Processo virtual e morosidade real

Nem tudo
é virtuoso no processo virtual. Enquanto solução para otimizar a tramitação do
processo, que, segundo estudos, consome cerca de 70% do seu tempo, eliminando
fases arcaicas da burocracia processual como juntadas, termos, remessas,
formação dos autos etc, e enquanto instrumento de padronização e celeridade da
realização e comunicação dos atos processuais, grande e indiscutível é sua
virtude.

Mas vale
a reflexão: o mal maior do Judiciário não está na morosidade do tramitar, e sim
no atraso em se julgar. 43 milhões de processos aguardam julgamento em todo
país, segundo dados recentes do Conselho Nacional de Justiça (fevereiro/2008). O
processo em fase de julgamento não está “tramitando”; apenas aguarda ser
julgado. É como se 1/5 da população brasileira estivesse na fila esperando uma
decisão judicial. Nesses casos, a burocracia processual, norte a ser enfrentado
pelo processo virtual/digital, nada tem de relevante, pois em grande parte está
superada. Por isso, solucionados os entraves que dispersam o processo no tempo,
com a pretendida agilidade da virtualização, nem assim estarão solucionados os
obstáculos que impedem uma célere prestação jurisdicional, ultimada pela
prática do ato judicial: o decidir.

O
processo, mesmo eletrônico/virtual, não dispensa a manifestação real. A ação
instrumental da máquina não substitui o pensar, o compreender, o criar, o
solucionar. A experiência já obtida com processos eletrônicos/virtuais
solucionados rapidamente, mesmo aos milhares, mas de regra relacionados a
demandas de massa e seus processos repetitivos, com idênticos fatos e
argumentos jurídicos, amplamente debatidos em todas as instâncias, julgados em
“bloco” com um simples apertar de tecla, identificam-se apenas em parte,
pequena parte, com os mais de 43 milhões de processos que aguardam julgamento. Essa
experiência não pode servir de parâmetro para se reconhecer o êxito da integral
virtualização judicial, e que se quer estender a todos os processos judiciais,
cíveis ou criminais. O mesmo se diga com relação ao julgamento de um ou outro
caso isolado e bem sucedido de processo eletrônico/virtual solucionado
celeremente nos Tribunais de segundo grau, nos Tribunais Superiores e mesmo no
Supremo Tribunal Federal. Nas experiências realizadas, a virtude da célere e
definitiva prestação jurisdicional deu-se não só pela rápida tramitação
eletrônica do processo mas também, e principalmente, pela própria prioridade
que se definiu para os respectivos julgamentos, até porque traziam em si a desejada
marca da inovação e do pioneirismo tecnológico.

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O fato é
que o maior gargalo da morosidade do Judiciário não está na tramitação dos
processos. Está, sim, na incapacidade humana em atender à descomunal proporção
do número de processos por Juiz, que impede se dar vazão ao grande número de
ações que, desde o primeiro grau até o Supremo Tribunal Federal, aguardam
julgamento, mesmo estando os magistrados brasileiros entre os mais produtivos
do mundo, segundo estudos do Bird (dezembro/2007). Assim, sem uma adequada
proporcionalidade entre o número de juízes e a efetiva demanda judicial, em
todos os graus de jurisdição, como previsto na Constituição (art. 93, XIII),
será difícil conhecer um mundo real de celeridade na prestação jurisdicional.

E se a
morosidade realmente incomoda, o processo eletrônico/virtual é que poderá vir a
ser mais um elemento complicador aos desafios de um Judiciário rápido e
eficiente. Sem a necessidade de se avançar em questões como o “apagão
informático” ou a “lentidão do sistema”, não tão eventuais, que nem mesmo as instituições
financeiras, com seu poderio econômico, conseguem evitar, ou em questões sobre
os danos à saúde que a exposição excessiva à tela do computador e ao teclado
podem acarretar, há questões outras que podem comprometer o esperado sucesso da
ampla virtualização judicial, e que dizem respeito às condicionantes
estruturais do cérebro humano na tarefa criadora do pensar.

Quando
essa tarefa depende de prévia obtenção de informações, o meio em que elas são
produzidas torna-se tanto mais relevante quanto sua capacidade em contribuir
para o discernimento e seletividade do conteúdo, com seu aproveitamento ou
descarte mais célere e eficiente. E esse meio está relacionado aos recursos que
a mente humana se utiliza para aproveitar as informações. O ver e o ler, por
exemplo, são recursos distintos. Nem tudo que se vê é lido: o analfabeto vê,
mas não lê. Nem tudo que é lido é visto: o cego lê, mas não vê.  Há, assim, uma diferença enorme entre o ver e
o ler. O sentido da visão é o que o homem mais se utiliza, e o faz mais vendo e
menos lendo. O ver é constante, o ler é eventual. O ver, mesmo constante, não
gera exaustão. Já o ler, longe da capacidade do quanto podemos ver, é naturalmente
fatigante. O ver, assim, facilita a eficiência da assimilação mental da
informação.

Os autos
processuais nada mais são do que um meio de armazenamento de informações,
predominantemente escritas e disponíveis para serem recuperadas pelos
protagonistas do processo: os advogados e o Ministério Público, em suas
defesas, e o Juiz, em suas decisões. E aí está uma distinção relevantíssima do
processo com papéis — “autos físicos” — em relação ao processo
virtualizado/digitalizado — “autos eletrônicos” — enquanto instrumentos hábeis
a melhor proporcionar a assimilação e seletividade da informação desejada.

Nos
“autos físicos” é possível a percepção do conjunto, do todo; não é preciso ler
peça por peça para se chegar aonde se quer. E aonde se quer chegar, com o
manuseio de peças obtém-se informação célere, como placas a sinalizarem os
caminhos. A gama de subinformações disponíveis, pelas mais distintas
características das folhas de papel, em razão da cor, da gramatura, da
formatação, do tamanho, do seu estado de conservação, da sua posição nos autos
etc, facilita o processo de assimilação mental do todo e a seletividade do
conteúdo da informação desejada. Vai-se de peça a peça, de monte em monte, de
frente para trás, de trás para frente com uma agilidade e desenvoltura quase
que involuntária, automática, até mesmo intuitiva, e com uma rapidez de fazer
inveja aos mais avançados recursos informáticos, frise-se, apenas vendo, como
um esquema neurológico previamente formatado para uma interação cognitiva com
aquele ambiente.

Já nos
“autos eletrônicos” não. As peças processuais virtualizadas, desmaterializadas
e padronizadas que são, em meio eletrônico, sem as distinções físicas do papel,
onde as páginas, em imagens, aparecem isoladas do todo, impossibilitam
selecionar a informação desejada apenas vendo-se. Tudo é, aparentemente igual.
A falta de subinformações como as oferecidas pelo papel — cores, tamanhos,
gramaturas, estado de conservação — afunila as opções do cérebro em distinguir
o que é o quê, exigindo como atalho o recurso da leitura. Para se identificar
uma informação interessada, de regra, é necessário ler; apenas o ver já não
leva a lugar algum. E a leitura constante, permanente, como única fonte de
informação, do acesso e do conteúdo, fundindo sinalização e caminho em uma
coisa só, é tarefa exaustiva a comprometer, no dia-a-dia de labuta, a disposição
mental do corpo para produzir.

Não se
pode esquecer que o jornal, a revista e mesmo o livro estão disponíveis, há
anos, em meio eletrônico. Nem por isso sepultaram-se suas publicações em papel,
certamente pela vantagem funcional de consulta que o meio físico oferece para a
linguagem escrita. Há profissões que já se utilizam quase que exclusivamente
dos recursos do computador: engenharia, arquitetura e medicina são exemplos.
Nessas, porém, o que predomina é o uso da imagem e não da escrita; é a necessidade
do ver e não do ler.

 As resistências ao amplo alcance que se quer
imprimir ao processo eletrônico não se traduzem apenas em se querer ou não
aceitar suas inovações. E também não se trata somente de resistência cultural
ao novo ou de oposição a “quebra de paradigmas”. O homem é dotado de esquemas
de cognição previamente programados, alguns instintivos, outros desenvolvidos, e
as resistências ao processo eletrônico podem estar associadas, isso sim, à
interferência em todo um complexo sistema mental de cognição e que a
neurociência, a neurolingüística e a psicologia cognitiva podem auxiliar a
melhor compreendê-las.

O forte
apelo ecológico, a redução de espaços físicos e a economia de gastos com
pessoal, papel, tintas de impressão e outros materiais, são virtudes do
processo eletrônico que não podem ser desprezadas. Mas não podem também
ultrapassar os limites daqueles específicos objetivos e resultados. Tais
conquistas, ainda que associadas ao rápido tramitar, mas sem o correspondente
rápido julgar, seguramente poderão aumentar ainda mais a triste e indesejável
sensação de morosidade.

A adoção
de um processo misto ou híbrido, tal seja, virtual/eletrônico na burocracia
processual — com os atos cartorários praticados e registrados apenas naquele
ambiente — e material ou físico exclusivamente na formação de autos a reunirem
as peças produzidas pelo Juiz, Ministério Público, advogados e partes, associado
a uma política de adequação da proporcionalidade do número de juízes à efetiva
demanda judicial, como manda a Constituição, talvez pudesse contribuir no
desejado caminho de enfrentamento da real morosidade jurisdicional.


Informações Sobre o Autor

Alexandre Vidigal de Oliveira

Juiz Federal da 20ª Vara Federal/DF (Juiz Federal da Vara Única de Rio Grande, em 1991)
Juiz Federal em Brasília, com a experiência no julgamento de centenas de processos virtuais.


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