Primeiras impressões sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas no projeto do novo CPC

Resumo: o presente ensaio procura avaliar o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no projeto do Novo CPC como mais um instrumento viável a tratar das demandas de massa, as quais mesmo com o regime de tutelas coletivas subsistem e necessitam de uma dogmática adequada, onde soluções a casos de mesma fundamentação jurídica encontrem uniformidade, previsibilidade e garantam uma maior racionalização nos julgamentos.


Palavras-chave: demandas de massa; causas repetitivas; incidente de resolução de demandas repetitivas; Projeto do Novo CPC.


1. INTRODUÇÃO


É a transformação da concepção do direito fruto de um comprometimento com os valores ínsitos à Constituição Federal, passando pelo liberalismo que o resumiu à lei, limitando a atividade do jurista a uma aplicação mecânica, até o surgimento do positivismo crítico, fundado nos direitos fundamentais do Estado Social, onde há preocupação com uma tutela eficaz, que tangencia o surgimento de uma dogmática aplicável a casos semelhantes.


É chegado o tempo da aplicação de um direito diferente, onde a partir das novas relações sociais estabelecidas na sociedade fruto de uma alteração de paradigma torne possível uma tutela jurisdicional ampla, de forma a atender às finalidades de cada tutela de direitos.


 “O conhecimento se renova, o conhecimento se reinventa, o conhecimento se multiplica, o conhecimento se modifica.”[1] É preciso atentar que o novo direito constitucional é pautado pelo pós-positivismo, onde os declínios do jusnaturalismo e do positivismo puro dão azo à constitucionalização do processo civil, o qual deve observar fielmente os ditames e princípios constitucionais.


Na própria exposição de motivos do Projeto do Novo CPC depreende-se expressamente a necessidade de harmonizar a lei ordinária em relação à Constituição Federal da República, de modo que se entendeu fossem incluídos no referido projeto os princípios constitucionais na sua versão processual.


Cambi[2] assegura que esse é o primado do neoprocessualismo, o qual procura uma metodologia que visa aproximar do pensamento contemporâneo o essencial diálogo que deve permear os direitos processual e constitucional.


Por sua vez, Zaneti Júnior[3] acentua que o direito se constitucionalizou com a principialização da Constituição e a sua postura de elemento unificador da ordem normativa, chegando a assegurar que todo o direito hoje ou é direito constitucional ou não é direito.


Já Canotilho[4] enfatiza que há obrigação do intérprete a considerar a carta política em sua globalidade, afastando as aparentes antinomias, sendo isto um exemplo fiel do que deve ser levado em conta na aplicação das normas que tratam do processo de massa, conferindo-o, deste modo, unidade e coerência.


Sem dúvida alguma, o acesso à Justiça deve ser concebido não como mera admissão ao processo, mas como pacifcação com justiça[5], o qual não pode ser obtido pelo tratamento equivocado de demandas repetidas como sendo ações individuais.


É sabido que o processo civil brasileiro foi concebido a partir de uma visão individualista, onde a filosofia política era pautada pelo liberalismo, preocupando-se, apenas, com a eliminação de conflitos no campo individual, garantindo-se a propriedade privada, a liberdade individual e a autonomia da vontade.


Mesmo com o surgimento de mecanismos voltados às tutelas coletivas, a exemplo da Lei da Ação Popular; Lei da Ação Civil Pública; Lei de Improbidade Administrativa; a Lei 6.938/81, que trata da Política Nacional do Meio Ambiente, as regras do CDC e ainda a norma que disciplina o mandado de segurança coletivo, percebe-se, claramente, que o regime dessas tutelas coletivas não se confunde com o individual, subsistindo as demandas repetitivas ou demandas de massa, voltadas à mesma tese jurídica, as quais necessitam de uma dogmática diferenciada, onde as soluções a casos de mesma fundamentação jurídica tenham uniformidade e garantam uma maior racionalização nos julgamentos.


Foi com essa política judiciária visando uniformização da jurisprudência que foram criadas as regras dos artigos 476; § 1º do 515; dos artigos 285-A; 543-B; 543-C; do §3º do art.102 da Constituição Federal atual, regulamentado pela Lei n.º11.418/2006, onde se previu que o recorrente deve demonstrar a repercussão geral das questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa; além da criação da súmula vinculante em matéria constitucional, conforme o art.103-A da CF.


Ainda tendo em conta a preocupação com a uniformidade nos julgamentos surgiu a regra do § 1º do artigo 518 do CPC; a excelente norma contida no inciso I do art. 527 do CPC,[6] a qual propugna que o relator negará seguimento in limine aos recursos que estiverem em confronto com súmula ou jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior e do mesmo modo o §1º-A do art.557, onde se a decisão recorrida confrontar-se com súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso, ressaltando que eventual provimento não deve estar respaldado por jurisprudência do tribunal local.


 Do mesmo modo, a Lei n.º10.259/2001, a qual rege os juizados especiais federais, em seu artigo 14, há previsão expressa de pedido de uniformização de interpretação; a lei que cria os Juizados Especiais da Fazenda Pública (Lei n.º 12.153/09), onde houve a preocupação com a uniformização de interpretação de lei no seu art.18, pois quando houver por Turmas Recursais divergência sobre questões de direito material, deve haver julgamento em reunião conjunta das Turmas que estiverem em conflito.


É intuitivo, pois, que existe uma tendência a maior absorção dos institutos inerentes ao common law no direito brasileiro, onde o processualista busca novas soluções em sistemas processuais que se pautam pelo pragmatismo, o que denota maior modernização e menor caráter individualista a esse nosso verdadeiro sistema híbrido.


O propalado projeto do novo CPC acentuou a preocupação com a segurança jurídica e com a isonomia, eis que às teses repetidas houve a previsão do incidente de resolução de demandas repetitivas, onde procuraremos expor as primeiras impressões sobre esse instituto que poderá consolidar a dogmática aplicável às teses de mesma fundamentação jurídica.


2. AS TESES JURÍDICAS REPETITIVAS E O NOVEL INCIDENTE DE RESOLUÇÃO PREVISTO NO PROJETO DO CPC.


Transformações na sociedade alteraram profundamente as relações jurídicas, que ao mesmo tempo em que se multiplicaram, também se tornaram mais complexas. Para muitas dessas novas relações não está preparado o nosso Código de Processo Civil.[7]


A mudança estrutural da sociedade e do Estado inevitavelmente atingiria a ciência jurídica, e como as ações de massa clamam por resultados de massa, percebendo-se que a dogmática tradicional do CPC de 1973 ainda não estava totalmente apta ou adequada a produzir os resultados esperados para ações repetitivas, previu-se, acertadamente, no projeto do Novo CPC, o surgimento do incidente de resolução de demandas repetitivas, caminhando-se, então, na mesma esteira de raciocínio, isto é, demandas que gravitam em torno da mesma questão de direito serão tratadas de modo diferente e assim seja assegurado uniformidade para questões semelhantes no direito invocado.


Com efeito, a atividade econômica moderna, corolário do desenvolvimento do sistema de produção e distribuição em série de bens, conduziu à insuficiência do Judiciário para atender ao crescente número de feitos que, no mais das vezes, repetem situações pessoais idênticas, acarretando a tramitação de significativo número de ações coincidentes em seu objeto e na razão de seu ajuizamento.[8]


Para o jurista atual, o sentido da dogmática não consiste em fixar somente o que está simplesmente estabelecido, mas em possibilitar a distância crítica, em organizar estratos de reflexões, de motivos, de ponderações de proporção, meios pelos quais o material jurídico é controlado para além do que é imediatamente dado e é preparado para a sua utilização[9].


O momento é propício para que se descortinem divergências ideológicas em prol não apenas de um fundamento de validade do direito, mas em razão, sobretudo, de uma solução de controvérsias apta a encontrar respostas compatíveis com o grau de agigantamento dos conflitos hoje existentes para que o direito sirva como elemento viabilizador da ordem e paz social, com foco na racionalização de procedimentos como forma de manutenção dos seus pilares.


Há tempos o aprimoramento das técnicas processuais com vistas à obtenção de resultados mais efetivos no processo, tendentes a simplificar a atuação do Poder Judiciário e a retirar do processo formalidades desnecessárias e temerosas é o caminho a ser seguido pela prestação jurisdicional preocupada com marchas rápidas, onde a utilidade da decisão se coadune com o conteúdo jurídico do provimento judicial e as suas conseqüências no mundo dos fatos.


A moderna doutrina processualista já se apercebeu da necessidade da aplicação da técnica processual adequada aos processos repetidos, onde respostas uniformes para as teses de mesma fundamentação jurídica a partir da releitura de conceitos e mudança de mentalidade dos juristas na interpretação da norma possam facilitar a forma de concretização da justiça, e assim as causas repetidas tenham o mesmo desfecho.


A técnica só se justifica em razão da existência de alguma finalidade a cumprir e de que deve ser instituída e praticada com vistas à plena consecução da finalidade. É dizer que “a técnica está a serviço da eficiência do instrumento, assim como este está a serviço dos objetivos traçados pelo homem e todo o sistema deve estar a serviço deste.”[10]


O incidente de resolução de demandas repetitivas[11]é previsto no projeto de lei do Senado de n.º 166/2010, Novo CPC, tendo sido inspirado no musterverfahren do direito alemão, no qual, de acordo com Renato Xavier da Silveira Rosa[12] é permitido que se discutam questões de fato e de direito.


Importa, de logo, deixar registrado, que os legitimados para o pedido de instauração do incidente (juiz ou relator; partes, Ministério Público ou Defensoria pública) possuem o dever de, uma vez verificada a possível multiplicação de ações fundadas na mesma tese jurídica, instar o Presidente do Tribunal onde se processa a demanda, não sendo mera faculdade dos operadores do direito, dada a necessária cooperação que norteia o processo civil contemporâneo, com a participação ativa e leal das partes e do órgão julgador.


Acaso admitido o incidente[13] serão suspensas todas as causas que possuam os mesmos fundamentos da questão versada na causa piloto, ressaltando que o Superior Tribunal de Justiça ou o Supremo Tribunal Federal, desde que as partes, os interessados, o Ministério Público ou ainda a Defensoria Pública assim o requeiram, visando à garantia da segurança jurídica, poderá determinar a suspensão de todos os processos que tratem da mesma tese jurídica, para que após a definição da decisão haja a mesma aplicação a todas as outras ações com a mesma fundamentação jurídica.


O comprometimento dos realizadores do processo com o julgamento uniforme para questões de mesma tese jurídica nos faz sustentar que deveriam ser suspensas todas as ações, pelo STJ e/ou STF, após lhes ser dado o conhecimento pelo respectivo tribunal onde o incidente já estivesse sido admitido, pois estamos a tratar de um processo objetivo, onde não há partes, e sim discussão da tese que prevalecerá aos casos iguais.


Os recursos excepcionais, no incidente de resolução de demandas repetitivas, devem ser interpostos, inclusive, pelos amici curiae, pois quem possui interesse na causa, já tendo sido admitido, e assim debatendo questões e argumentos pertinentes, merecem utilizar o que é nada mais, nada menos, que uma extensão da demanda: o recurso.


Há, como se sabe, a tendência no STF de aplicar a teoria da transcendência dos motivos determinantes, o que reforça a relevância da identificação da ratio decidendi nas decisões de fixação da tese para as demandas de massa.


Nos embargos de declaração no recurso extraordinário – RE 194662ED / BA-BAHIA, cujo julgamento se deu em 11/12/2002 e publicação em 21/03/2003, na Segunda Turma do Colendo Supremo Tribunal Federal, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, em voto-vista, esclareceu:


 “(…) afigura-se fundamental a distinção entre ratio decidendi e obter dictum, tendo em vista a necessidade ou a imprescindibilidade dos argumentos para formação da decisão obtida (…) Embora possa haver controvérsias sobre a distinção entre ratio decidendi e obter dictum, é certo que um critério menos impreciso indica que integra a ratio decidendi premissa que não possa ser eliminada sem afetar o próprio conteúdo da decisão.”[14]


Possivelmente, o incidente de resolução de demandas repetitivas será um instrumento que trará maior racionalidade à técnica processual ao visar à uniformidade da jurisprudência.


A função dos tribunais superiores é a de uniformizar a jurisprudência. Com isto, a proposição de filtrar recursos e criar mecanismos como o referido incidente se coaduna com a política que vem sendo implementada no Código de 1973 e agora aperfeiçoada a partir da experiência de maior valorização aos precedentes.


Se a grande distinção entre os sistemas da common law e da civil law está na fonte do direito, o que para o nosso sistema romano-germânico a lei é fonte primeira, já para o direito da common law, a jurisprudência situa-se no nível mais alto das fontes jurídicas. Isto significa que hoje tem havido uma maior aproximação do direito nacional a esta família, onde a lei continua ser fonte primária do direito, mas há uma tendência a valorizar a jurisprudência criativa como fonte de direito.


Mello leciona:


“O common Law inglês se desenvolveu, portanto, a partir de precedentes vinculantes (binding precedents), a serem obrigatoriamente seguidos por todas as cortes inferiores, muito embora sejam passíveis de modificação pela House of Lords. O funcionamento de tal sistema ocorre nos seguintes termos: quando um ponto de direito é fixado pelo tribunal em um caso concreto, ele se converte, de imediato, em uma norma que deve ser acatada, obrigatoriamente, em demandas semelhantes, pelas cortes inferiores e pelo próprio órgão que o proclamou, salvo em hipótese de revogação pelo último. Assim, em um novo litígio judicial, o magistrado deverá, primeiramente, identificar os fatos relevantes e a questão legal a ser enfrentada. Em seguida, buscará um precedente que trate do mesmo problema jurídico e no qual se constate, ainda, que a discussão se baseou em uma situação de fato semelhante, hipótese em que o precedente e a nova causa serão considerados análogos e, por conseguinte, em que será obrigatória a aplicação da conclusão do julgado anterior”.[15]


Barbosa Moreira[16] elucida que nem mesmo a República recolheu o legado do Brasil imperial, onde o antigo Supremo Tribunal de Justiça tinha competência para buscar a inteligência das leis civis, comerciais e criminais quando ocorressem dúvidas em razão de julgamentos divergentes, tendo a Constituição de 1891 determinado que a justiça federal consultasse a jurisprudência dos tribunais locais, quando houvesse de aplicar leis dos Estados, e vice-versa, isto é, as justiças estaduais deveriam consultar a jurisprudência dos tribunais federais, quando lhes coubesse interpretar leis da União.


É dizer, deste modo, que a jurisprudência, na prática, representou e representa nos tempos atuais um verdadeiro guia para discussão nos julgamentos, que a partir de 1963, com a criação da Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal, verificou-se a intenção de minimizar a sobrecarga de trabalho naquela corte, embora não houvesse ainda previsão de efeito vinculativo.


Vejamos alguns aspectos do incidente de resolução de demandas repetitivas  merecem destaque neste ensaio.


No Brasil, o incidente de resolução de demandas repetitivas será aplicado apenas às demandas que possuírem a mesma tese jurídica, isto é, apenas às ações com a mesma questão de direito, onde uma vez identificada a controvérsia, e aqui entenda-se haver desnecessidade de se refutar o direito invocado por uma das partes para que haja, efetivamente, uma controvérsia, bastando que se verifique tratar-se de um direito repetitivo e que potencialmente possa fazer com que surjam outros processos da mesma natureza jurídica, será admissível o referido incidente para que não haja decisões conflitantes.


A nosso ver, adequada a previsão de dirimir questões exclusivamente de direito no incidente, a exemplo do artigo 285-A do CPC de 1973, pois se aplicável também a questões de fato, como previsto no direito alemão (musterverfahren), corre-se o risco de a decisão não refletir a exata medida do direito invocado pelos litigantes.


Pensemos que num baile de carnaval no Recife/PE o teto de um tradicional clube desaba, e com isso fere milhares de pessoas de modo diferente, ou seja, algumas sofreram leves escoriações, outras ficaram com debilidade permanente em alguns membros, dificultando ou impedindo a capacidade de trabalho, e ainda outras vieram a falecer. Se cada uma dessas milhares de pessoas propusessem, individualmente, uma demanda em face do clube pernambucano seria possível, apenas, avaliar na causa piloto do incidente de resolução de demandas repetitivas se houve o alegado dano (direito), restando impossível que a prestação jurisdicional da causa paradigma verifique a extensão dos danos causados a cada um desses foliões.


Para que haja uma prestação jurisdicional com resposta satisfatória, no exemplo acima, não há como deixar de passar pela ampla dilação probatória, inviável na forma do incidente, de forma que apenas questões de direito devem ser avaliadas pelo instituto.


No projeto do CPC há previsão no artigo 895 da admissibilidade do incidente de demandas repetitivas sempre que identificada controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica questão de direito e de causar grave insegurança jurídica, decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes, donde se infere preocupação em evitar a dispersão da jurisprudência e também em racionalizar o trabalho do Poder do Judiciário.


A mera potencialidade em haver multiplicação de causas que versem sobre o mesmo direito justifica o uso do incidente, cuja ampla publicidade facultará pessoas, órgãos ou entidades com interesse na causa, a se manifestarem, elucidando a questão para que seja aplicável a todos os processos com idêntica questão de direito, o que não quer dizer que não seja possível revogá-lo, pois o dinamismo nas relações sociais pode fazer com que a corte que criou o precedente paradigma possa revogá-lo, sendo tal ato denominado overruling, o qual acontece quando há novas circunstâncias que tornam os precedentes não utilizáveis, a exemplo de modificações sociais, econômicas, políticas ou até mesmo jurídicas em que venha a ser aplicado.


O mesmo tribunal, desde que comparados os precedentes e haja uma circunstância que o diferencie do anterior (distinguishing), pode deixar de aplicar o precedente desgastado pelo tempo, de forma que o Judiciário possa evoluir a partir do novo entendimento e não se apegue a paradigmas ultrapassados. Assim sendo, o uso dos precedentes não pode ser um comando lógico, exigindo análise das peculiaridades da causa e o devido cotejo do precedente com o caso em concreto, evitando, com isso, o engessamento do direito posto em discussão.


Já a técnica do overriding, por sua vez, acontece se a corte reduz o âmbito de uma doutrina anteriormente estabelecida em favor de uma regra ou princípio legal que surgiu depois que a antiga doutrina foi estabelecida. Trata-se de uma revogação parcial de um precedente geral que passou a ter sua aplicação restringida diante de uma norma especial que justifica a alteração da abrangência do precedente. Isso denota a dinamicidade do acompanhamento dos precedentes às mudanças dos valores insertos na sociedade.


O incidente de resolução de demandas repetitivas vem ampliar a técnica prevista do artigo 476 do Código de 1973 ao fazer com que haja aplicação da mesma tese jurídica a todos os processos que versem sobre idêntica questão de direito.


Como o Judiciário tem conferido maior relevância às súmulas de jurisprudência e ao julgamento de causas piloto, as quais representam a controvérsia paradigma de outras ações com mesma fundamentação jurídica, aparece a figura do amicus curiae como sendo uma técnica que permite a manifestação de órgãos ou entidades que venha a demonstrar a sua representatividade e interesse na relevância da matéria.


Del Prá anota o seguinte:


“É corrente afirmar que a figura do amicus curiae já se encontra entre nós desde 1978, introduzida pela Lei 6.616/78, que alterou a redação da Lei 6.385/76, que disciplina o mercado de valores mobiliários (art.31). A doutrina, ademais, aponta outras hipóteses que também seriam de intervenção do “amigo da corte”, como a prevista na Lei 8.884/94 (CADE), que regula a defesa da concorrência (art.89), e a prevista Lei 10.259/2001, que instituiu o Juizado Especial Federal (art.14, §7º, LJEF).”[17]


Após instauração e respectiva admissibilidade do incidente o Relator ouvirá as partes e demais interessados, denotando-se importância a figura do amicus curiae em nosso sistema, haja vista que deste modo será possível ampliar o debate e consolidar o entendimento a respeito da tese que venha a ser fixada.


Haberle[18] há muito sustentava um método de interpretação constitucional que previsse a compreensão de todas as potências públicas e grupos sociais envolvidos ou que, de forma direta ou indireta, influenciassem, no labor interpretativo dos agentes formalmente legitimados para produzir a norma em abstrato e em concreto.


Concordamos com o autor quando propugna uma nova ordem no processo hermenêutico e critica o modelo lógico-dedutivo do positivismo, eis que sua teoria quanto à abertura da sociedade no processo de formação da norma se revela de modo concreto na figura do amicus curiae, e isso vem sendo bastante discutido na processualística atual, tendo sido previsto no incidente de resolução de demandas repetitivas que haverá a formação de banco de dados nos tribunais do país para encaminhamento ao Conselho Nacional de Justiça, o que facilita ainda mais a presença de amici curiae.


A nosso sentir, o maior problema do referido instituto se encontra na previsão da competência para admitir, processar e julgar o incidente. Vejamos o que adverte Cunha[19]:


“A legislação infraconstitucional pode indicar o tribunal competente, seguindo as regras já traçadas pela Constituição Federal. O legislador deve apontar qual o tribunal competente, não estabelecendo qual o órgão interno do tribunal que deva realizar determinado julgamento. Se o órgão julgador, num determinado tribunal, é uma câmara cível, um grupo de câmaras, a corte especial ou o plenário, isso há de ser definido pelo seu respectivo regimento interno. O que importa é que o tribunal seja aquele previsto na Constituição Federal, a não ser em casos especificamente previstos no próprio texto constitucional, como na hipótese da regra de reserva de plenário: somente o plenário ou o órgão especial é que pode decretar, incidentemente, a inconstitucionalidade de lei ou tratado (CF/88, art. 97).”


Ao que parece o dispositivo do artigo 898 do projeto do CPC é inconstitucional, verbis: “O juízo de admissibilidade e o julgamento do incidente competirão ao plenário do tribunal ou, onde houver, ao órgão especial.” Como se verifica, a competência e funcionamento dos órgãos internos do tribunal é competência privativa (art. 96 da CF/88), não podendo o legislador infraconstitucional adentrar nesta seara.


3. CONSIDERAÇÕES FINAIS


É possível perceber, sem o menor intuito de esgotar o tema ora em comento, que mesmo com o regime de tutelas coletivas, subsistem as demandas repetitivas ou demandas de massa, de mesma tese jurídica, as quais, como demonstrado necessitam de uma dogmática adequada ao processo objetivo, onde as soluções a casos de mesma fundamentação jurídica tenham uniformidade, previsibilidade e garantam uma maior racionalização nos julgamentos dessas ações que devem ter o mesmo desfecho.


Não é demais registrar que a adequação das regras e princípios existentes em nosso ordenamento jurídico é essencial para a solução de controvérsias no âmbito dos processos repetidos. Só assim é que se terá um processo civil de resultados práticos, onde a concretização desses direitos tratados ainda de forma incipiente na atual norma processual ganhe corpo no Novo CPC e possa garantir sobretudo uma interpretação consentânea com os direitos fundamentais, eis que o desenvolvimento do direito não pode se dar apenas com fidelidade à lei.


Temos esperança que o incidente de resolução de demandas repetitivas confira tratamento coletivo às teses individuais repetidas, sistematizando-as, de modo a privilegiar esse novo meio de realizar o direito de massa.


 


Referências bibliográficas:

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ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo Constitucional. O Modelo Constittucional do Processo Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2007. p.54.

 

Notas:

[1] BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ASSIS DE ALMEIDA, Guilherme. Curso de Filosofia do Direito. 8ª Ed. São Paulo: Editora Atlas S.A, 2010, p. 15.

[2] CAMBI, Eduardo Augusto. Neoprocessualismo e neoconstitucionalismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p.19.

[3] ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo Constitucional. O Modelo Constittucional do Processo Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2007. p.54.

[4] CANOTILHO. J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. rev. Coimbra: Almedina, 1993. p. 226.

[5] CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER. Teoria Geral do Processo, 21ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005. pp. 35-36.

[6] “Art. 527. Recebido o agravo de instrumento no tribunal, e distribuído “incontinenti”, o relator:

I – negar-lhe-á seguimento, liminarmente, nos casos do art. 557.”

[7] GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Técnicas de Aceleração do Processo, São Paulo: Lemos & Cruz, 2003. p.32.

[8]CUNHA, Leonardo José Carneiro da. O regime processual das causas repetitivas. Revista de Processo. São Paulo: RT, jan. 2010, v. 179, p. 139-174.

[9] LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3ª edição. Tradução de José Lamego. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa: 1997, p.321.

[10] DINAMARCO. Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 12 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p.274.

[11] “Art. 895. É admissível o incidente de demandas repetitivas sempre que identificada controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica questão de direito e de causar grave insegurança jurídica, decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes.

§ 1º O pedido de instauração do incidente será dirigido ao Presidente do Tribunal:

I – pelo juiz ou relator, por ofício;

II – pelas partes, pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública, por petição.

§ 2º O ofício ou a petição a que se refere o § 1º será instruído com os documentos necessários à demonstração da necessidade de instauração do incidente.

§ 3º Se não for o requerente, o Ministério Público intervirá obrigatoriamente no incidente e poderá assumir sua titularidade em caso de desistência ou de abandono.”

[12] ROSA, Renato Xavier da Silveira. Incidente de resolução de demandas repetitivas: Artigos 895 a 906 do Projeto de Código de Processo Civil, PLS nº 166/2010. 2010. 75 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Disciplina: “Temas Centrais de Processo Civil I DPC 5851-1/1”) – Departamento de Direito Processual Civil, Faculdade de Direito do Largo São Francisco, Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, 2010. p. 15.

[13] “Art. 899. Admitido o incidente, o presidente do tribunal determinará, na própria sessão, a suspensão dos processos pendentes, em primeiro e segundo graus de jurisdição.

Parágrafo único. Durante a suspensão poderão ser concedidas medidas de urgência no juízo de origem.”

[14] http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?numero=194662&classe=RE-ED. Acesso em 14/02/2011.

[15] MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes – O desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.23.

[16] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito Processual. (nona série). São Paulo: Saraiva, 2007, p.299.

[17] DEL PRÁ. Carlos Gustavo Rodrigues. Breves Considerações sobre o Amicus Curiae na ADIN e sua Legitimidade Recursal. In Aspectos Polêmicos e Atuais sobre os terceiros no processo civil e assuntos afins. Fredie Didier Jr. e Teresa Arruda Alvim Wambier (coord.). São Paulo: RT, 2004, p.61.

[18] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – a Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e Procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 1997, p.12.

[19] Ob. Cit., p. 139-174.


Informações Sobre o Autor

Ney Castelo Branco Neto

Advogado. Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP; Especialista em Processo Civil pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE; Professor de Processo Civil da Faculdade Salesiana do Nordeste – FASNE


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