Resumo: O instituto da prisão civil por dívidas tem sofrido grandes transformações ao longo do tempo. Dentro do assunto, dedicaremos exclusividade à prisão do depositário infiel, visto que tem provocado a formação de diversas correntes doutrinárias quanto a permissão de sua utilização. Discutem-se a constitucionalidade e até mesmo, a utilidade dessa medida na atualidade. O Brasil, após passar por um longo período de incerteza, demonstra vir caminhando rumo ao consenso da proibição dessa medida privativa de liberdade.
Palavras-chave: Prisão. Prisão Civil. Alienação Fiduciária. Tratados Internacionais. Dignidade da Pessoa Humana.
1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O Direito, por ser uma ciência que lida com questões fundamentais relacionadas ao homem, sofre constantes mudanças para se amoldar perfeitamente à realidade e desempenhar seu papel com primor.
Um dos assuntos com os quais a ciência jurídica trabalha é o meio utilizado pelo Estado para a consecução de seus objetivos. Nesta seara, ganha destaque a pena privativa de liberdade que desde os primórdios é utilizada pelo homem.
Neste contexto, por ser algo muito utilizado no meio social, faz-se de notória importância distinguir as modalidades de prisão, que podem se dar tanto no âmbito penal e administrativo, quanto civil.
Dos diversos modos que a prisão pode tomar, nosso trabalho tem como foco a prisão civil. Trata-se de um instituto que há muito vem ocasionando grandes debates que não se limitam ao meio acadêmico, alcançando também nossos colendos tribunais.
Para a obtenção de um entendimento satisfatório acerca do assunto, inicialmente este estudo procede a algumas definições que se fazem imprescindíveis. Em seguida caminha rumo ao ponto central da pesquisa e analisa o contexto hoje existente acerca da prisão civil do depositário infiel.
2 – PRISÃO
Nos dizeres do ilustre doutrinador Álvaro Villaça Azevedo[1] prisão é um ato de apoderamento físico, em que o aprisionado fica limitado em sua liberdade e sob sujeição de alguém; atualmente, sujeito à autoridade legitimada à realização desse ato.
Conforme dito anteriormente, a prisão pode ser fundada tanto em norma de natureza penal, administrativa ou civil.
Segundo Fábio Ramazzini Bechara[2], a prisão administrativa é decretada por órgão estranho à estrutura do Poder Judiciário. Não detém a função jurisdicional stricto sensu. Álvaro Villaça[3] assevera ainda que é decretada na defesa dos interesses do serviço público, mantendo a ordem e a seriedade que nele devem reinar.
A prisão penal
“[…] está prevista na legislação criminal e é decretada quando os princípios reconhecidos por esta são ameaçados ou violados. Ela apresenta, fundamentalmente, o caráter de pena, de punição. Essa pena, ainda que vista sob a situação de segregar pessoa perigosa da sociedade, seja não só para puni-la, mas para educá-la, recuperá-la, ela encontra fundamento na legislação criminal específica, pertencendo ao âmbito da Ciência Jurídica Penal. A prisão penal, portanto, decorre da aplicação de pena criminal, em razão da prática de ato ilícito penal, assim definido como crime ou contravenção”. [4]
Já a prisão civil, para o conceituado jurista Pablo Stolze[5] trata-se de uma “medida de força, restritiva da liberdade humana, que, sem conotação de castigo, serve como meio coercitivo para forçar o cumprimento de determinada obrigação.” Álvaro Villaça Azevedo, por sua vez, entende que
“[…] é a que se realiza no âmbito estritamente do Direito Privado, […] e que se consuma em razão de dívida impaga, ou seja, de um dever ou de uma obrigação descumprida e fundada em norma jurídica de natureza civil.”
Embora seja possível fazer essa classificação, parece sensata a opinião de Aline Paula Gomes Costa[6]:
“A distinção entre a prisão civil e a prisão criminal é apenas teleológica, pois, na prática, a produção de efeitos é semelhante nos sujeitos passivos, tendo em vista que têm eles sua liberdade restrita, ainda que por cometimento de ilícitos naturalmente diferentes. A prisão, seja civil seja criminal, traduz restrições ou sacrifícios relevantes aos direitos fundamentais da pessoa humana, cujo respeito é um dos deveres essenciais do Estado. Daí porque a sua utilização deve ser limitada aos casos de extrema necessidade.”
2.1 – PRISÃO CIVIL
Segundo Álvaro Villaça Azevedo[7] a “prisão civil é o ato de constrangimento pessoal, autorizado por lei, mediante segregação celular, do devedor, para forçar o cumprimento de um determinado dever ou de uma determinada obrigação.”
O ilustríssimo autor, em outro trecho[8] de sua obra, ensina que, em sentido prático, a prisão civil é utilizada para proporcionar a satisfação de um interesse econômico. Mattirolo[9] entende que tal fato “constitui-se em flagrante violação dos princípios fundamentais do direito e é um absurdo econômico.” E dá continuidade alegando que “a personalidade do indivíduo não é e não pode ser corpus vile, sobre o qual seja lícito fazer o experimentum; ela tem razão e dignidade de fim, não pode ser reduzida à condição de simples meio.”
Nesse mesmo entendimento, a Constituição Federal de 1988, lei máxima do ordenamento jurídico, tratou de proibir a utilização desse instituto, fazendo ressalva apenas a duas possibilidades: a do depositário infiel e a do devedor de pensão alimentícia. O art. 5º, LXVII assim versa: “Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.”
Oportuno se faz lembrar nesse momento que tal dispositivo encontra-se situado no Título II, que se refere aos tão famigerados Direitos e Garantias Fundamentais. O Brasil, por ser um Estado Democrático de Direito, tem como um de seus pontos centrais, o respeito a tais direitos. Assim, fica claro que a intenção do legislador originário da CF/88 não era determinar a prisão civil, dada sua desnecessidade nos tempos modernos, mas apenas permiti-la em algumas exceções.
Diante da permissão constitucional da prisão civil do depositário infiel, coube ao poder legislativo regulamentar o assunto a nível infraconstitucional. O código civil de 2002 – lei nº 10.406 – determina em seu art. 652 que “Seja o depósito voluntário ou necessário, o depositário que não o restituir quando exigido será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano, e ressarcir os prejuízos.”
Diante de tal preceito, verifica-se que não importa se o depósito é feito por livre e espontânea vontade das partes (voluntário) ou se é resultante de fatos imprevistos e irremovíveis (necessário), sendo que vindo a ocorrer a recusa do depositário de devolver o bem a ele confiado poderá ocorrer a prisão como determina o artigo.
A lei nº 5.869/73, atual Código de Processo Civil, é outro diploma que regulamenta o depósito, destinando capítulo específico para sua ação.
Como anota Carlos Roberto Gonçalves[10]
“[…] só há interesse para a propositura da ação de depósito quando se tratar de depósito contratual e o depositário não restituir a coisa que recebeu para guardar. Quando a hipótese é de depósito judicial, a ação não se faz necessária, uma vez que o depositário é mero detentor, podendo o juiz, nos próprios autos em que se constituiu o encargo, determinar, por simples mando, a busca e apreensão da coisa, restituindo-a a quem de direito”.
Desse modo, para o ingresso da ação de depósito se faz necessário que o contrato tenha sido celebrado por livre vontade das partes, já que se assim não for e tendo sido ordenado por juiz, não é preciso abertura de nova ação, visto que nos próprios autos poderá ser ordenado devolução da coisa depositada.
3 -DEPÓSITO
Cumpre, inicialmente, expor alguns dos posicionamentos existentes no cenário jurídico acerca do instituto denominado depósito, suas características e classificações a fim de proporcionar melhor compreensão do estudo.
Segundo Carlos Roberto Gonçalves[11] “depósito é o contrato em que uma das partes, nomeada depositário, recebe da outra, denominada depositante, uma coisa móvel, para guardá-la, com a obrigação de restituí-la na ocasião ajustada ou quando lhe for reclamada.” Um exemplo citado por Maria Helena Diniz[12] e que demonstra com precisão o que vem a ser um depósito tem-se quando determinado indivíduo obrigado a retirar-se temporariamente do país, não podendo consigo levar seus pertences e não tendo com quem deixá-los, contrata uma outra pessoa para guardá-los e conservá-los até o seu retorno. Nesse caso, tem-se o depósito.
O depósito é uma modalidade de contrato que possui capítulo específico em nosso Código Civil, estando sua matéria disciplinada do artigo 627 ao 652. E por sua complexidade, essa modalidade contratual possui características próprias.
A primeira delas diz respeito à sua finalidade. O texto do artigo 627 deixa claro que o depositário receberá o bem para guardá-lo, devendo devolvê-lo quando solicitado pelo depositante. Em outros contratos, a tomar como exemplo o comodato, o mandato e até a locação, também ocorrem a obrigação de guarda do bem. Todavia, esse dever é de cunho secundário, não lhes sendo uma característica essencial. Já a mesma configuração não se verifica no depósito, visto que a guarda lhe é inerente.
A temporariedade é outra especificidade do depósito, visto que o depositário deverá guardar o bem para, posteriormente, restituí-lo ao depositante no momento em que este o reclamar. Logo, não há perpetuidade.[13] Embora às partes caiba o direito de fixar o momento para a devolução do bem, pode o depositante, em regra, requerer a entrega antes do advento do termo. Importante ressaltar o ensinamento de Carlos Roberto Gonçalves[14] que “a obrigação imposta ao depositário, de restituir a coisa no momento em que lhe for exigida, é pressuposto de tamanha significação que, se for relevada, já não haverá depósito.” Aquele que descumpre a obrigação de restituir a coisa depositada sem apresentar justificativa para tal é denominado depositário infiel.
Outro elemento característico é a natureza móvel da coisa depositada. Nesse ponto, o artigo 627 também não foi omisso, determinando expressamente que o bem depositado deva ser móvel. Contrariando o exposto na norma material, modernamente tanto a doutrina quanto a jurisprudência já aceitam a possibilidade de se colocar em depósito um bem imóvel, assim também como o art. 666, II do Código de Processo Civil.[15]
Dada a natureza real do depósito, não é suficiente o acordo de vontades para que se dê o aperfeiçoamento do contrato. Faz-se necessário que ocorra a efetiva entrega da coisa pelo depositante ao depositário. Vale ressaltar que tal entrega não permite o uso do bem pelo depositário, muito menos importa transferência de propriedade.
Após explicar suas características, parte-se para uma breve noção das diferentes classificações que o depósito pode tomar. O Código Civil de 2002 divide o depósito em duas espécies: o voluntário (art. 627 ao 646) e o necessário (art. 647 ao 652), de modo que cada uma obteve seção autônoma no aludido diploma.
Sílvio Rodrigues[16] ensina que “depósito voluntário é aquele livremente ajustado pelas partes, sem pressão das circunstâncias externas”. Como o próprio jurista explica, normalmente trata-se de uma incumbência conferida a uma pessoa em quem se confia, como por exemplo, um amigo. Diante desse contexto, é válido destacar que originariamente o depósito caracteriza-se por ser gratuito, sendo que a atual legislação permite que haja onerosidade.
Outro aspecto importante acerca do depósito voluntário reside no fato de que conquanto o art. 646 do Código Civil determine que sua prova deva ser feita por escrito, o mesmo é considerado não solene. Isso quer dizer que não é exigida forma especial para sua celebração. Sílvio Rodrigues[17] entende que “a idéia do legislador, ao reclamar prova por escrito do depósito voluntário, foi apenas impedir a prova exclusivamente testemunhal, capaz de conduzir às maiores iniqüidades.” Continua o autor que “embora o depósito se aperfeiçoe independentemente de qualquer documento, mister se faz, para provar-se, um começo de prova escrita”.
O depósito necessário nos dizeres de Maria Helena Diniz[18] é “
“aquele que independe da vontade das partes, por resultar de fatos imprevistos e irremovíveis, que levam o depositante a efetuá-lo, entregando a guarda de um objeto a pessoa que desconhece, a fim de subtraí-lo de uma ruína imediata, não lhe sendo permitido escolher livremente o depositário, ante a urgência da situação.”
Essa modalidade, grosso modo, subdivide-se em depósito legal, quando feito em desempenho de obrigação legal; miserável, aquele realizado em ocasião de calamidades e o depósito dos hospedeiros, que tem por objeto as bagagens dos hóspedes ou viajantes.
Ao contrário do que se dá no depósito voluntário, o requisito da prova escrita não é essencial, podendo ser utilizado qualquer meio admissível em direito.
Outra classificação, presente no âmbito doutrinário, é em relação ao depósito regular e irregular. Tem-se irregular quando do “depósito de coisas fungíveis, no qual o depositário não precisa devolver exatamente a coisa que lhe foi confiada, podendo restituir coisas da mesma espécie, quantidade e qualidade.” [19]
Já o depósito regular ou ordinário é “o atinente à coisa individuada, infungível e inconsumível, que deve ser restituída in natura, isto é, o depositário deverá devolver exatamente a própria coisa depositada.” [20]
Cabe ainda distinguir o contratual e o judicial. O primeiro resulta de um acordo de vontades, com livre escolha do depositário pelo depositante. Já o segundo é determinado por mandado por juiz, entregando a coisa móvel ou imóvel, que é objeto de um processo, com finalidade de preservá-la até que se decida o seu destino.[21]
4 – TRATADOS INTERNACIONAIS
Um dos pontos mais polêmicos no que diz respeito ao contrato do depósito é a divergência em sua regulamentação. As diversas normas hoje aplicadas em nosso ordenamento jurídico, internas e externas, não encontram consonância acerca do assunto.
Como dito anteriormente, a CF/88 proíbe a prisão civil por dívida, permitindo, todavia, tal medida privativa de liberdade nas hipóteses do depositário infiel e do devedor de alimentos. No que concerne ao depositário infiel – tema desse trabalho – o Código Civil abriu capítulo próprio para esta modalidade contratual e o Código Processual Civil veio normatizar sua ação.
Analisando a legislação internacional, merecem destaque o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Ambos os diplomas foram recepcionados pelo Brasil e trazem dispositivos acerca da prisão civil, só que de modo contrário à legislação interna.
O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos foi recepcionado pelo ordenamento brasileiro através do Decreto-Legislativo n. 226, de 12 de dezembro de 1991, entrando em vigor em 24 de abril de 1992. Tal diploma determina em seu art. 11 que “ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual”.
Já a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) ao determinar em seu art. 7º, § 7º que ninguém será detido por dívidas, acabou por proibir a prisão civil do depositário infiel, somente permitindo-a na hipótese de dívida alimentar. E tal convenção também possui aplicabilidade em nosso Estado visto que foi recepcionada pelo Decreto Legislativo 27, de 25/09/1992, e promulgada pelo Decreto 678, de 06/11/1992.
Comprova-se, destarte, que a atual legislação em vigor está em completa desarmonia, trazendo, de certo modo, insegurança jurídica à sociedade. Os diversos graus de jurisdição não encontram sintonia em suas decisões e a doutrina, do mesmo modo, não consegue chegar a um consenso.
Maria Helena Diniz[22] entende que:
“[…] a norma constitucional (art. 5º, LXVII) e o art. 652 do Código Civil não podem sofrer interpretação conducente ao reconhecimento de que o Brasil, mediante o Pacto de São José (art. 7º, n. 7), teria interditado a prerrogativa de exercer, entre brasileiros e no plano interno, a competência institucional, visto que tratados e convenções internacionais só são aplicáveis a fatos interjurisdicionais, pois não têm o condão de restringir a eficácia do comando constitucional relativamente à questão que envolva depositante e depositário brasileiros.”
Uma das principais fontes do debate reside no §3º do art. 5º da CF/88, que determina que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.
Fernando Capez[23] entende que o Pacto não se enquadrou no dispositivo acima, valendo como mera legislação inferior, sem possibilidade de alterar a CF/88, uma vez que obtendo aprovação anteriormente à emenda, não obedeceu ao quórum exigido pela mesma. O autor aduz que se o diploma
“[…] tivesse índole constitucional, teria revogado a redação original da CF, pois estaria ampliando a proteção aos direitos humanos. Ocorre que, como referido tratado não foi submetido a nenhum quorum qualificado em sua aprovação, sua posição é subalterna no ordenamento jurídico, de modo que não pode prevalecer sobre norma constitucional expressa, permanecendo a possibilidade de prisão do depositário infiel. Qualquer tratado internacional, sem o preenchimento dos requisitos exigidos pela EC n. 45/04, não pode sobrepor-se a norma constitucional expressa. Não passa de legislação ordinária.”
Resumindo, quer dizer que, para o autor, o Pacto de São José da Costa Rica não passa de mera legislação infraconstitucional, não podendo, desse modo, alterar norma constitucional, o que convalida, por conseqüência, o art. 5º, LXVII da CF/88.
Em relação ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que prevê a impossibilidade de prisão pela inadimplência de obrigação contratual (art. 11), César Fiuza[24] aduz:
“A norma se centra no verbo “poder”, referindo-se claramente àqueles casos em que o devedor inadimplente se encontre em situação de penúria, não tendo como pagar suas dívidas. Evidentemente, a disposição não se aplica ao depositário infiel, que não se define como aquele que não pode, por motivo justo, como a penúria financeira, restituir a coisa depositada. Depositário infiel é aquele que, injustificadamente, deixa de restituir a coisa. Mais acima, vimos que é possível ao depositário recusar-se à restituição, desde que tenha, para tanto, motivo justo. Neste caso, não caberia impor-lhe pena de prisão. Por outro lado, se sua conduta é injustificada, se se nega a restituir a coisa sem justo motivo, será considerado depositário infiel, podendo ser decretada sua prisão civil”.
O autor entende que não há divergência quanto aos tratados internacionais e os dispositivos nacionais, o que ocorre é uma má interpretação da Lei e dos objetivos da prisão civil, que não são os mesmos da prisão penal.
Odete Novais C. Queiroz[25], por sua vez, posiciona-se contrária à prisão do depositário infiel por entender que, desproporcional é a aplicação da prisão em face do inadimplemento contratual e da ausência de periculosidade do apenado civil. A autora, escudada em Otto Bachof, afirma que diante do conflito entre o art. 5º, LXVII, e o art. 1º, III, da Carta Magna deve-se entender a inconstitucionalidade da norma constitucional contida no inciso LXVII do art. 5º, aplicando-se na solução dessa antinomia o critério do justum, em defesa do valor liberdade, dando prevalência ao tratado por ser mais benéfico.
Flávio Piovesan[26] também entende ser incabível a prisão civil do depositário infiel. Defende seu posicionamento baseando-se no que dispõe o §2º do art. 5º da CF/88, que assim versa: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
O ilustre doutrinador ensina que em face de tal dispositivo o Pacto de São José da Costa Rica é materialmente constitucional, o que implica, por conseqüência, a inconstitucionalidade do art. 652 do Código Civil.
5 – DEPOSITÁRIO INFIEL E ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA
Um ponto de extrema relevância que não podia passar despercebido a este estudo refere-se à equiparação do devedor-fiduciante ao depositário infiel.
A alienação fiduciária em garantia, segundo Arnold Wald[27], é “todo negócio jurídico em que uma das partes (fiduciante) aliena a propriedade de uma coisa móvel ao financiador (fiduciário), até que se extinga o contrato pelo pagamento ou pela inexecução.”
Aline Paula Gomes Costa[28] ensina que
“O contrato em questão ocorre nas hipóteses em que um interessado em determinado bem, que não dispõe da importância necessária para adquiri-lo, realiza um contrato com uma instituição financeira a qual paga ao vendedor a importância do bem, tornando-se credor desta importância. A peculiaridade do instituto está em que a propriedade do bem passa à financeira, a qual detém a posse indireta, enquanto o adquirente passa a deter a coisa como possuidor direto e depositário. Pago o preço do financiamento, a propriedade se transfere plenamente ao adquirente.”
Esse instituto foi introduzido no ordenamento no ano de 1965, por meio da Lei nº 4.728 em seu art. 66. Posteriormente veio a ser regulamentada pelo Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969.
A criação do Decreto-Lei n. 911/69, como bem preleciona Pablo Stolze[29], deu-se por pressão das instituições financeiras sobre o governo para alteração do sistema Legislativo. Queriam reforçar as garantias já existentes, não sendo suficiente as já asseguradas pelo penhor e pela venda com reserva de domínio.
Como resultado, ao contrário do que previa a Lei n. 4.728/65, o Decreto-Lei n. 911/69 passou a admitir a prisão civil, visto que equiparou o devedor-fiduciante ao depositário infiel. Seu art. 4º assim versa: “Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmo autos, em ação depósito, na forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do Código de Processo Civil.”
Os que estão de acordo com o diploma argumentam que não sendo o devedor proprietário da coisa, deve guardá-la e conservá-la, configurando assim uma típica prestação de depósito. Esse entendimento, todavia, não é consensual no meio jurídico, visto que forte doutrina firma posição contrária. Pablo Stolze[30], por exemplo, ensina que
“[…] o devedor não seria um mero depositário. Afinal, ele utiliza a coisa como verdadeiro proprietário, não tendo, simplesmente, obrigação de conservá-la e restituí-la. Ademais, o depositário não pode, senão quando expressamente autorizado, usar a coisa, nos termos do art. 640 do CC-02, o que não é exigido do devedor/fiduciante, que a comprou exatamente para dela gozar e fruir.”
Desde a Constituição de 1946 é vedado a prisão civil na ordem interna, sendo que eram ressalvados os casos do devedor de alimentos e do depositário infiel, na forma da lei. Ou seja, pela leitura do dispositivo, verifica-se que cabia ao legislador infra-constitucional determinar em que termos se daria a prisão civil.
Hoje, contudo, foi retirado da Carta Magna a expressão “na forma da lei”, o que retirou, por conseqüência, o poder do Congresso Nacional de regular as exceções impostas pelo texto constitucional. Assim, alguns estudiosos entendem ser inconstitucional a equiparação feita pelo art. 4º do Decreto-Lei 911/69.
Ademais, não se pode esquecer que a regra firmada pelo art. 5º, LXVII é a proibição da prisão civil, e não sua permissão. Há apenas dois casos em que a medida privativa de liberdade aqui em estudo é cabível, não estando a hipótese do devedor-fiduciário entre elas. Nesse sentido, Eduardo Talamini[31] assevera que
“Se a Constituição estipulou duas hipóteses taxativas e exaustivas em que cabe a prisão civil, não é possível que a legislação infraconstitucional – manipulando os conceitos tradicionais para além daquele núcleo mínimo – altere o alcance dessas exceções, ampliando-o.”
É de se consignar que o Decreto-Lei 911/69 não tenha sido recepcionado pela Constituição de 1988, visto que ao realizar equiparações para fins de prisão civil, demonstra não estar em harmonia com a nova ordem vigente além de ferir o cerne de nosso Estado: a dignidade da pessoa humana.[32]
6 – JURISPRUDÊNCIA
Importante para uma concreta compreensão do tema aqui em estudo se faz a análise da jurisprudência brasileira. Analisaremos aqui o entendimento do Supremo Tribunal Federal – guardião da Constituição – acerca do assunto.
O STF posicionou-se durante considerável tempo a favor da admissibilidade da prisão civil do depositário infiel. Considerava-se constitucional a utilização do instituto, até mesmo, para o contrato de alienação fiduciária.
Um julgado muito discutido foi o HC 75.512-7/SP , no qual o Ministro Maurício Correa afirmou que:
“Os compromissos assumidos pelo Brasil em tratado internacional de que seja parte (§ 2º, do art. 5º, da Constituição) não minimizam o conceito de soberania do Estado-Povo na elaboração de sua Constituição: Por esta razão, o Pacto de San José da Costa Rica (ninguém deve ser detido por dívida: este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar) deve ser interpretado com as limitações impostas pelo art. 5º, LXVII, da Constituição.”
Nesse período, embora alguns ministros fossem contrários a essa “antiquada” medida, constituíam a minoria. Eram, desse modo, votos vencidos quando da decisão.
Hoje, felizmente, nosso máximo órgão jurisdicional reviu sua posição, firmando entendimento contrário à prisão civil do depositário infiel. No dia 3 de dezembro de 2008 foram proferidas três decisões pelo STF que, com certeza, mudarão o destino da prisão civil do depositário infiel no país.
O RE 466.343/SP foi decidido em sessão plenária por unanimidade negando provimento ao recurso que solicitava a prisão do devedor fiduciante. Nesse julgado, de grande utilidade se faz transcrever alguns dos argumentos utilizados pelos ministros para a fundamentação de seus votos.
O Min. Joaquim Barbosa diz haver conflito entre o Pacto de São José da Costa Rica e o Decreto-Lei 911/69, visto que o primeiro traz uma proibição à prisão civil por dívida, enquanto o segundo o permite. O aludido jurista votou a favor da proibição ensinando que
“[…] a primazia conferida em nosso sistema constitucional à proteção à dignidade da pessoa humana faz com que, na hipótese de eventual conflito entre normas domésticas e normas emergentes de tratados internacionais, a prevalência, sem sombra de dúvidas, há de ser outorgada a norma mais favorável ao indivíduo.”
O Min. Carlos Britto, como defendido anteriormente, entende pela improcedência da equiparação feita do devedor fiduciante ao depositário infiel. Para o ilustre ministro:
“[…] a alienação fiduciária em garantia não se confunde, não se pode confundir com o contrato de depósito, nem pode ser também a ele equiparado, sobretudo se tiver o propósito de artificializar ou forçar a incidência daquela segunda ressalva de que trata o inciso LXVII do artigo 5º da Constituição Federal.”
Outro julgado foi o RE 349.703/RS que também por unanimidade o Pleno negou provimento ao recurso que, do mesmo modo que o processo citado anteriormente, visava à prisão do devedor fiduciante.
O Min. Cézar Peluso alegou que
“[…] a admissibilidade da prisão civil, subtendendo-se ressalva à hipótese constitucional do inadimplente de obrigação alimentar, seria sempre retorno e retrocesso ao tempo em que o corpo humano era corpus villis, que, como tal, podia ser objeto de qualquer medida do Estado, ainda que aviltante, para constranger o devedor a saldar sua dívida.”
O Min. Celso de Mello ensina não ser cabível a utilização da prisão civil nos contratos de alienação fiduciária. Para o mesmo
“[…] o Decreto-lei nº 911/69 – no ponto em que permite a prisão civil do devedor fiduciante – não foi recebido pelo vigente ordenamento constitucional, considerada a existência de incompatibilidade material superveniente entre referido diploma legislativo e a vigente Constituição da República.”
O terceiro e último processo aqui a ser mencionado refere-se ao HC 87.585/TO. Aqui, mais uma vez em Sessão Plenária e por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal concedeu habeas corpus ao paciente.
Nesse julgado, merece destaque o voto do Min. Ricardo Lewandowski. O mesmo concedeu a ordem fundamentando que
“[…] a prisão, que é sempre a ultima ratio do Estado, neste caso, se afigura absolutamente desproporcional, irrazoável, a meu ver, pois não atinge os seus objetivos, além de ser ofensiva ao princípio da dignidade da pessoa humana, que é dos postulados basilares do nosso sistema constitucional.”
7 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
A prisão civil por dívidas foi, por muito tempo, um instituto jurídico permitido pelo Estado em diversas civilizações. Todavia, com o surgimento da Lex Poetelia Papiria (lei que introduziu o princípio da responsabilidade patrimonial na esfera dos negócios jurídicos), de 326 a.C., o não pagamento do débito passou a ensejar não mais a execução pessoal, mas do patrimônio do devedor.[33]
E essa mudança de paradigma atingiu, de certo modo, um expressivo número de países. Mormente nos desenvolvidos não há mais que se falar em execução pessoal do devedor, mas sim em execução de seu patrimônio. Até mesmo em países de terceiro mundo presencia-se essa realidade.
A despeito da utilidade da prisão civil por dívidas em outros tempos, hoje sua utilização se faz imprópria, visto que a humanidade atingiu certo grau de evolução, não mais cabendo esse tipo de privação de liberdade.
Atualmente os Estados visam a garantir direitos fundamentais de seus cidadãos. E, no nosso ponto de vista, utilizar a medida privativa de liberdade aqui em estudo em razão da proteção do bem jurídico patrimônio em detrimento da dignidade da pessoa humana, é incompatível com o Estado de hoje. Principalmente no que diz respeito ao Brasil.
A dignidade da pessoa humana é consagrada como o cerne de nosso Estado. Entende-se que todo o ordenamento jurídico, quando de sua interpretação, deve-se amoldar a esse princípio a fim de garantir a satisfação dos direitos de todo cidadão.
Nessa perspectiva, entende-se ser o art. 5º, LXVII norma constitucional de eficácia negativa. Isso porque tal dispositivo não visa a determinar a prisão civil do depositário infiel. Pelo contrário. Constitui-se em uma garantia dada à sociedade de que não haverá prisão civil por dívidas.
A finalidade do legislador quando da criação do inciso LXVII do art. 5º não era determinar a prisão civil do depositário infiel, mas tão-somente autorizar. Desse mesmo entendimento comunga Inácio de Carvalho Neto[34]:
“[…] o objetivo da norma, que é de direito individual, não é determinar a prisão de quem quer que seja, mas, ao contrário, proibir, como regra, a prisão civil por dívida. Admite, contudo, duas exceções, não como determinação, mas como mera permissão.”
Embora houvesse divergências, desde o início do problema expressiva parte da doutrina já defendia essa posição. O judiciário por sua vez, embora também não chegasse a um consenso, tinha como orientação, infelizmente, o entendimento do STF pela constitucionalidade do instituto.
No momento atual, com a devida correção feita pelo STF em sua jurisprudência, acredita-se não haver mais dúvida acerca da prisão civil do depositário infiel. É fato sua inconstitucionalidade frente à Carta Magna. Finalmente ter-se-á a concretização da Dignidade da Pessoa Humana.
Acadêmico de Direito no Centro Universitário de Patos de Minas/MG.
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