Processo Eletrônico: o triunfo definitivo da Sociedade da Informação e as cautelas necessárias


Existe um virtual consenso científico no sentido de que a sociedade humana ingressou em um novo patamar histórico de produção de riquezas e valores conhecido como Revolução da Informação, também chamado de Revolução do Conhecimento. Primeiro, a Revolução Agrícola colocou a terra produtiva como elemento central do sistema de geração de riquezas. Depois, a Revolução Industrial trouxe a máquina (movida a vapor e, depois, a eletricidade) como ator tecnológico central. A partir da segunda metade do século XX, na fase da Revolução da Informação, a informação e o conhecimento passaram a desempenhar o papel central na atividade social, notadamente em seus principais desdobramentos econômicos.


Uma das marcas mais salientes da atual Sociedade da Informação aparece na forma da convergência digital. Praticamente tudo (sons, imagens, vídeos, textos, etc) passou a ser digitalizado ou, em outras palavras, expresso na linguagem universal dos bits (0s e 1s). Tem-se, assim, a afirmação prática da Teoria da Informação (de Shannon) que aponta justamente para a possibilidade da informação (de toda informação finita) assumir esse nível mais elementar de registro e propagação.


O triunfo definitivo da Sociedade da Informação pode ser claramente identificado quando a convergência digital chega aos domínios do processo judicial. Tradicionalmente, a seara jurídica, em particular a área das lides forenses, apega-se a um formalismo exacerbado. Paralelamente, a resistência às mudanças, transformações e avanços, inclusive, e particularmente, tecnológicos, são indisfarçáveis no universo dos operadores do direito.


Nessa linha, temos dois emblemáticos registros do início e do fim do século XX. Com efeito, nas primeiras décadas do século passado  pode ser identificada uma forte resistência às sentenças datilografadas. Consta que decisões judiciais foram anuladas, por alguma engenhosa construção de incompatibilidade com  os fundamentos básicos da disciplina processual, pela singela razão de não terem sido escritas pelo magistrado de próprio punho! Nas últimas décadas do século anterior também poderam ser observadas incompreensões na esfera do processo judicial em relação aos avanços tecnológicos. Assim como no início do século já findo, sentenças foram anuladas por razões tecnológicas. Nesses casos, o motivo, ou o “vilão”, foi o microcomputador e sua produção “em série”.         


Outra significativa demonstração do formalismo e da resistência aos avanços tecnológicos reinantes no campo jurídico-processual pode ser observada na produção legislativa necessária para fazer vingar o processo eletrônico.


Uma primeira ocorrência digna de nota consiste na “necessidade” de consagrar expressamente em lei (art. 14 da Lei n. 7.244, de 1984) a possibilidade, válida juridicamente, do registro de audiências judiciais em fitas magnéticas. Aparentemente, uma interpretação inteligente e evolutiva da legislação processual, atenta aos avanços tecnológicos, permitia atribuir ao princípio da documentação uma flexibilidade viabilizadora da prática e do registro de atos processuais por intermédio de meios alternativos “ao bom e velho papel”. Aponte-se, por justiça, que a visão refratária ao avanço tecnológico nos domínios do processo judicial brasileiro não era unânime. Nesse sentido, três dos mais renomados processualistas brasileiros (CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO), em obra publicada no sintomático ano de 1990, já alertavam: “A documentação por meio da palavra escrita à mão ou mecanicamente (máquinas de escrever) mostra-se visivelmente obsoleta, diante das novas conquistas da eletrônica”.


Por força da Lei n. 9.800, de 1999, permitiu-se (foi esse o vocábulo utilizado pelo legislador) às partes a utilização de sistema de transmissão de dados e imagens tipo fac-símile ou outro similar, para a prática de atos processuais que dependam de petição escrita.


A Lei dos Juizados Especiais Federais (Lei n. 10.259, de 2001) veiculou outro dispositivo legal expresso no sentido da utilização dos meios eletrônicos na seara processual, autorizando a organização de serviço de intimação das partes e de recepção de petições por meio eletrônico.


O penúltimo movimento do legislador no sentido de sacramentar a utilização dos meios eletrônicos para a prática de atos processuais pode ser constatado na Lei n. 11.280, de 2006. Esse diploma legal introduziu um parágrafo no art. 154 do Código de Processo Civil que assegurou a prática e a comunicação oficial dos atos processuais por meios eletrônicos, atendidos os requisitos de autenticidade, integridade, validade jurídica e interoperabilidade da Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil).


A última iniciativa do legislador processual, representada pela edição da Lei n. 11.419, de 2006, completou o ciclo de normas jurídicas voltadas para a informatização completa do processo judicial no Brasil. O diploma legal em questão tratou, de forma razoavelmente detalhada, do uso dos meios eletrônicos na tramitação de processos, na comunicação de atos processuais e na transmissão de peças processuais. A Lei 11.419 também definiu expressamente que “todos os atos ou termos do processo podem ser produzidos, transmitidos, armazenados e assinados por meio eletrônico”.


Merece destaque a definição de que a prática de um ato processual informatizado, assim entendido como qualquer forma de armazenamento ou tráfego de arquivos digitais, exige o uso de assinatura eletrônica, notadamente a assinatura digital baseada em certificação regulada em lei específica (atualmente, os certificados digitais lastreados em criptografia assimétrica de chave pública e chave privada disciplinada pela Medida Provisória n. 2.200-2, de 2001). A referida assinatura digital, uma das várias formas de assinatura eletrônica, produzirá na esfera jurídico-processual, assim como nas mais variadas áreas de interação humana, uma profunda e significativa mudança de costumes. Com efeito, a assinatura física como marca de identificação pessoal em documentos será paulatinamente eliminada, rumo a utilizações extremamente restritas e “românticas”.


Assim, é possível afirmar, para além de qualquer dúvida razoável, que a Sociedade da Informação triunfou numa das searas mais refratárias aos seus “encantos” e “facilidades”. Pelo visto, não existe caminho de volta: o processo judicial brasileiro, em todas as instâncias, será informatizado em menor ou maior intervalo de tempo.


Essa última constatação descortina, no entanto, importantes preocupações. As principais são:


a) é preciso que os responsáveis ou condutores do processo de informatização do processo judicial brasileiro atentem para as exigências de um período de transição e para as disparidades de um País continental, notadamente em função da necessidade de convivência entre tecnologias mais avançadas e mais atrasadas e restrições ou ausências de acesso aos meios eletrônicos por inúmeros operadores do direito. Assim, toda atenção deve ser dispensada para os devidos ajustes ao tempo e velocidade de adesão dos atores processuais ao novo cenário do processo eletrônico;


b) devem ser privilegiadas e azeitadas as relações com as instituições responsáveis por volumes imensos de atos processuais, tais como a Advocacia Pública, Ministério Público e Defensoria Pública, notadamente por ocasião da edição de normas reguladoras e da adoção de definições técnicas. Compreender as dinâmicas específicas e as peculiaridades de interação com Judiciário dessas instituições é absolutamente fundamental nesta seara;


c) a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) não pode ser afastada ou desconsiderada como interlocutor necessário quanto à identificação dos advogados para efeitos de certificação digital;


d) a uniformização de soluções técnicas na implementação do processo judicial informatizado surge como um imperativo de racionalidade, respeito ao dinheiro público e mecanismo fundamental de sucesso dos procedimentos a serem desenvolvidos;


e) o desenho das soluções tecnológicas deve contribuir para a celeridade da prestação jurisdicional e respeitar os mais caros princípios jurídicos aplicados no campo processual, em especial a publicidade, o contraditório e a ampla defesa. Nessa linha, atenção especial deve ser dispensada para: e.1) a chamada videoconferência para viabilizar interrogatórios de réus presos; e.2) os tamanhos e formatos de arquivos utilizados e e.3) os formatos de disponibilização dos atos do processo (em blocos claramente identificados por conteúdo e fases do procedimento);


f) conforme estabelece a lei, os sistemas a serem utilizados na informatização do processo judicial deverão ser desenvolvidos preferencialmente com programas (ou softwares) de código aberto. A partir dessa definição, devem ser adotados todos os desdobramentos técnicos com o espírito de amplo conhecimento e controle das soluções adotadas;


g) importantes cuidados devem ser dispensados para os aspectos de segurança no armazenamento e tráfego de informações, afinal imagina-se que os processo judiciais informatizados serão forte atrativo para todas sorte de malfeitores digitais;


h) o tratamento de problemas operacionais, em especial aqueles que inviabilizam a prática de atos processuais (art. 10, parágrafo segundo, da Lei n. 11.419, de 2006) reclama cuidados especialíssimos. Duas soluções, entre outras, devem ser consideradas: h.1) a disponibilização de um histórico de indisponibilidade do sistema implementado e h.2) a criação de comissões mistas, com integrantes indicados pela OAB, com as funções de monitorar e receber reclamações acerca do funcionamento do sistema adotado, com as repercussões processuais cabíveis.


Portanto, o triunfo do processo judicial informatizado, inegável  e significativa conquista da moderna Sociedade da Informação, revela-se promissor, desde que, frise-se, cuidados e cautelas adequadas estejam presentes na implementação e no desenvolvimento dos avanços em comento.



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Aldemário Araújo Castro


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