Problemas ambientais: Noção de bem comum e dos limites da utilização da propriedade privada

A reconciliação entre a economia e o meio ambiente com a utilização das instituições da primeira como meio de se atingir os objetivos do último, tem se caracterizado como um tópico de relevante importância para o nosso futuro. Sobre esse tema desafiador, o economista Warter E. Block, diplomado pelo Brooklin College e Ph. D. pela Universidade de Colúmbia, na sua obra Environmental problems, private property rights solutions, apregoou a hipótese de que, alternativamente, podemos expressar por isso uma solução cooperativa para o problema da poluição.

Em seus estudos na obra supra mencionada, o Dr. Block tratou de investigar sobre a capacidade de resolução dos problemas da poluição, com fulcro nos mesmos comportamentos e motivações que levam ao crescimento econômico e ao desenvolvimento, apregoando que seria essa uma solução de poderosa liberação do poder do interesse pessoal.

Em sua interessante construção teórica, valendo-se do vetusto adágio popular que conclui ser o negócio de todos o negócio de ninguém, o autor aplicou tal máxima, particularmente, à questão da poluição, onde o problema existe porque o ar, a água e as florestas, que são poluídos, constituem, na grande maioria dos casos, propriedade de todos. Como exemplo desta nefasta conduta, o economista cita o Canadá, país extremamente desenvolvido, onde grande parte das terras é de propriedade da Coroa. Tal fato, tem o condão de produzir na população canadense a sensação de que as referidas terras não pertencem a ninguém em particular. Assim, nenhuma pessoa, em particular, reclama quando a sua terra é violada por um poluidor, ou quando suas árvores são mortas por nocivos produtos químicos que chegam pelo ar.  

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Nesse compasso, o autor ainda refere, em seu trabalho, que o canadense, que questiona o porquê de todo o alarde provocado quando os ambientalistas advertem sobre os efeitos da chuva ácida nas florestas, paradoxalmente, reage de modo violento quando o cachorro do vizinho defeca em seu belo gramado. Enfatiza pois, a peculiaridade da situação, alertando que, o gramado da casa é propriedade privada – esta é, portanto, a verdadeira questão.

E mais, na esteira da hipótese do exemplo anterior, se o dono do cachorro possuísse uma fábrica que realizasse o despejo de resíduo químico em alguma floresta, nenhuma reação haveria, certamente. Pois, sob a lente do raciocínio inicial, a floresta é de todos e não é de ninguém!!! Afinal, a floresta não é propriedade particular. É terra do governo e o governo – para a grande massa coletiva – retrata uma abstração jurídico/política.

Este emblemático exemplo de comportamento da população do Canadá, notadamente um dos países mais desenvolvidos do planeta, apreendido pela obra multicitada, convida, ao mesmo tempo que serve de inspiração, para que se estabeleça uma fatal comparação com a conduta do povo brasileiro, em face da questão ambiental, bem como instiga para um novo enfrentamento da questão, não sob a ótica econômica, como, originariamente, tratou com maestria o Dr. Walter E.Block, mas sob o prisma jurídico, mormente  sob o enfoque constitucional, que em última análise revela o âmago da política pública nacional, no trato com o meio ambiente. 

No que tange ao confronto dos aspectos comportamentais, é de se chegar, de plano, a lamentável conclusão que, embora a abissal diferença de desenvolvimento cultural e econômico existente entre o Canadá e o Brasil, o procedimento atual da população dos dois países revela-se, dramaticamente, parecido. Também, é de se ter que, tanto no Brasil como no país paradigma, persiste uma notável ênfase cultural de prestígio para a propriedade privada, em detrimento do patrimônio público, conduta que reforça, o equivocado entendimento popular, de que o bem comum é coisa de ninguém. Portanto, disponível, para todos no mais amplo sentido da palavra, tanto que, tal disponibilidade, para alguns, encerra o sentido de degradação, inclusive.

Ocorre que, numa breve remissão histórica, podemos afirmar que nem sempre foi assim, em outras palavras podemos afirmar que, nesse aspecto, o homem moderno retrocedeu, porquanto, em nome do individualismo exacerbado, fez prosperar o conflito do interesse privado contra o público, passando a atentar contra o seu próprio futuro, contaminando os mananciais do planeta, sem qualquer compromisso com as gerações futuras.

Ao revés, no início das civilizações, quando o homem vivia sob outro modelo social, as formas originárias da propriedade tinham uma feição comunitária. Por exemplo, entre os nossos indígenas, havia domínio comum das coisas úteis, por parte daqueles que habitavam a mesma oca, individualizando-se, tão somente, a propriedade de certos móveis, como redes, armas e utensílios de uso próprio. O solo, por sua vez, era pertencente a toda a tribo e isso, temporariamente, porque nossos índios não se fixavam, migravam, num sentimento superior de preservação do potencial natural da terra. Esta conduta, típica dos povos ancestrais, pode ser percebidas, por estudiosos do comportamento, em várias partes do planeta, e nada mais era do que uma simples, porém notável, estratégia de sobrevivência humana. Ademais, desta conduta, pode-se intuir também, que o homem primitivo, não desprezava o sentido de propriedade, apenas, o que é lógico, tinha uma estima maior pela sua espécie e, em assim sendo, valorizava muito mais os aspectos que garantiam a sua preservação.            

No entanto, com o correr do tempo o homem, em razão da influência de novos paradigmas de comportamento, afastou-se gradativamente da sua conduta primitiva de ênfase coletiva, passando a apoiar o seu sentido existencial no individualismo que, ainda hoje, tem como estandarte supremo a propriedade.

Sob os mais variados ângulos, mas principalmente do ponto de vista jurídico, o sentido de propriedade tal qual herdamos, teve no direito romano a sua fonte histórica. Foi na era romana que se inaugurou um sentido individualista de propriedade, apesar de ter havido duas formas de propriedade coletiva: a da gens e a da família. Nos primórdios da cultura romana a propriedade era da cidade ou gens, onde cada indivíduo poderia possuir uma restrita porção de terra (1/2 hectare), porém só eram possíveis de alienação os bens móveis. Com o desaparecimento dessa propriedade coletiva da cidade, sobreveio a da família, que, paulatinamente, foi sendo aniquilada ante o crescente fortalecimento da autoridade do pater familias, que passou a administrar, de modo absoluto, o patrimônio familiar.

Com o transcurso do tempo, sob a égide dos mais variados vetores, a propriedade coletiva foi dando lugar à propriedade privada, sendo que, para atingir esta nova formatação passou, resumidamente, pelas seguintes etapas: 1º) propriedade individual sobre os objetos necessários à existência de cada um;  2º) propriedade individual sobre os bens de uso particular, suscetíveis de serem trocados com outras pessoas; 3º) propriedade dos meios de trabalho e de produção; 4º) propriedade individual  nos moldes capitalistas, ou seja, seu dono pode explorá-la de modo absoluto.

Posteriormente, na Idade Média, a propriedade, e principalmente a propriedade sobre as terras, situou-se num plano especial, onde o proprietário livre era o mais frágil de todos, prevalecendo então a velho brocardo feudal “nulle terre sans seigneur”. Inicialmente, no período medieval, os feudos foram dados como usufruto condicional a certos beneficiários que se comprometiam a prestar serviços, inclusive, militares. Com o tempo a propriedade sobre tais feudos passou a ser perpétua e transmissível  apenas pela linha masculina. Havia uma distinção entre os fundos nobres e os do povo, que, por sua vez, deveria contribuir onerosamente em favor daqueles, sendo que, freqüentemente, os mais humildes eram despojados de suas terras.

Como prova de que tais acontecimentos medievais repercutiram no futuro, basta uma singela remissão histórica para se depreender o ensaio do sistema feudal na organização jurídica brasileira, no começo de nossa colonização. Assim, basta lembrar a transitória implantação das capitanias hereditárias, que exerceu e ainda exerce influência em nossos costumes, embora não tenha, tal sistema feudal, subsistido na ordem jurídica pátria, que melhor se amoldou ao regime romano.

Ainda, como notícia histórica é de se ter que o feudalismo só desapareceu do cenário jurídico mundial com o advento da Revolução Francesa em 1789.

Contemporaneamente, a configuração jurídica da propriedade se apresenta vinculada ao cenário político. Por exemplo, em alguns poucos países, de regime totalitário, no âmbito da economia privada, somente é admitida a propriedade exclusiva sobre os bens de consumo pessoal. Quanto aos bens de utilização direta, prevalece o sistema de propriedade usufrutuária, em outras palavras, vale dizer que o indivíduo tem  propriedade sobre a sua casa, móveis, dinheiro ou valores mobiliários, ao passo que na seara da economia pública, os bens de produção são socializados (minas, águas, meios de transportes, indústrias etc.). Já em outros países, mormente os de cultura Ocidental, como o Brasil, prepondera o sistema da propriedade individual, embora sem o conteúdo idêntico de suas origens históricas, pois a despeito de seu caracter absoluto, verifica-se a existência certas restrições.

Nesse sentido, vale dizer que, em nosso país, além das restrições voluntárias ao direito de propriedade, tais como as servidões, o usufruto ou as cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade ou incomunicabilidade, existem outras limitações oriundas da própria natureza do direito de propriedade ou de imposição legal, com escopo de coibir abusos e impedir que o exercício do direito de propriedade acarrete prejuízo ao bem-estar social. Tais restrições têm como objetivo garantir a efetiva materialização da função social da propriedade, cristalizada na carta política brasileira no seus artigos  5º., XXIII, 170, III, 186 e 182, § 2º.

De outro lado, cumpre ainda referir que, não obstante os relevantes aspectos sociais que regulam o exercício do direito de propriedade, em face da questão ambiental, especificamente, outras limitações advém do texto constitucional, como por exemplo, o severo feixe de restrições que emerge do artigo 225. Com efeito, tal dispositivo constitucional, em seu caput, parágrafos e incisos, além de definir os princípios de política pública no trato do manejo ambiental, por sua inteligência, também colabora para garantia da recuperação de parte do nosso louvável sentido ancestral de preocupação com as gerações futuras. Como reforço desta constatação, vale trazer à colação o sempre atual magistério do professor José Afonso da Silva, que com a sua habitual lucidez leciona: “As normas constitucionais assumiram a consciência de que o direito à vida, como matriz de todos os demais direitos fundamentais do homem, é que há de orientar todas as formas de atuação no campo da tutela do meio ambiente. Compreendeu que ele é um valor preponderante, que há de estar acima de quaisquer considerações como as de desenvolvimento, como as de respeito a propriedade, como as da iniciativa privada (grifei). Também estes são garantidos no texto constitucional, mas, a toda evidência, não podem primar sobre o direito fundamental à vida, que está em jogo quando se discute a tutela da qualidade do meio ambiente, que é instrumental no sentido de que, através dessa tutela, o que se protege é o valor maior: a qualidade da vida humana.”     

Assim, é de se concluir que as questões referentes ao exercício da propriedade, por sua importância e características, mais se ajustam ao ambiente do direito público do que ao contexto do direito privado, devendo ainda, em obediência a hierarquia de um valor mais relevante, curvar-se frente ao fundamental direito de proteção da vida.

Portanto, o grande desafio do homem do nosso tempo, não é outro senão o de provocar, através da educação, uma grande mudança de atitude, materializada pelo resgate do senso ancestral de proteção do meio ambiente que, em última análise, é o depositário da vida no planeta, bem como, intentar todos os esforços no sentido da criação de condições e da composição de soluções, para que a propriedade, mesmo privada, cumpra a sua função social, sendo economicamente útil e produtiva, atendendo o desenvolvimento econômico e os reclamos de justiça social, sem que tais iniciativas atentem contra o patrimônio comum da humanidade,  pois, afinal, o que é de todos a todos pertence!!!           


Bibliografia:

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CANOTILHO,  J.J.Gomes, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 1991.

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DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro, 7. Ed. São Paulo, Saraiva, 1991.

LEITE, Eduardo de Oliveira. A Monografia Jurídica, 3. ed. Porto Alegre, Fabris, 1997.

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PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, São Paulo, Forense, 1978.

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Direito das Coisas, v. V.6. ed., revista e aumentada, São Paulo, Saraiva, 1976.


Informações Sobre o Autor

Francisco José Soller de Mattos

Advogado no Rio Grande/RS
Professor de Direito civil na Fundação Universidade Federal do Rio Grande – FURG/RS
Especialista em Direito Civil e Empresrial – INPG
Mestre em Eucação Ambiental pela FURG/RS


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