Recebimento de remuneração por dirigentes de entidades sindicais

I- RELATÓRIO

Trata-se de pedido de manifestação jurídica encaminhado pela Diretoria do Sindicato dos Trabalhadores do DER de Minas Gerais acerca da legalidade de gratificação recebida pelo associado de sindicato de trabalhadores  que tiver que se afastar de seu trabalho para o exercício do mandato.

Questiona o consulente acerca da adaptação dos estatutos sindicais à novel disciplina associativa estabelecida na Constituição Federal de 1988

Em suma, a dúvida suscitada diz respeito à interpretação dos artigos da Consolidação das Leis do Trabalho de 1943 que permitiam a forte interferência do Poder Público na organização e funcionamento dos sindicatos em confronto com os princípios da Constituição Federal de 1988, que estabeleceu o princípio da liberdade sindical.

É o relatório do essencial.

Existem posições doutrinárias das mais diversas acerca da questão: de um lado temos autores como o Eminente Valentin Carrion que em sua obra de “Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, legislação complementar, jurisprudência”, faz menção à revogação tácita de todos os dispositivos da CLT que “criem exigências para reconhecimento ou funcionamento de associações ou sindicatos”. Nessa linha, entende revogados praticamente todos os dispositivos que regulam o funcionamento dos sindicatos.

De outro lado temos uma corrente diametralmente oposta que milita pela manutenção de normas legais postas abstratamente para regular a vida sindical e a sua representatividade. Nesse sentido, advogam que o que a Constituição da República pretendeu afastar foi a odiosa ingerência do Poder Executivo no âmbito dos sindicatos e não a possibilidade de a lei estabelecer requisitos de representatividade e normas de padronização da vida sindical sem influir, diretamente, em sua liberdade de atuação e de gestão.

Trata-se do que se denominou na doutrina como modelo legislado de sindicatos. Nesse sentido, transcrevo trechos da lição do Eminente Professor Amauri Mascaro do Nascimento na qual, após descrever o “sistema de tipo legislado”, nele enquadra o sistema sindical brasileiro:

“Um sistema equilibrado de relações coletivas de trabalho harmoniza, adequadamente, fontes estatais e fontes não estatais do direito sindical, combinando, na justa medida, a lei e a auto-regulamentação sindical. O Estado democrático tem um compromisso com a defesa da liberdade sindical, da autonomia coletiva dos particulares e da garantia do direito de greve dentro de limites razoáveis. Sua posição deve ser eqüidistante, mas não indiferente. A lei é, também, instrumento para coibir e evitar o abuso do poder sindical quando confunde liberdade sindical com tomada do poder político. (…)”

Filiando-nos, desde já, à corrente majoritária que admite a possibilidade de um modelo legislado de sindicato, desde que não se obstaculize com esta regulamentação a liberdade de gestão e de organização sindical, passo à análise da legislação geral, pressupondo a manutenção de diversos dispositivos da CLT sobre a matéria.

Registro, entretanto, que a legislação especial sobre a matéria, para se considerar recepcionada pela vigente ordem constitucional, deve ser interpretada em consonância com as disposições consagradoras da liberdade sindical.

Consoante a dicção  do artigo 521 do Decreto-Lei n 5452, De 1 de Maio de 1943 ( Consolidação das Leis do Trabalho):

Art.521. São condições para o funcionamento do sindicato:

a)proibição de qualquer propaganda de doutrinas incompatíveis com as instituições e os interesses da Nação, bem como de candidaturas a cargos eletivos estranhos ao sindicato;

b)proibição de exercício de cargo eletivo cumulativamente com o de emprego remunerado pelo sindicato ou por entidade sindical de grau superior;

c)gratuidade do exercício dos cargos eletivos;

d)proibição de quaisquer atividades não compreendidas nas finalidades mencionadas no art. 511, inclusive as de caráter político –partidário;

e)proibição de cessão gratuita ou remunerada da respectiva sede a entidade de índole político – partidária.

Parágrafo único. Quando, para o exercício de mandato, tiver o associado de sindicato de empregados, de trabalhadores autônomos ou de profissionais liberais de se afastar do seu trabalho, poderá ser-lhe arbitrada pela assembléia geral uma gratificação nunca excedente da importância de sua remuneração na profissão respectiva.

Conforme se depreende dos comandos insertos na Constituição Federal de 1988:

Art.8. É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:

I- a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical;

II- é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial, que  será definida pelos trabalhadores ou empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um Município;

III- ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas;

IV- a assembléia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em lei;

V- ninguém será obrigado a filiar-se ou a manter-se filiado a sindicato;

VI- é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho;

 

VII- o aposentado filiado tem direito a votar e ser votado nas organizações sindicais;

VIII- é vedada a dispensa do empregado do sindicalizado a partir do registro da candidatura a cargo de direção ou representação sindical e, se eleito, ainda que suplente, até um ano após o final do mandato, salvo se cometer falta grave nos termos da lei.

Os poderes conferidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (1943) ao Estado permitiam forte interferência na liberdade sindical. A Constituição Federal de 1988 é o mais relevante ponto de mudança no modelo trabalhista e sindical brasileiros, desde 1930/45, embora seja também um elemento assecuratório de sua continuidade.

Para José Afonso da Silva, a liberdade sindical emanou de árdua conquista dos trabalhadores e evoluiu “como um direito autônomo, mesmo que juridicamente possa ser posto ao lado da liberdade geral de associação e de reunião.  A Constituição Federal vigente elimina todos os entraves anteriores que restringiam a liberdade sindical, que, agora, é contemplada e assegurada amplamente em todos os seus aspectos. (grifos nossos).

A liberdade sindical implica efetivamente: a)liberdade de fundação de sindicato, que significa que o sindicato pode ser constituído livremente, sem autorização, sem formalismo, e adquirir, de plano, direito, personalidade jurídica, com o mero registro no órgão competente, que é o registro das pessoas jurídicas, vedadas, ao Poder Público, a interferência e a intervenção na organização sindical, e é o que consta do art. 8, I, que, assim, consagra , também o princípio da autonomia dos sindicatos, ou seja, a sua desvinculação com qualquer poder ou entidade;b)liberdade de adesão sindical, que consiste no direito de os interessados aderirem ou não ao sindicato de sua categoria profissional ou econômica, sem autorização ou constrangimento, liberdade que envolve também o direito de desligar-se dele quando o interessado desejar, pois “ninguém será obrigado a filiar-se ou a manter-se filiado a sindicato”, diz o artigo 8,V; c) liberdade de atuação, garantia de que o sindicato persiga seus fins e realize livremente a representação dos interesses da respectiva categoria profissional ou econômica, manifestando -se aqui, mais acentuadamente, a autonomia sindical, agora devidamente definida no art. 8,I, da Constituição Federal de 1988, quando proíbe a interferência e a intervenção do Poder Público na organização sindical, e, pois, no seu funcionamento, de tal sorte que não mais se legitima a submissão dos sindicatos à tutela do Ministério do Trabalho ou de qualquer outro órgão, e menos ainda sua intervenção, como era comum no passado;d) liberdade de filiação do sindicato a associação sindical de grau superior, também prevista no art. 8, IV, que até autoriza a fixação de contribuição para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva. (in. Curso de Direito Constitucional Positivo, 24ed., Malheiros: São Paulo, 2005, p.301/302).

No mesmo diapasão, Amauri Mascaro Nascimento, professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo preconiza que a administração do sindicato não pode mais sofrer intervenção ou interferência do Poder Público, por força da Constituição Federal de 1988, passando-se a observar o princípio da autonomia administrativa, em razão do qual foi afastada a possibilidade da tutela dos sindicatos pelo Ministério do Trabalho, com o que, nas relações com o Estado, a organização sindical tem uma liberdade que, durante a maior parte da sua história, não conheceu.( in Curso de Direito do Trabalho, 26 ed., Saraiva: São Paulo, 1999, p.806).

Como assenta Mauricio Godinho Delgado, Juiz do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais, a Constituição de 1988 iniciou a transição para a democratização do sistema sindical brasileiro, mas sem concluir o processo. Na verdade, construiu certo sincretistmo de regras, afastando alguns dos traços mais marcantes do autoritarismo do velho modelo, preservando, porém, outras características notáveis de sua antiga matriz.

Nesse quadro a Constituição afastou a possibilidade jurídica de intervenção e interferências político-administrativas do Estado, via Ministério do Trabalho e Emprego, no sindicalismo (art. 8, I, CF/88). Reforçou o papel dos sindicatos na defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais e administrativas (art. 8, III, CF/88). Alargou os poderes da negociação coletiva trabalhista, sempre sob o manto da participação sindical obreira.

O processo de democratização do sistema sindical brasileiro passa pela alteração desses velhos traços da matriz corporativista oriunda das décadas de 1930 e 40, e que foram preservados no texto constitucional de 1988. A combinação de regras, princípios e institutos que sempre se mostraram contraditórios na história do sindicalismo somente fez aprofundar a crise de legitimidade e de força do sistema sindical brasileiro. Por isso, parece inevitável o caminho para a reforma do sistema, de modo a adequá-lo à plena liberdade de associação e à plena autonomia sindical.

A reforma trabalhista do país  passa também pelo implemento de certas garantias democráticas à atuação sindical, em contexto de plenas autonomia e liberdade associativas.

Não há qualquer contradição entre o implemento de plena liberdade e autonomia ao sindicalismo com a presença de garantias legais claras e inequívocas, aptas a assegurarem a mais transparente legitimidade representativa sindical e o mais eficaz dinamismo reivindicativo das entidades sindicais obreiras.

O estudo jurídico da organização sindical brasileira, hoje, passa  pelo estabelecimento da precisa extensão das modificações constitucionais de 1988 na legislação provinda das várias décadas anteriores. O ponto central do debate é interpretar-se a extensão do artigo 8, I da CF/88, que vedou ao Estado a interferência e a intervenção na organização sindical. Isso em contraponto ao Título V da CLT, que regula a organização sindical através de dispositivos restritivos e, até mesmo, inviabilizadores de razoável organização e operações sindicais. Nessa dimensão eles teriam sido revogados pela Carta de 1988.

A estipulação pela Consolidação das Leis do Trabalho dos órgãos internos dos sindicatos determina um dos mais significativos pontos de conflito acerca da validade do preceito legal em face da Constituição.

A lei da década de 1940 (CLT) fixa que a administração do sindicato será exercida por uma diretoria, que sua composição será, no máximo, de sete e, no mínimo, de três membros. O texto celetista afronta o princípio da autonomia sindical, constitucionalmente assegurado. A matéria é própria para os estatutos sindicais, em vista do princípio da autonomia organizativa que favorece tais associações. Os estatutos é que melhor levarão em conta   a extensão da base sindical, o número de associados e de potenciais representados e fatores correlatos. Mas trata-se de autonomia relativa, já que a ordem jurídica não acolhe o exercício abusivo de qualquer direito.  Desse modo se os estatutos adotam critério abusivo, desproporcional às reais e sensatas necessidades do sindicato, transformando sua direção em mero instrumento de alcance da vantagem estabilitária conferida pela Carta Magna, a retificação do ato abusivo deve ser judicialmente efetivada.

Merece atenção  o artigo 521,”c”  e parágrafo único da CLT:

Art. 521…….

c)gratuidade do exercício dos cargos eletivos;

…….

Parágrafo único. Quando, para o exercício de mandato, tiver o associado de sindicato de empregados, de trabalhadores autônomos ou de profissionais liberais de se afastar do seu trabalho, poderá ser-lhe arbitrada pela assembléia geral uma gratificação nunca excedente da importância de sua remuneração na profissão respectiva.

Segundo o comando inserto nesse artigo, é condição para o funcionamento do sindicato a gratuidade do exercício dos cargos eletivos. Entretanto, o parágrafo único do mesmo artigo determina que se para o exercício de mandato, tiver o associado de se afastar do seu trabalho,poderá ser arbitrada pela assembléia geral uma gratificação nunca excedente da importância de sua remuneração na respectiva profissão.

Conforme o alcance do art. 8,I, a Constituição Federal de 1988,  proíbe a interferência e a intervenção do Poder Público na organização sindical, e, pois, no seu funcionamento, de tal sorte que não mais se legitima a submissão dos sindicatos à tutela do Ministério do Trabalho ou de qualquer outro órgão, e menos ainda sua intervenção, como era comum no passado.

Encontra-se coerente, dessa forma, com o transcrito preceito constitucional, em sua atual redação, a regra insculpida no parágrafo único do artigo 521 da Consolidação das Leis do Trabalho.

Ante o exposto, impõe-se a conclusão de que enquanto não for construído, pelo Parlamento, texto legal respeitoso e adequado ao comando da Constituição Federal, deve-se relegar, em reverência obrigatória à Carta Magna, à assembléia geral através do estatuto do sindicato arbitrar uma  gratificação destinada ao associado que se afastar de seu trabalho para o exercício  de mandato, desde que essa gratificação não exceda a importância de sua remuneração naquele  trabalho do qual se afastou. Porém, cabe ao intérprete o uso não abusivo da prerrogativa constitucional.

Por essas contradições é que se pode considerar mera transição a fase inaugurada no Direito do Trabalho do país pela CF/88: Ela inova perante todas as anteriores ao estatuir que todo o poder emana do povo, que o exercerá por meio de seus representantes ou diretamente. Na medida em que se sabe que a norma jurídica é a consumação de um processo político bem-sucedido, pode-se concluir que pretendeu também a CF valorizar formas autônomas de exercício do poder, não apenas através de instrumentos políticos clássicos. A Constituição confirma essa intenção, ao acentuar a importância das convenções e acordos coletivos (artigos. 7, XXVI e 8, VI, CF/88).

A Constituição de 1988 estatuiu regras que favorecem o caminho da normatização autônoma, que valorizam a atuação sindical, a participação obreira nos locais de trabalho e a negociação coletiva.

A CF/88 manteve, porém alguns dos pilares do velho sistema corporativista do país, em conformidade com o já dissertado neste texto. Esses mecanismos autoritários atuam frontalmente sobre a estruturra e dinâmica sindicais, inviabilizando a construção de um padrão democrático de gestão social e trabalhista no Brasil. O acoplamento de figuras jurídicas corporativistas  a um universo de regras e princípios democráticos tem produzido efeitos perversos no mundo sindical do país.

De um lado, tem permitido o próprio enfraquecimento dos sindicatos, através de sua pulverização organizativa, com a freqüente subdivisão das tradicionais categorias profissionais. De outro lado, tem propiciado um cenário de negociações coletivas ás vezes extremamente danoso aos trabalhadores, em vista da falta de efetiva representatividade dessas entidades enfraquecidas.

O presente entendimento, caso aprovado, deve ser adotado por este Sindicato no desenvolver de sua atividade administrativa, em todas as ações de sua competência, para todos os efeitos que possam decorrer da presente interpretação. Não pode, entretanto, ser imposto como interpretação a ser seguida no âmbito de competências dos entes federativos ou mesmo do Poder Judiciário.

Nesse sentido, embora o presente entendimento seja pela legalidade  da  gratificação arbitrada pela assembléia geral do sindicato a ser recebida pelo associado que exerce  mandato em sindicato de trabalhadores, desde que essa gratificação nunca exceda a importância de sua remuneração há que se deixar consignado que eventual exigibilidade da adaptação estatutária pelas autoridades estaduais ou pelo Poder Judiciário deverá se dar em função de prazo legal.

Belo Horizonte, 29 de dezembro de 2005.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Luciana Colares Figueiredo

 

Advogada em Belo Horizonte/MG, formada pela Universidade Federal de Viçosa/MG, Especialista em direito civil e processual civil pela UNIPAC

 


 

logo Âmbito Jurídico