Resumo: O presente artigo almeja demonstrar a realidade vivida no espaço prisional, buscando, desde o surgimento do convívio social humanitário, as explicações e justificativas para a aplicação desse tipo de sistema de punição, embasado primordialmente na privação da liberdade.
Palavras-chaves: Prisonização, liberdade, prisão, direitos humanos.
Sumário: Introdução. 1. O processo de marginalização social. 2. A contextualização da pena privativa de liberdade. 3. A realidade carcerária brasileira. 4. O movimento de prisonização e suas características. Conclusão.
Introdução
As penas privativas de liberdade, somadas ao movimento controlador repressivo social estatal moderno, trouxeram à vista da sociedade um novo espaço de convívio interpessoal, qual seja, a prisão.
Este âmbito, resguardado àqueles que de alguma forma infringem as leis do ordenamento jurídico-penal, tem suas próprias especificidades e características sócio-culturais, que o configuram como uma espécie de sub-mundo marginalizado, dentro do grupo social em geral.
O presente artigo almeja demonstrar a realidade vivida no espaço prisional, buscando, desde o surgimento do convívio social humanitário, as explicações e justificativas para a aplicação desse tipo de sistema de punição.
Outrossim, para que se possa explicar, de forma geral, o fenômeno da prisonização, deve-se antes entender o caráter da marginalização social, tal como compreender a real finalidade das penas privativas de liberdade.
Superadas essas etapas, o foco poderá ser centrado no contexto do mundo carcerário, demonstrando os problemas das instituições prisionais. Contudo, há a necessidade de um aprofundamento e, além de pontuar a realidade do movimento prisonalizante, buscar de forma coerente e viável soluções efetivas para os problemas trazidos por esse fenômeno do desenvolvimento social.
1. O processo de marginalização social
O sistema punitivo atual, aplicado pelo Estado, foi desenvolvido e implementado recentemente, tendo em vista a perspectiva histórica das formas de penalizar o individuo infrator. Contudo, ele traduz uma das mais antigas relações entre os homens, que surgiu desde o momento em que este passou a viver em comunidade. A marginalização social pode ser observada desde os primórdios do desenvolvimento social humano e apresentou diversas formas até evoluir ao estágio presente.
Desde a formação dos primeiros grupos de convívio, quando o homem nômade, através do incremento das técnicas agrícolas, conseguiu se estruturar para estabelecer um local fixo de moradia comum, observar-se o fenômeno da marginalização social.
De início, em um momento histórico no qual as aptidões físicas se sobrepunham às faculdades intelectuais, aquele que não estivesse pronto para a batalha pela vida estaria de pronto afastado do convívio social, onde apenas os mais fortes poderiam sobreviver. Em um meio onde a natureza ainda possuía o poder de ditar as regras de sobrevivência, o Darwinismo Social ocorria de forma visível, pois apenas os mais aptos a viver sob as condições adversas do meio ambiente tinham a garantia de domínio sobre os demais.
Com o passar do tempo, surgiram os primeiros indícios de um Direito codificado. E com esses indícios, brotaram também as primeiras regulamentações instituindo a marginalização social. O Deuteronômio bem demonstra o âmago desse movimento:
“Pessoas excluídas do povo de Deus – O eunuco a quem foram esmagados ou cortados os testículos, ou tirado o membro viril, não entrará na Assembléia de Deus. O bastardo, isto é, o que nasceu de uma mulher de má vida, não entrará na Assembléia do Senhor até a décima geração. Os amonitas e os moabitas não entrarão jamais na Assembléia do Senhor, nem mesmo depois da décima geração; porque não quiseram sair a receber-vos com pão e água no caminho, quando saíste do Egito porque conduziram contra ti Balaão, filho de Beor da Mesopotâmia da Síria, para que te amaldiçoasse” (Dt 23, 1-5). [1]
Na Grécia, a estrutura social evidenciava a segregação de certos grupos específicos dentro da sociedade, tal como predispõe Izaura Rufino Fischer: A exclusão social remonta à antiguidade grega, onde escravos, mulheres e estrangeiros eram excluídos, mas o fenômeno era tido como natural [2].
A Lei das XII Tábuas, fazendo uma divisão social clara entre os grupos sociais existentes em Roma, bem predispunha em sua Tábua XI, I, a respeito da proibição do casamento entre patrícios e plebeus (grupos sociais da época)[3].
E com o transcorrer da história a situação foi se agravando, sempre sendo observadas varias manifestações do processo de marginalização do homem. Sendo assim, o que podemos notar desde o início da evolução da história humana é uma predisposição natural do homem para a marginalização, que nada mais é do que a elevação do status social de um grupo ou de um indivíduo, em detrimento de outros grupos ou indivíduos, estes últimos os marginalizados, que acabam sendo excluídos dos benefícios oriundos do convívio coletivo.
Atualmente, com a diversificação das relações intersociais, com a complexidade sócio-política existente na esfera global, pode ser avistado um sem número de formas de marginalização, inclusive muitas delas fomentadas pelo próprio Estado, que deveria seguir a linha contrária. É o caso em estudo, da aplicação do sistema prisional como forma de repressão e punição estatal, o qual é obra de um Direito Criminal moderno.
A prisão segrega, desvirtua e descaracteriza o individuo. É, indubitavelmente:
“o lugar de vícios, baixezas e degenerescências, sendo também a mais poderosa e exuberante sementeira de delitos. Ela é tomada só por fatores negativos, pois mesmo que se queira dizer que Ela exerce a prevenção, mantendo um delinqüente perigoso afastado da sociedade (marginalização) isto não constitui um fato positivo, pois, ao voltar ao convívio social, ele certamente voltará mais capacitado e potencializado para o crime”.[4]
Nestes termos, começa-se a compreender a real conjuntura do fenômeno da prisonização, buscando as suas bases primeiramente na marginalização social e, num próximo passo, tentando buscar a gênese das penas privativas de liberdade.
2. A contextualização da pena privativa de liberdade
A pena privativa de liberdade é a forma mais usual, dentro do sistema jurídico-penal brasileiro, de punir alguém que pratica uma infração. A pena, em si, é a conseqüência natural imposta pelo Estado àquele que incorre no cometimento de um delito[5].
O presente estudo não tem por finalidade a abordagem crítica da pena privativa de liberdade, mas sim focar a discussão no estabelecimento (local) onde essas penas são cumpridas, em suas características que influenciam de diversas formas na vida dos seus “clientes”. Contudo, alguns breves comentários devem ser tecidos acerca de aspectos relevantes sobre o assunto, uma vez que estão amplamente conexos ao tema central do artigo.
A pena privativa de liberdade, no formato atual, institucional, começou a ser implementada no final do século XVIII, por um sistema alcunhado de pensilvânico, onde o preso era recolhido a sua cela, isolado dos demais, não podendo trabalhar ou mesmo receber visitas, sendo estimulado ao arrependimento pela leitura da Bíblia[6]. No início do século XIX, surgiu o sistema Alburniano, o qual permitia o trabalho dos presos em grupos, ainda que em pequeno espaço de tempo. Com a evolução do tempo e do pensamento acerca dessas instituições, emergiu um sistema denominado progressivo, no qual o preso era submetido a estágios, etapas segmentadas, até conquistar a liberdade condicional. É o sistema prisional atualmente aplicado na maioria dos ordenamentos jurídicos.
Esses sistemas punitivos só conquistaram um efetivo sucesso após a quebra de um paradigma que instituía a pena como um castigo corporal ao condenado, para que ele, literalmente, sentisse na pele a conseqüência punitiva do seu ato penalmente ilícito.
Entendeu-se, a partir da ruptura desse pensamento, que a pena deveria incidir sobre a alma do individuo: À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições[7].
A pena privativa de liberdade tem funções e objetivos. A primeira função é a retribuição ao delinqüente do mal por ele causado. Essa retribuição deve ser proporcional ao delito cometido. A suspensão da liberdade do infrator é o contragolpe à lesão por ele provocada[8].
Outra função da pena privativa de liberdade, e essa é indubitavelmente a mais vista na atualidade, é o desempenho contencioso do Estado, que objetiva tirar de circulação aquele indivíduo que comete um delito, neutralizando este individuo, segregando-o ao cárcere.
Por fim, como objetivo teórico e utópico, a pena privativa de liberdade busca a ressocialização do individuo, através de programas de integração do preso junto à sociedade. Todavia, esse, que deveria ser o principal caráter dessa pena, atualmente e o mais desvirtuado, asseverando a condição do aprisionado como um ser marginalizado.
Importante ressaltar, até para a manutenção de uma linearidade no estudo, que os problemas que assolam a aplicação das penas privativas de liberdade são em sua essência problemas de ordem estrutural e de política criminal. A estrutura do sistema penitenciário brasileiro é o fator que reforça a prisonização, e não a pena privativa de liberdade, se observada segundo o seu aspecto teleológico.
3. A realidade carcerária brasileira
No Brasil, as instituições máximas fazem parte da triste realidade de desestruturação do Estado, com uma conjuntura e totalmente e cheia de vicissitudes. A “pena das sociedades civilizadas” (pena privativa de liberdade) deixa de ser caracterizada, a partir da observação da estrutura que lhe garante, qual seja, a prisão.
O Brasil é, indubitavelmente, um dos paises que mais demonstra desorganização no sistema penitenciário dentro do mundo subdesenvolvido. Números demonstram claramente o quão é desprovido esse sistema, sendo, segundo pesquisa realizada em 03/09/2003 e divulgada pelo Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, o déficit no sistema carcerário brasileiro em torno de 104.263 vagas. As penitenciárias não têm aparato técnico, estrutural, tampouco pessoal, para garantir o objetivo principal da pena privativa de liberdade, a ressocialização.
Sob o aspecto técnico-estrutural, falta segurança, tecnologia, que são capazes de garantir a segurança do presídio, assim como proporcionar ao preso a possibilidade de dar uma utilidade a sua vida, enquanto estiver aprisionado. As selas são insalubres, a qualidade da alimentação é pífia e não há programas de incentivo, tanto pessoal, como profissional, aos presidiários.
No que tange ao aparato pessoal, o problema não se torna menos grave. Além de faltarem profissionais qualificados, como médicos, psicólogos, assistentes sociais, o nível educacional dos funcionários da penitenciaria é muito abaixo do necessitado. Assim, esses funcionários da prisão acabam dando ao preso um tratamento sub-humano, como se o presidiário fosse apenas uma coisa, um ser animado, porém incapaz de manifestar a sua vontade, os seus anseios.
Prisões superlotadas, tratamento inumano, hostilidade por parte de todos, são uma gama de fatores que impulsionam a criminalidade e fazem da cadeia a “universidade do crime”. É a partir de todos esses problemas que a penitenciária se torna um local diferenciado, com leis, costumes, hábitos, diferenciados. Surge o fenômeno da prisonização, transparecendo a vida nesse local sombrio. A estrutura proporciona aos presos a péssima possibilidade de isolamento do mundo real, formando um enclave negativo para a sociedade.
4. O movimento de prisonização e suas características
A vida na prisão é degradante para o preso. Não apenas por ter um dos seus principais direitos mitigados (a liberdade), mas também porque este é um local deveras único, com especificidades impares, no qual o aprisionado filia-se como mais um instrumento do sistema.
O homem, a partir do momento em que passa a integrar a corja do sub-mundo carcerário, torna-se uma coisa, um objeto desse meio, tendo que adequar-se nos termos em que lhe são impostos, a fim de garantir um mínimo de dignidade e respeito, segundo os conceitos empregados na própria prisão.
A dignidade, almejada pelos que ali estão, é fruto de um processo de seleção social diferenciado, onde o condenado é testado a todo o momento. Suas aptidões e facilidade de adaptação são postas em cheque diuturnamente, para que se possa chegar à conclusão de que está pronto para o convívio prisional.
A cadeia é um local exclusivo. Empregando-lhe um sentido geopolítico, ela seria uma ilha, um ponto de passagem capaz de deixar em seus “visitantes” os seus traços mais nefastos e devastadores.
Suas características impregnam a quem dela usufrui, tendo influência direta e às vezes eterna sobre eles. Assim, a prisonização é decorrente dessas influências que a prisão impõe ao ser humano, é o processo que segrega retirando do preso o seu status social anterior, colocando nele os traços de um sistema maléfico, estigmatizador, capaz de impossibilitar a ressocialização efetiva do indivíduo, após o cumprimento da sua pena.
Suas características são visíveis. O vocabulário é próprio, com a modificação do sentido real empregado às palavras:
“Para entender alguns textos que tratam da questão penitenciária é preciso recorrer a um verdadeiro ‘dicionário da cadeia’, que traz termos muito característicos utilizados por detentos a todo momento. É fácil perceber que algumas gírias da cadeia são incorporadas em nossa cultura, seja por influência da música, noticiários, ou porque traduzem de forma única muitas questões sociais[9]”.
Os meios de comunicação não verbal são os mais diversos possíveis. Luzes, gestos, desenhos, marcas no corpo, são instrumentos criados para possibilitar a comunicação exclusiva entre os presos.
Há também uma estrutura cambiária bem definida na prisão. A moeda é materializada nas drogas, nas armas, cigarros, comida. Objetos de troca úteis, que facilitam a vida dentro da instituição máxima.
A conjuntura prisional, segundo Donald Clemmer[10], citado por Emanuella Fernandes[11], é:
uma sociedade dentro da sociedade: “O mundo prisional é um mundo atomizado. Seus membros são como átomos a agir reciprocamente em confusão… Não há definidos objetivos comunais. Não há um consenso comum para um fim comum. O conflito dos internos com a administração e a oposição à sociedade livre estão em degrau apenas ligeiramente superior ao conflito e oposição entre eles mesmos… É um mundo de ‘Eu’, ‘mim’, e ‘meu’ antes que de ‘nosso’, ‘seus’, ‘seu’.”
Nos termos já vistos, a ressocialização do indivíduo torna-se praticamente inviável. Isto pois, após uma temporada sob o cárcere, o homem se adapta ao meio prisional, não conseguindo desfazer-se dos novos costumes adquiridos no momento da retomada da vida na sociedade livre.
A questão se mostra muito mais política do que jurídica. Mais há para que esse quadro de caos institucionalizado possa ser revertido, dependendo muito mais de uma reestruturação administrativa do que de uma reforma legislativa, que também se faz necessária.
Conclusão
Superadas as explanações sobre a origem, características e mazelas da prisonização, pode-se observar que todos os problemas advindos da mesma têm a possibilidade de correção. Projeto são muitos, visando restaurar o verdadeiro sentido da prisão, mas a grande maioria esbarra na má vontade dos políticos e do poder púbico em geral. Duas são as proposições elementares para que possa haver uma mudança na triste realidade prisional.
A solução imediata, que ao menos aliviaria quantitativamente o problema, seria uma revisão legislativa no intuito de diminuir a incidência da pena privativa de liberdade sobre os “clientes” do Direito Penal. Assim, com o emprego das penas alternativas, a cadeia poderia abrigar um numero menor de condenados, possibilitando a estes um tratamento mais conciso e objetivado.
A solução mediata, que de fato mudaria a conjuntura do sub-mundo carcerária, se dará pela implementação de programas sócio-educadores capazes de fazer com que o preso não perca o seu caráter social, através do trabalho e do incentivo ao convívio em grupo, com o objetivo de tornar a cadeia um local mais sociável.
Projetos como o CORPO, PULSAÇÃO, EXPENSAO E CIDADANIA – RESGATANDO A VIDA/IDENTIDADE[12], implementado no Estado do Espírito Santo, são exemplos de efetividade de políticas integradoras do preso à sociedade.
Assim, com muito trabalho e vontade, dentro de algum tempo, o cárcere poderá ser mais digno, alcançando-se o principal objetivo da pena que lhe deu ensejo, a ressocialização.
À medida que as penas forem mais brandas, quando as prisões já não forem a horrível mansão do desespero e da fome, quando a piedade e a humanidade penetrarem nas masmorras, quando enfim os executores impiedosos dos rigores da justiça abrirem os corações à compaixão, as leis poderão contentar-se com indícios mais fracos para ordenar a prisão.[13]
Bibliografia
Notas:
Mestre em Direitos Humanos pela UFPA. Professor de Teoria Geral do Processo e Direito Processual Civil da UNAMA e do Centro Universitário do Pará – CESUPA. Advogado.
Autora: Telma Cristina Arão – Acadêmica de Direito na Faculdade de Saúde e Ecologia Humana…
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