Resumo: O presente artigo objetiva expor a discussão acerca da natureza jurídica do recurso de ofício e da celeuma relativa à incompatibilidade do instituto com as normas do ordenamento pátrio. O estudo é norteado pelo sistema penal garantista adotado no Brasil.
Palavras-chave: Recurso de ofício. Natureza jurídica. Aplicabilidade. Sistema penal garantista.
Sumário: 1. Linhas introdutórias 2. Esboço histórico 3. A controvérsia acerca da natureza do recurso de ofício 4. Da incompatibilidade do recurso de ofício com o art. 129, I, da Constituição da República Federativa do Brasil 5. Considerações finais. Referências.
1 LINHAS INTRODUTÓRIAS
O direito é alográfico, isto é, o texto normativo se completa apenas quando o sentido por ele noticiado é produzido pelo intérprete como nova forma de expressão (GRAU, 2009, p. 30).
Isto advém das multifacetadas interpretações que uma norma pode gerar, relativamente a um mesmo instituto. É imprescindível, nesse viés, que o legislador prime pela clareza e precisão do texto legal, no intuito de evitar interpretações dissonantes do verdadeiro conteúdo da norma.
Em outros termos, a clareza é necessária para que se compreenda a mens legis impressa ao texto normativo e não haja divergência em relação aos demais princípios e normas do ordenamento jurídico pátrio.
Todavia, nem sempre tais preceitos são observados, padecendo alguns institutos de obscuridade conceitual, seja pela controvérsia intrínseca a sua própria natureza, seja pela sua correta designação.
Nessa tessitura, pode ser citado o recurso de ofício, que, a título de exemplo, apresenta várias outras acepções: recurso necessário, remessa obrigatória, recurso ex officio e recurso obrigatório.
Não obstante as implicações práticas no que tange a variedade de denominações, o instituto em exame desperta discussões doutrinárias e jurisprudenciais relevantes atinentes à sua aplicabilidade. O aspecto conceitual, assim, é apenas uma transliteração dessa realidade.
Em função dos fatores outrora apontados, somados à relevância da temática no meio jurídico e à parca doutrina sobre a matéria, o presente artigo objetiva expor a discussão acerca da natureza jurídica do recurso de ofício, bem como trazer à baila a celeuma relativa à incompatibilidade do instituto com o que dita o art. 129, I, da Constituição da República Federativa do Brasil.
2 ESBOÇO HISTÓRICO
Tourinho Filho (2005, p. 307) ensina que o recurso de ofício remonta aos tempos do Direito Lusitano, sendo consagrado como um importante instrumento para “jugular a onipotência desenfreada dos juízes numa época em que os recursos não estavam bem disciplinados”.
Ademais, a atividade do magistrado possuía um caráter cogente. A exemplo, nas hipóteses em que era obrigado a apelar para o monarca, caso descumprisse tal obrigação, poderia sofrer penalidades que podiam culminar até na perda do cargo. (TOURINHO FILHO, 2005, p. 307).
Portanto, de forma diversa da ritualística penal contemporânea, a determinação de recorrer de ofício possuía um cunho impositivo, tendo em vista prescrever penalidades ao juiz por sua inobservância.
Buzaid (1951, p. 23), por sua vez, destaca como origem do recurso de ofício, o processo penal inquisitorial:
“[…] na realidade, originou-se com a consagração do processo inquisitorial penal, segundo o qual o Juiz tinha a faculdade de iniciativa, de colheita de provas e do julgamento, motivo pelo qual sua decisão tinha que ser revista por outro órgão judicante, a fim de evitar a utilização do processo como um perigoso instrumento de perseguição a inocentes”.
Destarte, na órbita de um sistema penal em que não eram observadas as garantias mínimas ao regular transcurso do processo, não se pode negar o caráter moralizador que engendrou a criação do instituto analisado. Com efeito, ao preceituar a revisão das decisões o objetivo precípuo se constituía na reforma das que se distanciassem dos ditames do ordenamento jurídico e da própria finalidade da persecução criminal.
Atualmente, o Código de Processo Penal traz as seguintes hipóteses de recurso de ofício:
“(a) da sentença que conceder habeas corpus, logo, da decisão do juiz singular ao acatar a ordem, não havendo de se falar em recurso de ofício da deliberação do tribunal acerca do remédio heróico; e,
(b) da que desde logo absolver o acusado com fundamento na existência de circunstância que exclua o crime ou isente de pena o acusado, evitando sua submissão a júri popular (absolvição sumária). Todavia, para a doutrina majoritária, esta hipótese encontra-se revogada, por ausência de previsão do art. 415 do CPP. […] (c) da sentença de absolvição ou a deliberação que arquiva os autos do inquérito policial nos crimes contra a economia popular e saúde pública (art. 7º, Lei nº 1.521/51);
(d) da decisão que concede reabilitação criminal (art. 746, CPP);
(e) do indeferimento liminar pelo relator, no tribunal, da ação de revisão criminal, quando o pedido não estiver suficientemente instruído (art. 625, § 3º, CPP)”. (TÁVORA; ALENCAR, 2010, p. 827)
Percebe-se, então, que o ponto nevrálgico em todas essas hipóteses de cabimento é a veiculação de decisões contrárias aos interesses das funções acusatórias e/ou persecutórias, o que relembra a função para a qual foi criado o recurso de ofício. (OLIVEIRA, 2009, p. 779).
3 A CONTROVÉRSIA ACERCA DA NATUREZA DO RECURSO DE OFÍCIO
Não se pode tratar da natureza jurídica do instituto, sem antes definir o que é recurso.
Desse modo, utilizando a tradicional e consagrada lição de Barbosa Moreira (1993, p. 207), conceitua-se recurso como “o remédio voluntário idôneo a ensejar, dentro do mesmo processo, a reforma, a invalidação, o esclarecimento ou a integração de decisão judicial que se impugna”.
Na seara processual penal, vale mencionar a lição de Távora e Alencar (2010, p. 283), ao afirmarem que recurso “é o meio voluntário destinado à impugnação das decisões, afigurando-se como remédio de combate a determinado provimento, dentro da mesma relação jurídica processual, propiciando a sua re-análise”.
Depreende-se daí que, recurso é o meio interposto dentro da mesma relação processual e que necessita da vontade da parte, ou seja, é meio voluntário de impugnação das decisões.
Feita essa inflexão, parte-se para a perquirição se o recurso de ofício pode ser entendido tecnicamente como recurso, sendo, por isso, necessário perpassar pelos estudos das duas principais correntes sobre a temática.
A primeira, representada pela doutrina clássica, aduz que o recurso de ofício é uma espécie de recurso obrigatório, levando em consideração a divisão de recursos em voluntários e obrigatórios. A segunda corrente, por sua vez, não aceita tal separação, adotando, inclusive, a nomenclatura “remessa necessária” para realçar que o recurso de ofício não possui natureza recursal.
Como principal expoente da doutrina clássica, Magalhães de Noronha (2002, p. 451) invoca a aludida bipartição de recursos, em obrigatórios e voluntários, para, ao fim, concluir que o recurso de ofício é uma espécie do primeiro grupo:
“De modo geral, podemos dizer que recurso é a providência legal imposta ao juiz ou concedida à parte interessada, objetivando nova apreciação da decisão ou da situação processual com o fim de corrigi-la, modificá-la ou confirmá-la.”
Não obstante o brilhantismo e esmero dos doutrinadores clássicos, a segunda corrente tem inúmeros partidários e suas concepções estão mais alastradas no direito processual penal moderno.
Eugênio Pacelli de Oliveira, relator do Anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal em trâmite, manifesta-se em sentido contrário à existência do recurso de ofício. O autor ressalta que apesar do Código de Processo Penal adotar a referência, as revisões das decisões só poderiam ocorrer mediante o reexame necessário, pois para que existisse recurso de ofício o juiz deveria gozar da prerrogativa de iniciativa penal.
“Antes de qualquer outra consideração, cumpre distinguir: embora o Código de Processo Penal faça referência ao recurso de ofício, a revisão das decisões a ele submetidas somente será possível pela via do reexame necessário. Para que houvesse recurso (e, então, de ofício), seria necessário atribuir-se ao juiz iniciativa penal, o que não mais ocorre em nosso ordenamento”. (OLIVEIRA, 2009, p. 779).
Seguindo essa trilha, Tourinho Filho traz a pedra de toque que origina a interposição de um recurso, qual seja, o inconformismo da parte, advindo do fato de que o recurso é o meio processual manejado pela parte sucumbente, pois é cediço que inexistindo sucumbência, inexiste interesse de recorrer. Sob essa perspectiva, o recurso de ofício não passaria de providência administrativa, posto que o juiz nem é parte, nem tampouco quer ter sua decisão reformada.
Qual seria a natureza desse recurso? Sabe-se que o recurso é o resultado de um inconformismo e pressupõe um prejuízo. A parte vencida, não se conformando com a decisão que lhe foi desfavorável, pede o seu reexame. Assim, na justa observação de Alcides de Mendonça Lima, o recurso necessário não pode ser considerado como tal, pois o Juiz que tem o dever de recorrer de ofício, não haveria de ficar inconformado com a sua própria decisão. (…) Ademais, quando alguém recorre, evidentemente há de desejar seja o seu recurso provido. No ex officio dá-se exatamente o contrário: o Juiz quer que sua decisão seja mantida, donde decorre que o recurso ex officio, tecnicamente, não é um recurso, visto não ser interposto por quem tenha interesse na reforma da decisão. Trata-se de providência administrativa visando acautelar determinados interesses tutelados pelas leis que o admitem”. (TOURINHO FILHO, 2005, p. 309).
A corroborar os ensinamentos do precitado processualista, Ada Pelegrinni em obra conjunta com Gomes Filho e Antônio Scarance, leciona que o recurso de ofício não possui natureza de recurso e sim de condição de eficácia da decisão:
“Na terminologia do Código de Processo Penal, os recursos podem ser voluntários ou interpostos de ofício (arts. 571 e 746). No entanto, é da própria natureza do recurso a interposição voluntária. O denominado recurso de ofício, ou obrigatório, não guarda natureza de recurso, mas sim de condição de eficácia da decisão, que só transita em julgado após a confirmação no grau superior; se neste houver reforma, a última decisão substituirá a primeira, passando em julgado. Daí a razão da remessa de ofício, pelo próprio julgador ao tribunal ad quem.” (GRINNOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2009, pp. 221/222).
Nesse sentido, também ensinam Guilherme de Sousa Nucci, Nestor Távora, Rosmar Rodrigues Alencar e Paulo Rangel:
“Trata-se de terminologia equivocada do Código de Processo Penal, uma vez que recurso é demonstração de inconformismo, visando à reforma do julgado, motivo pelo qual não tem cabimento sustentar que o juiz, ao decidir qualquer questão “recorre” de ofício do seu próprio julgado. Dessa forma, o correto é visualizar na hipótese do art. 574, I, do Código de Processo Penal o duplo grau de jurisdição ou reexame necessário.” (NUCCI, 2009, p. 854).
“Na realidade, o CPP denomina de recurso o que, em sua essência, não o é: o chamado “recurso de ofício” é melhor explicado como um reexame necessário ou “remessa obrigatória”, não sendo adequada a expressão “recurso não voluntário”. De fato, o que se tem apelidado equivocadamente de recurso de ofício nada mais é do que uma condição sem a qual a decisão não transita em julgado, ou seja, o magistrado, ao proferir a decisão, tem que submetê-la obrigatoriamente a uma reapreciação do tribunal, mesmo que as partes não recorram. Se não o fizer, o julgamento fica em aberto, sem que se opere a coisa julgada, por falta do implemento da condição legal (reexame necessário).” (TÁVORA; ALENCAR, 2010, p. 827)
“A conclusão a que chegamos é que o chamado recurso de ofício ou necessário (art. 574, I, CPP, pois o inciso II foi revogado, expressamente, pela Lei 11.719/2008), para quem o admite em vigor (defendemos a não recepção dele pela Constituição), tem a natureza de uma condição. Ou seja, condição de eficácia da decisão. Enquanto o órgão jurisdicional superior (juízo ad quem) não apreciar a decisão, a mesma não produz seus regulares efeitos. Trata-se de uma condição suspensiva (cf. Código Civil – arts. 121 a 130 – Lei nº 10.406/02)”. (RANGEL, 2009, p. 803)
Especificamente sobre a matéria, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 423, assim enunciada: “não transita em julgado a sentença por haver omitido o recurso ex officio, que se considera interposto de ofício“.
O enunciado sumular supracitado originou-se dos seguintes precedentes: RE 28977 (publicação: DJ de 9/4/1959; RE 38638 (publicações: DJ de 23/4/1959, RTJ 28/192); RE 43405 (publicações: DJ de 15/10/1959, RTJ 11/214); RE 43927 (publicações: DJ de 14/1/1960, RTJ 12/195); RE 42780 (publicação: DJ de 14/12/1960); RE 47584 (publicações: DJ de 9/8/1962, RTJ 25/189) e AI 26546 (publicações: DJ de 18/10/1962, RTJ 23/169).
Dessa forma, procedendo à análise do inteiro teor dos acórdãos, verifica-se que não há um tecnicismo quanto à denominação do instituto. Todavia, o enunciado sumular deixa clara a real função do recurso de ofício.
Nessa tessitura, sobreleva transcrever trecho do acórdão do Recurso Extraordinário 47584, da relatoria do Ministro Luiz Gallotti:
“E, como temos decidido, não está sujeito a prazo nem depende de interposição, pois, imposto pela lei, dele deve conhecer sempre o Tribunal de segunda instância, em qualquer tempo que os autos lhe cheguem, uma vez que seu pronunciamento é condição de exeqüibilidade para a sentença.” (BRASIL, 2011a).
Partindo desses pressupostos, há de se observar que a melhor doutrina entende o recurso de ofício, como condição de validade da decisão, descartando a malograda discussão a respeito da sua classificação como espécie de recurso obrigatório.
Com efeito, essa apreensão da natureza não recursal do recurso de ofício é a que mais se adéqua a interpretação sistemática da teoria geral dos recursos, vez que alia os aspectos de voluntariedade e sucumbência, e desemboca no interesse em recorrer – pressuposto intrínseco dos recursos.
4. DA INCOMPATIBILIDADE DO RECURSO DE OFÍCIO COM O ART. 129, I, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
A Constituição Federal de 1988 proclamou a legitimidade do Ministério Público para propor ação penal pública, o que impulsionou questionamentos acerca de o recurso ex officio não ter sido recepcionado.
Nessa linha, Mirabete pontifica:
“Em princípio, toda ação penal é pública, pois é ela um direito subjetivo perante o Estado-Juiz. A distinção que se faz de ação pública e ação privada se estabelece em razão da legitimidade para agir; se é promovida pelo próprio Estado-Administração, por intermédio do Ministério Público, é ela ação penal pública; se a lei defere o direito de agir à vítima, é ação penal privada. Na distinção com relação ao sujeito do exercício do direito à Jurisdição, a ação penal pública é promovida pelo Ministério Público. Esse princípio foi inscrito na nova Constituição, que prevê como função institucional da instituição promover, privativamente, ação penal pública, na forma da lei (art. 129, I). Com tal dispositivo aboliu-se a possibilidade do procedimento ex officio, em que a titularidade era conferida ao próprio julgador ou à autoridade policial […].” (MIRABETE, 1996, pp. 112/113).
Ao apreciar a matéria, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus 74714, da lavra do Ministro Maurício Correia, assentou que o recurso de ofício não foi “revogado” pelo art. 129, I, da Constituição, por não ter natureza de recurso no sentido próprio e técnico da palavra.
“HABEAS-CORPUS. CRIME DE HOMICÍDIO QUALIFICADO. RECURSO EX-OFFICIO: ALEGAÇÃO DE QUE NÃO MAIS EXISTE NO ORDENAMENTO JURÍDICO, PREVISTO PARA A DECISÃO QUE ABSOLVE SUMARIAMENTE O RÉU (CPP, ARTS. 411 E 574, II), POR TER SIDO REVOGADO PELO ART. 129, I, DA CONSTITUIÇÃO. 1. O impropriamente denominado “recurso ex-offício” não foi revogado pelo art. 129, I, da Constituição, que atribui ao Ministério Público a função de promover, privativamente, a ação penal, e, por extensão, a de recorrer nas mesmas ações. 2. A pesquisa da natureza jurídica do que se contém sob a expressão “recurso ex-offício” revela que se trata, na verdade, de decisão que o legislador submete a duplo grau de jurisdição, e não de recurso no sentido próprio e técnico. 3. Habeas-corpus conhecido, mas indeferido.” (BRASIL, 2011b)
Em consonância com o julgado supramencionado, destaca-se a decisão da Sexta Turma do Colendo Superior Tribunal de Justiça, em acórdão da relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura:
“RESP. ABSOLVIÇÃO. INIMPUTABILIDADE. REEXAME NECESSÁRIO. ACÓRDÃO QUE NÃO CONHECE DO RECURSO DE OFÍCIO. PROCEDIMENTO QUE NÃO FOI REVOGADO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. O denominado recurso de ofício previsto no art. 574 do Código de Processo Penal, por ser mero procedimento para conferir o efeito da coisa julgada, e não recurso propriamente dito, não restou revogado pela nova ordem constitucional, que confere ao ministério público a titularidade exclusiva da ação penal pública. Recurso provido para cassar o acórdão recorrido e determinar o julgamento do mérito do recurso encaminhado ex officio.” (BRASIL, 2011c).
Em sentido diverso, a 2ª Câmara Criminal do E. Tribunal de Justiça do Estado do Ceará se manifestou pela impossibilidade de coexistência do recurso de ofício com o atual sistema constitucional.
“PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO DE OFÍCIO. NÃO CONHECIMENTO. FUNÇÃO INSTITUCIONAL PRIVATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. EXEGESE DO ART. 129, I, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. Impossível a coexistência do recurso ex officio com o vigente sistema constitucional, o qual estabelece ser função privativa do Ministério Público a promoção da ação penal pública com os recursos a ela inerentes. Destarte, entendem-se revogados os dispositivos que obrigam ao aludido recurso”. (CEARÁ, 2011).
Contudo, o entendimento exposto nas penas do Desembargador Raimundo Hélio de Paiva Castro, ainda é minoritário, posto se enfatizar que o juiz apenas providencia a subida dos autos, cumprindo uma determinação legal, como bem destaca Nucci:
“Há posição minoritária na doutrina, considerando que o recurso de ofício está revogado pela Constituição Federal de 1988, particularmente pelo disposto no art. 129, I, que atribui, exclusivamente, ao Ministério Público a titularidade da ação penal. Assim, caso o juiz considerasse imposto um recurso, sem haver qualquer requerimento das partes, estaria agindo de ofício e movimentando a ação penal, valendo-se de ilegítima iniciativa. Não nos parece seja assim, pois o que o magistrado faz, ao determinar o processamento de um recurso de ofício, nada mais é do que submeter a questão, cuidada de modo particular pelo legislador, ao duplo grau de jurisdição obrigatório. Não está questionando sua própria decisão, mas apenas cumprindo a lei. Esta, em última análise, considera interposto um recurso. O juiz nada mais faz que providenciar que os autos subam à instância superior.” (NUCCI, 2009, p. 854).
Paulo Rangel, utilizando outros preceitos, é incisivo ao afirmar que o art. 574 do Código de Processo Penal foi revogado pelo aspecto histórico e político dos recursos e não pela redação do art. 129, I, da Constituição, explicitando sua teoria nos seguintes argumentos:
“A uma, o recurso necessário (cf. arts. 574 do CPP c/c parágrafo único do art. 475 do CPC) não é tecnicamente um recurso, pois este pressupõe (…) a vontade de recorrer que o juiz não tem.
A duas, o recurso somente poderá ser interposto pelas partes, e o juiz não o é. O juiz é um sujeito processual, tal como o autor e o réu. Portanto, o juiz não tem legitimidade para recorrer porque não é parte.
A três, o recurso exige interesse (…) na reforma e na modificação da decisão (cf. parágrafo único do art. 577), sem o qual não será conhecido, ou seja, não passa de no juízo de prelibação.
A quatro, pelo princípio dispositivo, ou da iniciativa das partes, a lei não poderia obrigar alguém a litigar em juízo. Assim, a parte não poderia ser obrigada a interpor recurso e, óbvio, o juiz, não sendo parte, não poderia ser obrigado a fazer algo em nome daquela.” (RANGEL, 2009, pp. 802/803).
Esposados esses fundamentos, parece subsistir razão, tanto a concepção que entende o instituto do “recurso de ofício” não ter sido recepcionado pela Constituição de 1988, quanto no que concerne a idéia, exarada por Paulo Rangel, de incompatibilidade com a sistemática dos recursos, mormente se considerado que o processo penal não mais se reveste de caráter inquisitorial, distanciando-se, nessa via, do preceito que inspirou sua concepção.
Emerge, então, que sob o enfoque de um sistema penal garantista, submeter a decisão que beneficia o réu a avaliação/ratificação por um segundo juízo, não se coaduna com o interesse público. Ao revés, impõe uma condição descabida a uma decisão plenamente válida e apta a produzir efeitos.
Por essa razão, pertinente registrar que a Comissão responsável pelo Anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal pretende retirar do sistema processual penal, o instituto em análise, passando, todo e qualquer recurso, a depender da iniciativa da parte que se sentir prejudicada com a decisão.
5. CONCLUSÃO
Ante as discussões aqui abordadas, não se pode tergiversar acerca da impropriedade do termo recurso de ofício para designar a hipótese em que é obrigatória a submissão de certa decisão à revisão por outro órgão judicante, posto inexistir os requisitos indispensáveis para tal caracterização, tratando-se de condição de validade da sentença, conforme sumulado pelo Supremo Tribunal Federal.
No mais, além de não se tratar tecnicamente de recurso, verificou-se também a incompatibilidade do instituto com o sistema processual penal vigente, diante da superveniência do art. 129, I, da Constituição Cidadã e dos desdobramentos históricos e políticos dos recursos.
Desse modo, a proposta de retirada da previsão do recurso de ofício do Código de Processo Penal é a decisão mais consentânea com o sistema penal em vigor, por não impor ao acusado a dupla revisão das decisões, por impulso do próprio magistrado do feito.
Informações Sobre os Autores
Ilanna Sousa dos Praseres
Graduada em Direito pelo Centro Universitário do Maranhão – UNICEUMA. Pesquisadora do Núcleo de Estudos do Estado, Segurança Pública e Sociedade – NEESS, vinculado à Coordenadoria Geral do Curso de Direito do UNICEUMA. Assessora jurídica. Associada à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Rodrigo José Aires Almeida
Especialista em Ciências Criminais pela Universidade da Amazônia (UNAMA). Professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e do Centro Universitário do Maranhão (UNICEUMA). Advogado.