Resumo: Em uma primeira plana, a fim de sedimentar conceitos essenciais para a compreensão do instituto em destaque, revela-se imperioso compreender a acepção de pessoa jurídica, a partir das concepções estruturadas tanto pela legislação como pela doutrina. Pois bem, impende assinalar que a pessoa jurídica é descrita como uma ficção jurídica, estruturadas pela legislação com o escopo de suprir a inquietação humana. Denota-se, desse modo, que os sócios da pessoa jurídica, com personalidade diversa da natural, passam a atuar no mundo dos negócios. Verifica-se que a personalidade da pessoa jurídica afigura-se como verdadeiro escudo, que oculta os protagonistas das relações jurídicas. Logo, no ordenamento jurídico pátrio, há duas espécies de pessoas: a pessoa natural do sócio e a pessoa jurídica. Ao lado disso, há que se assinalar que, em razão da distinção supra, se desfralda como flâmula orientadora o princípio da separação patrimonial entre os bens do sócio e os bens da sociedade, o qual tem como fito precípuo traçar linhas limitadoras no que concerne à responsabilidade do sócio, resguardando, por conseguinte, o patrimônio pessoal de eventuais intempéries. Nesta linha, o presente debruça-se sobre a análise, a partir do entendimento do Tribunal Superior do Trabalho, acerca da extensão da desconsideração da personalidade jurídica, sobretudo diante de reconhecimento de bem de família dos sócios-proprietários e concreção do direito à moradia contido no artigo 6º da Constituição Federal.
Palavras-chaves: Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica. Consolidação das Leis Trabalhistas. Bem de Família. Direito à Moradia.
Sumário: 1 Comentários Introdutórios: Notas ao Aspecto de Mutabilidade da Ciência Jurídica; 2 A Valoração dos Princípios: A Influência do Pós-Positivismo na Aplicação do Ordenamento Brasileiro; 3 Bem de Família Legal: Proteção e Salvaguarda do Direito à Moradia; 4 A Desconsideração da Personalidade Jurídica no Código Civil; 5 Redimensionamento da Desconsideração da Personalidade Jurídica em prol da preservação do direito à moradia do Bem de Família: Singelo Painel à luz do Tribunal Superior do Trabalho
1 Comentários Introdutórios: Ponderações ao Característico de Mutabilidade da Ciência Jurídica
Em sede de comentários inaugurais, ao se dispensar uma análise robusta sobre o tema colocado em debate, mister se faz evidenciar que a Ciência Jurídica, enquanto conjunto plural e multifacetado de arcabouço doutrinário e técnico, assim como as pujantes ramificações que a integra, reclama uma interpretação alicerçada nos múltiplos peculiares característicos modificadores que passaram a influir em sua estruturação. Neste diapasão, trazendo a lume os aspectos de mutabilidade que passaram a orientar o Direito, tornou-se imperioso salientar, com ênfase, que não mais subsiste uma visão arrimada em preceitos estagnados e estanques, alheios às necessidades e às diversidades sociais que passaram a contornar os Ordenamentos Jurídicos. Ora, em razão do burilado, infere-se que não mais prospera a ótica de imutabilidade que outrora sedimentava a aplicação das leis, sendo, em decorrência dos anseios da população, suplantados em uma nova sistemática. É verificável, desta sorte, que os valores adotados pela coletividade, tal como os proeminentes cenários apresentados com a evolução da sociedade, passam a figurar como elementos que influenciam a confecção e aplicação das normas.
Com escora em tais premissas, cuida hastear como pavilhão de interpretação o “prisma de avaliação o brocardo jurídico 'Ubi societas, ibi jus', ou seja, 'Onde está a sociedade, está o Direito', tornando explícita e cristalina a relação de interdependência que esse binômio mantém”[1]. Deste modo, com clareza solar, denota-se que há uma interação consolidada na mútua dependência, já que o primeiro tem suas balizas fincadas no constante processo de evolução da sociedade, com o fito de que seus Diplomas Legislativos e institutos não fiquem inquinados de inaptidão e arcaísmo, em total descompasso com a realidade vigente. A segunda, por sua vez, apresenta estrutural dependência das regras consolidadas pelo Ordenamento Pátrio, cujo escopo fundamental está assentado em assegurar que inexista a difusão da prática da vingança privada, afastando, por extensão, qualquer ranço que rememore priscas eras, nas quais o homem valorizava os aspectos estruturantes da Lei de Talião (“Olho por olho, dente por dente”), bem como para evitar que se robusteça um cenário caótico no seio da coletividade.
Afora isso, volvendo a análise do tema para o cenário pátrio, é possível evidenciar que com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, imprescindível se fez adotá-la como maciço axioma de sustentação do Ordenamento Brasileiro, primacialmente quando se objetiva a amoldagem do texto legal, genérico e abstrato, aos complexos anseios e múltiplas necessidades que influenciam a realidade contemporânea. Ao lado disso, há que se citar o voto magistral voto proferido pelo Ministro Eros Grau, ao apreciar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF, “o direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[2]. Como bem pontuado, o fascínio da Ciência Jurídica jaz justamente na constante e imprescindível mutabilidade que apresenta, decorrente do dinamismo que reverbera na sociedade e orienta a aplicação dos Diplomas Legais.
Ainda nesta senda de exame, pode-se evidenciar que a concepção pós-positivista que passou a permear o Direito, ofertou, por via de consequência, uma rotunda independência dos estudiosos e profissionais da Ciência Jurídica. Aliás, há que se citar o entendimento de Verdan, “esta doutrina é o ponto culminante de uma progressiva evolução acerca do valor atribuído aos princípios em face da legislação”[3]. Destarte, a partir de uma análise profunda de sustentáculos, infere-se que o ponto central da corrente pós-positivista cinge-se à valoração da robusta tábua principiológica que Direito e, por conseguinte, o arcabouço normativo passando a figurar, nesta tela, como normas de cunho vinculante, flâmulas hasteadas a serem adotadas na aplicação e interpretação do conteúdo das leis.
2 A Valoração dos Princípios: A Influência do Pós-Positivismo no Ordenamento Brasileiro
Ab initio, tendo como pilares de apoio as lições apresentadas por Marquesi[4] que, com substancial pertinência, dicciona que os postulados e dogmas se afiguram como a gênese, o ponto de partida ou mesmo o primeiro momento da existência de algo. Nesta trilha, há que se gizar, com bastante ênfase, que os princípios se apresentam como verdades fundamentais, que suportam ou asseguram a certeza de uma gama de juízos e valores que norteiam as aplicações das normas diante da situação concreta, adequando o texto frio, abstrato e genérico às nuances e particularidades apresentadas pela interação do ser humano. Objetiva, por conseguinte, com a valoração dos princípios vedar a exacerbação errônea do texto da lei, conferindo-lhe dinamicidade ao apreciar as questões.
Com supedâneo em tais ideários, salientar se faz patente que os dogmas, valorados pelas linhas do pós-positivismo, são responsáveis por fundar o Ordenamento Jurídico e atuar como normas vinculantes, verdadeiras flâmulas desfraldadas na interpretação do Ordenamento Jurídico. Desta sorte, insta obtemperar que “conhecê-los é penetrar o âmago da realidade jurídica. Toda sociedade politicamente organizada baseia-se numa tábua principiológica, que varia segundo se altera e evolui a cultura e modo de pensar”[5]. Ao lado disso, em razão do aspecto essencial que apresentam, os preceitos podem variar, de maneira robusta, adequando-se à realidade vigorante em cada Estado, ou seja, os corolários são resultantes dos anseios sagrados em cada população. Entrementes, o que assegura a característica fundante dos axiomas é o fato de estarem alicerçados em cânones positivados pelos representantes da nação ou de regra costumeira, que foi democraticamente aderida pela população.
Nesta senda, os dogmas que são salvaguardados pela Ciência Jurídica passam a ser erigidos à condição de elementos que compreendem em seu bojo oferta de uma abrangência mais versátil, contemplando, de maneira singular, as múltiplas espécies normativas que integram o ordenamento pátrio. Ao lado do apresentado, com fortes cores e traços grosso, há que se evidenciar que tais mandamentos passam a figurar como super-normas, isto é, “preceitos que exprimem valor e, por tal fato, são como pontos de referências para as demais, que desdobram de seu conteúdo”[6]. Os corolários passam a figurar como verdadeiros pilares sobre os quais o arcabouço teórico que compõe o Direito se estrutura, segundo a brilhante exposição de Tovar[7]. Com efeito, essa concepção deve ser estendida a interpretação das normas que integram ao ramo Civilista da Ciência Jurídica, mormente o Direito das Famílias e o aspecto afetivo contido nas relações firmadas entre os indivíduos.
Em decorrência de tais lições, destacar é crucial que o Código de 2002 deve ser interpretado a partir de uma luz emanada pelos valores de maciça relevância para a Constituição Federal de 1988. Isto é, cabe ao Arquiteto do Direito observar, de forma imperiosa, a tábua principiológica, considerada como essencial e exaltada como fundamental dentro da Carta Magna do Estado Brasileiro, ao aplicar a legislação abstrata ao caso concreto. A exemplo de tal afirmativa, pode-se citar tábua principiológica que orienta a interpretação das normas atinentes ao Direito das Famílias. Com o alicerce no pontuado, salta aos olhos a necessidade de desnudar tal assunto, com o intento de afasta qualquer possível desmistificação, com o fito primordial de substancializar um entendimento mais robusto acerca do tema.
3 Bem de Família Legal: Proteção e Salvaguarda do Direito à Moradia
Em uma acepção inaugural, o bem de família instituído no Ordenamento Pátrio, por meio da Lei Nº. 8.009, de 29 de Março de 1990[8], que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família, isenta o imóvel destinado ao domicílio da família do devedor, isentando-o das consequências de execução por dívidas de natureza civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de qualquer outra natureza, como bem entalha o artigo 1º do Diploma supra. Cuida anotar que a impenhorabilidade será afastada quando incidir uma das exceções albergadas no artigo 3º da referida lei, porquanto a “finalidade do instituto do bem de família proteger o direito de propriedade que serve de abrigo para a família, não no propósito de abrigar o mal pagador”[9], equilibrando, por conseguinte, o processo executivo.
Nesse passo, há que ponderar que a impenhorabilidade compreende, o imóvel sobre o qual é erigida a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, incluindo-se em tal acepção os profissionais, ou ainda os móveis que integram a residência, desde que se encontrem devidamente quitados. Conforme lecionam os doutrinadores Tartuce e Simão, “o bem de família pode ser conceituado como o imóvel utilizado como residência da entidade familiar, decorrente de casamento, união estável, entidade monoparental ou outra manifestação familiar”[10], recebendo, em razão de sua essência, proteção legal específica. Nesta esteira, cuida anotar que o instituto em tela compreende duas espécies, a saber: o bem de família convencional ou voluntário, cuja previsão se encontra positivada no Código Civil, e o bem de família legal, que encontra descanso na Lei Nº. 8.009/1990.
No que concerne à natureza jurídica, o bem de família é considerada como uma forma de afetação de bens a um destino especial, tal seja: assegurar a dignidade humana dos integrantes do núcleo familiar. Deste modo, “protege-se o bem que abriga a família com o escopo de garantir a sua sobrevivência digna, reconhecida a necessidade de um mínimo existencial de patrimônio, para a realização da justiça social”[11]. Assim, a natureza jurídica do bem de família se deita, justamente, em assegurar a promoção da dignidade da pessoa humana, por meio da manutenção do mínimo patrimonial inerente ao desenvolvimento de seus integrantes.
A Constituição Cidadã cuidou de salvaguardar especial proteção estatal à família, erigindo pilares robustos a serem observados, notadamente os constantes do artigo 226. Ainda neste sedimento, a moradia passou afigurar como um direito social considerado como prioritário e de dignificação mínima do indivíduo, vez que a casa é descrita como asilo inviolável do cidadão. “A moradia como expressão e garantia constitucional da dignidade humana, passou a ter valor maior e sobreposto ao direito meramente patrimonial”[12]. A Lei Nº. 8.009/1990 trouxe a lume o bem de família legal, cuja proteção estatuída é a impenhorabilidade, independente da vontade do titular. Ao lado disso, há que se colacionar o seguinte aresto:
“Ementa: Processo Civil. Direito Civil. Execução. Lei 8.009/90. Penhora de Bem de Família. Devedor não residente em virtude de usufruto vitalício do imóvel em benefício de sua genitora. Direito à moradia como direito fundamental. Dignidade da Pessoa Humana. Estatuto do Idoso. Impenhorabilidade do Imóvel. 1. A Lei 8.009/1990 institui a impenhorabilidade do bem de família como um dos instrumentos de tutela do direito constitucional fundamental à moradia e, portanto, indispensável à composição de um mínimo existencial para vida digna, sendo certo que o princípio da dignidade da pessoa humana constitui-se em um dos baluartes da República Federativa do Brasil (art. 1º da CF/1988), razão pela qual deve nortear a exegese das normas jurídicas, mormente aquelas relacionadas a direito fundamental. 2. A Carta Política, no capítulo VII, intitulado "Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso", preconizou especial proteção ao idoso, incumbindo desse mister a sociedade, o Estado e a própria família, o que foi regulamentado pela Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), que consagra ao idoso a condição de sujeito de todos os direitos fundamentais, conferindo-lhe expectativa de moradia digna no seio da família natural, e situando o idoso, por conseguinte, como parte integrante dessa família. 3. O caso sob análise encarta a peculiaridade de a genitora do proprietário residir no imóvel, na condição de usufrutuária vitalícia, e aquele, por tal razão, habita com sua família imóvel alugado. Forçoso concluir, então, que a Constituição Federal alçou o direito à moradia à condição de desdobramento da própria dignidade humana, razão pela qual, quer por considerar que a genitora do recorrido é membro dessa entidade familiar, quer por vislumbrar que o amparo à mãe idosa é razão mais do que suficiente para justificar o fato de que o nu-proprietário habita imóvel alugado com sua família direta, ressoa estreme de dúvidas que o seu único bem imóvel faz jus à proteção conferida pela Lei 8.009/1990. 4. Ademais, no caso ora sob análise, o Tribunal de origem, com ampla cognição fático-probatória, entendeu pela impenhorabilidade do bem litigioso, consignando a inexistência de propriedade sobre outros imóveis. Infirmar tal decisão implicaria o revolvimento de fatos e provas, o que é defeso a esta Corte ante o teor da Súmula 7 do STJ. 5. Recurso especial não provido”. (Superior Tribunal de Justiça – Quarta Turma/ REsp 950.663/SC/ Relator Ministro Luis Felipe Salomão/ Julgado em 10.04.2012/ Publicado no DJe em 23.04.2012)
Neste compasso, o artigo 1º do referido texto legal, seguindo a esteira da nova ordem jurídica inaugurada pela Carta da República de 1988, passou a conferir proteção à moradia da célula familiar, que compreende o casamento, união estável e família monoparental. Neste sentido, inclusive, “se a proteção do bem visa atender à família, e não apenas ao devedor, deve-se concluir que este não poderá, por ato processual individual e isolado, renunciar à proteção, outorgada por lei em norma de ordem pública, a toda a entidade familiar”[13]. Em ocorrendo a situação de possuir o proprietário mais de um imóvel, será considerado como bem de família aquele de menor valor, ainda que o núcleo familiar resida no imóvel mais valioso. O bem de família, enquanto uma propriedade destinada à moradia da pessoa ou de um grupo familiar, tem sua origem na função social, conquanto não se trate de um direito absoluto, eis que pode conflitar com outros direitos que orbitem em mesmo dimensão existencial. Além disso, a proteção de impenhorabilidade acinzelada no Diploma aludido algures amplia o rol de bens apresentados nos artigos 649 e 650, ambos do Código de Processo Civil, com o fito de salvaguardar a moradia familiar. “A lei deve ser entendida de forma consentânea com a realidade viva, presente, obstando interpretações dissonantes do nosso tempo e espaços atuais”[14].
Há que se salientar, neste giro, que a realidade social é a mola propulsora da constante mutabilidade das normas jurídicas, tendo por elementos valoradores o processo histórico e cultural, como também os fatos concretos, decorrente da evolução da sociedade, que ofertam o fértil substrato e contribuem para a sua formulação. Nesta trilha, cogente se faz lançar mão das prodigiosas ponderações apresentadas por Eros Grau, em especial, quando destaca que “o direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[15].
Conforme espanca o artigo 1º da Lei Nº 8.009, de 29 de março de 1990[16], a impenhorabilidade legal do bem de família não alcança apenas o imóvel, mas também contempla suas construções, plantações, benfeitorias de qualquer natureza e os equipamentos, incluindo-se os profissionais, além de encampar os móveis e utensílios que guarnecem o lar, desde que estejam devidamente quitados. De outra banda, não usufruem do véu da impenhorabilidade, em consonância com as disposições emanadas pelo artigo 2º do referido diploma, os veículos destinados ao transporte, obras de arte e adornos suntuosos, os quais serão passíveis de penhora, a fim de assegurar o pagamento das dívidas do titular. Neste sentido, cuida trazer à colação o aresto proveniente do STJ que firmou entendimento que:
“[…] sob a cobertura de precedentes desta Corte que consideram bem de família aparelho de televisão, videocassete e aparelhos de som, tidos como equipamentos que podem ser mantidos usualmente por suas características. A bicicleta, porém, não é bem de família, sendo meio de transporte, mais bem situado na vedação do art. 2º da Lei Nº. 8.009/90 […]” (Superior Tribunal de Justiça – Terceira Turma/ REsp Nº 82.067/SP/ Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito/ Julgado em 26.06.1997) (sublinhei).
No que concerne à locução “adornos suntuosos”, realçar se faz necessário que a impenhorabilidade alcança tão-somente os bens indispensáveis à moradia, bem como aqueles que, hodiernamente, integram uma residência. Farias e Rosenvald[17] apregoam que o entendimento jurisprudencial empregou uma interpretação elástica ao analisar o alcance do véu da impenhorabilidade, notadamente em relação aos objetos imprescindíveis à promoção da dignidade da pessoa humana na contemporaneidade, de maneira a adequar a vida humana às novas exigências sociais. Quadra anotar que, em havendo diversos utilitários da mesma espécie, a impenhorabilidade incidirá apenas em uma unidade de cada bem, sendo plenamente possível a penhora sobre os que excederem.
Doutra forma, obstado será a extensão do manto da impenhorabilidade sobre os bens que não guarneçam a residência, cuja destinação se assenta na exploração econômica. Igualmente, com o advento da Lei Nº. 11.382/2006, que introduziu maciças alterações no Código de Processo Civil, tornou-se possível a promoção da penhora dos utensílios e bens que guarneçam o imóvel, desde que sejam de elevado valor ou ainda exasperem o que é tido como necessário para a manutenção de um padrão médio de vida. Ora, neste ponto, há que se reconhecer a substancialização do patrimônio mínimo, tendo a lei desfraldado o pavilhão de que tão somente o que é necessário para viver de forma digna deve ser resguardado por meio da impenhorabilidade. Logo, afiguraria como verdadeiro contrassenso legal admitir que o manto constante da Lei Nº. 8.009/1990[18], com fito rotundo, se destine a acampar bens supérfluos.
Nesse alamiré, fato é que se a pessoa humana do devedor reclama proteção mínima, capital para assegurar a sua dignidade, não menos certeiro é que o credor também merece proteção, de maneira a resguardar a sua própria dignidade. Ao lado do expendido, há se anotar que o fito primevo do Ordenamento Pátrio é dispensar proteção aos bens do devedor naquilo que se apresentar como imprescindível para resguardar sua vida digna, não estando, por consequência, abarcado aquilo que exasperar a um padrão médio de vida. Por óbvio, tão só diante do caso concreto é que poderá aferir o padrão médio de cada indivíduo, havendo, naturalmente, variações de um devedor para o outro, assim como de um lugar para o outro. Ademais, exige ponderação algumas situações específicas que também serão agasalhadas pela impenhorabilidade legal, a saber: a) a posse do imóvel residencial, na situação em que o possuidor revelar que o bem possuído é bem de família, estando, igualmente, acobertado pela proteção; b) o imóvel em construção, cômpar, é impenhorável, uma vez que é considerado antecipadamente bem de família, seguindo a trilha de precedentes jurisprudenciais consolidados pelos Tribunais pátrios; c) “a garagem, uma vez que integra – como qualquer outra parte, a unidade habitacional, salvo quando considerada autonomamente”[19], consoante interpretação dada pelo STJ, sendo admissível sua penhora quando individualizada, como unidade autônoma, no competente Registro de Imóveis. Outrossim, os apartamentos unificados deverão ser considerados como bem de família, desde que haja prévia demonstração da utilização conjunta por um único grupamento familiar, como bem assinalou Credie[20].
4 A Desconsideração da Personalidade Jurídica no Código Civil
Tendo por sedimento as ponderações aduzidas, é possível assinalar que, em decorrência da grande independência e autonomia, devido à exclusão da responsabilidade dos sócios, a pessoa jurídica, por vezes, tem-se desviado de seus corolários e fitos, cometendo fraudes e atos eivados de desonestidade, provocando, por conseguinte, reações legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais, que objetivam coibir tais abusos, desconsiderando a sua personalidade jurídica. Nesta linha de exposição, pode-se salientar que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ou ainda teoria da penetração, também denominada de disregard theory, surgiu com o escopo primevo de coibir os abusos praticados pelos agentes que, cobrindo-se com o véu proporcionado pelo princípio da separação patrimonial. Tratava-se de situação em que se tornava impossível o ressarcimento de prejuízos ocasionados a terceiros, em razão de atos ilícitos praticados pelos controladores das pessoas jurídicas, ou ainda pelo simples esvaziamento de bens do patrimônio de suas sociedade que garantissem o pagamento das dívidas sociais.
Quadra colocar em destaque que a legislação pátria, ressoando a paulatina construção da teoria em testilha, bem como aprimorando a acepção atribuída pelo revogado Código Civil de 1916, estabeleceu este expediente repressivo à má utilização do ente moral, partindo do pressuposto da autonomia da pessoa jurídica diante a personalidade e patrimônio distintos dos membros que a integram. Sob essa inspiração é que se abriu a possibilidade do órgão judicante desconsiderar a personalidade jurídica quando esta se desviar de suas finalidades e também quando houver confusão patrimonial de bens dos sócios e de bem da pessoa jurídica, a fim de que a responsabilidade advinda desses atos negociais obscuros seja atribuída aos sócios ou administradores que deverão responder pela malversação com seus bens particulares.
Cogente se faz sublinhar que a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica não visa a anulação da personalidade jurídica, mas somente objetiva desconsiderar a pessoa jurídica no caso concreto, dentro de seus limites, em relação às pessoas e aos bens que atrás dela se escondem. “É caso de declaração especial da personalidade jurídica para determinados efeitos, prosseguindo, todavia, a mesma incólume para seus outros fins legítimos”[21]. O Código Civil de 2002, em seu artigo 50, aprimorando o artigo 20 do Diploma Civilista revogado, consagrou a Teoria Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica. Para tanto, há que se citar a redação do artigo vigente, que assim dicciona:
“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.” (destaquei).
O Enunciado nº. 51 da Jornada de Direito Civil realizada no Superior Tribunal de Justiça assentou sobre a desconsideração tratada no art. 50 do Código Civil: “a Teoria da desconsideração da personalidade jurídica disregard doctrine fica positivada no novo Código Civil, mantidos os parâmetros existentes nos microssistemas legais e na construção jurídica sobre o tema”. E mais: “Só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular e, limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido” (Enunciado n. 7 da Jornada do Superior Tribunal de Justiça).
Em uma acepção conceitual, impende assinalar que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica é conhecida como aquela que concede ao juiz a possibilidade de desconsiderar a autonomia jurídica da personalidade da empresa e da personalidade de seus sócios, desde que a sociedade tenha sido utilizada para escopos ilegais ou ainda que tenham o condão de causar prejuízos a seus credores. Em ocorrendo tal situação, o juiz poderá determinar a constrição sobre os bens dos sócios, a fim de adimplir a dívida da empresa, ou também sobre os bens da empresa para pagar dívidas particulares dos sócios, ou, ainda, sobre bens de uma empresa para pagar dívidas de outra empresa do mesmo grupo. Trata-se do episódico levantamento do véu que distingue a pessoa jurídica das pessoas naturais que a compõem. Sobre o art. 50 do Código Civil de 2002, há que se trazer à colação o comentário de Maria Helena Diniz:
“Desconsideração da pessoa jurídica. […] Por isso o Código Civil pretende que, quando a pessoa jurídica se desviar dos fins determinantes de sua constituição, ou quando houver confusão patrimonial, em razão de abuso da personalidade jurídica, o órgão judicante, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, está autorizado a desconsiderar, episodicamente, a personalidade jurídica, para coibir fraudes de sócios que dela se valeram como escudo, sem importar essa medida numa dissolução da pessoa jurídica. Com isso subsiste o princípio da autonomia subjetiva da pessoa coletiva, distinta da pessoa de seus sócios, mas tal distinção é afastada, provisoriamente, para dado caso concreto, estendendo a responsabilidade negocial aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica” (RT, 786:163, 778:211, 711:117, 614:109, 657:120, 457:141, 342:181, 387:138, 418:213, 484:149, 580:84, 492:216, 511:199, 673:160, 713:138, JB, 147:286, 152:247, 164:294)[22].
Há que se frisar que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica – disregard theory -, pela qual se autoriza o episódico levantamento do véu da sociedade, excepcionando-se o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica em relação aos sócios, é medida que excetua à regra. Muito embora, como regra geral na aplicação da disregard doctrine, parte-se do pressuposto que responde o sócio com seu patrimônio particular pela obrigação da empresa. Embora exista uma regra geral diferenciadora do patrimônio da empresa e o de seus sócios, como titulares de patrimônios diferentes, este princípio da separação patrimonial deve ser superado e ceder em face de circunstâncias especiais e excepcionais.
Obviamente, por necessário, é imperioso assinalar que essas circunstâncias devem ser embasadas em provas robustas de fraude, de prática de atos com finalidade premeditadamente ilícita, de abuso de direito, de desonestidade, se escondendo o sócio sob a máscara societária com o objetivo de desfrutar de seus inegáveis benefícios, ocultando atos contrários a qualquer regra ética, jurídica e social. Saliente-se, por oportuno, que o ente jurídico não pode servir de escudo para frustrar a satisfação do crédito quando presente a hipótese legal que permite a desconsideração de sua personalidade. Nesta linha, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça segue a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, conforme se vislumbra do seguinte acórdão:
“Ementa: Processual civil e civil. Recurso especial. Ação de execução de título judicial. Inexistência de bens de propriedade da empresa executada. Desconsideração da personalidade jurídica. Inviabilidade. Incidência do art. 50 do CC/02. Aplicação da Teoria Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica. […] – A regra geral adotada no ordenamento jurídico brasileiro é aquela prevista no art. 50 do CC/02, que consagra a Teoria Maior da Desconsideração, tanto na sua vertente subjetiva quanto na objetiva . – Salvo em situações excepcionais previstas em leis especiais, somente é possível a desconsideração da personalidade jurídica quando verificado o desvio de finalidade (Teoria Maior Subjetiva da Desconsideração), caracterizado pelo ato intencional dos sócios de fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica, ou quando evidenciada a confusão patrimonial (Teoria Maior Objetiva da Desconsideração), demonstrada pela inexistência, no campo dos fatos, de separação entre o patrimônio da pessoa jurídica e os de seus sócios. Recurso especial provido para afastar a desconsideração da personalidade jurídica da recorrente.” (Superior Tribunal de Justiça – Terceira Turma/ Recurso Especial nº 970.635-SP/ Relatora. Ministra Nancy Andrighi/ Julgado em 10 nov. 2009/ Publicado no DJe 01 dez. 2009).
Pelo Código Civil em vigor, quando restar configurado que a pessoa jurídica se desviou dos fins que estabeleceram sua constituição, em decorrência dos sócios ou administradores a utilizarem para alcançarem o escopo distinto do objetivo societário com o intento de prejudicar outrem ou mesmo fazer uso indevido da finalidade social, ou quando houver confusão patrimonial, ou seja, mistura do patrimônio social com o particular do sócio, que tem o condão de causar dano a terceiro, “em razão de abuso da personalidade jurídica, o magistrado, a pedido do interessado ou do Ministério Público, está autorizado, com base na prova material do dano, a desconsiderar, episodicamente, a personalidade jurídica”[23], com o intuito de coibir fraudes e abusos dos sócios que dela se valeram como defesa, sem que essa medida se desdobre numa dissolução da pessoa jurídica.
Em razão do exposto, denota-se que subsiste o dogma da autonomia subjetiva da pessoa coletiva, não se confundindo com a pessoa de seus sócios, entrementes, tal distinção é rechaçada, ainda que em caráter provisório, em decorrência de uma determinada situação concreta. Verifica-se uma reprimenda pelo uso indevido da personalidade jurídica, por intermédio do desvio de seus objetivos ou ainda confusão patrimonial social, que é destinado para a perpetração de atos abusivos ou ilícitos, afastando-se, por tal fato, a distinção existente entre os bens dos sócios e da pessoa jurídica, admitindo-se, por conseguinte, que os efeitos de cunho patrimonial, relativos a determinadas obrigações, alcancem os bens particulares dos administradores ou, ainda, dos sócios.
Trata-se de situação em que restará materializada a desconsideração da personalidade jurídica, porquanto os bens da pessoa jurídica não bastam para a satisfação das obrigações contraídas, já que a pessoa jurídica não será dissolvida nem objeto de liquidação. A desconsideração da personalidade tem o escopo de transferir a responsabilidade para aqueles que, de modo indevido, utilizaram a sociedade. O Código Civil enumera dois pressupostos em que, em restando configurados, autorizarão a desconsideração da personalidade jurídica, a saber: a fraude e o abuso de direito.
5 Redimensionamento da Desconsideração da Personalidade Jurídica em prol da preservação do direito à moradia do Bem de Família: Singelo Painel à luz do Tribunal Superior do Trabalho
Consoante se verifica nas ponderações aduzidas até o presente momento, é possível constatar que a desconsideração da personalidade jurídica passou a afigurar como instrumento de grande valia no Direito Pátrio. Ao lado disso, cuida anotar que a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), em seu artigo 2º, §2º, alberga a hipótese de desconsideração da personalidade jurídica sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas. Tendo como supedâneo as ponderações ventiladas acima, infere-se que a CLT não apresenta como imprescindível a presença de prova de fraude e nem de abuso para que empresa, do mesmo grupo da empregadora, sejam responsabilizados pelos débitos trabalhistas, sendo considerado como conditio sine qua non que todos integrem o mesmo conglomerado, a fim de que sejam solidariamente responsáveis. Segundo as lições Amador Paes de Almeida:
“[…] nenhum ramo do direito se mostra tão adequado à aplicação da teoria da desconsideração do que o direito do trabalho, até porque os riscos da atividade econômica, na forma da lei, são exclusivos do empregador […] No direito do trabalho a teoria da desconsideração da pessoa jurídica tem sido aplicada pelos juízes de forma ampla, tanto nas hipóteses de abuso de direito, excesso de poder, como em casos de violação da lei ou do contrato, ou, ainda, na ocorrência de meios fraudulentos, e, inclusive, na hipótese, não rara, de insuficiência de bens da empresa, adotando, por via de consequência, a regra disposta no art. 28 do Código de Proteção ao Consumidor”[24].
Consoante se colhe, é possível assinalar que a teoria em comento é aplicada de modo abrangente na ramificação trabalhista do Direito. Ao lado disso, por oportuno, há que se registrar a previsão disposta no art. 2º, §2º, da CLT objetiva tão somente fixar responsabilidade solidária entre as empresas componentes do mesmo grupo econômico para a satisfação das dívidas trabalhistas. Em regra, o descumprimento dos direitos trabalhistas configura o “desvio de finalidade”, conceito legal indeterminado presente no artigo 50 do Código Civil Brasileiro, que permite a desconsideração da pessoa jurídica para que os efeitos de certas e determinadas relações obrigações sejam estendidas aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. Coadunando com o expendido, colhem-se os precedentes jurisprudenciais que acenam no sentido que:
“Ementa: Desconsideração da Personalidade Jurídica da Executada. Responsabilidade pessoal do sócio. O descumprimento dos direitos trabalhistas configure o “desvio da finalidade”, conceito presente no artigo 50 do Código Civil Brasileiro, que permite a desconsideração da pessoa jurídica. Logo, exauridas as tentativas de execução contra a pessoa jurídica, cabe deferir o redirecionamento da execução aos sócios da executada. Apelo a que se nega provimento. (Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região/ Agravo de Petição Nº 0156100-55.1997.5.04.0291/ Relatora: Desembargadora Ana Rosa Pereira Zago Sagrilo/ Julgado em 09.06.2011).
Ementa: Agravo de Petição da Executada. Direcionamento de Execução contra Sócio. Justifica-se o direcionamento da execução contra os sócios da executada, quando exauridas todas as possibilidades de pagamento da dívida, além de ter a empresa encerrado suas atividades sem a satisfação do credor trabalhista. Precedentes. Recurso desprovido.” (Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região/ Agravo de Petição n. 0164400-42.2006.5.04.0662/ Relator: Desembargador Denis Marcelo de Lima Molarinho/ Julgado em 24.09.2009).
Sobre a temática em comento, o Tribunal Superior do Trabalho, em acórdão da lavra da Ministra Kátia Magalhães de Arruda, assentou entendimento no sentiment em que “a desconsideração da personalidade jurídica da empresa executada é matéria regida especificamente pela legislação infraconstitucional, pelo que não há como se constatar violação direta de dispositivos da Constituição Federal”[25]. Verifica-se, a partir do acinzelado que, tal como ocorre no Código de Defesa do Consumidor, a Consolidação das Leis do Trabalho ambiciona ofertar proteção à parte hipossuficiente, no caso o trabalhador/empregado, com vistas alcançar a igualdade entre as partes. Nesta senda, denota-se que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, no âmbito trabalhista, busca amparar a parte hipossuficiente, quando houver o encerramento das atividades sem que haja a satisfação do crédito trabalhista existente.
Em mesmo sentido, inclusive, é possível fazer alusão robusta ao entendimento externado no Agravo de Instrumento em Recuso de Revista nº 125640-94.2007.5.05.0004[26], de relatoria do Ministro Maurício Godinho Delgado, em especial quando dicciona que, na esfera trabalhista, se entende que os bens particulares dos sócios das empresas executadas devem responder pela satisfação dos débitos trabalhistas. Trata-se da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, esta derivada diretamente do caput do artigo 2º da Consolidação das Leis Trabalhistas (empregador como ente empresarial ao invés de pessoa) e do princípio justrabalhista especial da despersonalização da figura jurídica do empregador. Está claro, portanto, que, não obstante a pessoa jurídica se distinga de seus membros, admite a ordem jurídica, em certos casos, a responsabilização do sócio pelas dívidas societárias.
Assim, se é permitido que, na fase de execução, possa o sócio ser incluído na lide para fins de responsabilização pela dívida apurada, com muito mais razão deve-se aceitar sua presença na lide desde a fase de conhecimento, em que poderá se valer mais amplamente do direito ao contraditório. Contudo, o sócio não responde solidariamente pelas dívidas sociais trabalhistas, mas em caráter subsidiário, dependendo sua execução da frustração do procedimento executório perfilado contra a sociedade. Denota-se, portanto, com clareza ofuscante, ressoando, em alto som a norma inserta no §2º do artigo 2º da Consolidação das Leis Trabalhistas que a teoria da desconsideração da personalidade juridical encontra pleno e reconhecido assento nas demandas de cunho trabalhista, fazendo premente sua aplicação em prol de assegurar a proteção das verbas trabalhistas, cuja natureza é alimentar, sobremaneira para salvaguardar o mínimo existencial vital e, por extensão, o superprincípio da dignidade da pessoa humana.
Tecidos tais considerações, faz necessário trazer à baila que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, no que toca à incidência da Consolidação das Leis Trabalhistas, vem encontrando redimensionamento de sua amplitude. Ao lado disso, o Tribunal Superior do Trabalho, através da Sétima Turma, em decisão plasmada recentemente, reconheceu a impenhorabilidade de imóvel registrado em nome da empresa desconsiderada na qual residiam seus sócios. “Embora a empresa tenha apresentado o imóvel à penhora para o pagamento de dívida trabalhista, a Turma ressaltou que a Constituição Federal garante o direito à moradia, e este é irrenunciável” (BRASIL, 2017). Em sede de Recurso de Revista nº 678-15.2013.5.09.0024, o Ministro Relator colocou em explicitação que o direito à moradia, insculpido com contornos fundamentais sociais, no artigo 6º da Carta de 1988 e no artigo 1º da Lei nº 8.009/1990, compõe o mínimo existencial, logo, não é passível de renúncia.
“Ementa: I. Agravo de Instrumento em Recurso de Revista interposto antes da vigência da Lei 13.015/2014. Execução. Bem de família. Oferecimento à penhora. Não caracterização de renúncia à impenhorabilidade. 1. O bem de família, benefício instituído pela Lei 8.009/1990, visa à proteção da família, aí incluído o direito à moradia, previsto no art. 6º da Constituição Federal. Trata-se de direito fundamental, tutelado por norma de natureza cogente, que é irrenunciável pela pessoa devedora. 2. Demonstrada a possível violação do art. 6º da Constituição Federal, pois a Corte Regional considerou ter havido renúncia ao benefício legal, impõe-se o provimento do agravo de instrumento, para melhor exame. Agravo de instrumento provido. II. Recurso de Revista. Execução. Bem de família. Oferecimento à penhora. Não caracterização de renúncia à impenhorabilidade. [omissis] 2. Nos termos do art. 1º da Lei 8.009/1990, o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável, sendo essa garantia oponível em qualquer processo de execução, inclusive trabalhista, com exceção das hipóteses previstas nos arts. 3º e 4º do mencionado diploma legal. O bem de família visa à proteção da família, aí incluído o direito à moradia, previsto no art. 6º da Constituição Federal. Trata-se de direito fundamental, tutelado por norma de natureza cogente, que é irrenunciável pela pessoa devedora. Com efeito, a finalidade da lei é a proteção da moradia da entidade familiar, não podendo ser objeto de renúncia. 3. Na hipótese examinada, ainda que nos autos em que processada a execução o imóvel tenha sido oferecido à penhora pela empresa familiar da qual as Recorrentes são sócias, é certo que não se pode autorizar o prosseguimento dos atos voltados à alienação judicial do referido bem, porquanto se cuida de direito irrenunciável. Logo, o imóvel da empresa devedora, no qual residem as Recorrentes, é impenhorável, não respondendo pela dívida trabalhista, sob pena de negar-se vigência ao art. 6º da Constituição Federal, que assegura o direito à moradia [omissis]” (Tribunal Superior do Trabalho – Sétima Turma/ RR nº 678-15.2013.5.09.0024/ Relator: Ministro Douglas Alencar Rodrigues/ Julgado em 03.08.2016).
Nesta linha, o Tribunal Superior do Trabalho reconheceu que o benefício instituído pela Lei nº 8.009/1990 objetiva a proteção da família na condição de núcleo-celular para o desenvolvimento humano, compreendendo, inclusive, o direito à moradia. Logo, a proteção dispensada ao imóvel residencial em que se encontram os sócios, mesmo havendo renúncia em prol de execução trabalhista, mantém a impenhorabilidade, sendo, portanto, garantia oponível em qualquer processo de execução. Além disso, na condição de direito fundamental, possui normas de natureza cogente, que é irrenunciável pela pessoa devedora, ressoando em entendimento jurisprudencial plasmado. Corroborando o expendido, é possível trazer à colação farto entendimento jurisprudencial do Tribunal Superior do Trabalho no sentido que:
“Ementa: Agravo de Instrumento. Execução. Bem de família. Matéria de ordem pública. Súmula N. 126, do C. TST. 1. Ao conhecer de ofício do instituto do bem de família, o eg. Tribunal Regional seguiu entendimento consagrado nesta Corte Superior, no sentido de que esta proteção, prevista na Lei nº 8.009/90, decorre do direito social à moradia, alçado a nível constitucional (CRFB, artigo 6º). Daí porque, não é admissível a renúncia por seu proprietário, já que somente nas hipóteses previstas no seu artigo 3º é possível ser afastada sua condição [omissis] 2. É firme o entendimento desta Corte de uniformização, no sentido de que o imóvel que serve de residência ao devedor, ou a seus familiares, é coberto para cláusula de impenhorabilidade constante do artigo 1º da Lei nº 8.009/90, pena de negativa de vigência aos artigos 5º, XXII, e 6º, da Carta Magna, que asseguram o direito à propriedade e à moradia. 3. A Lei nº 8.009/90 – inalterada pelo novo Código Civil – exige apenas que imóvel sirva de residência da família, e não que o possuidor faça prova dessa condição, mediante registro no cartório imobiliário, ou que possua outro imóvel, pena de tornar inócua a proteção legal. [omissis]” (Tribunal Superior do Trabalho – Primeira Turma/ ST-AIRR-50000-13.2008.5.15.0153/ Relator: Desembargador Convocado Alexandre Teixeira de Freitas Bastos Cunha/ Publicado no DEJT em 15.05.2015).
“Ementa: Recurso Ordinário. Ação Rescisória. Penhora. Imóvel destinado à moradia da família do devedor. Bem de família. Artigos 1º e 5º da Lei Nº 8.009/90. Violação. Provimento. [omissis] 2. A proteção conferida ao bem de família pela Lei nº 8.009/1990 decorre do direito social à moradia, previsto no artigo 6º, caput, da Constituição Federal. Desse modo, trata-se de princípio de ordem pública, oponível em qualquer processo de execução, razão pela qual não admite renúncia do seu proprietário, já que somente nas hipóteses previstas no seu artigo 3º é possível ser afastada sua condição. [omissis] 5. Sucede que, sobre a referida questão, o Superior Tribunal de Justiça já firmou jurisprudência no sentido de que, para efeito de caracterização do bem de família a que alude a Lei nº 8.009/90, mostra-se suficiente que o imóvel objeto da constrição judicial seja destinado à residência da família, restando desnecessário, desta forma, a produção de prova pela parte executada quanto à inexistência de outros bens imóveis de sua propriedade. Igualmente irrelevante, para tal fim, a circunstância de o imóvel não haver sido registrado como bem de família no Cartório de Registro de Imóveis. 6. Ademais, ao contrário do que entendeu o Tribunal Regional, a referida Lei nº 8.009/90 mostra-se plenamente aplicável nesta Justiça Especializada, tendo em vista tratar-se de regramento especial e nela se encontrarem as disposições acerca da impenhorabilidade do bem de família. 7. Patente, pois, a ofensa perpetrada pelo acórdão rescindendo aos artigos 1º e 5º da Lei nº 8.009/90, de modo que o provimento do recurso ordinário é medida que se impõe para desconstituir a penhora realizada nos autos originários sobre a fração ideal do imóvel pertencente ao ora recorrente. 8. Recurso ordinário conhecido e provido para julgar procedente a pretensão rescisória do autor.” (Tribunal Superior do Trabalho – Subseção II Especializada em Dissídios Individuais/ RO-2584-78.2011.5.02.0000/ Relator: Ministro Guilherme Augusto Caputo Bastos/ Publicado no DEJT em 11.10.2013).
Diante de tal cenário, é possível afirmar que a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, prevista na CLT, mesmo objetivando a proteção do trabalhador, encontra, de acordo com o entendimento jurisprudencial, mitigação de sua extensão. Ora, neste painel, cuida destacar que se tratando de bem de família, em que se encontram residindo os sócios-proprietários da empresa desconsiderada, não são passíveis de alcance da constrição judicial. Ao reverso, o bem de família, devido aos feixes axiológicos advindos do artigo 6º da Constituição Federal, mantém o aspecto de impenhorabilidade, preservando-se o ideário de direito à moradia mínima para o desenvolvimento humano. Portanto, o entendimento emanado pelo Tribunal Superior do Trabalho, com o escopo de assegurar a cogência da norma insculpida no Texto Constitucional, redimensiona a amplitude do instituto da desconsideração, preservando-se, assim, o mínimo patrimonial para a existência digna dos sócios-proprietários.
Informações Sobre o Autor
Tauã Lima Verdan Rangel
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES