Procedimentos de Investigação Utilizados Pelas Tropas Brasileiras no Contexto da Missão Das Nações Unidas Para a Estabilização no Haiti

Victor Melo Fabrício da Silva[1]

Resumo

Nas missões de manutenção da paz sob a égide das Nações Unidas, as atividades militares sempre ensejarão investigações, em virtude das especificidades das ações realizadas. Neste contexto, o objetivo deste trabalho é demonstrar os procedimentos investigativos utilizados na Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, a principal dessas operações na atualidade.

Palavras-chave: Nações Unidas. Procedimentos investigatórios. Manutenção da Paz. Haiti.

 

Abstract

In the peacekeeping missions under United Nations auspices, military activities will always give rise – as expected – to investigations given the specificities of the actions performed. In this context, the aim of this work is to demonstrate the investigative procedures used in the United Nations Mission for Stabilization in Haiti, the main of these operations in nowadays.

Keywords: United Nations. Investigative procedures. Peacekeeping. Haiti.

Sumário: Introdução. 1. Breves considerações legais para o emprego das tropas brasileiras no Haiti. 2. Aspectos de conduta e disciplina para os contingentes militares. 3. Procedimentos de investigação previstos para o contingente militar brasileiro na MINUSTAH. Conclusão.

 

Introdução

Como País-membro das Nações Unidas, o Brasil tem participado constantemente de Missões de Paz desde a década de 1930 (Conflito de Letícia, entre Colômbia e Peru)(BRASIL, 2018), empregando civis e contingentes militares, sendo a campanha de maior vulto na história militar brasileira a desempenhada em solo haitiano, sob o nome de “Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti” (Mission des Nations Unies pour la stabilisation en Haiti – sigla MINUSTAH, do francês).

No decorrer dessas Missões, os contingentes militares, âmbito de estudo do presente artigo, constantemente se deparam com situações que devem ser investigadas, tendo em vista o emprego militar de tropa em território de outro País, representando tanto a ONU, quanto o Brasil.

A importância do presente artigo reside, pois, na oportunidade de submeter ao mundo acadêmico o estudo de algumas particularidades legais de uma Missão de Paz desenvolvida sob a égide da ONU, utilizando-se como referência a MINUSTAH (2004-2017), diante de sua importância no contexto histórico brasileiro. Atualmente, encontra-se em curso naquele País a Missão das Nações Unidas para o apoio à Justiça no Haiti (MINUJUSTH), composta apenas por civis e unidades de polícia (UNITED NATIONS, 2018).

  1. Breves considerações legais para o emprego das tropas brasileiras no Haiti

Antes de abordar os procedimentos investigatórios utilizados pelos contingentes militares na MINUSTAH, convém trazer à lume algumas considerações legais específicas que balizam a atuação das Forças Armadas brasileiras em solo estrangeiro. Nesse diapasão, os militares brasileiros atuando em operações de paz, são passíveis de julgamento pela Justiça Militar da União, conforme § 7º do art. 15 da Lei Complementar 97 (BRASIL, 1999) c/c art. 124 da Constituição Federal (BRASIL, 1988):

“Lei Complementar 97/99 

[…]

Art. 15. O emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz, é de responsabilidade do Presidente da República, que determinará ao Ministro de Estado da Defesa a ativação de órgãos operacionais, observada a seguinte forma de subordinação:

[…]

  • 7o A atuação do militar nos casos previstos nos arts. 13, 14, 15, 16-A, nos incisos IV e V do art. 17, no inciso III do art. 17-A, nos incisos VI e VII do art. 18, nas atividades de defesa civil a que se refere o art. 16 desta Lei Complementar e no inciso XIV do art. 23 da Lei no 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral), é considerada atividade militar para os fins do art. 124 da Constituição Federal.” (grifo nosso)

“Constituição Federal

[…]

Art. 124. À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei.

Parágrafo único. A lei disporá sobre a organização, o funcionamento e a competência da Justiça Militar.” (grifo nosso)

De outra banda, observamos o Status of Force Agreement (SOFA) (UNITED NATIONS, 2004), celebrado entre a ONU e o governo haitiano no ano de 2004, no início da Missão, cujos parágrafos 50 e seguintes tratam das isenções e imunidades de que gozam os membros da MINUSTAH:

 

“Jurisdição[2]

  1. Todos os integrantes da MINUSTAH, aí compreendido o pessoal local recrutado, gozam de imunidade de jurisdição por motivo de todos os atos realizados no exercício de suas funções oficiais (aí compreendidos suas palavras e escritos). Esta imunidade continuará a ter efeito mesmo quando deixarem de pertencer à MINUSTAH ou não forem mais empregados por ela, ainda que posteriormente outros atos do presente Acordo tenham expirado.

  1. Caso um integrante da MINUSTAH tenha cometido uma infração penal, o Governo informa o fato ao Representante Especial[3] no mais curto prazo e lhe apresenta todos os elementos de prova em seu poder, sob reserva das disposições constantes no parágrafo 26[4] [5]

  1. a) Caso o acusado seja membro do componente civil ou integrante civil do componente militar, o Representante Especial procede a toda complementação da investigação e juntamente com o Governo decidem, em comum acordo, se penalidades devem ser impostas ao envolvido. No caso de uma falta de acordo, a questão será regulada conforme previsto no parágrafo 57 do presente Acordo;

  1. b) Os integrantes militares do componente militar da MINUSTAH estão sujeitos à jurisdição exclusiva do país participante, de onde são oriundos, para toda infração penal que possam cometer no Haiti.” (grifo nosso)

Outrossim, ressalta-se que tais dispositivos encontram consonância na extraterritorialidade presente no Código Penal Militar (BRASIL, 1969a):

“Código Penal Militar

[…]

Art 7º. Aplica-se a lei penal militar, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido, no todo ou em parte, no território nacional, ou fora dele, ainda que, neste caso, o agente esteja sendo processado ou tenha sido julgado pela justiça estrangeira.”

Eis, portanto, que a jurisdição penal que prevalecia sobre o militar das Forças Armadas Brasileiras, durante a Missão de Paz no Haiti, era a brasileira. Ressalte-se, contudo, que em caso de omissão da Justiça Brasileira, a jurisdição do Tribunal Penal Internacional seria aplicável de forma complementar, nos casos previstos no Estatuto de Roma (BRASIL, 2002b):

Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional

[…]

Artigo 1º

É criado, pelo presente instrumento, um Tribunal Penal Internacional (“o Tribunal”). O Tribunal será uma instituição permanente, com jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional, de acordo com o presente Estatuto, e será complementar às jurisdições penais nacionais. A competência e o funcionamento do Tribunal reger-se-ão pelo presente Estatuto.

[…]

Artigo 5o

Crimes da Competência do Tribunal

  1. A competência do Tribunal restringir-se-á aos crimes mais graves, que afetam a comunidade internacional no seu conjunto. Nos termos do presente Estatuto, o Tribunal terá competência para julgar os seguintes crimes:

  1. a) O crime de genocídio;

  2. b) Crimes contra a humanidade;

  3. c) Crimes de guerra;

  4. d) O crime de agressão.” (grifo nosso)

Demonstrados, pois, os aspectos penais concernentes aos integrantes da tropa brasileira, convém igualmente trazer à lume os aspectos de conduta e disciplina específicos da ONU.

 

  1. Aspectos de conduta e disciplina para os contingentes militares

As Nações Unidas tratam de maneira rigorosa qualquer desvio de conduta ou indisciplina cometida por seus membros. Qualquer infração enquadrável como disciplinar, independentemente de efeitos penais, pode resultar em repatriamento (retorno compulsório ao País de origem), proibição de participação em Missões a cargo da ONU e, nos casos mais graves, representação por parte da ONU ao governo do infrator.

Em solo haitiano, nos casos mais graves de indisciplina, o repatriamento ocorria mediante recomendação do Force Commander (Comandante do componente militar da Missão) após a conclusão das investigações, sem prejuízo das medidas disciplinares julgadas cabíveis pelo Comandante da Unidade do militar (podendo correr em paralelo outra investigação a cargo dessa tropa, para tal finalidade). Nessas situações, os custos de transporte, tanto do repatriado, quanto do substituto, corriam por conta do país-membro de origem do transgressor.

No contexto da MINUSTAH, as Nações Unidas classificaram tais infrações em faltas graves (categorias I e II) e leves (categoria II)[6].

Assim, era considerada falta grave qualquer ato, omissão ou negligência, incluindo crimes, que violassem os procedimentos-padrão, operacionais ou administrativos, previstos em normas, diretivas, regulamentos ou instruções administrativas da MINUSTAH, que resultassem em considerável prejuízo material ou moral, ferimentos graves ou morte de pessoal civil ou militar, ou seja, uma falta que gerasse danos significativos a indivíduos ou à missão.

Por sua vez, as faltas leves eram aquelas infrações menores aos regramentos da MINUSTAH, cuja violação era de pequena monta, porém sem deixar de representar prejuízo para a imagem das Nações Unidas ou para o bom desencadeamento de suas missões.

Nesse contexto, podemos citar como faltas graves categoria I:

1) atividade ou ato criminal;

2) abuso e Exploração Sexual;

3) fraude séria ou complexa;

4) abuso de autoridade;

5) violação substancial das normas e regulamentos da ONU;

6) uso, posse ou distribuição de narcóticos;

7) desvio de dinheiro ou má gestão financeira; e

8) quebra de sigilo – vazamento de  informação sigilosa.

Por sua vez, são exemplos de faltas graves categoria II:

1) assédio sexual ou outra forma;

2) desobediência deliberada;

3) conduta prejudicial à ordem e à disciplina; e

4) ausência do serviço sem autorização, por diversas vezes.

E, por fim, são exemplos de faltas leves categoria II:

1) estar intoxicado em serviço ou em público;

2) negligência no desempenho do serviço;

3) conduzir viaturas intoxicado ou de forma negligente; e

4) má apresentação pessoal.

Nesses casos, dentro do contexto da MINUSTAH, a investigação preliminar era conduzida pelo contingente da Guatemala (GUAMPCOY), podendo essa Força lançar mão do apoio do contingente envolvido, passando posteriormente tal apuração a ser desempenhada por outras agências de investigação da MINUSTAH, caso isso fosse necessário à elucidação dos fatos. Ressalte-se, ainda, que o contingente da Guatemala correspondia a 1 (uma) Companhia (uma fração de um Batalhão), possuindo as atribuições de Polícia Militar (Military Police – MP) da MINUSTAH.

 

  1. Procedimentos de investigação previstos para o contingente militar brasileiro na MINUSTAH:

  2. Board of Inquiry BOI

Procedimento a cargo dos contingentes militares, era conduzido por uma Comissão composta por três Oficiais (sendo que um de seus integrantes, obrigatoriamente um Oficial Superior, seria seu Presidente), sendo instaurado sempre que ocorressem fatos graves envolvendo pessoal ou material da ONU (ou envolvendo terceiros e seus bens, cuja lesão ocorreu em função da Missão), tanto no Haiti como fora daquele País. Neste último caso, seria instaurado um BOI desde que, praticado o ato por membro da ONU, a lesão ocorrida tivesse repercussão na Missão (UNITED NATIONS, 2005, p. 50).

Na ocorrência de apenas danos materiais de pequena monta, instaurava-se outro procedimento, a “Disposição Sumária”, da qual trataremos adiante. Utilizava-se como parâmetro o valor de U$ 500,00 (quinhentos dólares americanos).

O BOI era semelhante ao Inquérito Policial Militar (IPM), com duas diferenças fundamentais: a primeira é que ficava a cargo de uma Comissão de três Oficiais (e não apenas um, como no IPM); já a segunda é que havia um contraditório, podendo os eventuais acusados juntar documentos e outras provas julgadas úteis em sua defesa, dependendo, é claro, de um juízo de admissibilidade fundamentado da Comissão, a fim de se evitarem medidas protelatórias ou irrelevantes à apuração dos fatos.

Os militares integrantes da MINUSTAH deveriam obrigatoriamente se apresentar e testemunhar diante da Comissão de Inquérito. Qualquer outra pessoa, inclusive os cidadãos e a polícia local, somente poderiam ser solicitados a comparecer, sem obrigação de depor perante a Comissão.

Assim, deveria a Comissão ser convocada para a investigação de incidentes com danos materiais acima de U$ 500,00 (quinhentos dólares americanos), morte, lesões corporais e violações operacionais ou disciplinares às normas da missão, sendo caracterizado por não possuir uma processualística rígida, devendo conter, pelo menos, as seguintes peças fundamentais:

1) Ordem de Convocação (equivale a uma Portaria de Instauração);

2) Relatório de Investigação da Comissão (equivale a uma conclusão, por parte da Comissão), devendo ser estruturado da seguinte maneira:

  1. a) constituição – nomes dos membros da Comissão; hora, data e lugar do fato investigado, além dos períodos durante os quais foi conduzida a investigação;

  2. b) descrição do incidente – fatos objetivos do incidente, obtidos através das evidências disponíveis, com total referência para as fontes utilizadas, inclusive detalhes da missão que era executada na ocasião;

  3. c) deliberações – avaliação do incidente por parte da Comissão;

  4. d) constatações e conclusões – apresentação dos fatos com as constatações e conclusões encontradas, baseadas nas evidências disponíveis, com fundamento nas diretrizes, regulamentos e ordens da MINUSTAH;

  5. e) recomendações – medidas julgadas convenientes pela Comissão, como forma de prevenir incidente semelhante;

  6. f) assinatura – assinaturas do presidente e membros da Comissão;

  7. g) anexos – inquirições de testemunhas, dos acusados (se houver), documentos, perícias, etc.

3) Comentários do Comandante (equivale a uma homologação da investigação, acrescida de recomendações, orientações e lições aprendidas, além de providências a serem tomadas pela tropa, a fim de evitar que o fato se repita ou para minorar suas consequências).

Sua instauração era determinada, comumente, pelo Force Provost Marshal – FPM (Chefe da Polícia Militar para os contingentes militares), Force Legal Advisor – FLA (Assessor dos assuntos legais da Missão, com vistas ao Direito Internacional), pelo Force Commander (Comandante do componente militar da Missão) ou ex officio, pelo Comandante do Batalhão que jurisdicionasse o fato, devendo ser concluído no prazo de quinze dias, prorrogáveis por igual período. Ao final, suas peças deveriam ser vertidas para o inglês em quatro vias, tendo como destino final a Agência congênere da ONU na Missão (Agência Board of Inquiry).

  1. Disposição Sumária de Acidente (DSA):

Procedimento de investigação simplificado e mais célere que o BOI, aplicava-se aos casos que não envolvessem morte ou lesão, nos quais a perda sofrida por parte da ONU ou do contingente implicado não era de grande monta (conforme parâmetro já delineado) e onde nenhuma ação disciplinar séria devia ser aplicada, sendo conduzido por um Oficial (UNITED NATIONS, 2005, p. 53). Não havia prazo definido, devendo ser conduzida, entretanto, dentro de um período razoável, de acordo com o caso concreto. Sua instauração ocorria mediante ordem das mesmas autoridades competentes para a convocação do BOI.

Não havia, à semelhança do BOI, uma forma rígida, devendo conter, entretanto:

  1. a) a correta identificação dos indivíduos e bens envolvidos;

  2. b) constatações detalhadas e recomendações relativas à responsabilidade pela perda e a disposição do material em questão;

  3. c) a indicação de que não resultou em nenhuma ação disciplinar e/ou corretiva.

O relatório deveria ser vertido para o inglês e encaminhado ao FPM em casos envolvendo somente pessoal militar; fora isto seria remetido ao FLA.

À época, as DSA a cargo das Organizações Militares vinham caindo em desuso, tendo em vista a GUAMPCOY ser a responsável por investigações de mesma natureza. Dessa forma, os Batalhões apenas reuniam os autos e os colocavam à disposição da GUAMPCOY, caso solicitado, sem a necessidade de designar encarregado, nem elaborar relatório.

  1. Investigação Preliminar

Procedimento de investigação sumário, destinado a averiguar fatos de interesse da MINUSTAH, quando não havia indícios suficientes para a instauração de um BOI ou uma DSA, sendo conduzido por um Oficial. Tinha o objetivo de juntar provas testemunhais e documentais para embasar futura investigação. Não havia rigorismo formal, utilizando-se comumente o prazo de dez dias corridos (PRADO, 2009, p. 7).

Seu relatório era endereçado ao Comando do Batalhão. Ao final, caso seus autos não redundassem em investigação mais elaborada, era arquivado pela Assessoria Jurídica da Unidade, sendo colocado à disposição da MINUSTAH, caso solicitado.

Para os casos em que o interesse era exclusivamente do Batalhão, utilizava-se a Sindicância, cujo procedimento veremos mais adiante.

  1. Inquérito Policial Militar – IPM

Investigações policial-militares instauradas isolada ou cumulativamente com os procedimentos acima descritos, quando houvesse indícios da ocorrência de crime militar na área da Missão à luz da legislação brasileira, independentemente do autor (se civil ou militar, brasileiro ou estrangeiro), conforme preveem o Código Penal Militar (BRASIL, 1969a) e o Código de Processo Penal Militar (BRASIL, 1969b) brasileiros, respectivamente em seus art. 9º e 4º, inciso I, alínea c).

Nesse contexto, independente do autor ou vítima do crime militar praticado em solo haitiano, devia-se instaurar o competente IPM, devendo o mesmo ser encaminhado ao Brasil, endereçado à 1ª Auditoria da 11ª Circunscrição Judiciária Militar (Brasília – DF), conforme prevê o art. 91 do CPPM (BRASIL, 1969b).

Por fim observe-se que, quando o objeto de IPM abrangia fatos de interesse da ONU, como, por exemplo, crimes militares cometidos contra civis, ou ilícitos que, ao mesmo tempo, violassem as normas da Missão, as peças eram vertidas para o Inglês e enviadas à MINUSTAH.

 

  1. Auto de Prisão em Flagrante Delito – APFD

Tem sua previsão no art. 243 e seguintes do CPPM, seguindo-se os mesmos procedimentos do IPM, no que se refere à Auditoria competente no Brasil.

Ressalte-se que não havia “xadrez” nas instalações do Batalhão brasileiro, devendo-se atender aos critérios de razoabilidade/proporcionalidade em relação ao infrator e o delito cometido, levando-se ainda em consideração que a excepcionalidade da situação da Missão, por si só, já cerceava a liberdade do militar, estando o mesmo num país estranho e restrito às instalações da Unidade, quando de folga, ou em atividades externas à OM, nas quais podia estar colocando a vida em risco.

  1. Sindicâncias

As Sindicâncias eram instauradas para apurar casos de interesse do contingente brasileiro, servindo tanto para investigar fatos, quanto para assegurar direitos. Seu uso mais comum ocorria nos casos que podessem ter repercussão no retorno ao Brasil, tais como questões disciplinares, acidentes em serviço, problemas relativos a material, entre outros.

Tal procedimento tem sua previsão nas Instruções Gerais para a Elaboração de Sindicância no Âmbito do Exército Brasileiro – EB 10-IG-09.001 (BRASIL, 2012, p. 52), sendo conceituada conforme prevê o art. 2º da citada norma:

“Art. 2º A sindicância é o procedimento formal, apresentado por escrito, que tem por objetivo a apuração de fatos de interesse da administração militar, quando julgado necessário pela autoridade competente, ou de situações que envolvam direitos.”

Assim, na ocorrência de fato digno de ser averiguado, ou não havendo certeza acerca de sua licitude ou de sua ofensa ao ordenamento jurídico, podiam os Comandantes se utilizarem da Sindicância, sendo responsáveis, ao seu final, por emitirem “Solução” ao feito, concordando ou não com o apurado pelo Sindicante.

Conforme previsto nas citadas Instruções Gerais, sua instauração ocorre mediante Portaria firmada pelas autoridades elencadas no art. 4º, cujo teor, além de delimitar o fato a ser apurado, designa seu Encarregado (Sindicante) e Escrivão (neste último caso em situações mais complexas), devendo ser concluída no prazo de 30 (trinta) dias corridos, com possibilidade de prorrogações de 20 dias, caso necessário e justificável.

O Sindicante é sempre Oficial, Aspirante a Oficial, Subtenente ou Sargento Aperfeiçoado, desde que de maior precedência hierárquica em relação ao militar potencialmente responsabilizável pelo fato, figurando este como Sindicado no feito. Quando não houver Sindicado militar, houver apenas a apuração de um fato (sem potenciais responsáveis) ou o Sindicado for civil, a designação do Sindicante, em relação a seu Posto ou Graduação, atenderá a critérios discricionários da autoridade nomeante.

Igualmente aos casos de instauração dos IPM, quando o objeto da Sindicância abrangia fatos também de interesse da ONU (ou seja, violações às normas da Missão) as peças de interesse eram vertidas para o Inglês e enviadas à MINUSTAH.

  1. Formulário de Apuração de Transgressão Disciplinar (FATD)

Nas questões disciplinares militares, assim como no Brasil, utilizava-se dessa ferramenta administrativa quando era necessário apurar o cometimento de transgressões disciplinares. Conforme previsto no Regulamento Disciplinar do Exército (BRASIL, 2002a), sua apuração compete ao Comandante de Subunidade, nos casos menos graves, ou ao Comandante do Batalhão, nos graves, utilizando-se do rito previsto em seu Anexo IV.

  1. Accident/Incident Report

Não se tratava, propriamente, de um instrumento investigatório, porém por caracterizar-se como um documento formal que exige um mínimo de coleta de informações, merece ser aqui destacado.

Em tradução livre, era um Relatório de Acidente/Incidente dirigido ao FPM, informando a ocorrência de fatos que dariam início, muito provavelmente, a uma investigação de interesse da ONU, sem prejuízo, como já delineado, de uma investigação paralela desencadeada pelo contingente afetado.

Assim, qualquer acidente ou incidente ocorrido nos contingentes militares deveria ser reportado à ONU, através do FPM, devendo constar os dados completos dos envolvidos, do local (inclusive latitude/longitude), os danos ou lesões sofridos e, se possível, fotos da ocorrência (UNITED NATIONS, 2005, p. 80).

Sua utilização mais frequente ocorria em relação aos acidentes de trânsito, tendo em vista as precárias condições de tráfego haitianas, aliadas à imprudência e imperícia dos motoristas daquele País.

Tal documento deveria ser encaminhado ao FPM dentro de 24 horas após a ocorrência, já vertido para o inglês, sendo assinado pelo Comandante da Unidade.

  1. Outros documentos de apoio às investigações

Os contingentes militares ainda produziam uma série de documentos que eram utilizados nas investigações, fossem estas a cargo da Unidade ou não. Tais documentos ficavam arquivados junto à Assessoria Jurídica da Unidade, com a finalidade de alimentar futuras investigações, sendo alguns deles vertidos para o inglês. Citamos a seguir alguns deles:

1) Perícias realizadas pela Polícia do Exército (PE): independentemente das perícias realizadas pela GUAMPCOY, a PE sempre realizava sua perícia. Para tanto, possuía militares especializados nessa função;

2) Declaração dos envolvidos no fato (STATEMENTS): muitas vezes a GUAMPCOY não conseguia obter os depoimentos dos envolvidos no local do fato. Isso podia ocorrer pela diferença do idioma (espanhol x português x creole), pelo impedimento de permanecer no local do fato (no caso de uma tropa, por exemplo, estar realizando patrulhamento, sendo prejudicial ao cumprimento da missão a sua imobilidade temporária), ou até mesmo pelo fato dos civis envolvidos se evadirem do local, não chegando a MP a tempo de realizar seus procedimentos. Nesses casos, cabia à Assessoria Jurídica da Unidade colher os depoimentos, já aproveitando o ensejo para assessorar os militares nessa tarefa; e

3) Ficha de Manutenção da viatura, Controle de entrada e saída de viatura (TRIP TICKET) e Ordem para saída (Plano de patrulha, Ofício especificando o motivo da saída, etc): documentos produzidos pelas Companhias responsáveis pelas viaturas, no casos de acidentes com as mesmas (assinado pelo Comandante de Companhia), sendo posteriormente fornecidos à GUAMPCOY.

 

CONCLUSÃO

No decorrer do presente trabalho, buscou-se demonstrar aspectos pouco conhecidos do emprego de tropas no exterior em missões de paz, diante da importância dessas atividades na atualidade.

Nesse contexto, as atividades militares levadas a cabo no exterior sempre ensejarão investigações, em virtude da particularidade das ações desempenhadas, fazendo-se necessária a utilização de procedimentos investigatórios específicos, como os ora estudados.

Tomando conhecimento desses aspectos legais e procedimentais, pode-se realizar uma melhor preparação dos contingentes militares para a sua participação em missões no exterior, proporcionando o amparo jurídico necessário para que o nosso País obtenha êxito em suas ações.

Enfim, espera-se ter contribuído, ainda que de forma modesta, para despertar na Comunidade Acadêmica, nos Operadores do Direito e nos Profissionais das Armas, a importância da participação das Forças Armadas do Brasil na MINUSTAH, representando atualmente uma rica parcela da história brasileira recente, cujos frutos atuais e futuros certamente contribuirão para a manutenção da paz em todo o mundo.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 2 jun. 2018.

BRASIL. Decreto nº 4.346, de 26 de agosto de 2002a. Aprova o Regulamento Disciplinar do Exército. Brasília, DF. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4346.htm>. Acesso em 1º jun. 2018.

BRASIL. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002b. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm>. Acesso em: 2 jun. 2018.

BRASIL. Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969a. Código Penal Militar. Planalto. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1001.htm>. Acesso em: 2 jun. 2018.

BRASIL. Decreto-Lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969b. Código de Processo Penal Militar. Brasília, DF. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1002.htm>. Acesso em 1º jun. 2018.

BRASIL. Exército Brasileiro. Portaria do Comandante do Exército nº 107, de 13 de fevereiro de 2012 – Aprova as Instruções Gerais para a Elaboração de Sindicância no Âmbito do Exército Brasileiro (EB 10-IG-09.001) e dá outras providências. Boletim do Exército nº 7, de 17 de fevereiro de 2012 – Brasília: 2012, pp. 51-87.

BRASIL. Lei Complementar nº 97 de 9 de junho de 1999. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LCP/Lcp97.htm>. Acesso em: 2 jun. 2018.

BRASIL. Ministério da Defesa. Missões de Paz. Disponível em: <https://www.defesa.gov.br/relacoes-internacionais/missoes-de-paz>. Acesso em: 2 jun. 2018.

PRADO, Marcos Ozi Amaral; NETO, Maurício Martins. Manual da Assessoria Jurídica (11º Contingente), 2009.

UNITED NATIONS. Agreement between the United Nations and the Government of Haiti concerning the status of the United Nations Stabilization Mission in Haiti. Port-au-Prince, 2004.

UNITED NATIONS. Security Council. Resolution 2350. New York, 2017. Disponível em: <https://minujusth.unmissions.org/sites/default/files/sc_2350e.pdf>. Acesso em: 2 jun. 2018.

UNITED NATIONS. Standing Operating Procedures Minustah MilitarySerie 100:U-1 Personnel. Port-au-Prince, 2005.

[1] Oficial do Exército Brasileiro. Especialista em Direito Militar e Direito Internacional. Ocupou o cargo de Assessor Jurídico do 2º Batalhão de Infantaria de Força de Paz na República do Haiti, entre fevereiro e setembro de 2011. E-mail: [email protected].

[2] Já traduzido para o português.

[3] “Representante Especial” é o representante do Secretário-Geral da ONU à frente da MINUSTAH (Chefe da Missão).

[4] Segundo o Parágrafo 26, o Representante Especial, o Comandante do componente militar da MINUSTAH e os colaboradores do primeiro escalão do Representante Especial, gozam do status especificado nas seções 19 e 27 da “Convenção” (privilégios e imunidades reconhecidos aos diplomatas).

[5] A “Convenção” a que se refere o Parágrafo 26 é a Convenção sobre os Privilégios e Imunidades das Nações Unidas, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 13 de Fevereiro de 1946.

[6] Dados retirados do MINUSTAH Bulletin Board, sendo parte do conteúdo do Curso Induction Training Course, ministrado pela ONU no Haiti em 2011.

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