Processo disciplinar militar e o princípio da ampla defesa

Resumo: A presença de advogado não é obrigatória no Processo Disciplinar Militar mesmo com a possibilidade de aplicação de sanção restritiva de liberdade detenção e prisão. Esse fato não viola o princípio da ampla defesa.

Sumário: introdução. O que pode ser considerado transgressão militar. Punições aplicáveis em caso de transgressão militar. Ampla defesa e contraditório. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO:

Os militares têm uma série de princípios constitucionais relativizados pelo fato de serem regidos por legislação específica. Todas as suas condutas devem se basear nos princípios da hierarquia e disciplina. Hoje as principais normas que regem esses agentes são: a Lei nº 6.880/1980 (Estatuto dos Militares); Lei nº 4.375/1964 (Lei do serviço militar); os regimes disciplinares de cada força (Marinha, Exército e Aeronáutica) e a Constituição Federal de 1988.

O regimento militar é bem diferente do regimento dos servidores civis e não poderia ser diferente, tendo em vista que as Forças Armadas são responsáveis pela defesa nacional, por proteger os poderes constitucionais e garantir a ordem interna.

“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.” (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988)

Porém, este fato não pode ser fundamento para a violação dos Direitos Fundamentais consagrados em nossa Carta Magna, em especial o direito a liberdade de locomoção, amparado pelo remédio constitucional do Habeas Corpus.

A prisão por transgressão militar é disciplinada na norma constitucional, logo não há que se falar em modalidade ilegal de sanção, neste contexto dispõe a Constituição:

Art. 5º(…)

LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;” (grifo)

A apuração para verificar a prática de transgressão militar deve se dar por meio de processo próprio assegurado a ampla defesa e o contraditório. O Processo Disciplinar Militar é o meio utilizado pelo Estado para de um lado garantir esses direitos e do outro efetivar seu poder hierárquico e disciplinar.

O QUE PODE SER CONSIDERADO TRANSGRESSÃO MILITAR:

Primeiramente há de ser diferenciar o que seria uma mera transgressão militar e o que seria considerado crime militar. Celso Lobão define crime militar:

“o crime militar é a infração penal prevista na lei penal militar que lesiona bens ou interesses vinculados à destinação constitucional das instituições militares, às suas atribuições legais, ao se funcionamento, à sua própria existência,no aspecto particular da disciplina, da hierarquia da proteção à autoridade militar e ao serviço militar.” (LOBÃO, 2006, p. 56)

A conduta de transgressão militar vem descrita nos regimentos de cada força. Vamos utilizar o Regulamento Disciplinar do Exército, Decreto nº 4.346/2002, a fim de definir transgressão:

Art. 14.Transgressão disciplinar é toda ação praticada pelo militar contrária aos preceitos estatuídos no ordenamento jurídico pátrio ofensiva à ética, aos deveres e às obrigações militares, mesmo na sua manifestação elementar e simples, ou, ainda, que afete a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe.

§1oQuando a conduta praticada estiver tipificada em lei como crime ou contravenção penal, não se caracterizará transgressão disciplinar.”

PUNIÇÕES APLICÁVEIS EM CASO DE TRANSGRESSÃO MILITAR:

O servidor civil quando pratica conduta irregular responde a processo administrativo disciplinar próprio, este gera sanções administrativas a serem aplicadas a cada casa em concreto. Após processo administrativo disciplinar federal, o servidor que cometeu desvio de conduta poderá ser punido, segundo consta no art. 127 da Lei nº 8112/1990, com advertência, suspensão ou demissão, cassação da aposentadoria ou da disponibilidade, destituição de cargo em comissão ou destituição de função comissionada.

O militar, no caso de transgressão militar, poderá sofrer sanções muito mais rígidas. Dispõe a norma militar:

Art. 24. Segundo a classificação resultante do julgamento da transgressão, as punições disciplinares a que estão sujeitos os militares são, em ordem de gravidade crescente:

I – a advertência;

II – o impedimento disciplinar;

III – a repreensão;

IV – a detenção disciplinar;

V – a prisão disciplinar; e

VI – o licenciamento e a exclusão a bem da disciplina.

Parágrafo único. As punições disciplinares de detenção e prisão disciplinar não podem ultrapassar trinta dias e a de impedimento disciplinar, dez dias.” (grifo). (Decreto nº 4.346/2002)

Percebe-se que o militar pode vir a sofrer pena restritiva de liberdade no caso de conduta qualificada como transgressão militar.

AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO:

A Constituição assegura a ampla defesa e o contraditório tanto nos processos judiciais como nos processos administrativos. A defesa técnica realizada por advogado advém desses princípios.

“A defesa técnica, isto é, aquela exercida pela atuação profissional de um advogado, é um corolário da ampla defesa. Essa defesa técnica, no ordenamento constitucional brasileiro, é defesa necessária, indeclinável, plena e efetiva. Além de ser um direito é, também, uma garantia, porque só assim se pode atingir uma solução justa.” (FERNANDES, 2012, p. 254).

O Superior Tribunal de Justiça editou em 2007 a Súmula nº 343, a qual alcança e protege o militar, tendo em vista a possibilidade de aplicação de sanção que restringe a liberdade do mesmo. O texto da súmula dispõe: “É obrigatória a presença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar.”

Em 2008 o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante nº 5, a qual torna facultativa a presença do advogado nas fases do processo administrativo disciplinar: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a constituição.”

O servidor público civil poderá se utilizar do Poder Judiciário para rever sanção administrativa decorrente de Processo Administrativo Disciplinar (PAD) irregular, neste caso ficando provada a ilegalidade da punição o judiciário deverá anular o processo, com isso o servidor não se vê com grandes prejuízos, pois retornará a sua situação anterior. A fim de exemplificar, imagine a situação em que servidor público federal é demitido sem fundamentação legal por meio de um PAD, este tramitado sem a presença de advogado para defesa do processo. Ingressando com ação no judiciário o autor terá direito a reintegração ao serviço público, conforme dispõe o art. 28 da Lei nº 8112/1990. A presença do advogado na ação judicial é obrigatória. No exemplo a ausência do advogado no Processo Administrativo não gerou, em tese, grandes prejuízos ao servidor.

A mesma lógica não pode ser utilizada ao militar, tendo em vista o regimento disciplinar próprio que dá a possibilidade de aplicar prisão como sanção. Neste caso, a falta de advogado nas fases do Processo Disciplinar Militar viola o princípio constitucional da ampla defesa. Somente advogado regularmente inscrito nos quadros da Ordem do Advogados tem capacidade e conhecimento jurídico para assegurar o regular andamento do processo e elaboração de defesa técnica. O militar por si só não tem qualificação jurídica para elaborar sua tese de defesa com fundamentos doutrinários e legais.

Apesar de o judiciário rever os aspectos legais do Processo Disciplinar Militar, devendo anulá-lo no caso de ilegalidade, o militar, dependendo do caso, jamais poderá retornar a seu status original. Como reverter trinta dias de prisão disciplinar já cumpridos? Nesse caso, o militar teve sua liberdade violada ilegalmente e já cumpriu a sanção em unidade de prisão militar.

CONCLUSÃO

A Súmula Vinculante nº 5 deve ser interpretada de maneira extremamente literal, se aplicando apenas aos processos administrativos disciplinares, como está expresso no seu texto.

Nos Processos Disciplinares Militares há de ser obrigatória a presença de advogado, tendo em vista as rígidas sanções que podem ser impostas ao militar por meio desse processo, em especial aquelas que restringem a liberdade do militar. Aplicar a Súmula Vinculante nº 5 aos militares é violar diretamente os princípios da ampla defesa, do devido processo legal e, dependendo do caso, a liberdade de locomoção.

 

Referências
BRASIL. Estatuto dos Militares: Lei nº 6.880 de 09 de dezembro de 1980. disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6880.htm>
BRASIL. Lei do Serviço Militar: Lei nº 4.375 de 17 de agosto de 1964. disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4375.htm>
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em : <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>
BRASIL. Regulamento Disciplinar do Exército: Decreto nº 4.346 26 de agosto de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4346.htm>
BRASIL. regime jurídico dos servidores públicos civis da União : Lei nº 8112 de 11 de dezembro de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8112cons.htm>
BRASIL. Súmula 343 do STJ. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/doc.jsp?livre=@num=%27343%27>
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23 ed. São Paulo: Atlas, 2010.
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional – 7 ed : Revista dos Tribunais, 2012.
LOBÃO, Célio. Direito Penal Militar3 ed. Editora Brasília Jurídica, 2006.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 10 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

Informações Sobre o Autor

Leandro Garcia Santos Xavier

Analista Ambiental da Área de Monitoramento Regulação Controle Fiscalização e Auditoria Ambiental do IBAMA. Bacharel em Direito pela Faculdade Estácio/Facitec. Especialista em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá cursando. Advogado


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