Após mais de uma década de tramitação no Congresso Nacional, foi aprovado o Projeto de Lei 4.208-C/01, transformado agora na Lei 12.403/11. O texto, que entrará em vigor no dia 04 do mês de julho do corrente ano, introduziu um novo sistema de medidas cautelares pessoais no processo penal brasileiro, estruturando, em um mesmo arcabouço, prisão preventiva e diversas outras medidas alternativas ao cárcere (art. 319 do CPP).
De início, o art. 282[1] traz para dentro do Código de Processo Penal, dois subprincípios integradores do princípio da proporcionalidade[2], servindo como elementos balizadores para aplicação das medidas cautelares, quais sejam, o da necessidade e da adequação.[3] Não sem muita demora, houve um acerto terminológico, trocando-se a expressão “conveniência” por “necessidade”. É o que minimamente se espera num Estado que se diga Democrático de Direito não haver espaço para pensar em prisão por mera conveniência, devendo-se tão somente recorrer à privação de liberdade quando houver necessidade com o desiderato de acautelamento da regularidade da instrução criminal.[4]
Ademais, o art. 312[5], quanto à prisão preventiva, apenas apõe a conveniência da “instrução criminal”, já o art. 282 I refere-se à instrução e também à investigação, com certeza ampliando o arco de incidência das medidas cautelares. Outro aspecto a ser salientado, importante para as medidas alternativas outras que não a preventiva, foi a criação do contraditório (art. 282 §3º[6]) quando do recebimento, pelo magistrado, de pedido de medida cautelar, ainda que saibamos que, na prática, nada nos faz crer que tal contraditório será uma exceção, devido à “urgência” e ao “perigo de ineficácia da medida”, pressupostos de toda e qualquer medida que possua natureza cautelar, que não tardarão em aparecer como razões para afastá-lo.
Dispôs de forma louvável a legislação expressamente ser a prisão preventiva ultima ratio no que se refere às prisões cautelares (§§ 4º e 6º do art. 282[7]), forçando o juiz, no momento da escolha, a fundamentar o motivo da opção por determinada medida cautelar ao invés de outra.[8] Assim, a decretação da prisão preventiva, que antes já deveria ser excepcional, passará a ser, em tese, ainda subsidiária, sendo apenas cabível quando não possível substituir a prisão por uma das medidas cautelares previstas no art. 319[9].
Nesse diapasão, o art. 283[10], para além de reproduzir o que dispõe o art. 5º LXI da CRFB, no que tange à obrigatoriedade de fundamentação quando da imposição de medida cautelar, parece ter sepultado definitivamente a possibilidade de execução provisória da condenação[11], conforme se depreende do caput do respectivo texto legal, a exigir, ou ordem escrita e fundamentada para imposição da prisão, ou sentença condenatória transitada em julgado.
A grande novidade, há que se dizer, está na extinção da até então acalentada discussão entre juristas sobre o caráter pré-cautelar da prisão em flagrante.[12] Agora, ao que se pode inferir do art. 310[13], o juiz, ao receber o auto de prisão em flagrante, não poderá mais se limitar a analisá-lo nos seus aspectos meramente formais. Deverá, sim, relaxar a prisão, conceder liberdade provisória ou convertê-la em preventiva (uma vez examinado o não cabimento das demais medidas cautelares alternativas do art. 319), sempre de maneira fundamentada, exterminando, por derradeiro, os argumentos de ser esse tipo de encarceramento espécie de prisão cautelar, sob o fundamento de que o flagrante prende “por si só”, como ressoa ainda em alguma doutrina. Esclarece-se, suma, que sequer se trata de manter a prisão em flagrante, mas, se for o caso, de sua conversão “em” ou “na” decretação da prisão preventiva (art. 310 II). Destarte, importante ressalva, conforme alude o par. 1º do art. 283[14], as medidas alternativas à prisão preventiva apenas podem ser aplicadas às infrações as quais for cominada pena privativa de liberdade, não alcançando aquelas em que se prevê pena restritiva de direito.
A inovação não parou por aí. Pelo art. 306[15], acerca da comunicação da prisão, até então, quando da sua realização, a mesma deveria ser comunicada ao juiz competente, família ou pessoa indicada pelo preso. Nesse rol, a lei incluiu o Ministério Público. Tal inclusão guarda relação ao fato de não poder o juiz decretar de ofício medida cautelar ao menos na fase pré-processual – antes de se tornar “presidente do processo” diante do recebimento da denúncia –, sob pena de se converter em um juiz-acusador, rompendo com a sua imparcialidade com relação ao objeto do processo[16] (tencionando devidamente o argumento, tal não deveria se dar nem quando na dita fase propriamente processual, também sob o preço de se romper com o sistema acusatório resguardado constitucionalmente[17]).
Quanto à fiança – ainda que em nada se tenha discutido sobre o mérito de seu caráter discriminatório no tocante à possibilidade ou não de cumprimento pela maioria da clientela do sistema penal – essa, agora, poderá ser arbitrada pela autoridade policial, não mais levando em consideração o tipo de pena (prisão simples ou detenção), mas tendo como parâmetro o máximo da pena privativa de liberdade cominada (não superior a quatro anos).
Em alguma medida, avançou até aqui o novo texto. Contudo, a possibilidade dos autoritarismos nunca escapa de se espreitar.
Assim, para além de incluir mais uma hipótese de prisão preventiva, qual seja, quando do descumprimento de medida cautelar anteriormente imposta (par. único do art. 312[18]), o legislador manteve integralmente intacto o caput do referido artigo, com suas expressões ambíguas quando não irrefutáveis, concretizando uma verdadeira vitória do decisionismo judicial[19] e, por certo, do famigerado direito penal de autor[20]. Ademais, no art. 311[21], há a consagração do juiz-ator e seu poder de agir de ofício, afrontando vez mais o já tão vilipendiado princípio acusatório basilar de nosso Estado Democrático de Direito.[22]
Por seu turno, o par. único do atual art. 313[23] traz a possibilidade de prisão preventiva em razão da dificuldade na identificação civil do acusado, sem mencionar em quais tipos de crimes tal medida poderá ser aplicada, nem se os requisitos do art. 312 devem estar presentes para tal decretação. Desse modo, profundamente preocupante, e necessário o alerta: “uma leitura isolada (que infelizmente será feita) permite prisão preventiva para averiguações, ainda que judicialmente autorizada, burlando as restrições existentes na prisão temporária, em que a jurisprudência consagrou a impossibilidade de prisão com base (isoladamente) no inciso II do artigo 1º da Lei nº 7.960. Essa prisão será contrária a toda principiologia da prisão preventiva e constituirá fonte de graves abusos”[24].
Embora com precioso anseio, instituiu-se ainda um sistema polimorfo, como dito, com diversas medidas cautelares alternativas à prisão preventiva (art. 319) o que concretiza a sua excepcionalidade, contudo, sem refletir que tal engenho fará com que acusados, que antes respondiam ao processo em liberdade sem qualquer tipo de ônus ou encargo, agora terão que suportar algum deles, seja, por exemplo, a proibição de acesso ou freqüência a determinados lugares seja manter contato com pessoa determinada, ampliando assim a malha de controle punitivo estatal.[25] Isso denota que o legislador, no afã de tentar desinchar e desafogar a máquina judiciária, além de ter criado uma verdadeira lista de ônus a serem suportados por pessoas que antes se “livrariam soltas” para responder o processo em liberdade, sem qualquer tipo de encargo a ser cumprido, não se preocupou com os gravames que terão de ser suportados pelos serventuários da justiça que, para além dos infindáveis afazeres cotidianos, padecerão ainda mais na incumbência de fiscalizarem o cumprimento de tais medidas.
Com relação à liberdade provisória com ou sem fiança, tratada a partir dos arts. 321 ss., impôs-se uma completa revisão do sistema. Antes mesmo de referir as alterações, frise-se que o termo “liberdade provisória” equivocadamente fora mantido na nova legislação, reafirmando-se seu inadequado manejo frente ao texto constitucional (art. 5º LXVI da CRFB). Será por força exatamente dos mesmos direitos e garantias fundamentais, esculpidos em especial no artigo 5º, que não se deverá deixar incólume a infeliz expressão utilizada pelo texto, em descompasso com os demais valores republicanos. Não será porque, ao que parece, o constituinte de 88 tenha se equivocado e tenha manejado de forma pouco rigorosa com a expressão liberdade provisória, que hoje devêssemos permanecer atrelados a isto. O que pode ser provisório, pois, é, e sempre deverá ser, a prisão, assim como todas as demais medidas cautelares que impliquem restrições a direitos fundamentais. Até mesmo, a rigor, após o trânsito em julgado da sentença condenatória, a restrição da liberdade eventualmente imposta não será perpétua, sendo sempre provisória.[26]
É de se notar que a própria lei nova autoriza a concessão de liberdade provisória para todo e qualquer crime quando ausentes as razões que permitiriam a decretação da prisão preventiva (art. 321[27]), estando aí vedada a exigência de fiança justamente para os crimes ditos mais graves e de maior reprovação social (arts. 323 e 324[28]). Assim, por um lado, possibilita a liberdade com a imposição de uma ou de várias cautelares, desde que não seja a fiança. E, para os demais crimes, tidos por afiançáveis por não se enquadrarem no rol dos arts. 323 e 324, a liberdade poderá ser obtida mediante a imposição de uma ou de várias cautelares, incluindo a fiança.
Com isso, visível o descompasso da lei, beirando a contradição: de um lado, evita-se a fiança para não onerar excessivamente autores de infrações menos graves, para os quais sequer prevê pena privativa de liberdade; de outro, proíbe-se a fiança para as mais reprováveis e graves infrações penais. Logo, se mesmo aos crimes rotulados como inafiançáveis, ao acusado pode ser concedida liberdade provisória sem fiança, tal instituto, a menos para o juiz, tornou-se completamente inócuo, quando não esdrúxulo.
Não bastando tais aspectos problemáticos da nova legislação processual penal, a reforma deixou de tratar de temas importantíssimos, como por exemplo, a fundamental questão quanto ao prazo para a prisão preventiva. Não se estipulando prazo algum, continua-se a abrir a guarda para a pouco democrática teoria do não-prazo[29].
Com alguma força de síntese, ao final, permite-se dizer que a nova Lei 12.403/11 trouxe relevantes alterações no âmbito das prisões e da liberdade provisória, bem como fez inserir, (in)felizmente, inúmeras alternativas ao cárcere, cabendo aos juízes e tribunais romperem com a cultura até então existente, para finalmente reservar-se a prisão preventiva para situações excepcionalíssimas. Porém, as novas espécies de cautelares pessoais não podem ser banalizadas e muito menos serem objetos de utilização indiscriminada pelos operadores do direito, tendo em vista que, por lógica, nenhuma providência cautelar pode se tornar superior ao resultado final do processo a que se destina tutelar.
Desse modo, somente com a observância dos princípios da provisoriedade, provisionalidade, excepcionalidade e proporcionalidade[30] é que as medidas cautelares, bem como as espécies de prisões acautelatórias poderão estar constitucionalmente conforme. Do contrário, serão consideradas ilegítimas, por configurarem espécies de antecipação de pena, desproporcional e desnecessária.
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Juliana Jobim do Amaral