Resumo: O presente estudo aborda aspectos do princípio alterum non laedere ou neminem laedere e sua relação com o princípio da dignidade da pessoa humana e da boa-fé.
Palavras-chave: princípio – dignidade humana – boa-fé
Abstract: This study approaches aspects of the principle alterum non laedere ou neminem laedere and its relationship with the principle of human dignity and good faith.
Key-words: principle – human dignity – good faith
Sumário: I. Introdução; II. Aspectos históricos; III. Evolução da responsabilidade civil. IV. Responsabilidade civil e o princípio neminem laedere.V.- Da dignidade humana; VI. Da boa-fé; VII. Conclusão; Referências.
I – Introdução
O princípio alterum non laedere ou neminem laedere, caracteriza-se, principalmente, pela sua antiguidade e atualidade paralelas, fato que se perceberá ao longo dos tópicos relacionados ao tema.
O princípio em estudo provém do preceito de Ulpiano, e consta no Digesto: “Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere” – “Os preceitos do direitos são estes: viver honestamente, não lesar a outrem, dar a cada um o que é seu.”
Pelas palavras do jurisconsulto romano percebe-se que a realidade da vida em sociedade atual não se difere muito daquela época.
Aliás, muito antes de Ulpiano, Moisés, ao conduzir o povo hebreu pelo deserto, recém liberto da escravidão do Egito, recebeu das mãos do próprio Deus o Decálogo ou Dez Mandamentos, dos quais, seis destinados a regular a vida em sociedade, conforme se verifica nos livros de Êxodo, capítulo 20 e Deuteronômio, capítulo 5[1].
No Evangelho de Mateus, capítulo 22, versículos 34 a 40, os fariseus questionam o Senhor Jesus a respeito de qual seria o maior de todos os mandamentos, ao que o Mestre respondeu: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito. Este é o maior e o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás teu próximo como a ti mesmo”.[2] – g.n.
As palavras do Mestre Jesus, em absoluta conformidade com o Decálogo, nos leva à reflexão de que, ainda que não sejamos capazes de amar, estaremos praticando as palavras de seu Evangelho pelo simples fato de não praticar o mal contra próximo, ou, em outras palavras, “não lesar nem ofender a outrem”, ponto nuclear do estudo em questão
As referências às sagradas escrituras acima, nos remetem aos dizeres de RUI BARBOSA, em seu discurso como paraninfo da turma de 1920, da Faculdade do Largo São Francisco:
“Por derradeiro, amigos de minha alma, por derradeiro, a última, a melhor lição da minha experiência. De quanto no mundo tenho visto, o resumo se abrange nestas cinco palavras: Não há justiça, onde não haja Deus.”[3]– g.n.
Liberdade, igualdade, justiça, dentre outras, têm sido as buscas de maior destaque ao longo da existência humana. A simples, mas efetiva observação do princípio em estudo, certamente teria mudado o contexto da história da humanidade (ou ao menos parte dele), tendo-se evitando muitos dissabores, conflitos e guerras.
Restringindo-nos às palavras de Ulpiano, como se verá adiante, bastaria, portanto: “viver honestamente, não lesar a outrem, dar a cada um o que é seu”.
A partir do princípio neminem laedere, portanto, tentaremos demonstrar sua importância e influência nas normas sociais e jurídicas, em especial a princípios basilares do Direito, tais como da dignidade humana e da boa-fé.
II – Aspectos históricos
O princípio alterum non laedere ou neminem laedere, ponto nuclear do presente estudo e sobre o qual está fundamentada a idéia de responsabilidade civil, significa, conforme define DE PLACIDO E SILVA:
“A ninguém ofender é o que se traduz da locução latina neminem laedere, um dos três juris praecepta, insertos na Institutas de Justiniano, na expressão alterum non laedere (a outrem não ofender) (…) fundando um dever social, elementar à própria ordem jurídica, impõe, em princípio, que não se deve lesar a ninguém, respeitando os direitos alheios, como os outros devem respeitar os direitos de todos”.[4]
O princípio integra o Digesto (do grego, Pandectas, promulgado em 15 de dezembro de 533), que compõe o Corpus Juris Civilis ou Código Justinianeu, do Imperador Justiniano, datado de 526 d.C., que inclui as chamadas Institutas ou Instituições (Institutiones)[5], o Código (Codex) e as Novelas (Novellae Constituitiones).
O Digesto, do latim digerere, significa pôr em ordem. Trata-se de uma reunião de textos de jurisconsultos clássicos. As Institutiones eram utilizadas como um manual de direito romano por estudantes de direito de Constantinopla.
Por sua vez, o Codex, tratava-se de uma coleção sistemática de leis e decretos imperiais. Finalmente, as Novellae Constituitiones eram as novas leis imperiais.[6]
É no Digesto que encontramos os três preceitos de Ulpiano[7], entre eles, o princípio alterum non laedere ou neminem laedere.
Embora parte do Digesto, a origem dos preceitos de Ulpiano vem da Grécia num período posterior à conquista de Roma, que absorveu a cultura grega referente ao período helenista[8], sofrendo influência direta em sua formação[9].
J. CRETELLA JÚNIOR, ao abordar a questão da influência dos filósofos gregos sobre a lei romana, está no fato de que “os textos demonstram que as noções do ético e do jurídico não acham claramente estabelecidas entre os jurisconsultos romanos.”[10]
O autor, na mesma obra, faz referência a Celso, jurisconsulto romano, cuja definição do direito como “a arte do bom e do equitativo”, demonstra identificação com o pensamento de Ulpiano, abaixo transcrito, do qual provém o princípio em estudo. [11]
É, portanto, neste cenário, que Ulpiano desenvolve o princípio: Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere – “Os preceitos do direitos são estes: viver honestamente, não lesar a outrem, dar a cada um o que é seu.”
O primeiro princípio, honeste vivere, nos remete ao Estoicismos, que considerava a honestidade um bem supremo.
ROGÉRIO DONNINI, novamente, bem aborda a questão:
“Para o Estoicismo, a virtude está acima de tudo e é imposta por todo o universo, visto que a natureza é dominada pela razão e esta regula a natureza do homem. Sendo assim, o que corresponde à razão prática e, dessa forma, às concepções da ética é, simultaneamente, natural.”[12]
De se observar, ainda, que para os gregos, um homem era considerado justo e correto desde que cumprisse as obrigações contratuais que assumisse.
O preceito suum cuique tribure expressa o justo e o injusto, estando diretamente ligada à idéia de justiça distributiva.
Novamente nos utilizamos dos dizeres de ROGÉRIO DONNINI, na mesma obra a que já se fez referência (pg. 486):
“A função da justiça que Ulpiano estabelece como a vontade constante e perpétua de atribuir a cada um o que cabe utiliza os outros dois preceitos apenas para caracterizar o elemento negativo da justiça (neminem laedere) e o elemento moral (honeste vivere).”
Finalmente, o preceito alterum non laedere ou neminem laedere, significa “a ninguém ofender” ou “não lesar a outrem”, reflete a filosofia de Epicuro (Epicurismo), “que considerava o direito o resultado de um compromisso de utilidade, com o escopo de os homens não se prejudicarem uns aos outros.”[13]
CRETELLA JÚNIOR, ao analisar direito e moral, faz referência aos dizeres de Ulpiano e afirma: “Ora, “viver honestamente” é preceito ético e “não prejudicar a outrem” interessa até certo ponto à moral.”[14]
Sob este prisma, fazemos referência aos dizeres de FÁBIO KONDER COMPARATO, que, mencionando os fundamentos da ética sob a ótica de Kant, trata da vontade moralmente boa (o que está em sintonia com o “não prejudicar a outrem”):
“Não como simples meio para satisfação de nossas necessidades naturais” (…) mas como aquela vontade “da pessoa que cumpre o seu dever, não porque isso seja do seu interesse, como sustentou Adam Smith, nem porque haja uma inclinação natural para o cumprimento do dever, uma simpatia em relação aos que necessitam de auxílio, por exemplo. Tal seria agir conforme o dever, mas não por dever.”[15]
EDUARDO C. B. BITTAR e GUILHERME ASSIS DE ALMEIDA trazem à reflexão a relação entre a ética e o poder de escolha, e bem colocam a questão no sentido de que:
“Sempre quando se fala em ética se está a falar em liberdade e em responsabilidade. A capacidade de correlacionar a esfera íntima de minha liberdade de autodeterminação e a responsabilidade sobre a esfera exterior dos resultados de minha ação, tem a ver com capacidade ética desenvolvida por indivíduos dotados de ‘phrónesis’, prudência, na leitura aristotélica.”[16]
Os três princípios inseridos nos dizeres de Ulpiano nos remetem à idéia de respeito à dignidade humana e à boa-fé nas relações sociais em geral.
O preceito nos lembra, ainda, a filosofia epicurista que propõe a felicidade como bem estar individual e social, no sentido de não causar sofrimento, reciprocamente, nas relações sociais.
O Prof. ROGÉRIO DONNINI[17] menciona a influência da filosofia de Epicuro, a partir das obras de Cícero e Lucrécio, no contratualismo (doutrina que reconhece como origem ou fundamento do Estado uma convenção ou estipulação – contrato – entre seus membros) e utilitarismo (pensamento ético, político e econômico dos séculos XVIII e XIX na Inglaterra).
Deste modo, o princípio em estudo impõe limites à livre ação ou omissão que venha a prejudicar terceiros, abrangendo, assim, a obrigação de reparação do dano causado, bem como, sua prevenção.
Esta idéia, muito anterior ao Digesto, nos leva a concluir que o princípio alterum non laedere constitui a base da responsabilidade civil da maneira como a conhecemos e aplicamos no ordenamento jurídico. Estão, ainda, intimamente ligadas a princípios fundamentais do Direito, como o princípio da dignidade humana e da boa-fé, questões que serão abordadas em tópicos próprios.
III – Evolução da responsabilidade civil
Como acima mencionado, podemos afirmar que o conceito de responsabilidade civil, tem por base o princípio neminem laedere, uma vez que, à quebra do dever de “não lesar outrem” corresponde a obrigação de indenizar o dano causado.
Entre os romanos, quando da Lei das XII Tábuas, 450 a.C., a responsabilidade contratual “nascia do nexum e da mancipium, com todos os inconvenientes da execução pessoal do devedor”[18]
O referido autor menciona, ainda que mesmo com o surgimento da Lex Poetelia Papiria, do século IV a.C. e que proibia a execução pessoal, esta continuou a existir e renasce no Baixo Império e na Idade Média.
A proibição da execução pessoal, no entanto, deu origem ao princípio pelo qual o devedor responde por suas dívidas através de seu patrimônio, não por sua pessoa ou vida.
A denominada responsabilidade extracontratual ou responsabilidade aquiliana, porquanto derivada da Lex Aquilia de damno (século III a.C.)[19], “cuidou de estabelecer, no Direito Romano, as bases jurídicas dessa espécie de responsabilidade civil, criando uma forma pecuniária de indenização do dano, assentada no estabelecimento de seu valor”, conforme bem mencionado por ALVARO VILLAÇA AZEVEDO, na mesma obra supra mencionada.
Neste sentido, novamente citamos ROGÉRO DONNINI, que enfatiza:
“A noção de responsabilidade civil, anteriormente à Lex Aquilia (século III a.C.), tinha características primitivas, pois a existência de um dano acarretava a imposição de uma pena, sem qualquer análise dos fatos que poderiam gerar essa lesão. Nos Códigos de Hamurabi (aproximadamente 1780 a.C.) e de Manu (data aproximada de 1300 e 800 a.C.) a idéia de responsabilidade civil era rudimentar, pois a noção genérica de dano era confundida com dolo, que sempre existia na hipótese de existência de um prejuízo”. [20]
Outro fato relevante foi a primitiva aplicação da pena do Talião (“olho por olho, dente por dente”), que tinha por base a vingança privada, em que se fazia justiça pelas próprias mãos. E a Lei das XII Tábuas trazia elementos dessa penalidade e à sua maneira também demonstrava tutela à lesão ou prejuízo causado a outrem.
Segundo ALVARO VILLAÇA AZEVEDO: “A Tábua VII, Lei 11ª – De delitis – consagra-a, com o seguinte texto: 11 – Si membrum rupsit, ni cum eo pacit, talio esto (Se alguém fere a outrem, que sofra a pena do Talião, salvo se existiu acordo).”[21]
Ainda no Regime da Lei Aquília, introduz-se um novo delito civil denominado damnum injuria datum, quer dizer, “prejuízo causado à coisa alheia, delito que, à semelhança do furto, empobrece a vítima, sem, no entanto, enriquecer seu autor”.[22]
Dada a pertinência do assunto, indispensável transcrever preciosa lição do mesmo autor acerca dos três capítulos que compreendem a Lex Aquilia, a saber:
No primeiro capítulo, havia a obrigação daquele que causasse prejuízo a outrem, matando, sem razão, animal ou escravo, de pagar multa igual ao mais alto valor atingido pelo referido animal ou escravo no ano que precedesse o crime.
O segundo capítulo, determinava que fosse punido o credor acessório, denominado adstipulator (considerado como mandatário do credor principal), que devolvesse o pagamento da dívida ao invés de exigí-la, em detrimento do credor principal.
Finalmente, no capítulo terceiro, puniam-se todos os prejuízos resultantes de incêndio, depredações, deteriorações e ferimentos produzidos, com aplicação de multa correspondente ao prejuízo sofrido, que era calculada no valor mais alto atingido pela coisa, nos 30 dias que precedessem o delito.
Cretella Júnior menciona, ainda, os elementos do damnum, no sentido de que, para que o prejuízo definido nos capítulos I e III da Lei Aquília constituísse delito, era necessário que o ato tivesse sido dirigido à coisa alheia sem direito, sem razão (injuria) e que tivesse constituído um atentado material à coisa (corpori), causada diretamente por ato positivo material do agente (corpore).
Novamente na lição de ALVARO VILLAÇA AZEVEDO, com relação ao actio legis Aquiliae, “o descumprimento das obrigações relativas a esse novo delito era sancionado pela actio legis Aquilae, que era promovida pelo proprietário da coisa danificada contra o autor do ato ilícito, que devia pagar o dano emergente (damnum emergens) e o lucro cessante (lucrum cessans).”[23]
Nos dizeres de ARNOLDO WALD, “é a partir da chamada Lex Aquilia que a responsabilidade extracontratual moderna se estrutura. Com ela surge também a figura do delito civil do dano (damnum iniuria datum).”[24]
Percebe-se, pois, a influência aquiliana no ordenamento jurídico, desde o Código Civil de 1916, que já impunha em seu art. 159[25] impondo o dever de indenizar o dano causado a outrem, uma vez existente o elemento culpa, por menor que seja.
ARNOLDO WALD[26] também faz referência à influência do direito francês e inglês com relação ao conceito de responsabilidade civil.
Elucida o autor que o Code Civil francês de 1804 figurou como modelo geral para as legislações modernas, inclusive com relação à responsabilidade civil.
Faz referência expressa aos dizeres de Napoleão Bonaparte: “a minha verdadeira glória não é a de ter ganho 40 batalhas. O que ninguém destruirá, o que viverá eternamente, é o meu Código”.
O Prof. WALD enfatiza, ainda, que o Código de Napoleão é o primeiro modelo de Código moderno e, em que pesem as numerosas modificações, ainda permanece em vigor na França e que “influenciaram de forma decisiva as legislações civis da América Latina do século XX”.
A responsabilidade civil extracontratual (neminem laedere) está fundamentada no “Code Napoleón” no art. 1.382: ‘Qualquer ação do homem que causa um dano a outrem obriga aquele que causou o dano a repará-lo’”[27]
Com relação ao direito inglês, assevera o Prof. WALD na mesma obra, que a exemplo dos demais sistemas do tronco anglo-saxão, não possui um princípio geral da resposabilidade civil semelhante ao Code.
O conceito de responsabilidade civil nos sistemas anglo-saxões surgiu sob império do formalismo dos antigos writs, ou ações judiciárias.
O Prof. DONNINI na mesma obra acima, esclarece que no sistema inglês existe o denominado direito dos torts (danos), onde é necessário especificar um dano determinado, tendo em vista a inexistência de uma regra geral:
“Criou-se, todavia, uma obrigação de vigilância, em certos casos de responsabilidade, denominada duty of care, que é a base do novo delito de negligência (negligence) (…) embora não haja uma regra geral de reparação de danos, existem mecanismos judiciais, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos, que se assemelham, na prática, ao sistema do neminem laedere”.
Ao analisar a evolução da responsabilidade civil no direito civil brasileiro, ARNOLDO WALD, a quem fazemos referência novamente, destaca que a história do direito civil brasileiro é compreendido a partir de 5 fases, quais sejam: “a) do descobrimento até a codificação; b) o processo de codificação civil; c) a fase posterior ao Código Civil de 1916 até a Constituição Federal de 1988; d) a Constituição vigente e a promulgação do Código Civil de 2002; e) a atual fase posterior ao Código Civil de 2002.”[28]
Na sequência, o autor discorre sobre cada uma das fases e, dada a importância do conteúdo, passaremos a, resumidamente, transcrevê-las.
Assim, segundo o Prof. WALD, na primeira fase[29], o Brasil Colônia teria se caracterizado pela utilização das Ordenações Filipinas, tendo havido uma lei em 20 de outubro de 1823 que determinou a vigência das Ordenações, leis e decretos portugueses promulgados até 25 de abril de 1821, enquanto não vigente um Código Civil.
Em 1830, promulgou-se o Código Criminal do Império Brasileiro, no qual já se constaram regras relacionadas à responsabilidade civil[30].
O primeiro passo para elaboração do Código Civil, segundo o autor, aconteceu com a contratação, em 1855, de Teixeira de Freitas, que elaborou uma obra preparatória denominada “Consolidação das leis civis”, com “grande preocupação com a responsabilidade civil”.[31]
Em 1899, Clóvis Beviláqua dá início à obra que originou o Código Civil de 1916.[32]
Após a promulgação do Código que “nascera antiquado em relação ao problema da responsabilidade civil”, percebeu-se a ocorrência de uma estagnação legislativa com relação à responsabilidade civil, de tal modo que, coube à doutrina e à jurisprudência o papel de ajustamento da questão para melhor solução dos casos concretos.[33]
Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, surge um cenário evolutivo, porquanto, tratou a Carta Magna da responsabilidade civil e diversos dispositivos legais, “permitindo ao intérprete deles extrair um sistema básico que informa a legislação aplicável, especialmente no Código Civil.”
Segundo destaca o Prof. WALD, a Constituição, em seu art. 5º, X[34], consagrou definitivamente o direito irrestrito à reparação do dano moral, com a possibilidade de cumulação com o dano material.
Destaca o autor, que, três valores destacam-se nas hipóteses tratadas pela Constituição e que marcam a transformação contemporânea da responsabilidade civil: “a primazia do interesse da vítima, a completa reparação do dano e a solidariedade social”.
Destacam-se, ainda, outros diplomas sobre a responsabilidade civil, criados para ampliar a proteção criada pela Constituição de 1988, a exemplo do Código de Defesa do Consumidor, sendo que, “o Código Civil de 2002 é o resultado e complemento dessa influência constitucional“.
Assim, conclui o autor que:
“O Código vigente, tendo consagrado o risco como um dos fundamentos da responsabilidade, elegeu como preocupação maior e primeira a defesa da vítima e o seu direito à incolumidade e à segurança dos seus bens, ao contrário do diploma anterior que mais se preocupava com a conduta do agente do dano, para conceder ou não a reparação.”.
Por todo acima exposto e conforme já mencionado, evidencia-se a importância do princípio neminem laedere no contexto da responsabilidade civil.
A idéia de não prejudicar a outrem é a base do conceito de responsabilidade civil da maneira albergada pelo ordenamento pátrio, o que pretendemos abordar no próximo tópico.
IV – Responsabilidade civil e o princípio neminem laedere
A palavra responsabilidade, de acordo com DE PLÁCIDO E SILVA:
“Provém do latim ‘respondere’, tem o sentido de responsabilizar-se, vir garantindo, assegurar, assumir o cumprimento do que se obrigou ou do ato que praticou (…) A responsabilidade, portanto, em ampla significação, revela o dever jurídico, em que se coloca a pessoa, seja em virtude de contrato, seja em face de fato ou omissão, que lhe seja imputado, para satisfazer a prestação convencionada ou para suportar as sanções legais, que lhe são impostas.”[35]
ALVARO VILLAÇA AZEVEDO, assim a define:
“A palavra responsabilidade descende do verbo latino respondere, de spondeo, primitiva obrigação de natureza contratual do direito quiritário[36] romano, pela qual o devedor se vinculava ao credor nos contratos verbais, por intermédio de pergunta e resposta (spondesne mihi dare Centum? Spondeo; ou seja, prometes me dar um cento? Prometo).”[37]
Podemos afirmar que responsabilidade civil nada mais é do que, uma obrigação de reparação, que se impõe ao causador do dano, em benefício da vítima, na proporção dos danos por ela suportados, sejam de ordem material ou moral. Se impossível a restituição à situação anterior ao dano, tem lugar a fixação de indenização pecuniária, sendo “cumuláveis as indenizações por dano material e moral oriundos do mesmo fato”.[38]
O princípio neminem laedere em estudo, nos dá exatamente esta idéia de responsabilidade civil.
É necessário, porém, conforme abordaremos adiante e, novamente, adequadamente adverte o Prof. DONNINI, “a existência de dano para que exista o dever de reparação pelo agente causador”.[39]
Este é, aliás, o que expressamente determina o art. 927 do Código Civil brasileiro, disposição nuclear da responsabilidade civil em nosso ordenamento, cuja transcrição se impõe:
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único: Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.[40]
MARIA HELENA DINIZ, em suas anotações ao dispositivo supra, bem define o conceito de responsabilidade civil para o ordenamento pátrio:
“O autor de ato ilícito (CC, arts. 186 e 187) terá responsabilidade subjetiva pelo prejuízo que, culposamente, causou, indenizando-o. Seus bens ficarão sujeitos à reparação do dano patrimonial ou moral causado (…) dever transmissível aos herdeiros, que por eles responderão até os limites das forças da herança.”[41]
Note-se que a violação ao direito e provocação de dano a outrem nos remete ao disposto nos arts. 186 e 187 mesmo instituto, o que, consequentemente, gera o dever indenizatório:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Novamente, utilizamos os ensinamentos de MARIA HELENA DINIZ, que nos adverte para relevante fato relacionado ao ato ilícito:
“Para que se configure o ato ilícito, será imprescindível que haja: a) fato lesivo voluntário, causado pelo agente, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência; b) ocorrência de um dano patrimonial ou moral; e, c) nexo de causalidade entre o dano e o comportamento do agente.”[42]
Do próprio texto legal, extraem-se, portanto, os pressupostos da responsabilidade civil, quais sejam, 1) a existência de uma ação ou omissão qualificada como ato ilícito (responsabilidade subjetiva); 2) a verificação de culpa ou dolo (responsabilidade objetiva); 3) existência de um dano e; 4) o nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão do agente.
Antes de discorrer a respeito dos pressupostos da responsabilidade civil, julgamos oportuno tecer breves considerações acerca da subdivisão tradicional do instituto em contratual e extracontratual, esta última também denominada delitual ou aquiliana, conforme mencionado no tópico anterior.
Em ambas há um dever jurídico cuja violação faz surgir a obrigação reparatória. A diferença entre uma e outra está na origem desse dever.
Na responsabilidade contratual, como o próprio nome diz, a relação jurídica obrigacional entre o agente e a vítima é proveniente de um negócio jurídico, sendo este mesmo negócio a fonte dessa espécie de responsabilidade. “Não propriamente o negócio em si, mas sim a violação dos deveres dele decorrentes que geram o dever de indenizar (inadimplemento contratual).”[43]
Na responsabilidade extracontratual (aquiliana), pondera o mesmo autor, há descumprimento da própria norma, existindo o dever de indenizar uma vez causado o dano. “Justamente porque o responsável violou um dever geral de conduta de não lesar, concretizado na fórmula latina do neminem laedere, que a todos se impõe (…) o agente causador do dano agiu contra os fins da própria ordem jurídica.” – g.n.
Também pertinente a nosso ver, referência às denominadas responsabilidade subjetiva e objetiva, cuja diferenciação tem campo na conduta do causador do dano.
Assim, será subjetiva a responsabilidade quando baseada na culpa em sentido amplo (culpa ou dolo) e objetiva, quando independe de qualquer erro do agente (culpa) ou mesmo a intenção de causar o dano (dolo), ou seja, o dever de indenizar surge pela simples constatação do dano e o nexo causal, dispensando-se a prova da culpa, neste caso, presumida.[44]
O Prof. ARNOLDO WALD bem observa que a responsabilidade subjetiva baseada na culpa figura como regra geral no ordenamento pátrio, por aplicação dos supracitados arts. 186 e 927 do CC. É exceção, portanto, a responsabilidade objetiva, cuja aplicação depende de expressa previsão legal, a exemplo do que o próprio art. 927 traz em seu parágrafo único (atividade de risco), o art. 187 sobre o abuso de direito, o art. 931[45] com relação à responsabilidade dos empresários e das sociedades empresárias na qualidade de produtores, o art. 933[46] relativamente à responsabilidade por fato de outrem, “além da responsabilidade do Estado, a decorrente das relações de consumo, no direito ambiental e entre outras diversas situações.”[47]
Pois bem. Uma vez que o princípio neminem laedere corresponde ao conceito de responsabilidade civil da maneira como a enquadramos em nosso ordenamento, associado ao fato de que é necessário também a ocorrência de um dano para que exista o dever de reparação à vítima, mister a análise dos elementos constitutivos da responsabilidade civil, sem os quais, não se atribui efetividade ao princípio em estudo.
São, portanto, elementos ou pressupostos da responsabilidade civil: a) a conduta do agente; b) o dano sofrido pela vítima e; c) o nexo causal entre a conduta e o dano.
a) A conduta do agente
A conduta ou ato voluntário do agente é o primeiro pressuposto da responsabilidade civil, conceito ligado à imputabilidade, “porque a voluntariedade desaparece ou torna-se ineficaz quando o agente é juridicamente irresponsável”, nos dizeres de SILVIO DE SALVO VENOSA[48].
A conduta do agente, seja por ação ou omissão, deve caracterizar um ato ilícito, entendido como um comportamento que transgride um dever, sendo este figura central da responsabilidade extracontratual.
O mesmo autor supra adverte que “o dever de indenizar vai repousar justamente no exame de transgressão ao dever de conduta que constitui o ato ilícito (…) conceituação exposta no art. 186”, acima transcrito.
b) O dano sofrido pela vítima
A palavra dano é derivada do latim damnum, tendo significado geral de todo mal ou ofensa que tenha uma pessoa causado a outrem, da qual possa resultar uma deterioração ou destruição à coisa ou prejuízo a seu patrimônio.[49]
O Prof. WALD explica que a palavra vem etimologicamente do vocábulo latino demere, que significa tirar ou diminuir. Considera o dano como verdadeira pedra angular para a configuração da responsabilidade civil[50].
Deste modo, é inconcebível a idéia de responsabilidade civil sem a ocorrência de um dano, ainda que existente o ato ilícito, este, por si só, não autoriza a responsabilização do agente.
ARNOLDO WALD, na mesma obra supra referida, p. 85, nos lembra da única exceção prevista no ordenamento jurídico brasileiro que permite a existência de responsabilidade civil sem dano, qual seja, no campo da responsabilidade civil contratual quando o contrato prevê uma cláusula penal fixada para o caso de inadimplemento, independente da ocorrência de qualquer dano.
Neste sentido, também, são as primeiras palavras sobre o tema de R. LIMONGI FRANÇA:
“Em meio às diversas causas eficientes da obrigação, é de se ressaltar o dano, que assim definimos: é a diminuição ou subtração causada por outrem, de um bem jurídico”.[51]
Nos termos do art. 402 do Código Civil, in verbis:
Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.
Do texto legal acima se extraem três espécies de danos que comportam o respectivo ressarcimento: dano patrimonial, emergente e lucro cessante.
Na lição de CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA[52], a consequência da responsabilidade civil é o dever de reparação:
“O responsável, por fato próprio ou não, é obrigado a restabelecer o equilíbrio rompido, indenizando o que a vítima efetivamente perdeu (dano emergente), como o que razoavelmente deixou de ganhar, além de atender às regras específicas relativas à liquidação das obrigações por ato ilícito.”
Dano patrimonial ou material é aquele que expressa um valor econômico, passível de avaliação pecuniária, podendo ser reparado por montante em dinheiro.
Dano Emergente é aquele que a vítima efetivamente perdeu, implicando numa diminuição de patrimônio ou prejuízo real. A respectiva indenização terá como objetivo a restauração do patrimônio do lesado ao estado anterior.
Por fim, mas não menos importante, o lucro cessante refere-se àquilo que a vítima razoavelmente deixou de lucrar. Traduz numa projeção contábil, onde considera-se o que o lesado teria recebido caso não tivesse sofrido o dano.[53]
A responsabilidade civil abrange, ainda, a reparação do dano moral, sendo expressamente previsto na Constituição Federal, art. 5º, X[54], ganhando enorme dimensão uma vez inserido como preceito constitucional, embora o ordenamento jurídico, mesmo sob a égide do CC de 1916, não restringia o dever de indenizar aos danos patrimoniais[55].
Aliás, oportuno lembrar, neste ponto, que a Cata Magna expressamente consagra a dignidade da pessoa humana, sendo este um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, preceito que guarda estreita relação com o princípio neminem laedere e sobre o qual abordaremos em tópico específico.
Na mesma vertente, é o que dispõe o art. 186 do Código Civil[56], ao qualificar como ilícito causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral. – g.n.
Moral ou extrapatrimonial, como denominado pelo Prof. ARNOLDO WALD[57], é o dano, o prejuízo que afeta a esfera psicológica, moral e intelectual da vítima.
Ressalta o Prof. Wald, a nova e maior dimensão dada pela Carta Magna ao dano extrapatrimonial:
“Porque a dignidade humana nada mais é do que a base de todos os valores, a essência de todos os direitos do homem (…) os direitos à honra, ao nome, à intimidade, à privacidade e à liberdade estão englobados no direito à dignidade, que constitui o verdadeiro fundamento e essência de cada preceito constitucional relativo aos direitos da pessoa humana.”
RUDOLF VON IHERING, em sua clássica A luta pelo Direito, aborda a questão de maneira peculiar:
“Não é prosaico interesse pecuniário que arroja o lesado a encetar o processo, mas a dor moral que lhe causa a injustiça sofrida; não se trata para ele de recuperar simplesmente o objeto do litígio (…) mas sim de fazer valer o seu justo direito!”
E conclui a questão traduzindo o verdadeiro espírito justificador da busca por reparação por dano, eminentemente, moral:
“Diz-lhe uma voz interior que não deve recuar, que se trata para ele, não de qualquer ninharia sem valor, mas da sua personalidade, da sua honra, do seu sentimento do direito, do respeito a si próprio; em resumo, o processo deixa de ser para ele uma simples questão de interesse, para se transformar em uma questão de dignidade e de caráter: – a afirmação ou o abandono da sua personalidade.”[58] – g.n.
Importante mencionarmos que dano moral não se confunde com qualquer dissabor trivial da vida e que não ensejam nenhum tipo de indenização.[59]
O parâmetro para se verificar a existência de um dano moral indenizável, repousa no critério objetivo do homem médio:
“Não se levará em conta o psiquismo do homem excessivamente sensível, que se aborrece com os fatos diuturnos da vida, nem do homem de pouca ou nenhuma sensibilidade, capaz de resistir sempre às rudezes do destino. (…) O sofrimento como contra-posição reflexa da alegria é uma constante do comportamento humano universal.”[60]
Pertinente observarmos que o dano moral é, de fato, irreparável e insuscetível de avaliação pecuniária, porquanto imensurável. O dever de indenizar a vítima, neste caso, é simples tentativa de amenizar as consequências do dano, qual seja, a dor moral.
ALVARO VILLAÇA AZEVEDO[61] bem sintetiza a questão da reparação do dano material e moral, “lembrando que todo patrimônio se compõe de bens materiais e imateriais, quando, pelo ato ilícito de quem não seja seu titular, ele vier a perder-se, em uma parte ou totalmente, ocorrendo uma diminuição pecuniária, em dinheiro, o prejuízo material concretiza-se.”
Na sequência, observa o autor que:
“Sendo material o dano, o que importa, no Direito brasileiro, é a perquirição da existência ou não de repercussão econômica, que possa ser convertida em dinheiro (…). Se o dano for moral, para que se indenize, certamente, no Direito brasileiro, é preciso que agrida direitos da personalidade[62], com ou sem reflexos de perda patrimonial”.
Como bem menciona ROGÉRIO DONNINI[63], o art. 5º, V[64], da Constituição Federal, também estabelece o direito de reposta e a respectiva indenização por dano material, moral e à imagem.
Não apenas, o inciso XXXV do mesmo artigo[65], ressalta o autor, também abrange a prevenção de danos, uma vez que “completa o princípio neminem laedere, ao estabelecer o direito de ação, destina-se esse dispositivo, também, à prevenção de danos, com a determinação de que caberá ao Poder Judiciário apreciar a ameaça a direito.”
Ao estabelecer que o Judiciário também apreciará a “ameaça a direito”, estende-se a responsabilidade civil à esfera da prevenção de danos, o que “completa o princípio neminem laedere”.
c) Nexo de causalidade entre a conduta e o dano
Nexo de causalidade ou causal é o elemento de ligação existente entre a conduta do agente e o dano causado à vítima. Ausente esta relação de causalidade não haverá responsabilidade civil.
Nas palavras de ARNOLDO WALD: “o conceito de nexo causal não é jurídico; decorre das leis naturais. É um vínculo, da causa e seu efeito, relacionado a conduta com o seu resultado, diretamente ou como sua consequência previsível.[66]
Prossegue o autor nos seguintes termos:
“A relação causal pode ser vista como um processo equacionado num determinado espaço-tempo que une um comportamento a um evento atribuindo-lhe responsabilidade.”
Deste modo, o nexo de causalidade é o liame entre uma conduta (ativa ou omissiva)[67] ou situação e um resultado danoso, possibilitando a identificação do agente causador do prejuízo, seja material ou moral.[68]
Bem observa Venosa que “a responsabilidade objetiva dispensa a culpa, mas nunca dispensará o nexo causal.”[69]
Neste sentido, também GUSTAVO TEPEDINO salienta que no direito pátrio, tanto na responsabilidade civil objetiva quanto na subjetiva:
“o dever de reparar depende da presença do nexo causal entre o ato culposo ou a atividade objetivamente considerada, e o dano, a ser demonstrado, em princípio, por quem alega, salvo nas hipóteses de inversão do ônus da prova previstas expressamente na lei, para situações específicas.”[70]
Ao tratar da questão, ROGÉRIO DONNINI também vaticina no sentido de que, para que o nexo de causalidade é pressuposto da responsabilidade civil, ou seja:
“Para que haja o dever de indenizar é mister que o dano existente seja consectário da ação ou omissão do agente, pressuposto esse que tem sido, de certa forma, relativizado, como se constata na lesão ao meio ambiente natural, diante do argumento de que a obrigação é propter rem, motivo pelo qual independentemente da prova da relação direta entre a ação ou omissão e o dano existente, responde civilmente o proprietário do bem por violação ao meio ambiente, mesmo na hipótese de não ter dado causa ao prejuízo, levado a efeito pelo proprietário anterior.”[71]
Ainda na esfera da responsabilidade civil, impõem-se algumas considerações acerca de outros dois elementos, quais sejam, o dolo e a culpa.
Novamente faremos referência direta ao Prof. ARNOLDO WALD que assim introduzir o tema:
“A atuação dos indivíduos na sociedade deve ser pautada por um padrão de conduta do qual não resulte lesão a bens jurídicos alheios. É o princípio que data do direito romano: ‘neminem laedere’. Todas as pessoas devem, pois, ser cautelosas e diligentes, adotando-se como referencial um dever de cuidado objetivo definido socialmente.”[72] – g.n.
A questão novamente nos remete ao texto legal civil, art. 186: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” – g.n.
De acordo com o dispositivo supra a culpa é ponto nuclear da responsabilidade subjetiva, abrangendo não apenas o ato ou a conduta intencional – o dolo – como também os atos ou condutas contaminadas pela negligência, imprudência ou imperícia.[73]
Tanto o dolo quanto a culpa estão relacionadas a uma atuação voluntária e reprovável do agente. No dolo, a conduta nasce ilegal e o agente age dotado de vontade de alcançar um resultado ilícito. Na culpa, não existe o elemento vontade na conduta danosa do agente.
Conclui ARNOLDO WALD, no mesmo tópico supra, que: “o dolo tem por elementos a representação do resultado e a consciência da sua ilicitude. A culpa pode ser vista como o descumprimento de um dever de cuidado, que o agente deveria observar, ou a omissão de diligência exigível.”
A responsabilidade civil surge, dentro do ordenamento jurídico pátrio, em face do descumprimento obrigacional e corresponde ao dever de indenizar o dano causado a outrem.
O tópico em questão não teve a menor pretensão de esgotar toda a matéria relativa à responsabilidade civil (e não o fez), mas apenas delinear suas principais características e destacar que sua base encontra-se diretamente fundamentada no princípio neminem laedere, “não lesar a outrem” com corresponde obrigação indenizatória em caso de descumprimento do referido preceito.
Diretamente ligada à essência do alterum non laedere ou neminem laedere, estão a dignidade humana e a boa-fé, que passaremos a abordar nos próximos tópicos.
V – Da dignidade humana
O princípio da dignidade humana “é a razão de ser do Direito.”[74]
As palavras acima, provenientes de dois eminentes juristas brasileiros, certamente resumem todas aquelas que utilizaremos nas modestas considerações inseridas, não apenas em relação a este tópico.
Isto porque, em que pesem os “interesses”[75] que contaminam a sociedade em geral e não raras vezes, a própria Justiça, não há outro bem maior, hábil a figurar como razão de ser do Direito, que não a dignidade da pessoa, nela incluída o próprio direito à vida (digna).
Ousamos afirmar que qualquer tutela jurídica realizada em detrimento da dignidade humana, não é, na essência, expressão do Direito justo, baseado, portanto, no princípio neminem laedere.
O Prof. RICARDO DIP aborda o tema sob um prisma ainda superior, ao abordar a primazia histórica do reconhecimento da dignidade humana, de acordo com a doutrina bíblica “do homem imago Dei e ao Cristo que, feito homem, é também imagem do Deus invisível”.[76]
A dignidade humana é considerada princípio fundador dos direitos do homem e traduz, segundo JEAN-JACQUES ISRAEL, Professor da Université de Paris XII (Faculté de Droit de Paris Saint-Maur)[77], “a própria essência da concepção humanista da consciência universal originária de uma exigência ética fundamental”.
O autor enfatiza que a dignidade humana é princípio já implicitamente contido, dentre outras, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de agosto de 1789. Não apenas, é explicitamente consagrado em diversos instrumentos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, Convenção Européia de Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem.[78]
Ainda, na mesma obra, p. 387, o Prof. JEAN-JACQUES é objetivo ao afirma que a dignidade humana é, por excelência um princípio fundador:
“Os componentes desse princípio são particularmente ricos, já que são de interesse do direito penal, do direito civil e do direito social como direito público. Esses componentes são também complexos, já que o princípio fundamenta simultaneamente regras de direito e objetivos juridicamente sancionados.”
O conceito de dignidade humana como o conhecemos em nosso ordenamento, em especial a partir da Constituição Federal, também mantém estreita relação com o neminem laedere.
A idéia de dignidade humana está, ainda, diretamente ligada à concepção de direitos humanos, que, segundo o MARCOS JOSÉ GOMES CORRÊA[79], “são o conjunto de direitos que torna possível a existência da pessoa humana e o seu pleno desenvolvimento.”
O autor, também remete a questão ao judaísmo, como propulsor no desenvolvimento dos Direitos Humanos, porquanto o homem, segundo a Bíblia, “fora criado à imagem e semelhança de Deus, daí derivando sua sacralidade e a unidade do gênero humano.”
Conclui que a dignidade humana exige, “do alto de sua autoridade, um setor inteiro do campo do Direito: os direitos humanos, cuja missão é preservar a dignidade humana.” – g.n.
HECTOR FIX-ZAMUDIO, ao analisar os direitos humanos em face dos Tribunais Constitucionais, em um período conturbado pelos regimes militares que governaram diversas nações, a exemplo do Brasil, entende que:
“Paralelamente a la violación tan despiadada de los derechos elementales de la vida y la dignidade del hombre, existe una orientación muy marcada para estabelecer instituciones jurídicas que protejan los derechos fundamentales de la persona humana (…) que nos autorizan a alimentar una esperanza por el triunfo lejano, pero definitivo, de la defensa jurídica de la libertad.”[80]
Neste sentido, a Carta Magna traz como princípio fundamental, em seu art. 1º, III, a dignidade da pessoa humana, in verbis:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) III – a dignidade da pessoa humana;
NELSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY[81] afirmam que os valores fundamentais inseridos na “estrutura político-jurídica da Carta Magna”, enaltecem a realidade fundamental do ordenamento jurídico que é:
“A consideração primordial e fundamental de que o homem é sujeito de direito e, nunca, objeto de direito. (…) É a razão de ser da proteção fundamental do valor da pessoa e, por conseguinte, da humanidade do ser e da ‘responsabilidade que cada homem tem pelo outro[82]’.”
Do que se extrai do texto Constitucional, garantir a dignidade humana, significa a efetiva aplicação dos denominados direitos e garantias fundamentais, dentre eles, os direito individuais e sociais, dispostos nos arts. 5º e 6º da Carta Magna.
ALEX. AP. RAMOS FERNANDEZ bem trata a questão, lembrando que os direitos individuais e fundamentais inseridos na Constituição Federal de 1988, são:
“Pilares de sustentação do sistema a exigência de um Estado de Direito assegurando-se a cidadania, a dignidade da pessoa humana e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sendo que a liberdade de consciência e crença compõe a estrutura desses pilares.”[83] – g.n.
Não lesar outrem e a ninguém ofender, certamente correspondem a uma responsabilidade individual e social, percebida muito antes do Digesto.
ROGÉRIO DONNINI preconiza referido dispositivo constitucional como “cláusula geral da dignidade da pessoa humana” e o conceitua como sendo:
“o respeito à dignidade de todas as pessoas, assim como sua proteção, em qualquer de suas vertentes (saúde, habitação, segurança, etc). Sem a existência desse princípio constitucional o direito não teria qualquer significado, visto que o ser humano, como sujeito de direitos, pratica atos que, por ordem constitucional, devem estar adequados à dignidade do homem.”[84]
O texto constitucional não para por aí, sendo mais específico no título denominado “Dos direitos e garantias fundamentais”, art. 5º, caput: ”Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”
Como observa, em outra obra, o Prof. ROGÉRIO DONNINI, a dignidade humana está inserida na Magna Carta como princípio superior que proíbe ofensa física ou moral e concede proteção a vida digna, “ultrapassa a proteção prevista no art. 5º, caput, da Constituição Federal (…) , com escopo de dar-lhe dignidade, respaldada no artigo subsequente, (art. 6º, caput), para propiciar uma vida com educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade, à infância e aos desamparados”.
Conclui o autor que “isso significa a antiga e, ao mesmo tempo, atual exigência do princípio leminem laedere.”[85]
Neste sentido, também, FLÁVIA PIOVESAN, menciona que o princípio da dignidade humana passa a ser tutelado como fundamental num momento pós Segunda Guerra Mundial. Segundo bem colocado, a figura do homem inserida no art. 1º da Constituição Federal, é entendida como ‘pessoa’:
“de valor próprio indisponível, destinado ao livre desenvolvimento, mas também simultaneamente membro de comunidades, de matrimônio e família, igrejas, grupos sociais e políticos, também do Estado, situado nas relações inter-humanas mais diversas, por essas relações em sua individualidade concreta essencialmente moldado, mas também chamado a coconfigurar responsavelmente a convivência humana.”
A autora também transcreve os dizeres da Ministra Carmen Lúcia, O princípio da dignidade, p. 13, para quem:
“Por tamanha envergadura, afirma-se, no entendimento mais engajado com a ordem constitucional implantada, que ‘princípio constitucional que é, o respeito à dignidade da pessoa humana obriga irrestrita e incontornavelmente o Estado, seus dirigentes e todos os atores da cena política governamental, pelo que tudo que o contrarie é juridicamente nulo.”[86] – g.n.
De acordo com HELMUT COING, o respeito pela dignidade humana deve significar, dentro do ordenamento jurídico, desde o impedimento à ofensa física até mesmo a morte de uma pessoa, porquanto, é dever do direito proteger a vida do cidadão, fato que o autor remete à observância da exigência do ‘neminem laedere’.[87]
Para ele, o direito privado é também determinado pelo princípio em estudo, que por sua vez deriva da justiça e do respeito pelas pessoas, impondo a proibição de violar a vida, o corpo e os direitos de outra pessoa.
O conceito de dignidade humana sob o prisma do neminem laedere, significa também, segundo o autor, “que o direito respeita a pessoa como um ser intelectual, que lhe é dada a possibilidade de organizar sua própria vida, de determiná-la conforme a sua personalidade.”
ROGÉRIO DONNINI[88] enfatiza a existência de outro princípio além da dignidade humana e que guarda relação direita ao dever de não lesar a outrem, qual seja, o “princípio da solidariedade”, nos termos do art. 3º, I da CF: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária.”
Segundo o autor, o princípio da solidariedade tem aplicação através da função social de institutos de direito privado, como a propriedade e os contratos, além do disposto na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, art. 5º, que determina ao juiz atender aos fins sociais e exigências do bem comum na aplicação da lei[89].
Concluindo a questão, o Prof. DONNINI, citando Guido V. Alpa, faz expressa referência à importância da solidariedade nas relações jurídicas, dado o “comportamento individualista” que se tem acentuado cada vez mais no meio social, “motivo pelo qual é primacial sua imposição como valor e princípio constitucional.”
A importância da dignidade humana em nosso ordenamento restou bastante evidenciada no julgado do STF, HC 85988-PA, tendo como relator o Ministro Celso de Mello, publicado em 10.6.2005[90], cuja ementa transcrevemos a seguir:
“A dignidade da pessoa humana é princípio central do sistema jurídico, sendo significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo.”[91]
O princípio da dignidade humana, como se buscou demonstrar acima, também está intrinsecamente ligado ao preceito de Ulpiano, ora em estudo, porquanto, não lesar ou ofender a outrem, significa respeito e garantia à dignidade humana.
VI – Da boa-fé
A expressão boa-fé significa “a intenção pura, isenta de dolo ou engano com que a pessoa realiza o negócio ou executa o ato (…) dentro do justo e do legal.”[92]
De pronto evidencia-se a direta relação entre a noção de boa-fé e o princípio alterum non laedere e neminem laedere, porquanto, agirá dotado de boa-fé quem “não lesar ou ofender a outrem”.
ARISTÓTELES em Ética a Nicômaco[93] aborda a questão da ética de modo a nos remeter ao disposto acima, chamando a atenção para a importância das ações humanas, pois “na verdade, fazer é aprender”.
Deste modo, Aristóteles ressalta que as habilidades do homem, tais como as do construtor, só se desenvolvem pela prática de construir:
“Do mesmo modo também nos tornamos justos praticando ações justas, temperados, agindo com temperança, e, finalmente, tornamo-nos corajosos realizando atos de coragem. (…) Ao agir-se em transação com outrem, tornamo-nos justos ou injustos” – g.n.
Nesta vertente, HANS KELSEN[94] enfatiza ser a justiça representada como uma virtude da conduta moral das pessoas:
“Como todas as virtudes, também a virtude da justiça é uma qualidade moral; e, nessa medida, a justiça pertence ao domínio da moral. Mas a qualidade ou a virtude da justiça atribuída a um indivíduo exterioriza-se na sua conduta: na sua conduta em face dos outros indivíduos, isto é, na sua conduta social.”
É justamente a conduta moral social geral o principal objeto do princípio neminem laedere.
O Código Civil recepciona a boa-fé em diversos dispositivos, sendo pressuposto jurídico em diversas situações. É ela, também, a base diferenciadora entre o atual Código Reale e o Código Bevilaqua de 1916, mais especificamente através das disposições dos arts. 113 e 422, além do já mencionado art. 187[95], in verbis:
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Sobre os dispositivos acima, MARIA HELENA DINIZ[96] tece as seguintes anotações:
“O princípio da boa-fé está intimamente ligado não só à interpretação do negócio jurídico, pois, segundo ele, o sentido literal da linguagem não deverá prevalecer sobre a intenção inferida da declaração de vontade das partes, mas também ao interesse social da segurança das relações jurídicas, uma vez que as partes devem agir com lealdade e também de conformidade com os usos do local em que o ato negocial foi por elas celebrado.”
“O princípio da probidade e da boa-fé está ligado não só à interpretação do contrato (…) mas também ao interesse social da segurança das relações jurídicas, uma vez que as partes têm o dever de agir com honradez, lealdade e confiança recíprocas, isto é, proceder com boa-fé tanto na conclusão do contrato como em sua execução, impedindo que uma dificulte a ação da outra.“
E conclui:
“A cláusula geral contida no at. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes.”
Segundo lição de ALVARO VILLAÇA AZEVEDO, “o princípio da boa-fé assegura o acolhimento do que é lícito e a repulsa ao ilícito (…) traz para a ordem jurídica um elemento de Direito Natural, que passa a integrar a norma jurídica.”[97]
Ao comentar a questão, CARLOS ROBERTO GONÇALVES, reforça a idéia de que o princípio da boa-fé exige um comportamento correto pelas partes, “não só durante as tratativas, como também durante a formação e o cumprimento do contrato.”[98]
Pertinente lembrar que o Código Comercial de 1850, portanto, mais de meio século anterior ao Código Civil de 1916, já previa expressamente a observância da boa-fé nas relações comerciais, conforme dispunha seu art. 131, inciso 1 e 3:
Art. 131. Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases: 1. A inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras; (…) 3. O fato dos contraentes, posterior ao contrato, que tiver relação com o objeto principal, será a melhor explicação da vontade que as partes tiveram no ato da celebração do mesmo contrato. – g.n.
Em gritante descompasso com que já previa o Código Comercial, o Código Civil de 1916, regulava as questões contratuais sem uma única referência ao princípio da boa-fé.
Ao contrário, conforme menciona ROGÉRIO DONNINI em A Constituição Federal e a Concepção Social do Contrato[99], o sistema adotado pelo Código de 1916 vinha:
“amparado no liberalismo marcante de um período de estabilidade social, política e econômica. O contrato, inegavelmente, foi, nessa época, fundamental ao grande progresso econômico mundial, em especial dos países ocidentais, ao possibilitar mais segurança nos negócios, incrementando a lei da oferta e da procura (…) vinculando as partes juridicamente, mas nem sempre de forma equânime, justa e ética”.
Neste contexto, continua o autor, advém o Código Beviláqua, criando um modelo de relação contratual baseado no princípio do pacta sunt servanda, segundo o qual, é garantido ampla liberdade de contratação entre as partes, que assumem todas as obrigações acordadas, devendo cumprir o que foi pactuado.
Conforme bem ponderou o autor, à época do artigo a que se faz referência, tal modelo já “não mais atende às aspirações e necessidades da sociedade atual, haja vista que não se pode mais admitir uma relação contratual sem equilíbrio, iníqua, celebrada com ausência de boa-fé”.
Percebeu-se, portanto, uma mudança no perfil do contrato traçado pelo Código Civil de 1916, muito antes de sua revogação pelo atual Código, no sentido de adaptar a interpretação e aplicação das disposições contratuais garantindo, acima de tudo, uma relação justa entre os contratantes.
ORLANDO GOMES advertia com relação a duas regras gerais da conduta do devedor, quais sejam: “1) o contrato deve ser executado de boa-fé; 2) no cumprimento da obrigação deve ter a diligência do bom pai de família.”[100]
Afirmava, ainda, o Mestre que o princípio da boa-fé “tem sua aplicação às obrigações contratuais, dado que é um corolário do postulado da fé jurada, segundo o qual todo homem deve honrar a palavra empenhada.”.
Com maior veemência, AGOSTINHO ALVIM vaticina que:
“Convém acentuar que a boa-fé nem sempre implica ausência de culpa. O devedor pode, de boa-fé, violar o avençado, pela má apreciação de certos fatos, ou pela errônea interpretação do contrato. Nem por isso se exonerá de responder. Com efeito, se o êrro fôr de fato, terá havido culpa, pela inadvertência ou negligência. E se fôr de direito, êrro na interpretação do contrato, equivalerá êle ao êrro na interpretação da lei, e tal êrro não se escusa com a boa-fé.” [101]
Em nível de legislação estrangeira, o Prof. DONNINI[102], faz referência ao fato de que, os Códigos Civis italiano, francês e alemão, já traziam dispositivo específico referente à boa-fé:
“Não são poucas as normas da parte geral dos contratos no Codice Civile italiano que fazem referência ao princípio da boa-fé. O art. 1.366 prevê que o contrato deve ser interpretado segundo a boa-fé. Quando da tratativa e responsabilidade pré-contratual, estabelece o art. 1.337: “Tratativas e responsabilidade pré-contratuais – As partes, no desenvolvimento das tratativas e na formação do contrato, devem se comportar segundo a boa-fé.” Em outro artigo desse mesmo código está estatuído que o contrato deve ser realizado segundo a boa-fé (art. 1.335). Na legislação peninsular, o princípio da boa-fé é considerado uma regra áurea das obrigações (art. 1.175).
Em França, continua o autor, o Código Civil dispõe que os contratos devem ser executados de boa-fé. O art. 1.134 do Code Napoléon estabelece, no que se refere à execução dos contratos, o seguinte: “Elles doivent être exécutées de bonne foi”[103].
A lei civil substantiva tedesca (Bürgerliches Gesetzbuch – BGB) adotou expressamente o princípio da boa-fé. O §157 estatui que ‘os contratos devem ser interpretados como exigem a boa-fé e a intenção das partes determinada segundo os usos’ No mesmo sentido o § 242 do BGB reza que ‘o devedor é obrigado a efetuar sua prestação como exigem a boa-fé e a intenção das partes determinada segundo os usos.”
GUIDO ALPA[104], tratando a questão da boa-fé, especificamente a mudança positiva na aplicação do instituto, pela doutrina e jurisprudência italiana, afirma que:
“A decorrere dagli anni Settanta, grazie ai nuovi indirizzi della dotrinna, la giurisprudenza, dapprima di merito, e poi di legittimità, comincia ad applicare in modo piú frequente la clausola generale di buona fede.”[105]
Com relação ao Direito Civil alemão, HAMRRIET CHRISTIANE ZITSCHER[106], ao abordar a estrutura e o caráter do BGB, esclarece que o mesmo é marcado por dois princípios gerais: a cláusula de boa-fé (§§ 157, 242) e a dos bons costumes (§§ 138, 826).[107]
Ainda explorando as lições de HAMRRIET CHRISTIANE ZITSCHER, deparamo-nos com a importância da boa-fé para o direito alemão, porquanto trata-se de uma “cláusula que domina todo o ordenamento jurídico alemão”, cuja aplicação pressupõe um vínculo pré-existente, mas não obrigatoriamente contratual, entre aquele que invoca o princípio a quem tem o dever de comportar-se em respeito ao mesmo e “limita o exercício de direitos no caso de abuso.”[108]– g.n.
Menciona, a autora, as funções principais da cláusula da boa-fé, no ordenamento jurídico alemão, são:
“oferecer um critério para determinar o modo da prestação (função de concretização), ampliar obrigações, especialmente por meio de criação de deveres acessórios (função de complemento), limitar o exercício de direitos e fornecer uma base para a aplicação do instituto de caducidade no direito alemão (função de limitação) e ter facilitada a volta do instituto pandectista cláusula rebus sic stantibus no ordenamento jurídico (função corretora).
Essa disposição vem em total sintonia às assertivas de ROGÉRIO DONNINI[109], com relação à boa-fé ainda sob a égide do Código Civil de 1916, no sentido de que:
“O princípio da autonomia da vontade não autoriza que se pactue contrariamente aos ideais de justiça. Essa é a função social do contrato, hoje enaltecida, mas que sempre deveria ter existido nas relações contratuais, pois está intimamente ligada à idéia de comutatividade ou justiça comutativa[110]”.
A questão nos remete novamente aos dizeres de HELMUT COING, para quem, o direito privado mantém suas regras contratuais com base na justitia commutativa, utilizando-se do valor ético da lealdade. “Contratos devem ser realizados sem coação ou fraude; eles dever ser cumpridos segundo o princípio da boa-fé.”[111]
Neste mesmo sentido, já concluía, LUDWIG ENNECCERUS, com relação à boa-fé:
“La buena fe prohibe, en primer lugar, que se cometa abuso con pretensiones jurídicas formal o aparentemente fundadas. La buena fe quiere proteger al deudor contra las exigencias impertinentes, que choquen contra el derecho y la equidad.”[112]
MIGUEL REALE, ao tratar da questão da boa-fé, vaticina que:
“A boa-fé não constitui um imperativo ético abstrato, mas sim uma norma que condiciona e legitima toda a experiência jurídica, desde a interpretação dos mandamentos legais e das cláusulas contratuais até as suas últimas conseqüências. – g.n.
Daí a necessidade de ser ela analisada como conditio sine qua non da realização da justiça ao longo da aplicação dos dispositivos emanados das fontes do direito, legislativa, consuetudinária, jurisdicional e negocial.”[113]– g.n.
Registra o Mestre, no mesmo artigo, que a boa-fé “apresenta dupla faceta, a objetiva e a subjetiva”. A primeira apresenta-se como uma “exigência de lealdade”, caracterizando-se como modelo objetivo de conduta social correspondente ao poder-dever de cada pessoa ajustar a própria conduta a esse modelo, “obrando como obraria uma pessoa honesta, proba e leal”. A segunda corresponde a uma atitude psicológica, isto é, “uma decisão da vontade, denotando o convencimento individual da parte de obrar em conformidade com o direito.” A conduta, segundo a boa-fé objetiva, corresponde à noção de “honestidade pública”. – g.n.
Importante notar-se, conforme bem observa CARLOS ROBERTO GONÇALVES, que a boa-fé subjetiva já se encontrava presente no Código de 1916, como regra de interpretação do negócio jurídico (…) “Serve à proteção daquele que tem consciência de estar agindo conforme o direito, apesar de ser outra a realidade”.[114]
A boa-fé subjetiva, assim, significa a noção de entendimento equivocado, em erro que compromete o contratante.
Ocorre, destaca o autor supra, que é a boa-fé objetiva que constituiu inovação no Código de 2002, constituindo-se em uma norma jurídica com fundamento em um princípio geral de direito, pelo qual todos devem comporta-se com boa-fé nas relações recíprocas. “Classifica-se, assim, como regra de conduta (…) É, portanto, fonte de direito e de obrigações.”
Deste modo, concluiu o autor, a boa-fé é tanto forma de conduta (subjetiva ou psicológica) como norma de comportamento (objetiva). A objetiva, fundada na honestidade, retidão, lealdade e consideração para com os interesses do outro contraente, “especialmente no sentido de não lhe sonegar informações relevantes a respeito do objeto e conteúdo do negócio”.[115]
MARIO JULIO DE ALMEIDA COSTA coloca a questão da boa-fé em face da autonomia privada, os limites legais e a figura da Estado-juíz na solução dos conflitos.
Pondera o autor que: “a consagração do princípio da boa fé implica, como melhor se verificará, uma específica valoração jurisprudencial ético-jurídica para solução do caso concreto. O acento tônico ético-valorativo coloca-se, respectivamente, no momento da feitura da lei e no momento judicial da decisão.”[116] – g.n.
Percebamos que o conceito de boa-fé nos moldes inseridos no ordenamento jurídico atual, impõe sua observância exatamente nos termos colocados pelo autor supra, ou seja, boa-fé nas relações sociais, boa-fé legislativa e boa-fé na aplicação da jurisdição na solução dos conflitos, evidenciando a destacada responsabilidade atribuída ao juiz no julgamento do caso concreto.
A importância desses conceitos éticos que envolvem a figura da boa-fé coroada pelo atual Código Civil, nos remete ao escopo principal do princípio neminem laedere, cuja importância também se evidencia nas palavras de SAVIGNY:
“A essência da obrigação deve ser relacionada a duas pessoas diferentes. Para uma, ela constitui uma extensão da liberdade, o domínio sobre uma vontade estranha; para a outra, uma restrição da liberdade, a submissão a uma vontade estranha.”[117]
TERESA NEGREIROS[118] ao analisar a diferença entre boa-fé subjetiva e objetiva, afirma que a boa-fé objetiva vai muito além dos critérios de qualificação do comportamento do sujeito, antes, impõe deveres, “constituindo-se numa autêntica norma de conduta”. [119]
A importância da boa-fé, como obrigação de fonte legal, nos termos do art. 422 do Código Civil, é, com propriedade peculiar, destacada por JUDITH MARTINS-COSTA:
“Os negociadores, conquanto ainda não vinculados por deveres de prestação, se devem, reciprocamente, o resguardo contra danos resultantes de uma violação dos deveres de proteção derivados do imperativo de agir segundo a boa-fé (art. 422) no período das tratativas. Significa dizer, portanto que, no curso das negociações preparatórias de um contrato existe entre os interessados uma relação jurídica obrigacional de fonte legal, sem deveres primários de prestação, mas que se pode revestir por deveres de proteção.”[120]
A autora prossegue abordando a questão com referência expressa ao princípio leminem laedere, conforme abaixo transcrevemos:
“Esses deveres, podendo nascer antes dos deveres de prestação, exprimem a necessidade de tomar em consideração os interesses justificados da contraparte e de adotar o comportamento que se espera de um parceiro honesto e leal de modo a fundamentar uma ‘ordem especial de proteção’ dos bens pessoais e patrimoniais das partes contratantes. Essa ‘ordem especial de proteção’ suplanta ‘o mandamento genérico de neminem laedere, aplicável à indiferenciada convivência social’, justificando-se pela existência potencial de riscos derivados da situação especial de proximidade pré-negocial.”
Percebe-se, assim, inserido no Código Civil brasileiro como preceito legal, o princípio neminem laedere, com o mesmo objetivo traçado por Ulpiano.
Além das disposições atuais do Código Civil, merecem destaque as disposições do Código de Defesa do Consumidor – mais de uma década anterior ao atual Código – e que trata expressamente a boa-fé objetiva, como princípio a ser seguido para harmonização dos interesses nas relações de consumo, nos moldes do art. 4º, III[121] e como critério definidor de abusividade das cláusulas contratuais, conforme disposição do art. 51, IV[122].
Novamente fazemos menção a TERESA NEGREIRA, que afirma, na mesma obra acima, ter sido no sentido objetivo que a boa-fé, como cláusula geral, foi consagrada pelo CDC, sendo fundamento para declaração de nulidade a qualquer cláusula contratual que não a observe.[123]
Continua a autora, ao analisar a inserção da boa-fé no CDC e posteriormente no Código de 2002 que:
“A consagração da boa-fé no CDC expressa uma tendência que já se fazia sentir nas tentativas de reforma do Código Civil e de elaboração de um Código das Obrigações. No novo Código Civil, a boa-fé é definida não somente como critério de interpretação da declaração da vontade (at. 113) e de valoração da abusividade no exercício dos direitos subjetivos (art. 187), mas, igualmente, como uma regra de conduta imposta aos contratantes (art. 422).”
O art. 422 do Código Civil, acima transcrito, corresponde, ainda, a uma “norma aberta”. Tendo por base a lealdade, confiança e probidade, princípios inseridos no referido dispositivo, “cabe ao juiz estabelecer a conduta que deveria ter sido adotada pelo contratante, naquelas circunstâncias, levando em conta ainda os usos e costumes.(…) Se houver contrariedade a conduta é ilícita porque violou a cláusula da boa-fé”.[124]
Na mesma vertente, ROGÉRIO DONNINI ao tratar da boa-fé objetiva, ressalta que a mesma imposição de comportamento honesto, correto, ético, equilibrado, não apenas nas relações contratuais, mas em qualquer outra relação jurídica, nos termos do art. 422 do Código Civil, se repete no art. 4º, III do Código de Defesa do Consumidor.
“Trata-se de verdadeira cláusula geral, e não mero princípio. Infere-se, portanto, que a cláusula geral de probidade e boa-fé determina um comportamento ético, correto, segundo a moral, não somente nas relações contratuais, mas em todas as relações jurídicas.”[125]
Ao tratar das inovações introduzidas pelo Código de Defesa do Consumidor, GUSTAVO TEPEDINO ressalta que todos os dispositivos protetivos expressam e dão concretude a princípios como o da boa-fé objetiva, do equilíbrio das prestações e da vulnerabilidade. Segundo o autor:
“O princípio da boa-fé objetiva revela-se em um conjunto de deveres anexos ao regulamento contratual, aplicável às fases pré-contratual, contratual e pós-contratual (…) exige dos contratantes transparência e lealdade (…) se apresentaria como norma de comportamento, impondo tanto deveres positivos (colaboração, informação), como deveres negativos (lealdade, sigilo).”[126]
Novamente podemos afirmar que todas as disposições acima nos remetem a idéia central de “a ninguém ofender”, “não lesar a outrem”, expressas pelo princípio neminem laedere em estudo.
VII – Conclusão
O estudo do princípio alterum non laedere ou neminem laedere, foi, antes de tudo, uma grata e enriquecedora experiência acadêmica.
O estudo realizado teve como objetivo principal destacar, não apenas sua importância e influência na vida social e jurídica, mas também a profundidade do tema, extremamente antigo e absolutamente atual.
Dentro do contexto deixado por Ulpiano “viver honestamente, não lesar a outrem, dar a cada um o que é seu”, a conduta social humana seria perfeita e equilibrada, de modo que, o princípio neminem laedere pode ser considerado o resumo ou pedra angular de todo o conceito do jurisconsulto romano, porquanto, “não lesar nem ofender a outrem” também significa “viver honestamente e dar a cada um o que é seu”.
Os conflitos sociais, salvo raríssimas exceções (se é que há), existem e sempre existiram a partir de condutas, ora egoístas, ora mesquinhas, ora perversas, mas todas movidas pelo interesse próprio ou de alguns, em detrimento de outros. Em outras palavras, estamos carentes de boa-fé nas relações sociais e jurídicas.
Ausente a boa-fé, o ordenamento impõe a responsabilidade civil como forma de reverter ou, ao menos, amenizar os danos causados a outrem, do que se percebe forte elo com o princípio de Ulpiano. Não lesar a outrem, mas lesando, surge o dever reparador.
Também está distante do ideal proposto a partir do neminem laedere, uma sociedade que sofre com desigualdades sociais, violência, ausência de saúde, educação, saneamento básico, emprego, previdência social, salário justo (este, da forma idealizada pela Constituição Federal, art. 7º, IV[127]), erradicação da miséria, dentre outras necessidades vitais, todas expressamente previstas no texto Constitucional como direitos individuais e sociais, em respeito à dignidade humana, princípio, conforme buscamos demonstrar, intimamente ligado à idéia do neminem laedere.
Atender ao princípio neminem laedere é garantir, na prática, o que a legislação exaustivamente determina. Significa um Estado que se coloca como exemplo de moralidade e probidade e não apenas que cobra condutas honestas de seus jurisdicionados.
Como exigir boa-fé nas relações sociais se, a começar pelos representantes do povo, pelos administradores do Estado e detentores do poder, em todas as suas esferas, são, salvo raríssimas exceções, os primeiros a agir com absurda má-fé e, até mesmo, criminalidade.
Do antigo ao novo Testamento, passando pelos gregos, jurisconsultos romanos, inúmeros filósofos, tratados internacionais, legislações estrangeiras e nacionais, o princípio alterum non laedere ou neminem laedere não é novidade há tempos.
Não ofender nem lesar a outrem são atitudes que também reforçam o Estado Democrático de Direito, a busca pela boa-fé e efetiva observância ao princípio da dignidade humana, entre os particulares e a começar Estado em todos os seus Poderes e esferas.
Talvez a sociedade esteja, de modo geral, carente da efetiva prática do princípio neminem laedere!
Informações Sobre o Autor
Wilson de Alcântara Buzachi Vivian
Advogado. Mestre em Direito e pós-graduado em Direito Imobiliário pela FADISP – Faculdade Autônoma de Direito