Sumário: 1. Generalidades; 2. Obrigados a licitar: a regra geral; 3. As empresas estatais: relevância da distinção entre prestação de serviços públicos e desempenho de atividade econômica; 4. As agências reguladoras; 5. O caso da Petrobras; 6. Os fundos especiais; 7. Os consórcios públicos; 8. Os conselhos profissionais e a posição da OAB; 9. Terceiro setor e paraestatais; 10. Referências
Palavras-chave: Dever de licitar; Jurisprudência; Tribunal de Contas da União; Supremo Tribunal Federal.
1. Generalidades
O dever de licitar decorre diretamente da exigência contida no art. 37, XXI, da Constituição da República, que visa, entre outras finalidades, permitir/obrigar que a Administração selecione o negócio mais vantajoso para as suas conveniências, protegendo o interesse público e os recursos financeiros do Estado (melhor relação custo-benefício).
Na esteira do preceitua a Constituição Federal de 1988, o presente artigo busca consolidar quem, e de maneira, está obrigado a licitar, considerando-se as peculiaridades de algumas entidades estatais e paraestatais que ensejam diversas controvérsias no âmbito do Tribunal de Contas da União e dos tribunais superiores, principalmente no Supremo Tribunal Federal.
2. Obrigados a licitar: a regra geral
Toda a Administração Pública, direta e indireta, está obrigada a licitar por imperativo dos princípios constitucionais que a regem[1], os quais são incompatíveis com eventuais tendências personalistas do gestor público da ocasião. Conforme dita o caput do seu art. 1º, a lei nº. 8.666/93 vincula todos os poderes constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário) de todos os entes políticos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), não sendo lícito nem às casas legislativas da União pretender se furtar aos seus ditames[2].
Originariamente, a redação do art. 22, XXVII, da Constituição Federal previa tão somente a existência de um único estatuto legal sobre licitações para toda a Administração Pública, direta ou indireta, com personalidade jurídica de direito público ou de direto privado. Com efeito, o Congresso Nacional editou a lei nº. 8.666/93, cujo parágrafo único do art. 1º espelhou essa vinculação geral:
“Parágrafo único. Subordinam-se ao regime desta Lei, além dos órgãos da administração direta, os fundos especiais, as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.”
Todavia, sobreveio a emenda constitucional nº. 19/98 para alterar a redação do art. 22, XXVII, e para incluir o inciso III no § 1º do art. 173 da Constituição. Destarte, por vontade do legislador constituinte reformador, deveriam passar a existir dois diplomas legais disciplinando normas gerais sobre licitações e contratos administrativos: a) um referente às administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios (regra geral do art. 22, XXVII); b) outro relativo às empresas públicas e sociedades de economia mista que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços (regra especial do art. 173, §1º, III[3]).
Observe-se que o art. 173, §1º, III, do texto constitucional levou em consideração o fato de que às empresas estatais (empresas públicas e sociedades de economia mista) é dado atuar sob dois prismas distintos: a) para promover atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de serviços (art. 173); b) para prestar serviços públicos (art. 175).
A utilidade dessa distinção para fins de licitação é óbvia, pois, ao não conceder um procedimento ágil de contratação às suas entidades que agem sob o prisma da empresarialidade (um Banco do Brasil, por exemplo), o Estado Brasileiro estaria relegando suas empresas a uma posição de eterna desvantagem perante as concorrentes do setor privado.
Quanto às empresas estatais que prestam serviços públicos, ante a ausência de previsão constitucional específica que lhes conceda um estatuto jurídico particularizado para licitação e contratos administrativos, estas permanecem seguindo a regra geral por força do parágrafo único do art. 1º da lei nº. 8.666/93[4].
Contudo, a despeito da norma constitucional do art. 173, §1º, III, já vigorar há mais de uma década, até o presente momento o legislador ordinário está em mora quanto ao dever de estabelecer um regramento específico sobre as licitações e contratos das empresas estatais de caráter empresarial.
Diante desse quadro, a jurisprudência do TCU evoluiu para pacificar o entendimento de que, até que seja editada a lei específica de que trata o art. 173, § 1º, inciso III, da Constituição Federal, as empresas estatais exploradoras de atividade econômica não estariam obrigadas a observar os procedimentos da lei nº. 8.666/93 quando: a) a contratação estiver diretamente relacionada com suas atividades finalísticas; e, b) desde que os trâmites inerentes a esse procedimento constituam óbice intransponível à atividade negocial da empresa que atua em mercado onde exista concorrência.
O afastamento das regras, portanto, deve obedecer a uma apreciação criteriosa e individualizada de cada situação, pois, “sempre que a realização de licitação não trouxer prejuízos à consecução dos objetivos da entidade, por não afetar a agilidade requerida para sua atuação eficiente no mercado concorrencial, remanesce a obrigatoriedade da licitação”[5].
A propósito, não afastada a incidência da lei nº. 8.666/93 no caso concreto, com a conseqüente deflagração da licitação, passam os dirigentes da empresa estatal a revestir o conceito de autoridade para fins de impetração de mandado de segurança, uma vez que as decisões tomadas no curso do procedimento licitatório se consubstanciam em atos administrativos sujeitos às normas de Direito Público[6]. Nessa linha, vale citar o enunciado nº. 333 da súmula do STJ, que prevê: “cabe mandado de segurança contra ato praticado em licitação promovida por sociedade de economia mista ou empresa pública”.
A Lei nº 9.472/1997 (Lei Geral de Telecomunicações – LGT), que criou a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), conferiu ao Conselho Diretor da autarquia a competência para aprovar normas próprias de licitação e contrato (art. 22, II). Nessa esteira, o art. 54 previu apenas que “a contração de obras e serviços de engenharia civil está sujeita ao procedimento das licitações previsto em lei geral para a Administração Pública”, isto é, à lei nº. 8.666/93. Nos demais casos, a agência poderia utilizar “procedimentos próprios de contratação, nas modalidades de consulta e pregão” (parágrafo único do art. 54).
Deve-se registrar que a LGT ainda estabeleceu, em seus art. 55 a 58, regras basilares demasiadamente sucintas a serem observadas pela agência quando da elaboração interna de seus ritos licitatórios. Com base nestes poucos dispositivos, a autarquia aprovou o Regulamento de Contratações da Anatel (Resolução nº 05/1998).
Ante a manifesta insuficiência da disciplina legal das novas modalidades de licitação, parcela da doutrina reputou inconstitucional a manobra do legislador de conceder à autarquia um poder normativo desprovido de tão poucas amarras legais. Isso porque, na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello,
“(…) a licitação é uma aplicação concreta do princípio da igualdade, o qual, na Constituição, está encartado como um dos direitos e garantias fundamentais. Assim, não há duvidar que, por força disto, os cidadãos têm o direito de participar de uma licitação segundo regras estabelecidas por lei – que direitos se regulam por lei, e não por atos de órgão da Administração. É um contra-senso que, sendo a licitação uma garantia do cidadão contra discriminações indevidas que lhe possam ser feitas pela Administração, sua disciplina seja estabelecida precisamente por ela, contra a qual a Constituição quis garanti-lo (a própria Administração)”[7].
Todavia, o STF, no julgamento de medida cautelar na ADI 1668-5/DF, indeferiu o pedido de suspensão cautelar relativo ao parágrafo único do art. 54 e arts. 55 a 58. Neste ponto, em votação apertada (6×5), os ministros que indeferiram a liminar fundamentaram seu voto na possibilidade de se criar novas modalidades de licitação mediante lei específica (Min. Nelson Jobim), ou no caráter especial (federal) do regramento da LGT (Min. Carlos Velloso).
Conforme se observa, houve uma diversidade de posições que, somadas, prevaleceram sobre o entendimento de que a lei delegou a uma agência administrativa o poder de inovar normativamente sobre licitações rotineiras no serviço público, sujeitando-a “apenas aos parâmetros inteiramente abertos do art. 55” da LGT, nas palavras do Min. Sepúlveda Pertence.
Quanto ao inciso II do art. 22 da LGT, o tribunal decidiu empregar ao dispositivo interpretação conforme à Constituição, sem redução de texto, “com o objetivo de fixar a exegese segundo a qual a competência do Conselho Diretor fica submetida às normas gerais e específicas de licitação e contratação previstas nas respectivas leis de regência”[8]. Neste caso, o plenário do TCU determinou à Anatel que providenciasse a adaptação de seus procedimentos a tais normas gerais e específicas de licitação e contratos[9].
O art. 67 da lei nº 9.478/1997 prevê que “os contratos celebrados pela Petrobras, para aquisição de bens e serviços, serão precedidos de procedimento licitatório simplificado, a ser definido em decreto do Presidente da República”. Neste sentido, editou-se o Decreto nº. 2.745/1998 para aprovar o “Regulamento do Procedimento Licitatório Simplificado da Petróleo Brasileiro S. A. (Petrobras)”.
Ao se debruçar sobre a validade jurídica daquele instrumento normativo regulamentar, o TCU, em consonância com o enunciado nº. 347 da súmula do STF[10], pronunciou sua inconstitucionalidade:
“(…) a Lei nº 9.478/97 não legislou sobre licitações, stricto sensu, deixando tal tarefa a cargo do Decreto; é dizer, a Lei nº 9.478/97 não trouxe qualquer dispositivo que dissesse como seriam as licitações processadas pela Petrobras. Nem ao menos os princípios básicos que deveriam reger os processos licitatórios da estatal constaram da lei. Assim, o Decreto nº 2.745/98 inovou no mundo jurídico, ao trazer comandos e princípios que deveriam constar de lei. Pode-se dizer, então, que o Decreto não regulamentou dispositivos: os criou”. (Decisão nº. 663/2002, Plenário, rel. Ubiratan Aguiar, voto do relator)
Perfeito o raciocínio, porquanto a hipótese encarta verdadeira delegação de competência em branco, ou “delegação pura”, do Congresso Nacional em favor do Poder Executivo. Na hipótese do art. 67 da lei nº 9.478/1997, é de se ressaltar que o legislador sequer delineou um regramento básico a ser regulamentado, como havia feito parcamente nos arts. 55 a 58 da LGT. Ao revés, abriu mão do seu dever constitucional de legislar sobre a matéria e malogrou o princípio da legalidade ao desprover a atividade regulamentar de qualquer parâmetro legal de controle quanto à sua constitucionalidade[11].
Não obstante, irresignada após a reiteração do entendimento pela Corte de Contas da União, a empresa impetrou o mandado de segurança nº 25.888/DF, no que obteve provimento liminar favorável da presidência do STF:
“A submissão legal da Petrobrás a um regime diferenciado de licitação parece estar justificado pelo fato de que, com a relativização do monopólio do petróleo trazida pela EC n° 9/95, a empresa passou a exercer a atividade econômica de exploração do petróleo em regime de livre competição com as empresas privadas concessionárias da atividade, as quais, frise-se, não estão submetidas às regras rígidas de licitação e contratação da Lei n° 8.666/93. Lembre-se, nesse sentido, que a livre concorrência pressupõe a igualdade de condições entre os concorrentes.
Assim, a declaração de inconstitucionalidade, pelo Tribunal de Contas da União, do art. 67 da Lei n° 9.478/97, e do Decreto n° 2.745/98, obrigando a Petrobrás, conseqüentemente, a cumprir as exigências da Lei n° 8.666/93, parece estar em confronto com normas constitucionais, mormente as que traduzem o princípio da legalidade, as que delimitam as competências do TCU (art. 71), assim como aquelas que conformam o regime de exploração da atividade econômica do petróleo (art. 177).
Não me impressiona o teor da Súmula n° 347 desta Corte, segundo o qual "o Tribunal de Contas, o exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público". A referida regra sumular foi aprovada na Sessão Plenária de 13.12.1963, num contexto constitucional totalmente diferente do atual. (…) Assim, a própria evolução do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, verificada desde então, está a demonstrar a necessidade de se reavaliar a subsistência da Súmula 347 em face da ordem constitucional instaurada com a Constituição de 1988.
A urgência da pretensão cautelar também parece clara, diante das conseqüências de ordem econômica e política que serão suportadas pela impetrante caso tenha que cumprir imediatamente a decisão atacada.
Tais fatores estão a indicar a necessidade da suspensão cautelar da decisão proferida pelo TCU, até o julgamento final deste mandado de segurança.
Ante o exposto, defiro o pedido de medida liminar, para suspender os efeitos da decisão proferida pelo Tribunal de Contas da União (Acórdão n° 39/2006) no processo TC n° 008.210/2004-7 (Relatório de Auditoria).” (MS 25888 MC / DF, rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 22/03/2006, DJ de 29/03/2006)
Vale notar, entretanto, que, até o presente momento, a questão não fora objeto de pronunciamento colegiado pelo Supremo, de sorte que o TCU segue reiterando sua posição ao argumento de que a decisão liminar proferida pela presidência do STF se refere a conflito específico, não vinculando o tribunal em processos distintos:
“Enquanto não editada a lei prevista no art. 173, §1º, inciso III, da Constituição Federal, ou enquanto não houver deliberação de mérito do Supremo Tribunal Federal sobre constitucionalidade do Decreto 2.745/98, aplicam-se à Petrobras as disposições da Lei 8.666/93, ressalvadas as hipóteses em que a aplicação desse estatuto constituir óbice intransponível à atividade negocial da empresa, devidamente justificado nos autos do processo licitatório.” (Acórdão nº. 1854/2009, Segunda Câmara, rel. Raimundo Carreiro, sumário)[12].
Por outro lado, o STF vem mantendo a linha de deferir provimentos liminares à Petrobras mediante decisões monocráticas de conteúdo semelhante à supratranscrita[13].
A disputa já dura anos e voltou à tona no Tribunal de Contas da União quando da edição do recente Acórdão nº. 2411/2012, do Plenário. Na oportunidade, o TCU reafirmou seu posicionamento de que “até que seja regulamentado o art. 173, §1º, da Constituição Federal de 1988, aplica-se à Petrobras a Lei nº 8.666/93”, bem como o art. 67 da Lei nº 9.478/1997 e o Decreto nº 2745/1998 padecem do vício de inconstitucionalidade.
Não obstante, deliberou-se por uma pequena alteração na sistemática de fiscalização da empresa estatal, na medida em que o tribunal acatou a propositura do relator Raimundo Carreiro no sentido de “deixar assente que, em homenagem ao princípio da segurança jurídica e da racionalidade do sistema jurídico, a fiscalização da Petrobras, no que concerne às contratações, será feita com base no Decreto nº 2745/1998 e nos princípios aplicáveis à espécie, até que o Supremo Tribunal Federal decida no mérito sobre a aplicação da Lei nº 8.666/93 à Petrobras, assim como sobre a constitucionalidade ou não do art. 67 da Lei nº 9.478/1997 e do Decreto nº 2745/1998”.
O parágrafo único do art. 1º da lei nº. 8.666 inclui os “fundos especiais” entre aqueles que se subordinam ao seu regramento. Trata-se de uma impropriedade legal, haja vista que os fundos não são possuidores de personalidade jurídica, muito menos possuidores de patrimônio.
Na verdade, o fundo especial é o próprio patrimônio vinculado e gerenciado por determinada entidade pública, seja uma autarquia, uma fundação ou a própria administração direta. Com efeito, é possível conceituar o fundo especial como:
“(…) um tipo de gestão de recursos ou conjunto de recursos financeiros destinados aos pagamentos de obrigações por assunção de encargos de várias naturezas, bem como por aquisições de bens e serviços a serem aplicados em projetos ou atividades vinculados a um programa de trabalho para cumprimento de objetivos específicos em uma área de responsabilidade e que a Contabilidade tem por função evidenciar, como é o seu próprio objetivo, através de contas próprias, segregadas para tal fim”[14].
Desta forma, se houver a criação de alguma entidade pública dotada de personalidade jurídica própria cuja denominação contenha a expressão “fundo”, necessariamente ela haverá de revestir a forma de uma das quatro entidades expressamente e exaustivamente indicadas no art. 37, XIX, da Constituição Federal (autarquia, fundação, empresa pública ou sociedade de economia mista)[15]. É o caso, por exemplo, do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia criada pela lei nº. 5.537/1968, vinculada ao Ministério da Educação.
Os consórcios públicos são criados para instrumentalizar a gestão associada dos serviços públicos por entes federados, na forma do art. 241 da Constituição Federal. No âmbito infralegal, coube à lei nº. 11.107/2005 disciplinar a matéria, regulamentada pelo Decreto nº. 6.017/2007.
Conforme dispõe a lei nº. 11.107/2005, os consórcios públicos podem adotar a forma de associação pública ou de pessoa jurídica de direito privado. Em qualquer caso terá personalidade jurídica própria, de acordo com o art. 6º da referida lei:
“Art. 6º O consórcio público adquirirá personalidade jurídica:
I – de direito público, no caso de constituir associação pública, mediante a vigência das leis de ratificação do protocolo de intenções;
II – de direito privado, mediante o atendimento dos requisitos da legislação civil.”
Quando constituído com personalidade jurídica de direito público, o consórcio público corresponde a nada mais do que uma espécie de autarquia que integra a administração indireta de todos os entes da Federação consorciados (art. 6º, § 2º da lei nº. 11.107/2005). O próprio Código Civil não deixa dúvidas, na medida em que seu art. 41, inciso IV, foi alterado para prever no rol de pessoas jurídicas de direito público “as autarquias, inclusive as associações públicas”, razão pela qual é patente o império da lei nº 8.666/93 sobre ele.
Já os consórcios públicos de direito privado, ao mesmo tempo em que terão sua organização e funcionamento regidos pela legislação comum, terão tratamento jurídico semelhante às empresas estatais, cabendo a elas observar “as normas de direito público no que concerne à realização de licitação, celebração de contratos, prestação de contas e admissão de pessoal, que será regido pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT” (art. 6º, § 2º da lei nº. 11.107/2005).
Em resumo, qualquer que seja a natureza jurídica do consócio público, há de se observar as disposições da lei nº. 8.666/93.
8. Os conselhos profissionais e a posição da OAB
Tradicionalmente, a doutrina sempre classificou os conselhos profissionais como sendo de natureza autárquica, de maneira que estariam todos eles subordinados às prescrições da lei nº. 8.666/93. O entendimento foi reforçado quando o STF declarou a inconstitucionalidade do art. 58 da lei nº. 9.649/98, que pretendeu delegar os serviços de fiscalizações de profissões regulamentadas a entidades privadas. Segundo a Corte Suprema, as atividades destes conselhos são indelegáveis porquanto sejam típicas de Estado, abrangendo o poder de polícia, de tributar e de punir[16].
Todavia, no caso específico da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o STF entendeu que a entidade não estaria sujeita à observância das normas de direito administrativo:
“Não procede a alegação de que a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB sujeita-se aos ditames impostos à administração pública direta e indireta. A OAB não é uma entidade da administração indireta da União. A Ordem é um serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro. A OAB não está incluída na categoria na qual se inserem essas que se tem referido como ‘autarquias especiais’ para pretender-se afirmar equivocada independência das hoje chamadas ‘agências’. Por não consubstanciar uma entidade da administração indireta, a OAB não está sujeita a controle da administração, nem a qualquer das suas partes está vinculada”. (ADI 3.026, Plenário, rel. Min. Eros Grau, julgamento em 8-6-2006, DJ de 29-9-2006)
Assim, todos os conselhos profissionais, com exceção da OAB, encontram-se submetidos à disciplina da lei nº. 8.666/93[17].
9. Terceiro setor e paraestatais
Diz-se terceiro setor o conjunto de entidades privadas sem fins lucrativos que desempenham atividades de interesse púbico, atuando de maneira complementar à Administração, ou mesmo em substituição a esta. Trata-se de uma terminologia sociológica utilizada em contraposição ao primeiro setor (Estado) e ao segundo setor (mercado).
As instituições do terceiro setor podem ou não guardar vínculo com o Poder Público, ocasião em que, se vínculo houver, passarão também a ser chamadas de paraestatais. Atualmente, são três as espécies de entidades paraestatais: a) os serviços sociais autônomos (SSA); b) organizações sociais (OS); c) organizações da sociedade civil de interesse público (oscip).
Os serviços sociais autônomos, também conhecidos coletivamente como sistema “S” (SESC, SENAI, SENAC, etc.), são entidades privadas criadas por lei para desempenhar atividades assistenciais ou de ensino a determinadas categorias profissionais. Embora derivem da vontade estatal, tais entidades não integram a Administração Pública, razão pela qual não se sujeitam à lei nº. 8.666/93.
Todavia, cumpre notar que os serviços sociais autônomos são mantidos por meio de recursos públicos, sujeitando-se, portanto, ao regime de execução da despesa pública, cujos princípios gerais coincidem com os da licitação. Assim, o SSA deverá se utilizar de procedimentos próprios que garantam o respeito aos princípios da moralidade, da impessoalidade, da isonomia, da publicidade, etc. Neste sentido:
“(…) o TCU, em remansosa jurisprudência, tem afirmado que os serviços sociais autônomos, por não integrarem, em sentido estrito, a Administração Pública, não se sujeitam aos ditames da Lei n.º 8.666/93, mas sim aos princípios gerais que regem a matéria, devendo contemplá-los em seus regulamentos próprios. E tais regulamentos, mesmo obedecendo aos princípios gerais do processo licitatório, podem não contemplar procedimentos constantes da Lei de Licitações, de obediência compulsória por parte dos órgãos e entidades da Administração Pública.” (Informativo de Jurisprudência sobre Licitações e Contratos nº 18, Acórdão n.º 1192/2010, Plenário, rel. Min. José Múcio Monteiro)
Na mesma esteira, o STF possui precedente sobre o tema. Na hipótese específica, tratava-se de serviço social autônomo criado por lei paranaense com a finalidade de auxiliar na gestão do Sistema Estadual de Educação:
“A CF, no art. 37, XXI, determina a obrigatoriedade de obediência aos procedimentos licitatórios para a administração pública direta e indireta de qualquer um dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. A mesma regra não existe para as entidades privadas que atuam em colaboração com a administração pública, como é o caso do PARANAEDUCAÇÃO.
Não se verifica vício de inconstitucionalidade na norma que impõe à entidade de natureza privada obediência a procedimento simplificado de licitação, pois não há obrigatoriedade constitucional de que o procedimento seja obedecido.” (ADI 1.864, Plenário, rel. p/ o ac. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 08-08-2007, DJE de 2-5-2008.)
Também compondo o rol de entidades paraestatais, as organizações sociais nada mais são do que a qualificação dada a pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos após um processo de habilitação perante o Poder Executivo. Regidas pela lei nº. 9.637/98, as organizações sociais surgiram no contexto do Programa Nacional de Publicização com a finalidade de absorver, mediante contrato de gestão firmado com o Poder Público, atividades desenvolvidas por órgãos e entidades públicas nas áreas de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde. Significa dizer que a aquisição do título de OS e a assinatura do contrato de gestão habilitam a entidade a receber recursos orçamentários e administrar serviços, instalações e equipamentos públicos.
Com bastante semelhança à sistemática das organizações sociais, a lei nº. 9.790/99 criou as organizações da sociedade civil de interesse público. As chamadas oscips são entidades privadas sem fins lucrativos que, após receberem tal qualificação pelo Ministério da Justiça, poderão executar diretamente projetos, programas e planos de ações relacionados às finalidades previstas no art. 3º da referida lei[18], mediante assinatura de termo de parceria com o Poder Público[19].
Assim como os serviços públicos autônomos, tanto as organizações sociais quanto as organizações da sociedade civil de interesse público, embora não sejam integrantes da Administração Pública, estão obrigadas a contratar mediante procedimentos próprios de contratação que sejam compatíveis com os princípios gerais da licitação e da execução da despesa pública.
Neste sentido, dispõe o art. 17 da lei nº. 9.637/98 que “a organização social fará publicar, no prazo máximo de noventa dias contado da assinatura do contrato de gestão, regulamento próprio contendo os procedimentos que adotará para a contratação de obras e serviços, bem como para compras com emprego de recursos provenientes do Poder Público”. Em relação às oscips, prevê o art. 14 da lei nº 9.790/99 que “a organização parceira fará publicar, no prazo máximo de trinta dias, contado da assinatura do Termo de Parceria, regulamento próprio contendo os procedimentos que adotará para a contratação de obras e serviços, bem como para compras com emprego de recursos provenientes do Poder Público”.
Com efeito, o controle estatal sobre as entidades paraestatais não se prende ao cumprimento da lei nº. 8.666/93, haja vista não se tratar de integrantes da Administração Pública. Ao contrário disso, consubstancia-se mais em um controle finalístico de resultados, pautado na verificação de obediência aos princípios basilares da Administração Pública, entre os quais sobressai o da eficiência na aplicação dos recursos públicos[20].
Neste sentido, é interessante observar que o TCU reformou recentemente o Acórdão 4.520/2009, da 1ª Câmara, que havia expedido determinação ao SESC no sentido de adotar “preferencialmente a licitação na modalidade pregão para a aquisição de bens e serviços comuns, conforme dispõe a Lei 10.520/2002”. Analisando o recurso oposto contra a decisão, a 1ª Câmara da Corte entendeu, no Acórdão 5613/2012, que a referência à lei nº. 10.520/2002 era, de fato, incorreta, determinando apenas, com lastro nos princípios da eficiência e da economicidade, que o SESC adequasse o seu Regulamento de Licitações e Contratos, para prever a preferência da modalidade pregão na aquisição de bens e serviços comuns.
Informações Sobre o Autor
Diego Franco de Araújo Jurubeba
Procurador Federal. Graduado em Direito pela UFPE. Pós Graduado em Direito Público. Consultor Jurídico do Ministério da Integração Nacional