidade. [38]
Prosseguindo a análise do dispositivo enfocado, percebe-se que a Lei 11.705/08 não previu somente a ebriedade etílica na direção de veículos automotores. A exemplo do que já ocorria na redação original do artigo 306, CTB, outras substâncias alteradoras do psiquismo, da coordenação ou da percepção podem também ocasionar a responsabilização criminal daquele que dirija sob a sua influência.
Não obstante, operou-se uma mudança na redação. Enquanto na sua formulação original o artigo 306, CTB, falava em “substância de efeitos análogos” ao álcool, a Lei 11.705/08 usou a designação de “qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”. Mais uma vez o legislador procurou lapidar a linguagem sob o prisma técnico. A expressão legal abrange todas as substâncias lícitas ou ilícitas capazes de afetar o psiquismo (reflexo, percepção, reação, atenção etc.) e que determinam dependência, não se reduzindo somente às drogas ilícitas tratadas na Lei 11.343/06 (artigos 1º, Parágrafo Único c/c 66, e Portaria SVS/MS n. 344, de 12 de maio de 1998).
Neste tópico da definição das substâncias que se relacionam com o tipo penal estudado o legislador andou bem. Empregou desde a redação original e manteve na Lei 11.705/08 a palavra “álcool”, antes referindo-se à “influência”, hoje à “concentração” de 0,6 g/l, mas não limitou a forma pela qual tais substâncias são introduzidas ou agem no organismo humano. Pavón critica a lei espanhola, propondo uma mudança da redação exatamente porque se empregou a expressão “bebidas alcóolicas”, de maneira que a forma de ingestão e o estado físico em que o álcool se encontre limitam por demais o espectro de aplicação da norma penal. A autora propõe a utilização da expressão “bajo la influencia de substancias alcohólicas”, a fim de ampliar o campo de abrangência da norma. [39]
Sem dúvida neste ponto foi sempre irrepreensível o legislador pátrio. Inclusive com relação às outras substâncias psicoativas, como já frisado, utilizou-se de expressão bastante abrangente. A mesma autora supra mencionada, interpretando a legislação ibérica sobre esse tópico das demais substâncias , lá designadas como “droga tóxica o estupefaciente”, aduz que a interpretação deve ser a mais ampla possível, consistindo em “cualquier substancia capaz de influir de tal manera sobre las condiciones del conductor que pueda poner en peligro la seguridad del tráfico. Es decir, que tengan la potencialidad de poner en peligro el bien jurídico protegido”. [40]
E o legislador brasileiro foi realmente minucioso neste aspecto. Retornando à questão do álcool, desceu ao detalhe de definir legalmente no artigo 6º, da Lei 11.705/08, o termo “bebidas alcóolicas”, considerando-as “as bebidas potáveis que contenham álcool em sua composição, com grau de concentração igual ou superior a meio grau Gay – Lussac”.
Finalmente deve-se mencionar que com relação às demais substâncias psicoativas, tirante o álcool, a Lei 11.705/08, manteve o anterior critério mais elástico da mera “influência”, não estabelecendo níveis de concentração sangüínea como parâmetro. Com isso evitou toda uma série de dificuldades criadas no caso do álcool e já expostas linhas atrás. Portanto, no caso das outras substâncias psicoativas bastará o exame clínico que poderá ser complementado por exames toxicológicos, mas não necessariamente. Assim, a produção da prova e a formação de indícios mínimos para a convicção de um estado de flagrância, são muito mais simples e praticáveis nos casos de outras substâncias psicoativas do que no caso do álcool. O problema é que a esmagadora maioria dos casos de direção perigosa refere-se ao abuso do álcool. [41]
Importa destacar que o exame clínico, embora enfraquecido na seara criminal [42] pelas alterações referentes ao álcool, não perdeu em nenhum caso sua utilidade de forma absoluta. No caso de embriaguez etílica, continua valendo como prova ancilar aos demais testes e exames. Como visto, segue íntegro para as situações de influência das demais substâncias psicoativas. E além disso, jamais se deve deixar de submeter o suspeito ao exame clínico pelo médico legista, mesmo que se suspeite de que a ebriedade é etílica. Isso considerando a hipótese de que o perito médico possa detectar a influência de outras substâncias no caso concreto, possibilitando, por exemplo, uma Prisão em Flagrante ou mesmo uma responsabilização criminal que ficariam prejudicadas pelas corriqueiras dificuldades na produção da prova da taxa de alcoolemia. Imagine-se um indivíduo que é detido conduzindo um veículo automotor em estado de torpor. No plantão policial se nega ao teste do etilômetro e à coleta de sangue. Aparentemente estaria embriagado por álcool. No entanto, estava, na verdade, sob efeito de drogas ilícitas. Em exame clínico o médico – legista atesta tal estado do suspeito. Sem o exame ele seria liberado da Prisão em Flagrante e não haveria materialidade sequer para seu indiciamento, processo e muito menos condenação criminal. Não obstante, quanto às demais substâncias psicoativas, as exigências legais são outras e ele poderia ser perfeitamente preso em flagrante e devidamente responsabilizado criminalmente.
Um outro aspecto assume relevo e não pode deixar de ser abordado. Considerando as dificuldades para a aferição da conduta criminosa quando da direção sob efeito de álcool, devido à adoção pelo legislador do critério restrito da taxa de alcoolemia, indaga-se: quando a Autoridade Policial, após tentar comprovar pelos meios legais a taxa de alcoolemia e isso não for possível, optando pelo simples registro do fato e liberação do suspeito porque inviável a Prisão em Flagrante, poderá manter o veículo automotor retido, acaso o condutor seja legalmente habilitado e o carro esteja devidamente licenciado e em condições de trafegar? Não comprovada a infração penal tal proceder da Autoridade Policial não seria abusivo?
A resposta certamente é negativa. Se a seara penal está prenhe de óbices em face à opção legislativa, a nosso ver equivocada, o mesmo não se dá no âmbito administrativo. Nesse campo, como já exposto neste texto, adotou-se a “tolerância zero” para álcool e direção. Qualquer nível de álcool no sangue impede a condução de automotores, sujeitando o infrator às penalidades e medidas administrativas do artigo 165, CTB (art. 276, CTB c/c art. 1º, do Decreto 6488/08). A presença do álcool também pode ser aferida, para fins administrativos, para os quais não importa a taxa de alcoolemia, de variadas formas previstas no artigo 277 e seu § 2º, CTB, inclusive pelo exame clínico ou até mesmo pela singela constatação do Agente de Trânsito quanto a “notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor”.
Nesse quadro é induvidoso que a Autoridade Policial não somente poderá como deverá reter o veículo até que um condutor habilitado e sóbrio compareça para levá-lo em segurança (Medida Administrativa prevista no art. 165, CTB). Não é somente a lei que assim impõe, mas a cautela e o bom senso.
No início dos comentários acerca da nova redação do artigo 306, CTB, foi feita referência ao fato de que a Lei 11.705/08 operou mudanças profundas no dispositivo, chegando a alterar a própria natureza da infração penal. É chegado o momento de esclarecer qual o sentido dessa afirmação:
O antigo artigo 306, CTB foi geralmente reconhecido pela doutrina como um “crime de perigo concreto”, não obstante a existência de certo dissenso. [43] A tese do perigo concreto realmente se impunha em face da redação do artigo 306, CTB, em sua versão original, que exigia para a conformação típica a efetiva exposição “a dano potencial a incolumidade de outrem”.
A redação atualmente imposta pela Lei 11.705/08 excluiu da descrição típica aquela outrora vigente “exposição a dano potencial”, criminalizando tão somente o simples fato de conduzir automotor, na via pública, “estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 decigramas, ou sob a influência de qualquer substância psicoativa que determine dependência”. Como se vê, não há mais a exigência de efetivo perigo concreto, de maneira que a simples condução de automotor nas condições descritas no artigo já é o bastante para a configuração. O perigo agora se presume pela concentração de álcool no sangue ou pela influência de substância psicoativa. Trata-se, doravante, de crime de perigo abstrato. Ainda que uma pessoa seja surpreendida dirigindo com uma taxa de alcoolemia superior à tolerada para fins penais, mas sem dar mostras de descontrole do veículo, fazer manobras arriscadas etc., isso pouco importa. A infração penal se caracteriza tão somente pela condução nas condições descritas no tipo penal.
Por derradeiro vale abordar um tema que tem sido ventilado na mídia sem apoio na realidade jurídica. Tem sido comum ouvir dizer que a partir da Lei 11.705/08, todo e qualquer caso de homicídio ou lesão provocados por condutor embriagado será tratado como crime doloso, considerando a figura do chamado “dolo eventual”. Essa “notícia” não corresponde à realidade do mundo jurídico. A Lei 11.705/08 não contém qualquer dispositivo que trate desse tema expressamente e nem de suas disposições pode-se inferir tal conclusão mesmo indiretamente. Talvez alguém tenha interpretado açodada e equivocadamente que o fato da lei estabelecer uma taxa de alcoolemia como configuradora da embriaguez ao volante como crime de trânsito, poderia conduzir à conseqüência da formulação de uma espécie de presunção legal de assunção de risco toda vez que uma pessoa se propusesse a dirigir em tal estado. Isso obviamente não encontra sustentação no Direito Penal Moderno que há muito tempo afastou a possibilidade de adoção da chamada “responsabilidade objetiva”. Na verdade a situação não se alterou em nada neste aspecto com o advento da Lei 11.705/08. É claro que em certos casos concretos de acidentes de trânsito, provocados ou não por embriaguez etílica, poderá ocorrer a figura do “dolo eventual”. Até mesmo o dolo direto pode acontecer em uma situação envolvendo condução de automotor, quando o veículo é utilizado como “instrumenta sceleris” pelo autor que, por exemplo, atropela deliberadamente um desafeto pretendendo matá-lo. Não obstante, na maioria dos casos de homicídio ou lesão corporal em acidentes de trânsito em que o condutor dirige embriagado o caso será de “culpa consciente”. Nem mesmo o fato de que a Lei 11.705/08, em seu artigo 9º., revogou a causa de aumento de pena na lesão culposa e no homicídio culposo do trânsito pela embriaguez, pode levar, por si só, à conclusão pelo dolo eventual. Lembremo-nos que essa causa de aumento de pena nem sempre existiu no CTB, na verdade foi incluída pela Lei 11.275/06 e nem por isso, antes da referida norma alteradora, se cogitava de que invariavelmente haveria dolo eventual. Na realidade, as dificuldades para avaliação dos casos concretos e discernimento entre o dolo eventual e a culpa consciente devem ser casuisticamente resolvidos, considerando todas as circunstâncias envolventes do episódio pesquisado sob os ângulos objetivo e, principalmente, subjetivo. [44] Tenha-se em mente, em conclusão, o fato de que em caso de dúvida quanto ao elemento subjetivo que conforma a conduta do agente, encontra aplicação o “in dubio pro reu”, de forma que por isso, na maioria dos casos, conforme acima consignado, prevalecerá a tese da culpa consciente. Lapidar neste tópico o ensinamento de Aníbal Bruno abaixo transcrito:
“O dolo consiste em uma posição interior do agente, em certas condições de consciência e vontade em relação ao fato ilícito, que não podem ser apreciadas diretamente, mas só através das circunstâncias exteriores em que se manifestam. A maneira pela qual o sujeito atua, os meios que emprega, certas particularidades que acompanham o fato é que nos poderão levar a concluir por uma ação dolosa em referência ao resultado punível. As dificuldades desse juízo crescem e podem tornar-se insuperáveis em relação ao dolo eventual, quando se tem de apurar se o autor assumiu o risco de produzir o resultado ou esperou sinceramente que ele não ocorresse. Então, se não se pode alcançar uma conclusão segura no sentido do dolo, o agente beneficia-se da dúvida e o fato tem de ser julgado como de culpa consciente”. [45]
3 – CONCLUSÃO
No decorrer deste trabalho desenvolveu-se uma análise crítica das principais inovações promovidas pela Lei 11.705/08 e pelo Decreto 6488/08 no Código de Trânsito Brasileiro, especialmente quanto à questão da embriaguez e suas repercussões nas searas administrativa e penal.
Após um detido estudo em que foram cogitados diversos problemas, questionamentos e respectivas propostas de soluções, podem ser enunciadas as seguintes conclusões de forma articulada:
1-A Lei 11.705/08, em conjunto com o Decreto 6488/08, promoveu importantes alterações nas partes penal e administrativa do Código de Trânsito Brasileiro, principalmente no que diz respeito ao tratamento da embriaguez ao volante, penalidade acessória de suspensão do direito de dirigir e aplicação da Lei 9099/95.
2-Para fins administrativos é considerada falta gravíssima o simples fato de conduzir automotor em via pública sob efeito de álcool, em qualquer concentração no sangue ou sob a influência de outras substâncias psicoativas que causem dependência, também em qualquer concentração.
3-No que diz respeito aos binômios álcool e direção/ substâncias psicoativas e direção o CTB adotou um critério de “tolerância zero” no âmbito administrativo.
4-O prazo da penalidade de suspensão do direito de dirigir por infração ao artigo 165, CTB, é agora fixado em 12 meses, sem possibilidade de balizas mínima e máxima de individualização.
5-Com relação à penalidade administrativa fixa supra mencionada, certamente haverá alegação, não sem fundamento, de violação dos princípios da proporcionalidade e da individualização.
6-O recolhimento da CNH previsto por infração ao artigo 165, CTB, não deve ser confundido com a apreensão do documento por força da imposição de penalidade de suspensão do direito de dirigir. Esta só pode ser imposta após o devido processo legal administrativo, informado pela ampla defesa e pelo contraditório. O recolhimento consiste em mera medida cautelar e provisória que deve durar tão somente até o primeiro momento em que o condutor volte a apresentar condições de conduzir automotores.
7-Dentro dos estreitos limites da cautelaridade, provisoriedade e razoabilidade acima expostos, o recolhimento da habilitação previsto como medida administrativa no artigo 165, CTB, não é inconstitucional.
8-A Lei 11.705/08 não alterou a redação do “caput” do artigo 277, CTB, permanecendo válidos os testes e exames para aferição de alcoolemia, embriaguez etílica ou efeito de outras substâncias psicoativas ali previstos.
9-Para fins administrativos a comprovação da infração ao artigo 165, CTB, pode operar-se por diversas vias, não se atrelando exclusivamente na modalidade da prova pericial ou mesmo o teste do etilômetro.
10-O disposto no § 2º do artigo 277, CTB, tem aplicação exclusiva no campo administrativo, não se aplicando à seara criminal, por expressa disposição ali contida.
11-A interpretação e aplicação do § 3º do artigo 277, CTB, sob o ponto de vista de que o condutor é obrigado aos testes e exames, sob pena de submeter-se às sanções do artigo 165,CTB, diretamente por via de uma suposta presunção de culpa, é absolutamente inviável perante a ordem constitucional vigente por violação ao Direito a não auto – incriminação e ao Princípio da Não – Culpabilidade. A única interpretação e aplicação viável do referido dispositivo legal é aquela que considera que acaso o suposto infrator não colabore nos testes e exames, sujeitar-se-á à apuração do Agente de Trânsito por meio de todas as provas licitamente admitidas, mas somente sofrendo qualquer sanção após o devido processo legal administrativo sob o crivo da ampla defesa e do contraditório.
12-A Lei 11.705/08 alterou os critérios de aplicação da Lei 9099/95 a certos crimes de trânsito. Para aqueles crimes cuja pena máxima não ultrapassa dois anos, inclusive a lesão culposa do trânsito e o crime de “racha” (respectivamente artigos 303, “caput” e 308, CTB), nada se alterou, pois que o “caput” do artigo 291, CTB, não sofreu mudanças. Para esses crimes continua válida a aplicação total da Lei 9099/95. No entanto, a alteração promovida no antigo Parágrafo Único do dispositivo sob comento que hoje foi cindido em dois parágrafos, afastou a possibilidade de aplicação parcial da Lei 9099/95 ao crime de embriaguez ao volante (art. 306, CTB). Por seu turno, continuou sendo possível a aplicação parcial da Lei 9099/95 aos crimes de lesões culposas do trânsito com aumento de pena (art. 303, Parágrafo Único, CTB).
13-Não obstante o exposto no item anterior, a nova lei excepciona três casos dispostos no artigo 291, § 1º, I, II e III, CTB, nos quais, nem mesmo nos casos de lesões culposas com aumento de pena será possível a aplicação, sequer parcial da Lei 9099/95.
14- Aos crimes de embriaguez ao volante (art. 306, CTB) e de lesões culposas do trânsito com aumento de pena, nos casos impeditivos legalmente previstos (art. 303, Parágrafo Único c/c 291, § 1º, I, II ou III, CTB), está vedada a aplicação de qualquer instituto ligado às infrações de menor potencial ofensivo. Aos autores desses crimes, porém, pode ser aplicado o instituto da suspensão condicional do processo, previsto no artigo 89 da Lei 9099/95, o qual não é exclusivo para infrações de menor potencial.
15-Nos casos de extensão dos institutos dos artigos 74, 76 e 88 da Lei 9099/95 aos crimes de lesões culposas no trânsito com aumento de pena, somente estes institutos específicos serão aplicados na fase judicial e não a Lei 9099/95 como um todo, sendo portanto possível a Prisão em Flagrante e apuração dos fatos em sede de Inquérito Policial, sem substituição por Termo Circunstanciado. Atualmente o § 2º do artigo 291, CTB, é expresso neste sentido.
16-Em havendo qualquer uma das circunstâncias impeditivas dos três incisos do § 1º, do artigo 291, CTB, o crime de lesão culposa no trânsito com aumento de pena passa a ser de ação penal pública indondicionada.
17-Os incisos impeditivos do dispositivo supra mencionado e a norma de extensão do mesmo comando legal referem-se somente às lesões corporais culposas com aumento de pena (art. 303, Parágrafo Único, CTB). Não abrangem as lesões culposas simples (art. 303, CTB), as quais são naturalmente infrações de menor potencial, sujeitando-se à disciplina total da Lei 9099/95.
18-A alteração promovida no artigo 296, CTB, pela Lei 11.705/08, fez com que a aplicação da pena acessória de suspensão do direito de dirigir para os reincidentes em crimes de trânsito se convertesse de faculdade judicial em dever do julgador.
19-A reincidência que enseja a pena acessória supra mencionada é a específica em crimes de trânsito (artigos 302 a 312, CTB).
20-O novo artigo 306, CTB (embriaguez ao volante) não mais exige perigo concreto para sua configuração. Trata-se doravante de delito de perigo abstrato.
21-A Lei 11.705/08 mudou o critério para configuração de infração ao artigo 306, CTB, no que tange à ebriedade etílica. Antes a lei apenas descrevia a conduta de dirigir sob “influência de álcool”, sem estabelecer uma taxa específica de alcoolemia. Agora a nova redação utiliza o critério de uma taxa de alcoolemia igual ou superior a 0,6 g/l.
22-A opção do legislador exposta no item anterior é prenhe de dificuldades para a aplicação do novo dispositivo e inclusive para a execução de prisões em flagrante. Isso porque passa a ser imprescindível a comprovação de determinada taxa de alcoolemia, a qual não pode ser aferida por simples exame clínico como outrora. A obtenção da prova necessária para os respectivos procedimentos fica na dependência da colaboração espontânea do próprio implicado, o qual não pode ser compelido a produzir prova contra si mesmo, sob pena de violação de princípios constitucionais anteriormente mencionados.
23-Os critérios penal e administrativo para configuração da embriaguez ao volante (artigos 165 e 306, CTB) são diversos. Administrativamente foi adotada a “tolerância zero”, mas criminalmente só se configura o tipo penal com uma taxa de alcoolemia igual ou superior a 0,6 g/l.
24-Se o condutor suspeito não aceitar fazer a coleta para exame de sangue ou submeter-se ao etilômetro não será possível a Prisão em Flagrante e nem a comprovação da materialidade delitiva. Mesmo que o suspeito se sujeite à coleta de sangue, não havendo teste de etilômetro, a Prisão em Flagrante segue sendo impossível, eis que o resultado somente é obtido imediatamente através do aparelho de ar alveolar pulmonar. Os resultados de exames toxicológicos de sangue são demorados e, portanto, não servem para embasar a Prisão em Flagrante.
25-O legislador, conforme se vê, foi extremamente infeliz ao substituir a velha fórmula da “influência de álcool” pelo novo critério de uma determinada taxa de alcoolemia.
26-Quando for realizado o teste do etilômetro, recomenda-se a juntada do resultado impresso pelo aparelho aos autos e a elaboração de uma prova inominada que seria uma espécie de “Auto de Constatação”, onde a Autoridade Policial narraria todo o teor e os resultados das diligências. Esse “Auto de Constatação” assumirá ainda maior relevância quando se tratarem de etilômetros que não disponibilizam a impressão dos resultados dos testes.
27-O teste por etilômetro não constitui prova pericial e deve ser incluído nos autos do procedimento respectivo na forma de prova documental, através do resultado impresso e do “Auto de Constatação” sobredito.
28-Não sendo prova pericial, o teste do etilômetro dispensa a presença de peritos, pois que não exige para sua realização a detenção de conhecimentos especiais técnicos, científicos, práticos ou artísticos.
29-O fato de não ser prova pericial não inibe a conclusão de que o teste do etilômetro é suficiente para comprovar a materialidade do crime sob comento. Ocorre que o avanço tecnológico possibilita atualmente a aferição de taxas de alcoolemia por leigos, mediante um breve treinamento no manuseio da aparelhagem adequada, que supre a necessidade da presença de um homem detentor de conhecimentos técnicos e científicos, bem como de procedimentos laboratoriais específicos. O aparelho simplesmente oferta o resultado final que é apenas lido e comparado aos níveis legal e regulamentarmente fixados.
30-No que se refere às causas de aumento de pena para o homicídio e a lesão culposa no trânsito em virtude de embriaguez do condutor o legislador revogou (art. 9º., da Lei 11.705/08) o Parágrafo Único, inciso V, do artigo 302, CTB outrora também aplicável ao artigo 303 do mesmo diploma.
31-Nos casos de ebriedade em homicídios ou lesões culposas no trânsito, o crime de embriaguez ao volante segue sendo absorvido, enquanto elemento conformador da imprudência.
32-Para a direção sob a influência de outras substâncias psicoativas que causem dependência o legislador não mudou o critério, mediante a determinação de uma concentração no sangue. Nestes casos segue válido o procedimento anterior, inclusive o exame clínico como suficiente para a Prisão em Flagrante e a prova da infração.
33- As outras substâncias psicoativas de que fala a lei abrangem tanto as chamadas drogas ilícitas como as lícitas, ou seja, qualquer substância que cause dependência e provoque alterações sensíveis e relevantes no psiquismo das pessoas, prejudicando sua capacidade de dirigir automotores com segurança no tráfego viário.
34-Mesmo quando a Autoridade Policial não tiver condições de prender em flagrante aquele que lhe é apresentado sob forte suspeita de haver conduzido automotor sob influência de álcool, estará autorizada pela lei (art. 165 c/c 276, CTB) a proceder à retenção do veículo e ao recolhimento da CNH. Trata-se de medida administrativa legal, pois que nesse âmbito a direção sob influência de qualquer concentração de álcool no sangue é proibida e sujeita o infrator às penalidades e medidas correlatas.
35-No bojo da Lei 11.705/08 não há nenhum dispositivo que tenha expressamente determinado que a partir de sua vigência a prática de homicídio ou lesão corporal na direção de veículo automotor, estando o agente ébrio, configurará crime doloso, por incidência de dolo eventual. Nem mesmo indiretamente se pode chegar a uma tal conclusão, que configuraria um atávico retorno ao superado modelo da “responsabilidade penal objetiva”. Hoje como outrora, a decisão acerca da presença de culpa consciente ou dolo eventual depende da análise detida de cada caso concreto sob os enfoques objetivo e, principalmente, subjetivo.
Em desfecho vale salientar que o presente estudo apenas consiste na formulação das primeiras reflexões sobre o tema discutido, ainda em um momento em que a doutrina é incipiente. Certamente, os assuntos aventados serão melhor desenvolvidos e ampliados ao longo do tempo. Este trabalho terá cumprido sua missão se puder cumprir a função da proposta de uma reflexão e debate inicial sobre as inovações legislativas operadas no Código de Trânsito Brasileiro.
Informações Sobre o Autor
Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.