Resumo: Esse artigo apresenta uma análise sobre as questões contemporâneas atinentes ao Direito Constitucional e acerca das perspectivas e desafios da concretização dos princípios do constitucionalismo contemporâneo no começo deste século.
Palavras chave: Direito Constitucional. Direitos Fundamentais. Ativismo Judicial.
Abstract: This article presents an analisis about contemporary questions referent to Constitutional Law and referent to the perspectives and challenges of the concretization of contemporary constitutionalism’s principles in the beginning of this century.
Keywords: Constitutional Law. Fundamental Rights. Judicial Ativism.
Sumário: 1. Primeiras considerações. 2. Concretização de Direitos Fundamentais e seu Ônus. 3. Avanços e esforços. 4. Conclusão.
1. Primeiras considerações
Foi-se o tempo em que se via o Direito Constitucional como simples ramo do Direito, ainda que real e eminente, que buscava a organização e formação do Estado nascente, ou renascente sob as feições da democracia e do Estado de Direito. Questões de autonomia, soberania e competência se incluíam nas discussões acerca do constitucionalismo de épocas passadas. Hoje, em pleno século 21, o constitucionalismo vem redefinindo suas formas, adquirindo novos contornos e interesses, contudo, obviamente, sem deixar de se voltar para seus interesses clássicos de estruturação política e administrativa do Estado. Aquelas discussões que envolviam notadamente o interesse interno do Estado começam a dar espaço a discussões onde prevalece, sobretudo, o indivíduo que reside nesse Estado. É para esse fenômeno, para essa mutação que se atraem a atenção de doutrinadores do mundo inteiro atualmente.
Porém, asseverava recentemente José Afonso da Silva, notável doutrinador pátrio, em palestra proferida no VII Congresso Internacional de Direito Constitucional[1] que ocorreu em Natal – RN, que precisaríamos ser videntes para falar das questões constitucionais de um século que mal se iniciou, mas, apesar da ausência de clarividência premonitória, não precisaríamos de tais meios para dissertar sobre tendências nascentes, tal qual fez o notável constitucionalista supracitado. Ativismo judicial, direitos fundamentais internacionalmente protegidos, dignidade da pessoa humana são temas presentes nessa pintura ainda não acabada. São temas integrantes da culminação atual de uma evolução do constitucionalismo que marcam avanços nos ideais de humanidade, mas que possuem um ônus elevado para um Estado.
2. Concretização de Direitos Fundamentais e seu Ônus
Ler a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, o famoso Pacto de San José da Costa Rica, ratificada no Brasil em 1992, o quinto artigo de nossa Constituição ou até mesmo os objetivos fundamentais explicitados no terceiro artigo da nossa Magna Carta, nos traz imenso orgulho de possuir legislação tão atinente à proteção do indivíduo e de seus interesses imediatos e mediatos. Esses textos, porém, contrastam com a realidade do Brasil e do mundo, ainda. Contudo, não é novidade as legislações ou idéias presentes em uma sociedade não refletirem a realidade em que estão inseridas. Aristóteles, em suas idéias sobre o Direito Natural cosmológico, já nos trazia a idéia de natureza intrinsecamente livre, igual e digna do homem em uma sociedade marcada pela escravidão, esta justificada pelo filósofo de Estagira, como escreve em seu livro A Política: “Um bem é um instrumento da existência; as propriedades são uma reunião de instrumentos e o escravo, uma propriedade instrumental animada, como um agente preposto a todos os outros meios.”. A visão de Direito Natural atravessou os séculos ainda se revestindo da idéia de jusnaturalismo teológico, com Santo Tomás de Aquino, jusnaturalismo racional, com Hobbes, Spinoza, Grócio etc. A posterior positivação histórica de muitos desses direitos, assim como as convenções internacionais que proclamaram internacionalmente direitos humanos, porém, não se mostraram ser o suficiente para acabar com essa histórica contradição entre idéia, legislação e realidade. É notável que um dos maiores desafios do constitucionalismo, não apenas o do século XXI e nem apenas do Brasil, foi, é e será a concretização dos seus enunciados, dos seus princípios, dos direitos fundamentais, mundialmente.
Concretização, substanciação, verificação. Sinônimos que remetem à idéia que tanto desafia intelectuais, pesquisadores e estudiosos das mais diversas áreas do conhecimento: a de pôr em prática a teoria. Quem dera o cientista do Direito, ou mesmo de qualquer outra ciência humana, poder se utilizar da capacidade de tentativa e erro de muitas ciências exatas para buscar experimentar em controle as suas teorias. Não tendo essa capacidade, só lhes resta a incerteza de como seu “experimento” vai funcionar junto à sociedade, ser complexo, mutante e imprevisível.
O ordenamento jurídico, por mais analítico e sistemático que seja, não acompanha a sociedade perfeitamente. Pelo clichê jurídico: o direito tenta perseguir a sociedade, que sempre mantém certa distância. A prática brasileira nos revela um sistema de leis complexo e extenso em uma sociedade marcada por desigualdades sociais explícitas. A maior parte da população desconhece seus próprios direitos e se encontra à margem de qualquer idéia de jurisdição, simplesmente “vive para viver”. A própria justiça é normalmente vista como inacessível pelos indivíduos de menor poder econômico, apesar do princípio processual do acesso à justiça, tutelado constitucionalmente. Existe uma das maiores taxas de analfabetismo apesar da garantia constitucional à educação. As extensas filas do sistema público de saúde crescem a cada ano. Grupos de traficantes tomam conta de morros inteiros, impondo uma lei estranha à Constituição, praticamente revogando esta dentro desses territórios, ainda sendo muitas vezes legitimados pela própria população, por os acharem mais capazes que o próprio Estado na proteção dos interesses daquelas comunidades. Frase irônica e, possivelmente, hiperbólica seria: para cada uma das aberrações e/ou problemas visíveis, há uma solução constitucional. Nas palavras de Beinusz Szmukler[2] em artigo referente ao livro Anais da I Conferência Internacional de Direitos Humanos: “Os direitos humanos (…) alcançam projeção normativa em termos de dever ser, mas não em plenitude, senão na medida em que a relação de forças existentes entre as diversas classes sociais tem se permitido moldar.”[3]
Eis que introduzimos a idéia do ônus do constitucionalismo moderno, o ônus da concretização dos direitos fundamentais, da dignidade da pessoa humana, dos princípios constitucionais. É uma cruz imbuída ao Estado, trazendo responsabilidades tais que para serem atendidas plenamente possivelmente exauririam o poder daquele. No neoliberalismo, é ainda mais marcante e avassalador esse ônus, pois a tendência de diminuição do Estado enfraquece o alcance deste na sociedade, assim como seu poder impositivo e sua força monetária para garantir aquilo que existe na legislação. Vale ressaltar que, no sistema capitalista global em que vivemos, a própria competição econômica entre os países, a involuntária ligação entre essas economias, bem como as metas impostas por organismos e bancos internacionais aos países pobres e em desenvolvimento levam o Estado a uma escolha árdua entre sua própria subsistência soberana e o bem estar dos indivíduos em que nele residem. Essas são algumas das forças externas que inibem a concretização da vontade constitucional.
É possível falar também em forças inibitórias internas. Com certeza a corrupção, o nepotismo, os favores, o “jeitinho”, a dissimulação da mídia de massa contribuem para definir dois pesos e duas medidas na nossa realidade, desvirtuando os valores próprios em que se baseiam nosso núcleo constitucional.
Interessante observar, também, que o próprio abuso das prerrogativas advindas do constitucionalismo também é uma forma inibitória, pelo menos da aplicação extensiva dos preceitos da Constituição. A má fé na utilização dos princípios constitucionais é uma dessas facetas, visto que a própria elasticidade desses princípios, por possuírem “baixa tecnicidade” [4], afirma Paulo Bonavides citando Hans Huber, dá margem para uma abrangência ampla de interpretação e aplicação. A figura do juiz, muitas vezes famosamente vista como algoz dos interesses do Estado e protetor do indivíduo, que é o pólo mais fraco da relação pública, pode acabar por se deixar levar por uma falsa noção de justiça. Mais claramente visualizar-se-ia isso se falando em termos interdisciplinares. Ater-se somente à lei, ignorando seu conteúdo normativo material ou as conseqüências práticas dela, pode gerar distorções na práxis. Se ao Estado é imbuída a obrigação de atender às pretensões abusivas de poucos indivíduos, em tal momento não poderá atender às pretensões legítimas de uma maioria por razões pecuniárias ou mesmo infra-estruturais. É um campo onde razoabilidade e proporcionalidade devem estar presentes constantemente, trazendo parcimônia à aplicação dos direitos fundamentais, por mais estranho que se possa parecer falar em parcimônia e direitos fundamentais em mesmo parágrafo. É notável a existência de um ônus gigantesco na concretização de direitos fundamentais quando esta aplicação não se faz razoavelmente.
3. Avanços e esforços
Avanços na direção da concretização das prerrogativas constitucionais, no entanto, estão sendo verificados no mundo inteiro. No Brasil, por exemplo, a interessante figura do ativismo judicial é uma das participantes nesse processo. Discussões acerca do constitucionalismo dessa abordagem ativa do poder executivo e da quebra da clássica tripartição dos poderes à parte. É notável que os tribunais brasileiros, principalmente o STF, têm surgido mais perante o clamor social, trazendo decisões que, por exemplo, vão além do simples comunicar a omissão legislativa ao Congresso Nacional, aproximando-se mais de posições concretistas. Possuindo papel notável nesse processo, podemos observar os mandados de injunção. Um dos mandados de injunção clássicos impetrados junto ao STF é o de número 712-8, que busca a viabilização do exercício do direito de greve dos funcionários públicos, garantido contidamente no art. 37, VII da Constituição Federal, tendo como relator o Ministro Eros Graus. Nesse processo foi reconhecida a mora do Congresso Nacional e houve um posicionamento de acordo com a teoria concretista geral dos efeitos do mandado de injunção por parte da Corte. Discorrendo sobre a teoria concretista geral, fala Alexandre de Moraes[5]:
“Pela (teoria) concretista geral, a decisão do Poder Judiciário terá efeitos erga omnes, implementando o exercício da norma constitucional através de uma normatividade geral, até que a omissão seja suprida pelo poder competente. Essa posição é pouco aceita na doutrina, pois como ressalvado pelo Ministro Moreira Alves, ao proclamar em sede de mandado de injunção, uma decisão com efeitos erga omnes estaria ‘o Supremo, juiz ou tribunal que decidisse a injunção, ocupando a função do Poder Legislativo, o que seria claramente incompatível com o sistema de separação de poderes’.”
Tentar saber se agindo dessa forma o STF está ignorando o clássico paradigma da divisão dos poderes é questão atinente a outros debates doutrinários e filosóficos, mas é interessante talvez lembrar o famoso brocardo “Deus escreve certo por linhas tortas” e tentar fazer uma analogia, ou, quem sabe, um trocadilho jurídico bobo envolvendo a Tribunal Excelso, a quebra da tripartição dos poderes e a concretização de direitos fundamentais.
Comum tornou-se, também, o reconhecimento de direitos subjetivos do réu em casos de redução de pena e outros benefícios. Tomando-se, por exemplo, a possibilidade do livramento condicional, art. 83 do Código Penal, afirma Rogério Greco[6]:
“Ao analisar o pedido de livramento condicional, se o condenado preencher os requisitos objetivos e subjetivos previstos pelo art. 83 do Código Penal, o juiz deverá concedê-lo, pois trata-se de direito subjetivo do condenado, mediante o cumprimento de determinadas condições, a serem especificadas na sentença.” (art. 85 do CP).
O entendimento doutrinário e jurisprudencial, diferenciando-se da letra pura da lei e da posição jurisprudencial passado, vem confirmando que o juiz não apenas pode, mas deve conceder esses benefícios quando se verem presentes os requisitos impostos.
Outro tema circunda as Súmulas Vinculantes editadas pelo Supremo Tribunal Federal e os acirrados debates acerca do seu caráter legislativo. Exemplo seria a Súmula Vinculante de número 11[7], que surgiu trazendo interpretações acerca do uso de algemas, reduzindo seu uso a casos excepcionais para buscar a manutenção da qualidade física e moral do indivíduo.
4. Conclusão
Todos esses fatos surgem como pequenos passos em sua individualidade, mas já mostram uma mudança de pensamento no Direito. Apesar de no campo das idéias estarmos aptos a teorizar perfeitas utopias sócio-jurídicas, no campo da prática apenas começamos a dar esses primeiros passos, muitos ainda controversos, tortos, mas que pragmaticamente possuem efeitos benéficos e curiosos. Talvez a controvérsia seja uma necessidade dessa mudança de pensamento, talvez a própria teoria clássica da divisão dos poderes, o capitalismo, o neoliberalismo sejam conceitos que terão de ser atualizados para essa nova realidade constitucional, e não o contrário, talvez esse seja o ônus por um mundo onde Dignidade da Pessoa Humana não seja apenas um princípio formal.
O século apenas se iniciou e não nos adianta ter pressa ou tentar adiantar o que tempo inevitavelmente trará. Para nós resta apenas a imprevisão do que o futuro reserva para nossa pátria e para o mundo em questões constitucionais e a certeza de que esse não é o fim da longa caminhada em busca da concretização do constitucionalismo, na concretização de um mundo melhor.
Informações Sobre o Autor
Víctor Augusto Lima de Paula
Acadêmico do curso de Direito da Universidade Federal do Ceará