Quem tem medo da eficiência no processo penal?

Parafraseando John Lennon, peço ao leitor que imagine um país em que o sistema penal funcione: a polícia investiga todos os crimes no prazo legal (10 dias se o acusado estiver preso e 30 dias se estiver solto) e fornece à acusação o suporte probatório mínimo (justa causa) para a denúncia ou a queixa; o Ministério Público sempre e somente oferece denúncia quando houver probabilidade de condenação do réu (e não simples possibilidade); o processo tem realmente caráter instrumental e não admite nulidades sem prejuízo, recursos protelatórios nem litigância de má-fé; aliás, qualquer comportamento desleal de alguma das partes é severamente punido; os prazos do juiz e dos servidores da justiça são próprios, por isso, rigorosamente cumpridos; o processo tem duração razoável e não ocorre prescrição da pretensão punitiva ou executória.

Nesse processo penal imaginário, seria realizado um princípio fundamental da Administração Pública: a eficiência, ou seja, teríamos o resultado esperado (descoberta da verdade dos fatos com a conseqüente aplicação do Direito Penal ao caso concreto) com o menor uso de recursos humanos, financeiros e de tempo.

Infelizmente, sabe-se que estamos muito longe disso. Uma das razões é a crônica ineficiência do setor estatal brasileiro que, a despeito de consumir quase 40% da PIB em tributos, não presta de forma minimamente razoável os serviços a que propõe.

Mas, no caso específico do processo penal, temos de nos perguntar: quem ganha com a ineficiência do processo penal?

Primeiramente, a polícia diminui sensivelmente seu volume de trabalho selecionando previamente quais casos serão objeto de inquérito policial[1]. Trata-se de uma maneira ilegítima de burlar a proibição de arquivamento do inquérito. Além disso, a polícia tem uma profunda aversão à prova pericial, que é considerada o meio mais eficaz de descoberta da verdade. A confissão do réu e o depoimento das testemunhas, a despeito de serem provas extremamente frágeis, ainda são largamente usadas, pois possibilitam à polícia escolher os casos em que vão atuar. Uma das maiores revoluções na segurança pública brasileira seria o fortalecimento da polícia cientifica, o que nem é cogitado.

Em segundo lugar, membros do Ministério Público, ansiosos por demonstrar serviço, oferecem denúncias sem o mínimo suporte probatório, fiando-se apenas na possibilidade de o réu ser o autor do crime. Por conta disso, vários processos inviáveis são iniciados, gerando enorme desperdício de recursos. Na Alemanha, de 80 a 90% dos processos penais redundam em condenação, não porque a justiça germânica seja especialmente rigorosa, mas porque somente os prováveis autores de crimes são processados penalmente. No Brasil, não existe tal estatística, mas pode se imaginar um número bem menor de condenações.

Também temos os advogados, que usam como expediente cotidiano a litigância de má-fé. A mentira tem presença garantida em quase todos os processos penais, seja no interrogatório do réu, seja nas peças produzidas pela defesa técnica. Se o réu tem o “direito de mentir”, por que o seu advogado não teria também? O princípio geral de direito que veda o agente de se beneficiar de sua própria torpeza é letra morta no processo penal. A litigância de má-fé e os recursos meramente protelatórios nunca são punidos, tudo em nome de um “direito à ampla defesa” que ultrapassa todas as fronteiras do bom-senso. Todas essas artimanhas garantem a vida de milhares de advogados criminalistas. Ressalte-se que temos 600.000 advogados no Brasil, só perdendo para os Estados Unidos. Fica a pergunta: Precisamos mesmo de tantos advogados ou criou-se artificialmente um mercado para eles?

Não podemos nos esquecer dos servidores do Poder Judiciário. Eles contam com tantas folgas que o total dos dias trabalhados não ultrapassa metade do ano. E, nesses dias, o horário de trabalho não ultrapassa seis horas. Na maioria das vezes, não há controle sobre a qualidade do serviço prestado. Sabe-se que uma simples citação pode demorar meses para ser feita. É tão complexo e custoso demitir um servidor público que esse recurso é raramente usado e somente em caso de improbidade administrativa. As modernas técnicas gestão existentes raramente são implantadas. A Justiça conta com milhões de funcionários. Seriam todos eles necessários se houvesse gestão eficiente dos recursos?

Os juizes também cumprem o seu papel na ineficiência do Poder Judiciário. Processos podem ficar conclusos, esperando a apreciação do magistrado, durante anos. Eventualmente, tal procedimento redunda em prescrição da pretensão punitiva ou executória. Como se sabe, os prazos judiciais (dez dias para sentenças e decisões interlocutórias mistas, cinco dias para decisões interlocutórias simples e um dia para despachos), são impróprios, ou seja, seu descumprimento não tem como conseqüência a preclusão. Na prática não se aplicam sanções penais ou administrativas ao juiz desidioso. Existe liberdade absoluta com relação aos prazos, ocorrendo casos em que um mero despacho demora dois anos para ser exarado. Além disso, há uma supervalorização do Direito Processual em detrimento do Direito Penal, o que implica, boa parte das vezes, na extinção do processo sem julgamento do mérito. Parece até que o processo perdeu seu caráter instrumental para se tornar um fim em si mesmo. A idéia subjacente é simples: se o mérito é complexo ou o caso é sensível, mata-se logo o processo nas preliminares, para que o juiz não tenha maior trabalho.

Devemos lembrar também de nossos penalistas. A maioria absoluta se auto-intitula “garantista”, sem ao menos ter lido a densa obra de Luigi Ferrajoli (Direito e Razão). Boa parte incorre no “erro primário” de considerar como finalidade do processo penal a garantia dos direitos do réu. Ora, a finalidade de qualquer processo é descobrir a verdade dos fatos para que o juiz possa aplicar a decisão mais justa no caso concreto. Garantir direitos do réu, como contraditório e ampla defesa, é possibilitar que ele colabore voluntariamente nessa busca. Nesse sentido, a garantia dos direitos não é um fim, mas um meio. Considerar os direitos do réu de forma absoluta significa simplesmente desprezar todos os outros direitos, inclusive de matriz constitucional. Porém, a idealização do criminoso como vítima da sociedade[2] chega às raias do absurdo com teses como a inconstitucionalidade da prisão em flagrante, o livre acesso do réu a investigações durante ao inquérito policial (imaginem o acusado sendo avisado de que será objeto de escuta telefônica!), a vedação absoluta às provas obtidas por meios ilícitos (mesmo que sejam indispensáveis à condenação do réu), etc. A sociedade deixa de ser a vítima para ser a culpada. O processo penal não serve mais para protegê-la do criminoso, mas para a proteção desta contra aquela! No Brasil, a contribuição dos intelectuais para a legitimação do crime não pode ser subestimada[3].

Por fim, os políticos. A associação entre criminalidade e Poder Público tem se tornado cada vez mais usual no Brasil. O próprio governo federal chegou a ser alvo de seriíssimas denúncias sem que ninguém fosse punido. Vários membros do governo carioca foram acusados de ligação com o jogo do bicho e com o tráfico de drogas. A corrupção é endêmica em todos os níveis do governo. A profusão de escândalos é tamanha que não seria desmedido considerar a classe política brasileira um grupo composto majoritariamente por criminosos! O instituto do “foro privilegiado” tornou-se quase que uma garantia de impunidade. É sintomático o fato de que o Supremo Tribunal Federal nunca condenou um parlamentar. Nesse contexto, aperfeiçoar o processo penal, tornando-o mais eficaz, significaria uma grave ameaça aos detentores do poder.[4]

Pois bem. Vimos que a ineficiência do processo penal beneficia policiais, membros do Ministério Público, juizes, servidores da Justiça, advogados, penalistas e políticos; isso se não contarmos os próprios criminosos. Obviamente, nem todos os componentes dessas categorias tem interesse nesse estado de coisas. Porém, aqueles interessados têm o poder de mantê-las como estão. Bem mais do que aplicar o Direito, o objetivo de todo o sistema penal é satisfazer os interesses das pessoas que o compõe.

E quem perde com a ineficiência do processo penal? Nós, cidadãos comuns, que não contamos com nenhuma espécie de poder político ou econômico e aceitamos passivamente cerca de cinqüenta mil homicídios por ano[5] e escândalos políticos cotidianos como parte da estrutura normal da sociedade. De uma forma ou de outra, já sabemos: no Brasil, o crime compensa.

 

Notas:
[1] Instala-se a “Verificação Preliminar das Informações”, que, na maioria das vezes não se transforma em inquérito policial e não está submetida ao controle do Ministério Público.
[2] Um exemplo dessa ideologia está na declaração do governador de São Paulo à época dos ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC) culpando a “elite branca” pela onda de violência.
[3] Um interessante estudo sobre a contribuição dos intelectuais para a criminalidade pode ser encontrado na obra de Olavo de Carvalho, especialmente no livro “O Imbecil Coletivo”.
[4] O desinteresse do legislador no aperfeiçoamento do processo penal é gritante se compararmos com o processo civil. Enquanto o CPP, que conta com uma confusa disciplina de nulidades e recursos, foi modificado apenas uma vez em 2006 (acréscimo do inciso IV ao art. 313), o CPC contou com cinco leis que modificaram dezenas de dispositivos.
[5] De acordo com Luís Mir, no livro “Guerra Civil”, este número pode ser três vezes maior (cento e cinqüenta mil homicídios anuais) devido à prática corriqueira da subnotificação nos hospitais.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Alexandre Magno Fernandes Moreira Aguiar

 

Procurador do banco Central em Brasília e professor de Direito Penal e Processual Penal na Universidade Paulista

 


 

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