Progressividade fiscal de imposto de natureza real

Em inúmeros textos escritos anteriormente deixamos bem claro que a progressividade fiscal nada tem a ver com a natureza real ou pessoal do imposto.

Aquilo que a jurisprudência denomina de imposto real, de um lado, e imposto pessoal, de outro lado, na verdade não existe. Não existe a classificação legal de impostos em real e pessoal.

O que existe são impostos que têm por objeto um bem imóvel (IPTU, ITR) e impostos que têm como objeto de tributação um bem que não seja imóvel, como, por exemplo, a renda.

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Daí a classificação da doutrina clássica em impostos de natureza real e impostos de natureza pessoal, significando que aqueles só levam em conta na fixação do aspecto quantitativo do imposto a matéria tributável (bem imóvel), com total prescindência dos aspectos subjetivos de seu proprietário (contribuinte), ao passo que os últimos levam em conta, também  a situação peculiar de cada contribuinte, como é o caso do IRPF.

Todavia, essa classificação da antiga doutrina hoje perdeu a nitidez. Somente o exame do fato gerador do imposto em seus múltiplos aspectos permite classificar determinado imposto como sendo de natureza real, ou da natureza pessoal. Não se pode jamais prescindir do exame do aspecto material do fato gerador em confronto com os seus aspectos subjetivo e quantitativo, para saber se houve ou não consideração de elementos subjetivos na fixação do quantum do imposto.

A obrigação tributária é sempre pessoal, independentemente da classificação do imposto nessas duas espécies. O fato gerador do IPTU ou do ITR tidos como protótipos de imposto de natureza real é a disponibilidade econômica de imóvel urbano ou rural pelo proprietário, pelo titular do domínio útil ou pelo possuidor[1]. É a  conclusão a que se chega pelo exame dos aspectos material, subjetivo e quantitativo do fato gerador da obrigação tributária.

 Basta simples exame ocular da legislação do IPTU para constatar a consideração dos aspectos subjetivos do contribuinte para minorar o encargo tributário. A própria Súmula nº 539 do STF prestigia a redução do valor do IPTU fundada nas condições pessoais do contribuinte. Em relação ao ITR é a própria Constituição Federal que imuniza as pequenas glebas rurais quando exploradas por proprietário que não possua outro imóvel (art. 153, § 4º, II).

Sendo pessoal a obrigação tributária incide, à toda evidência, o princípio da capacidade contributiva (art. 145, § 1º da CF) de observância obrigatória. O texto constitucional prescreve que  “serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte.” Além do mais, o princípio da capacidade contributiva  é uma decorrência do princípio maior da isonomia tributária, que não permite tratamento igual entre os desiguais, nem tratamento diferenciado entre os iguais. O proprietário de imóvel urbano de valor venal elevado espelha objetivamente capacidade contributiva maior que o proprietário de imóvel urbano de diminuto valor venal. A condenação desse tipo de progressividade fiscal  pela Corte Suprema levou o legislador constituinte derivado a inserir expressamente a progressividade do imposto em função do valor venal do imóvel (§ 1º, I, do art. 156 da CF com a redação dada pela EC nº 29/00 para fazer observar o princípio da capacidade contributiva.

Por isso, sempre sustentamos a validade da progressividade do ITBI, que tem natureza estritamente fiscal como se depreende do exame de seu fato gerador: transmissão inter vivos e a título onera de bens imóveis e de direitos a ele relativos.

Não se sabe quando e como surgiu a estranha tese de que o ITBI não pode ser progressivo por não ter amparo constitucional, como tem o IPTU (art. 182, § 4º, II da CF). Há duplo equívoco nessa argumentação.

Primeiramente, a progressividade do IPTU tem natureza ordinatória, inserindo-se no campo da extrafiscalidade. Visa reprimir o uso antissocial de propriedade urbana para garantir o bem-estar da sociedade urbana. Na transmissão de bens imóveis não cabe cogitação de transmissão que cumpre a função social ou a que não a cumpre aquela função. A transmissão da propriedade não se confunde com o uso da propriedade. São duas realidade distintas.

Logo, a progressividade do ITBI só pode ser de natureza fiscal sendo incompreensível o seu cotejo com a progressividade extrafiscal do IPTU.

Em segundo lugar, o poder extrafiscal é inerente à entidade política tributante que pode dele fazer uso para regular matéria que se insira no âmbito de sua regular competência. Assim como o Município pode usar o IPTU como instrumento da política de desenvolvimento das funções sociais da cidade, a União pode utilizar-se do ITR como instrumento de política agrária, ou de política agrícola.

Logo, o fato de o art. 182, § 4º, II da CF ter regulado essa tributação extrafiscal representou um limitação constitucional do poder extrafiscal do município que não poderá implementar a tributação progressiva do IPTU, senão mediante o preenchimento dos quatro requisitos aí previstos. Não fosse essa previsão constitucional, que prescreve até a modalidade de progressão das alíquotas em função do tempo, o poder extrafiscal do município no manejo do IPTU progressivo seria bem mais amplo. Consoante escrevemos “o exercício do poder de polícia pelo Estado deve ser entendido como regra e a sua limitação, como exceção, que deve vir expressa no texto constitucional.” [2]

A estranha tese suscitada por alguns estudiosos causou reflexo na jurisprudência do STF, que reformando o acórdão proferido pelo Órgão Especial do antigo 1º TACIL do Estado de São Paulo, declarou à inconstitucionalidade a lei paulistana,  sob o fundamento de que o “imposto de natureza real que é, não pode variar na razão presumível da capacidade contributiva do sujeito passivo.” [3]

A partir de então espalhou-se aos quatro ventos o mito da impossibilidade jurídica de o imposto de natureza real comportar progressividade, resultando na edição da Súmula nº 656: “É inconstitucional a lei que estabelece alíquotas progressivas para o imposto de transmissão inter vivos de bens imóveis – ITBI – com base no valor venal do imóvel.”

Não conseguindo entender a razão da rejeição da progressividade do ITBI,  fundada no caráter real do imposto escrevemos desde aquela época, 1999: (…) “entendemos que a sua rejeição, inclusive sob a eiva de inconstitucionalidade, tem a sua verdadeira motivação no caráter excessivo da carga tributária. Afinal, um imposto que, tradicionalmente, vinha sendo tributado pela alíquota de 2%, da noite para o dia, teve o seu teto fixado em 6%, o que não é razoável …

Se a progressividade tivesse se  situado  nas faixas de 0,50%, 0,80% até 2% dificilmente o imposto teria sido impugnado pelo contribuinte e se o tivesse, o resultado, muito provavelmente, teria sido outro, em face do expresso princípio da graduação do imposto segundo a capacidade econômica do contribuinte.” [4]

Somente passados mais de dois lustros o STF viria alterar o seu entendimento acerca de progressividade de imposto de natureza real fundado na capacidade contributiva, que é de natureza objetiva. Não importa o patrimônio global de cada contribuinte, mas o bem imóvel que cada contribuinte está adquirindo. O valor venal desse bem é que irá revelar a capacidade contributiva do adquirente. Quem adquire um imóvel de R$ 1.000.000,00 revela objetivamente uma capacidade contributiva maior do que aquele que adquire um imóvel de R$ 100.000,00.

No julgamento do RE nº 562045/RS, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, no qual foi reconhecida a Repercussão Geral o Plenário da Corte Suprema, por maioria de votos, vencidos o Min. Relator e o Min. Marco Aurélio, deu provimento ao recurso para considerar constitucional a progressividade o ITCMD (j.6-2-2013). O mesmo entendimento foi aplicado nos RREE ns. 544.298, 544.438, 551.401, 552.553, 552.707, 552.862, 553.921, 555.495 e 470.849, todos procedentes do Estado do Rio Grande do Sul.

Assim, derrubou-se o mito da impossibilidade jurídica de tributação progressiva de imposto de natureza real que, com a devida vênia, não tinha amparo constitucional.

Resta verifica se o STF irá rever a sua Súmula de nº 656, pertinente ao ITBI tido como imposto de natureza real tanto quanto o ITCMD.

 

Notas:
[1] Daí porque imóvel urbano ou rural sem dono não comporta tributação pelo IPTU ou ITR.
[2] Cf. nosso Direito financeiro e tributário. 21ª ed. São Paulo: Atlas, p. 467
[3] RE nº 234.105, Rel.Min. Carlos Velloso, DJ 31-3-2000.
[4] Cf. nossa ob.cit. p. 467-468.

Informações Sobre o Autor

Kiyoshi Harada

Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.


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Equipe Âmbito Jurídico

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