Reconhecida a hipossuficiência financeira, pode haver concessão de gratuidade da justiça com ressalvas?

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A gratuidade da justiça é uma benesse processual decorrente do reconhecimento da hipossuficiência financeira do interessado que, após a devida comprovação documental, terá postergado seu dever de arcar com o adimplemento do ônus de sua sucumbência, pois o cumprimento imediato dessa obrigação poderá atrapalhar seu próprio sustento e/ou de sua família.

Villas Bôas Cueva, no julgamento do REsp 1787491, atestou que  “legalmente, a pessoa que não tem recursos para pagar pelas custas processuais e pelos honorários advocatícios é classificada como hipossuficiente e tem, portanto, direito ao benefício”.

Fábio Tenenblat (2011, p.23), explica que:

Acesso à justiça significa a possibilidade de alcançar determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano, com o exercício da cidadania plena e a instituição de uma estrutura jurídica harmoniosa e isonômica. Por sua vez, o Poder Judiciário tem como função típica a prestação jurisdicional, consistente na aplicação da lei ao caso concreto que lhe é submetido quando há conflito de interesses. Nesta sua principal função, o Judiciário configura importante ferramenta de pacificação social ou, mais precisamente, um mecanismo por intermédio do qual as desavenças e disputas sobre a alocação de direitos são dirimidas a partir de normas e regras pré-estabelecidas pela sociedade. Portanto, pode-se conceituar o acesso ao Poder Judiciário como uma garantia à proteção dos referidos valores e direitos fundamentais, um direito meramente formal e com nítida adjetividade em relação à obtenção efetiva de justiça.

O instituto não é uma inovação jurídica, haja vista que decorre do princípio do “acesso universal à justiça” e, anteriormente ao Código de Processo Civil de 2015, quando disposto na Lei 1.060/50 e no código processual anterior, atrelava-se ao instituto da assistência judiciária gratuita. O atual código, sabiamente, dispôs as diferenças dos institutos, pois a gratuidade da justiça é eminentemente processual e a assistência judiciária gratuita decorre da garantia fundamental de que o Estado prestará assistência necessária a quem não prover recursos, por meio da Defensoria Pública (art. 5, LXXIX CRFB/88).

No mesmo sentido, existe previsão do instituto na súmula nº 481 do Superior Tribunal de Justiça ao dispor que “faz jus ao benefício da justiça gratuita a pessoa jurídica com ou sem fins lucrativos que demonstrar sua impossibilidade de arcar com os encargos processuais”.

A concessão do benefício, costumeiramente, ocorre de forma “inaldita altera pars”, pois não sendo caso de improcedência preliminar do pedido ou indeferimento da petição inicial, o julgador, mediante decisão interlocutória, analisará a pretensão da tutela provisória de urgência e, nessa mesma análise concederá ou não a preliminar de gratuidade da justiça. É imperioso ressaltar que tal pedido poderá ocorrer em qualquer etapa processual, inclusive na recursal, não limitando-se à petição inicial.

Após esse ato, haverá citação do réu para formação do contraditório e oportunização da ampla defesa, podendo os interessados do processo impugnar a decisão que concedeu ou indeferiu o pedido de gratuidade da justiça.

O instituto da gratuidade da justiça está previsto no artigo 98 do Código de Processo Civil, devidamente disposto a seguir:

Art. 98.  A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios têm direito à gratuidade da justiça, na forma da lei.

  • 1 A gratuidade da justiça compreende:

as taxas ou as custas judiciais;

os selos postais;

as despesas com publicação na imprensa oficial, dispensando-se a publicação em outros meios;

a indenização devida à testemunha que, quando empregada, receberá do empregador salário integral, como se em serviço estivesse;

as despesas com a realização de exame de código genético – DNA e de outros exames considerados essenciais;

os honorários do advogado e do perito e a remuneração do intérprete ou do tradutor nomeado para apresentação de versão em português de documento redigido em língua estrangeira;

o custo com a elaboração de memória de cálculo, quando exigida para instauração da execução;

os depósitos previstos em lei para interposição de recurso, para propositura de ação e para a prática de outros atos processuais inerentes ao exercício da ampla defesa e do contraditório;

os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido.

  • 2 A concessão de gratuidade não afasta a responsabilidade do beneficiário pelas despesas processuais e pelos honorários advocatícios decorrentes de sua sucumbência.
  • 3 Vencido o beneficiário, as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos 5 (cinco) anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário.
  • 4 A concessão de gratuidade não afasta o dever de o beneficiário pagar, ao final, as multas processuais que lhe sejam impostas.
  • 5 A gratuidade poderá ser concedida em relação a algum ou a todos os atos processuais, ou consistir na redução percentual de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento.
  • 6 Conforme o caso, o juiz poderá conceder direito ao parcelamento de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento.
  • 7 Aplica-se o disposto no art. 95, §§ 3o a 5o, ao custeio dos emolumentos previstos no § 1o, inciso IX, do presente artigo, observada a tabela e as condições da lei estadual ou distrital respectiva.
  • 8 Na hipótese do § 1o, inciso IX, havendo dúvida fundada quanto ao preenchimento atual dos pressupostos para a concessão de gratuidade, o notário ou registrador, após praticar o ato, pode requerer, ao juízo competente para decidir questões notariais ou registrais, a revogação total ou parcial do benefício ou a sua substituição pelo parcelamento de que trata o § 6odeste artigo, caso em que o beneficiário será citado para, em 15 (quinze) dias, manifestar-se sobre esse requerimento.

 

Pela leitura do artigo mencionado acima, é possível concluir que a concessão da gratuidade da justiça não isentará o interessado do pagamento das custas judiciais decorrentes de sua sucumbência. Logo, não se pode afirmar que o beneficiário da justiça gratuita terá um “salvo conduto”, mas uma concessão de prazo para que sua situação econômica seja modificada, de modo a conseguir arcar com o ônus decorrentes do processo.

Pode-se dizer que o códex processual ao reconhecer a possibilidade de concessão de gratuidade da justiça a quem dela necessitar se atentou ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CRFB/88), sobrepesando as necessidades primordiais do indivíduo, qual seja a subsistência.

O dispositivo legal explica que as obrigações decorrentes da sucumbência do beneficiário ficará sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderá ser executadas se, nos 5 (cinco) anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário.

Dessa forma, caso haja sucumbência, é necessário o aguardo do prazo quinquenal para que o beneficiário da justiça gratuita seja compelido a arcar com tais despesas. O instituto ainda prevê a possibilidade de a concessão da justiça gratuita ocorrer de forma parcial ou apenas para alguns dos atos processuais, cuja escolha será discrionária ao julgador.

Entretanto, é imperioso ressaltar que reunidos os requisitos que comprovam a hipossuficiência financeira do interessado para o pagamento das custas judiciais, não existe razão para que determinados atos sejam adimplidos de forma imediata (sem a espera do prazo quinquenal), pois tal obrigação continuará afetando sua subsistência, tornando ineficaz o ato de concessão.

Para ilustrar a situação, cita-se o julgamento do Processo: 5345220.61.2020.8.09.0024, proposto na comarca de Caldas Novas, no estado de Goiás, no qual houve deferimento da gratuidade da justiça, entretanto, com certas ressalvas, conforme disposto a seguir:

(…) À luz do acima exposto, DEFIRO PARCIALMENTE o pedido de tutela provisória formulada pela parte autora, para a suspensão da cobrança das parcelas mensais do contrato, especificamente quanto às parcelas vencidas após a propositura da ação (possível, portanto, a cobrança e negativação de valores em atraso ao tempo da propositura), bem como a não inclusão do nome da requerente nos cadastros restritivos ao crédito em decorrência das parcelas vencidas após a propositura da presente ação, tudo até ulterior decisão. (…) DEFIRO o pedido de gratuidade da Justiça ao polo demandante, com exceção da remuneração devida ao conciliador e dos honorários de sucumbência.

Intimem-se. Cumpra-se.

Caldas Novas, datado pelo sistema.

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Pela literalidade do dispositivo da decisão acima, caso mantida nos termos prolatados pelo julgador, na ocorrência de sucumbência ao autor, o beneficiário seria compelido a arcar com os honorários de sucumbência e a remuneração do conciliador de forma imediata, sem a observação da suspensão prevista em lei.

Em face dessa decisão foi proposto Agravo de Instrumento, cuja pretensão consistia no CONHECIMENTO E PROVIMENTO do presente recurso de agravo de instrumento, para que seja reformada por este Egrégio Tribunal de Justiça, a decisão agravada, prolatada pela MM. Juiz a quo, a desígnio de conceder a gratuidade da justiça de forma integral.

O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás acolheu os termos recursais, proferindo a seguinte ementa:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL C/C RESTITUIÇÃO DE QUANTIAS PAGAS. PARTE BENEFICIÁRIA DA GRATUIDADE DA JUSTIÇA. HONORÁRIOS DO MEDIADOR. INCLUSÃO DA BENESSE. § 2º, DO ART. 4º, DA LEI Nº13.140/2015 E DECRETO JUDICIÁRIO Nº 757/2018. Demonstrada a incapacidade financeira da agravante para arcar com as custas e despesas processuais, deve ser reformada a decisão recorrida, a fim de se incluir à benesse concedida os possíveis honorários sucumbenciais, bem como os honorários do mediador, nos termos do que prescreve o § 2º, do art. 4º da Lei nº 13.140/2015 e o Decreto Judiciário nº 757/2018. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 5361363.03.2020.8.09.0000 COMARCA DE CALDAS NOVAS. RELATOR: DES. ALAN SEBASTIÃO DE SENA CONCEIÇÃO. Publicado: 03/08/2020.

Houve acerto na decisão acima colacionada, pois o requerente, de fato, não possuía condições financeiras para adimplir com as custas judiciais, de forma geral, haja vista que o adimplemento, mesmo que em relação a alguns atos, afetaria sua subsistência, o que, por sua vez, ia de encontro ao intuito do instituto. A concessão da benesse, da forma como proferida pelo “juiz a quo”, foi, data vênia, contraditória e geradora de danos, padecendo, portanto, de reparos.

A respeito do assunto o Supremo Tribunal Federal entendeu que:

O art. 12 da Lei 1.060/1950 (revogado pelo NCPC, atualmente equivalente ao art. 98, parágrafo 3º da Lei 13.105/15) apresenta entendimento de que o beneficiário da justiça gratuita, quando vencido, deve ser condenado a ressarcir as custas antecipadas e os honorários do patrono vencedor. Entretanto, não está obrigado a fazê-lo com sacrifício do sustento próprio ou da família. Decorridos cinco anos sem melhora da sua situação econômica, opera-se a prescrição da dívida. Portanto, o benefício da justiça gratuita não se constitui na isenção absoluta das custas e dos honorários advocatícios, mas, sim, na desobrigação de pagá-los enquanto perdurar o estado de carência econômica do necessitado, propiciador da concessão deste privilégio. Em resumo, trata-se de um benefício condicionado que visa a garantir o acesso à justiça, e não a gratuidade em si. [RE 249.003 ED, rel. min. Edson Fachin, voto do min. Roberto Barroso, P,j. 9-12-2015, DJE 93 de 10-5-2016.]

Os beneficiários da Justiça gratuita devem ser condenados aos ônus de sucumbência, com a ressalva de que essa condenação se faz nos termos do artigo 12 da Lei 1.060/50 que, como decidido por esta Corte no RE 184.841, foi recebido pela atual Constituição por não ser incompatível com o artigo 5º, LXXIV,da Constituição.  [RE 514.451 AgR, rel. min. Eros Grau, 2ª T, j. 11-12-2007, DJE 31 de 22-2-2008.]

Em igual sentido, decidiu o Tribunal de Justiça do Distrito Federal:

“A responsabilidade pelo pagamento de verbas sucumbenciais fica sob efeito de condição suspensiva de sua exigibilidade, até que o credor comprove no quinquídio que o seu devedor alcançou situação patrimonial que doravante tolera a expropriação, de modo que, findo o prazo, a obrigação ficará extinta. (NCPC, art. 98, § 3º).”  (Acórdão 979288, unânime, Relator: CARLOS RODRIGUES, 6ª Turma Cível, data de julgamento: 26/10/2016)

Conclui-se, portanto, que o Código de Processo Civil admite a concessão da gratuidade da justiça a quem reunir seus requisitos autorizadores, constantes no art. 98 e ss do CPC/15 e, também, faculta que essa ocorra de forma integral ou parcial.

Contudo, havendo comprovada situação de impossibilidade do adimplemento das custas judiciais e o benefício concedido ocorrer de forma parcial ou com ressalvas,  pode o interessado, por meio de um advogado devidamente constituído, valer-se dos meios recursais a fim de resguardar seu direito.

 

Referências Bibliográficas:

BRASIL. Constituição (1998). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1998.

 

BRASIL, Leis Ordinárias de 2015. Brasília, DF: Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, 2015. Disponível em: http://www4.planalto.gov.br>. Acesso em: 06/08/2020.

 

BRASIL, Leis Ordinárias de 1950. Brasília, DF: Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, 1950. Disponível em: http://www4.planalto.gov.br>. Acesso em: 06/08/2020.

 

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial: REsp 1787491/SP Ministro Rel. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA. Julgamento em 09/04/2019. Publicado em 12/04/2019 Disponível em <http:// http://www.stj.jus.br/processos> Acesso em: 05/08/2020.

 

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Processo: 5361363.03.2020.8.09.0000. Rel. Alan Sebastião de Sena Conceição. Julgamento em 29/07/2020. Publicado em 04/08/2020 Disponível em <http:// http:// www.tjgo.jus.br > Acesso em: 05/08/2020.

 

TENEMBLAT, Fábio. Limitar o Acesso ao Poder Judiciário para Ampliar o Acesso à Justiça. In: Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 52, pp. 23-35.

 

DE SÁ, Renato Montans. Manual de Direito Processual Civil. 5ª edição. São Paulo: Saraiva Jur, 2020.

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