O presente artigo faz parte de uma série de publicações que possuem como enfoque específico o estudo das decisões judiciais, sua mecânica, seus elementos conformadores e variáveis que acabam por influenciar decisivamente na atividade judicante, com especial atenção à politização do Judiciário (ou politização das decisões judiciais).
A fim de que se possa proceder a uma análise do fenômeno da politização da Justiça, inicialmente, há que se investigar sobre a forma de conformação do raciocínio jurídico adotado na atualidade e quais foram os elementos que contribuíram para a sua gênese.
Neste sentido, Chaim Perelman[1] destaca três fases bastante distintas e significativas com relação à forma de conformação do papel do Judiciário perante os demais poderes e até mesmo na mudança de postura deste perante a sociedade.
A primeira das fases seria aquela que antecedeu a Revolução Francesa, na qual não havia o conceito de separação de poderes de Montesquieu, nem tampouco a forma como o concebemos atualmente. Havia variados valores plasmados que reuniam conceitos de moral, religião e direito e que acabavam por fornecer critérios de julgamento ao soberano – no qual eram concentrados todos os poderes – ou ao indivíduo ao qual fosse delegado tal poder. A argumentação jurídica mostrava-se incipiente na medida em que a motivação das sentenças proferidas não lhes era requisito essencial, “as fontes do direito eram imprecisas, o sistema do direito era pouco elaborado e as decisões da justiça quase não eram levadas ao conhecimento do público”.[2]
Com a Revolução Francesa, conforma-se uma nova fase de ideologia judiciária. Passou-se a adotar a teoria tripartite dos poderes e o Estado a ser orientado por um conjunto de leis rígidas – codificadas em alguns casos – que viriam a servir de supedâneo para o julgamento proferido pelos juízes. As sentenças haveriam que ser motivadas e de acordo com a legislação. As leis representariam os anseios do coletivo, os quais deveriam suplantar em todos os casos qualquer manifestação individual de eqüidade por parte do magistrado. Legitimava-se, desta forma, a aplicação irrestrita da lei em nome da segurança jurídica.
Neste sentido, definindo a escola Exegética (ou da Exegese) que vigeu na França e que acabou por influenciar o pensamento jurídico durante séculos, Perelman[3] destaca que
“Desde a Revolução Francesa, e durante mais de um século, pondo-se no primeiro plano a legalidade e a segurança jurídica, havia-se acentuado o aspecto sistemático do direito e o aspecto dedutivo do raciocínio judiciário. Havia-se difundido a idéia de que este último não se diferenciava muito do raciocínio puramente formal: esta aproximação entre o direito e as matemáticas deveria garantir o funcionamento previsível e imparcial das Cortes e dos tribunais. Este modo de ver subordinava, mais nitidamente do que nunca, o poder judiciário ao poder legislativo e favorecia uma visão estatizante e legalista do direito.”
Acerca da França pós-Revolução, Edmund Burke, contemporâneo das mudanças ocorridas naquele período, ressaltou que
“Em primeiro lugar, juízes são nomeados tendo que julgar, creio eu, segundo as leis, mas logo após lhes é dito que a qualquer momento outras leis serão decretadas tendo eles, assim, que se adaptarem. Todos os estudos por eles realizados (se é que fizeram algum) serão inúteis. Para substituir esses estudos, entretanto, eles devem jurar obediência a todos os regulamentos, a todas as ordens, a todas as instruções que, continuamente, receberão da assembléia Nacional. Se eles se submeterem, que garantias terão os cidadãos de terem seus direitos respeitados? Esses juízes serão nas mãos do governo um perigoso instrumento, pois o Estado poderá, no meio de um processo, ou visando a um determinado resultado, modificar completamente suas normas de decisão.”[4]
De fato, a teoria pura do Direito, proposta por Hans Kelsen, foi a que de forma mais clara evidenciou tal teoria, chamada de positivismo jurídico, segundo a qual, a fim de se conferir cientificidade ao Direito, dever-se-ia isolar a ciência do Direito e tratá-la como objeto de estudo por si mesma, abstraindo-se de questões tais como juízos de valor, direito natural, moral, ideologia, política ou mesmo a justiça[5], pois
“(…) o valor de Direito é objetivo, enquanto o valor de justiça é subjetivo. Os julgamentos jurídicos de valor são julgamentos que podem ser testados objetivamente com o auxílio de fatos. Portanto, eles são admissíveis dentro de uma ciência jurídica. Os julgamentos de justiça não podem ser testados objetivamente. Portanto, não há espaço para eles dentro de uma ciência jurídica”.[6]
Ou seja, Kelsen busca um método científico próprio à análise do Direito quanto à sua cognição, e não à sua formação[7]. Isto implica dizer que Kelsen analisa o objeto da ciência como ele é, e não como deveria ser, o que, segundo o autor, seria de competência da política, como é o problema da justiça. Assim,
“(…) a teoria pura recusa-se a ser uma metafísica do Direito. Conseqüentemente, ela procura a base do Direito – isto é, o fundamento da sua validade – não num princípio metajurídico, mas numa hipótese jurídica – isto é, uma norma fundamental – a ser estabelecida por meio de uma análise lógica do pensamento jurídico efetivo”.[8]
Nesse sentido, o objeto da ciência do Direito seria o Direito positivo; mais especificamente o Direito se ocuparia de proceder a uma análise de validade da norma jurídica, o que, para Kelsen, significa averiguar se a norma efetivamente existe ou não[9].
Contudo, justamente o que Burke[10] previra em 1790 foi evidenciado através da conformação do Estado nacional-socialista: concluiu-se que a norma jurídica – e, por via de conseqüência, o Estado – não necessariamente redundava em estabelecimento de relações justas entre os componentes de uma sociedade. Exatamente porque a discussão da justiça não se faz presente no âmbito do modelo de ciência do Direito kelseniano, predominante nesta época da História. Pelo contrário, em alguns casos até mesmo poderia ser utilizada como instrumento de prática das maiores atrocidades e crimes com os quais a humanidade já se deparou[11].
Perelman destaca que
“Os fatos que sucederam na Alemanha, depois de 1933, demonstraram que é impossível identificar o direito com a lei, pois há princípios que, mesmo não sendo objeto de uma legislação expressa, impõem-se a todos aqueles para quem o direito é a expressão não só da vontade do legislador, mas dos valores que este tem por missão promover, dentre os quais figura em primeiro plano a justiça”.[12]
Desta forma, o modelo positivista kelseniano de ciência do Direito passou a ser debatido e discutido. Ainda que profundamente influenciado pelas raízes do positivismo jurídico, o Direito passou a ser criticado enquanto sua concepção de análise da estrita validade da norma jurídica. Pois o simples fato da norma existir no mundo jurídico não garantia o estabelecimento de justas relações entre os indivíduos e entre estes e o Estado[13].
O tratamento da ciência do Direito apenas sob o enfoque das normas positivas válidas acabava sendo insuficiente na medida em que não se procedia a julgamentos de valor sobre as mesmas, sobre a aptidão para gerar efeitos ou para a busca de Justiça ou até mesmo sobre os diplomas que as antecederam a fim de perquirir a evolução da norma com o objetivo de analisar a própria evolução da sociedade.
Tal modelo de Ciência, a exemplo do ocorrente nas ciências físico-matemáticas e naturais, possuía evidente avaloratividade, distinguindo juízo de fato – “uma tomada de conhecimento da realidade” – e juízo de valor – “tomada de posição frente à realidade” –, sendo aquele o adequado a ser empreendido no caso da ciência do Direito[14].
Em vista de tais elementos e de profundos fatores conjunturais – tais como a Segunda Guerra Mundial – surgiram concepções modernas do direito e do raciocínio judiciário, os quais tenderam a questionar e até mesmo a inaplicar certos postulados do positivismo jurídico.
Haveria que se inquirir sobre justamente tudo aquilo que Kelsen procurou apartar do estudo da ciência do Direito em sua teoria pura, sobre as relações entre a norma e conceitos que lhe são inerentes tais como a igualdade, eqüidade e a justiça, a ponto de “não apenas poder inserir-se no sistema, mas também revelar-se social e moralmente aceitável para as partes e para o público esclarecido.” [15] Gerou-se uma série de questionamentos sobre o modelo até então instituído, típico positivista, legalista e desvinculado dos valores circundantes ao julgador.[16]
Indubitavelmente tratava-se de opor duas articulações possíveis do Direito segundo a qual, conforme Boaventura de Souza Santos, haveria
“(…) os que defendem uma concepção de direito enquanto variável dependente, nos termos da qual o direito se deve limitar a acompanhar e a incorporar os valores sociais e os padrões de conduta espontânea e paulatinamente constituídos na sociedade, e os que defendem uma concepção do direito enquanto variável independente, nos termos da qual o direito deve ser um activo promotor de mudança social tanto no domínio material como no da cultura e das mentalidades (…)” [17]
Seria mais precisamente o que o autor chama de “discrepância entre o direito formalmente vigente (law in books) e o direito socialmente eficaz (law in action)”. Ou seja, tratar-se-ia de reunir esforços no sentido de aproximar ambos os conceitos, passando de uma análise estritamente formal, de inquirição se a lei contempla determinado direito ansiado pela sociedade, para uma análise de eficácia, se a lei é eficaz no sentido de tutelar os direitos inerentes aos indivíduos. E, conforme estatuído por Boaventura S. Santos no trecho acima, segundo uma corrente numerosa de autores, para que o Direito seja eficaz, deve ser um “ativo promotor de mudança social”, a despeito de Kelsen também atribuir, embora de forma restrita, à Justiça a função de “ser um modelo para feitura de bom Direito e um critério para distinguir bom e mau Direito” [18]. Nesse contexto, não somente a lei, mas o Direito – lei, decretos, decisões judiciais – deve ser utilizado com tal fim.
Pois, como bem ressalta Vianna, a preservação do modelo de lei geral, abstrata e formal fixa o magistrado no passado, na situação e conjuntura histórica na qual aquela lei fazia sentido e tornava-se apta a regular relações naquelas situações específicas. Ocorre que há a dissociação da jurisdição do tempo da política. Ou seja, caso o magistrado assuma uma posição neutra, limitar-se-á a julgar uma determinada situação presente segundo leis elaboradas para uma conjuntura pretérita, na maioria das vezes, completamente diversa daquela da atualidade. Tal dinâmica faria com que o Poder Judiciário se tornasse um Poder anacrônico, dissociado da realidade social em que estaria imerso.[19]
Como resultado disso, segundo Perelman, nas últimas décadas se tem verificado uma tendência de valorização de preceitos tais como a justiça e eqüidade nas decisões, aproximando-se, desta forma, aos ideais do direito natural[20]. Trata-se de aproximar a eqüidade e a lei; tornar esta última mais “flexível”, interpretando-a conforme os princípios gerais do direito de forma que se torne moralmente aceitável.
Daí a relação do presente estudo com o fenômeno da politização das decisões judiciais, conforme já dito no início deste trabalho. Na mesma proporção em que a lei e a eqüidade se aproximam, maior é o espaço para a politização das decisões judiciais, uma vez que se alarga a atuação do julgador, dando margem a uma decisão mais equânime, todavia, por conseguinte, mais politizada.
Técnico Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região. Pós Graduando em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Gama Filho, Graduado em Direito no Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA
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