Psicografia como meio de prova: para além do tecnicismo jurídico

1. A psicografia segundo o espiritismo

Assunto em voga fez-me pesquisar e delinear alguns apontamentos relevantes quanto à problemática, haja vista o objetivo seriíssimo do Espiritismo. Para tanto, recorro-me, neste trabalho, a renomados espíritas brasileiros (encarnados e desencarnados).

Cabe-nos dizer que ‘Espiritismo’ é a crença nos espíritos e tal doutrina tem por princípio a relação do mundo material com os espíritos ou seus do mundo espiritual (1). A crença nos espíritos funda-se na existência de um princípio inteligente fora da matéria (2).

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Sobre a comunicação dos espíritos, Kardec é enfático:

“Quis Deus que a nova revelação chegasse aos homens por mais rápido caminho e mais autênticos. Incumbiu, pois, os espíritos de leva-la de um pólo a outro, manifestando-se por toda a parte, sem conferir a ninguém o privilégio de lhes ouvir a palavra. Um homem pode ser ludibriado, pode enganar-se a si mesmo; já não será assim quando milhões de criaturas vêem e ouvem a mesma coisa. Constitui isso uma garantia para cada um e para todos. Ao demais, pode fazer-se que desapareça um homem; mas não pode fazer que desapareça as coletividades; podem queimar-se os livros, mas se podem queimar os espíritos (…) Faltem os homens para difundi-la: haverá sempre os espíritos, cuja atuação a todos atinge e aos quais ninguém pode atingir. São, pois, os próprios espíritos que fazem a propagação, com o auxílio dos inúmeros médiuns que, também eles, os espíritos, vão suscitando de todos os lados” (3).

O fato primeiro observado foi nos Estados Unidos. O fenômeno era denominado de ‘mesas girantes’ ou ‘dança das mesas’, onde diversos objetos se movimentavam seguidos de barulhos e pancadas de causa desconhecida.

Dos Estados Unidos propagou-se pela Europa e pouco tempo depois por todo o mundo.

A priori, as manifestações ocorriam por meio de mesas se levantando e batendo, com um número exato de pancadas que correspondiam às respostas ‘sim’ ou ‘não’ para as questões formuladas pelos encarnados. Mais tarde, as respostas obtiveram contornos desenvolvidos através de letras do alfabeto.

Assim formulava-se palavras e frases para as perguntas propostas:

“O ser misterioso que assim respondia quando interrogado sobre sua natureza, declarou que era um espírito ou gênio, deu o seu nome e forneceu diversas informações a seu respeito (…) Foi o próprio fenômeno que se revelou” (4).

Porém, esse mesmo espírito indicou um outro processo, ensinando aos encarnados a prender um lápis a um cesto ou a outro objeto. Esse cesto era colocado sobre uma folha de papel e se movimentava pelo poder oculto; o lápis traçava letras formando palavras, frases e discursos, tratando, às vezes, de assuntos de ciência, como a física, psicologia, medicina, filosofia, entre outros. A esse processo Kardec denominou de psicografia indireta.

Reconheceu-se que o cesto e a folha de papel eram um substituto da mão, e o médium, diretamente com o instrumento (o lápis), pôs-se a escrever por um impulso involuntário, em verdadeira catarse. A essa se dá à psicografia direta, consoante o Codificador do Espiritismo.

Czerski nos aclara que a psicografia possui três graus, a saber: (1) a mecânica, onde o braço do médium permanece sob o controle do espírito comunicante, sendo que aquele não interfere no conteúdo da mensagem. O médium não tem consciência do que escreve e os movimentos podem ser suaves ou bruscos. O autor corrobora:

“Do ponto de vista da fisiologia cerebral, especialmente havendo dissociação que permita ao médium se dedicar a outra tarefa simultânea, estamos diante de um hemitranse profundo, no qual a pouca extensão permite tais ocupações diferentes e a profundidade provoca a amnésia, ou melhor, o não registro da mensagem no consciente” (5).

(2) a intuitiva trata-se de mensagem em forma de pensamento, cujo conteúdo, às vezes, se confunde com o material cultural do próprio médium; (3) na semimecânica, a mão do médium é impulsionada sem que seja pela sua vontade. O médium tem consciência do que escreve, sendo assim, nesta – pensamento e escrita – surgem concomitantemente.

Alguns casos interessantes são colocados pelo mesmo autor (6), como v.g., o livro de Charles Dickens (Mistério de Edwin Drood). Falecido este, um jovem mecânico analfabeto chamado James concluiu a obra; completamente inconsciente escreveu mais de 400 páginas com a mesma caligrafia e coesão literária de Dickens.

Fernando Lacerda, médium português radicado no Brasil psicografava com as duas mãos simultaneamente.

Dentre psicógrafos conhecidos está Tereza de Ávila, que mantinha a escrita invertida, sendo possível a leitura somente com o auxílio de um espelho. Algo igualmente presente em Chico Xavier, inclusive a xenoglossia, que consiste na escrita em desconhecidos idiomas pelo médium.

2. Da responsabilidade moral do médium

No tocante à responsabilidade moral do médium ante o dom que possui, o Livro dos Médiuns nos esclarece em pergunta formulada por um encarnado e respondida por um espírito da seguinte forma:

“Os médiuns que fazem mau uso das suas faculdades, que não se servem delas para o bem, ou que não as aproveitam para se instruírem, sofrerão as conseqüências dessa falta?”

Se delas fizerem mau uso, serão punidos duplamente, porque tem u meio a mais de se esclarecerem e o não aproveitam. Aquele que vê claro e tropeça é mais censurável do que o cego que cai no fosso (7).

O médium, segundo a Doutrina Espírita jamais deve se afastar da máxima espírita, qual seja, ‘fora da caridade não há salvação’ e da exortação de Paulo da primeira Epístola aos Coríntios, cap. XII, v. de 1 a 7 e 13, traduzida pela palavra amor:

“Que os espíritas, pois, não se esqueçam de que  a Doutrina Espírita é o Consolador Prometido e que ninguém consola a quem sofre, sem que, além de palavras brandas nos lábios, traga nas mãos um pedaço de pão para o faminto e um copo de água pura para o sedento” (8).

3.      A advertência ‘O Estado é laico’

A laicização do Estado apregoada por diversos autores constitucionalistas torna-se uma barreira quanto à problemática exposta. Contudo, cabe-nos afirmar que o preâmbulo da Constituição insere-se no texto constitucional, servindo de paradigma comparativo para declaração de inconstitucionalidade, possuindo, portanto, caráter normativo (9).

A retórica de que o preâmbulo não é elemento obrigatório de qualquer Constituição não é plausível, haja vista a existência de preâmbulos em vários textos constitucionais estrangeiros com diretrizes sociológicas, filosóficas, políticas e ideológicas (10).

Ademais, o preâmbulo da Constituição foi votado e aprovado pela Assembléia Constituinte, transformando-o em aporte para sua elaboração e interpretação. Logo, o preâmbulo é requisito essencial.

A afirmação de que o Estado é laico, nos denota que o Estado não possui uma religião oficializada. Já a expressão ‘sob a proteção de Deus’, constante no referido preâmbulo, nos denota, por sua vez, que apesar de não existir uma religião não oficializada, a grande maioria da população brasileira é teísta, ou seja, admitem a existência de Deus e na sua ação providencial no Universo (11).

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4.      Do direito à prova

O trabalho científico do Dr. Carlos Augusto Perandréa (12), profissional perito em exames para identificações, realizou laborioso estudo, durante mais de 13 anos, com o fito de comprovar as autorias de mensagens psicografadas, iniciando o perito com as de Chico Xavier e em seguida de outros médiuns, dentro de vastos e rigorosos parâmetros exigidos pela ciência grafoscópica.

Em termos técnico-jurídicos, Eugênio Florian (13) nos aclara que provar é fornecer, no processo, o conhecimento de qualquer fato, adquirindo para si, e gerando noutrem, a convicção da substância ou verdade do mesmo fato.

Na melhor definição assentou-se o entendimento de que a prova constitui o instrumento por meio do qual o juiz forma sua convicção a respeito da ocorrência ou não dos fatos controvertidos no processo (14).

Sendo assim, a prova destina-se a gerar no juiz a convicção de que necessita para o seu pronunciamento.

A prova judiciária tem como objetivo a reconstrução dos fatos investigados no processo, buscando a maior coincidência possível com a realidade histórica, isto é, com a verdade dos fatos, tal como efetivamente ocorridos no espaço e tempo (15).

É, portanto, compromisso irrenunciável da atividade estatal jurisdicional a reconstrução da realidade histórica do fato delituoso, buscando não uma verdade absoluta, mas ao menos uma certeza que pode ou não corresponder à verdade da realidade histórica.

O papel do magistrado, bem como de seu bem senso, torna-se relevante nessa seara, como é a lição de Araújo da Silva:

“O juiz também pode, excepcionalmente, introduzir meios de prova no processo penal, o que não significa um retrocesso ao sistema inquisitorial, pois assim age com a finalidade de suprir deficiências das partes em sua iniciativa probatória. Em outros termos, na atividade probatória a função do magistrado não se restringe a uma posição estática de deferir ou não os meios de prova propostos pelas partes, mas também envolve um poder de iniciativa voltado para sanar eventual omissão nesse sentido, na busca da apuração dos fatos noticiados” (16).

Nota-se que o papel do magistrado está em respeitar os direitos e garantias individuais do acusado e de terceiros, protegidos pela inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente.

5.      A psicografia é meio ilícito?

A resposta só pode ser negativa.

Noronha nos explicita que o termo ilícito tem um sentido amplíssimo, abarcando tudo quanto é praticado contra o direito, a justiça, a equidade, os bons costumes, a moral social e a ordem pública (17).

Logo, prova ilícita, como declara a Constituição é a  obtida com violação de um princípio de direito material, sendo esta ampla e não se restringindo somente à lei.

O espaço probatório no processo penal há de ser mais amplo em razão da relevância dos interesses que delimitam seu conteúdo. É cediço que a vedação da prova não se limita ao meio escolhido, mas igualmente aos resultados que poderão advir com a utilização deste mesmo meio de prova.

Se os resultados não configuram violação de direitos, a sua admissão é indubitavelmente possível.

Referências bibliográficas

BACELLI, Carlos. Ao tarefeiro espírita. Pelo espírito Spartaco Ghilardi. Uberaba: Livraria Espírito Edições ‘ Pedro e Paulo’, 2006.
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido R. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
CZERSKI, Wilson. Espiritismo: uma visão panorâmica. Matão: O Clarim, 2006.
HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Editora Objetiva, 2001.
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Trad. Renata Barboza da Silva. São Paulo: Petit, 1999.
KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Trad. Guillon Ribeiro. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2005
KARDEC, Allan, O Evangelho segundo e espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. Rido de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2005
NORONHA, E. Magalhães. Curso de direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 1995.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
PERENDRÉA, Carlos Augusto. A psicografia à luz da grafoscofia. São Paulo: Federação Espírita, 1991.
SILVA, Eduardo Araújo da. Crime organizado: procedimento probatório. São Paulo: Altlas, 2003.

Notas:
(1) KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Trad. Renata Barboza da Silva. São Paulo: Petit, 1999. p.09
(2) KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Trad. Guillon Ribeiro. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2005, p. 20.
(3) KARDEC, Allan, O Evangelho segundo e espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. Rido de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2005, p. 29.
(4) Op. Cit. p. 16
(5) CZERSKI, Wilson. Espiritismo: uma visão panorâmica. Matão: O Clarim, 2006, p. 210
(6) Op. Cit. p.212-4.
(7) Op. Cit. p.284.
(8) BACELLI, Carlos. Ao tarefeiro espírita. Pelo espírito Spartaco Ghilardi. Uberaba: Livraria Espírito Edições ‘ Pedro e Paulo’, 2006, p. 69.
(9) Corroboram da assertiva: Bidart G. Campos; Tupinambá Miguel Castro e Pinto Ferreira.
(10) São exemplos as Constituições da Polônia, Romênia, Nicarágua, Peru, Cuba, Alemanha, Bulgária, Moçambique, Cabo Verde, entre outros.
(11) HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Editora Objetiva, 2001.
(12) PERENDRÉA, Carlos Augusto. A psicografia à luz da grafoscofia. São Paulo: Federação Espírita, 1991.
(13) APUD NORONHA, E. Magalhães. Curso de direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 88
(14) CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido R. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 310.
(15) OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 301
(16) SILVA, Eduardo Araújo da. Crime organizado: procedimento probatório. São Paulo: Altlas, 2003, p. 67.
(17) Op. Cit. p. 89

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Tathiana de Melo Lessa Amorim

 

Advogada. Especialista em Direito Internacional e Penal (Universidade Federal de Goiás).

 


 

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