Muito se fala sobre o Referendo 2005, sobre o desarmamento, mas com pouca transparência a apresentar ao cidadão o que é realmente objeto dessa consulta popular. Sim, consulta popular, porque o referendo é um instrumento estabelecido no art. 14, II, da Constituição Federal, regulamentado pela Lei n. 9.709/98, em que a opinião do cidadão é colhida com relação a determinado assunto já legislado pelo Congresso Nacional. É um pedido de opinião para ratificar ou rejeitar a matéria em análise; em suma, a população aprova ou não uma questão específica já tratada por nossos congressistas.
Somente para firmar as diferenças entre os institutos, o plebiscito, por seu turno, tem mais a ver com um cheque em branco, em que os cidadãos manifestam seu pensamento acerca de determinado tema que ainda será objeto de deliberação por parte dos parlamentares. A expressão cheque em branco é adequada, vez que, na ocasião do plebiscito, ainda são desconhecidos os contornos que serão dados ao tema posto à manifestação popular, a exemplo do que aconteceu em 1993, em que, se a monarquia fosse a forma de governo escolhida, os moldes monárquicos seriam delineados depois. No cheque assinado em branco, a autorização está dada, somente falta estipular o valor devido.
O Referendo 2005, no entanto, é referendo justamente por conta da consulta posterior, cujo objeto, em tese, seria o Estatuto do Desarmamento, traduzido tecnicamente na Lei n. 10.826/2003. Ocorre, porém, que essa lei não é o objeto de análise do referendo. Não está em votação a revogação ou manutenção da Lei n. 10.826/2003, tampouco o direito à legítima defesa, como alguns setores sociais, revistas semanais e propagandas querem fazer crer. O verdadeiro objeto a ser votado no dia 23 de outubro de 2005 é o art. 35 desse Estatuto, assim redigido:
“Art. 35. É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6.º desta Lei.
§1.º. Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005.
§2.º. Em caso de aprovação do referendo popular, o disposto neste artigo entrará em vigor na data de publicação de seu resultado pelo Tribunal Superior Eleitoral” (houve grifos).
É a legalidade da venda de arma de fogo e munição no Brasil que está submetida à análise do povo. Porém, não se encerra aí a questão. Observe que há uma exceção – que em juridiquês é traduzida pela palavra-mágica “salvo” – e que pouco afetará os já portadores de armas de fogo, estejam eles dentro ou fora-da-lei.
O resultado do referendo em nada afetará os contemplados pela exceção prevista na parte final do art. 35. Quer vença o “sim”, quer vença o “não”, a extensa lista dos contemplados pela excepcionalidade da regra permanecerão municiados e ostentando suas armas. São órgãos estatais, como as polícias, Forças Armadas, guardas municipais, além de empresas de segurança privada, praticantes de tiro esportivo, moradores de áreas rurais que dependam da arma para prover a alimentação sua e da família, além de outros casos. Esses sujeitos em nada serão atingidos com o resultado da votação de 23 de outubro de 2005. Esses são os portadores de armas dentro-da-lei, que não estão tolhidos do porte de arma e municiamento, nem o serão.
O que muda para os portadores de armas de fogo que estão à margem da lei, os chamados fora-da-lei? De igual modo, nada. Não trato aqui dos cidadãos que obtiveram armas legalmente, mas sim dos que as obtiveram e continuarão a obtê-la mediante o tráfico de armas e outros expedientes ilegais, que permanecerão a utilizar, inclusive, armamento bélico, muito mais potente do que os instrumentais disponíveis aos nossos agentes policiais. Todavia, o objetivo não é trazer clichês ou lugares-comuns. Certamente, leitor, o argumento deste parágrafo já é do seu conhecimento, e, também, não é meu propósito defender este ou aquele voto.
Não sou a favor da indústria armamentista, nem procuro disseminar a violência; pelo contrário. Penso que a paz é fundamental para a convivência social e para torná-la realidade é imprescindível a colaboração, o labor mútuo. Não será com armas em punho ou em casa que o cidadão combaterá a violência. É obrigação do Poder Público oferecer níveis aceitáveis de segurança para a sociedade. Não cabe ao cidadão arvorar-se no direito de resolver a situação a base da força, sob o argumento do direito à legítima defesa, até porque a definição jurídica de legítima defesa é bem diferente da que a Frente Parlamentar do “não” tanto apregoa.
Independente da resposta “sim” ou “não” sobre o comércio de armas no Brasil, o que me atrai e instiga a pensar é outro fato, que não o submetido à nossa apreciação via urna eletrônica em 2005: quantas consultas populares já tivemos para saber onde deveriam ser preferencialmente aplicados os recursos públicos, o nosso dinheiro, no decorrer de um mandato presidencial ou de um governador estadual? Quantas vezes fomos convocados a nos manifestar sobre as prioridades na alocação de recursos na Lei de Diretrizes Orçamentárias? Seria plenamente possível realizar tais consultas, porém não há – e acredito que não há mesmo – vontade política para isso, sem considerar o custo envolvido. Aí nós temos o politiquês: faz-se caras e bocas, discursos inflamados e encenações teatrais com aparições televisivas, expedições de ofícios e documentos dos mais variados, porém vazios de seriedade, desprovidos de verdade e eficácia.
É de se notar também que a idéia e slogan do “vote sim”, em um primeiro momento, é mais atraente. Sugere que aquele que optou pelo “sim” é um pacifista, uma “pessoa de bem”, expressão esta bastante disseminada na campanha. Se assim é, dá a entender então que o simpatizante ao “não” seria, por lógico, o oposto. Seria um indivíduo com elevado grau dos instintos mais primitivos, parafraseando o ex-deputado petebista, cassado este ano.
Tanto uma quanto a outra frente parlamentar deixam muito a desejar quando se trata de esclarecer. Usam e abusam de figuras de retórica com apelos emocionais e argumentos de autoridade, em detrimento à franqueza e lealdade que o tema exige. Como se o “não”, ao vencer, fosse gerar uma corrida fenomenal para adquirir revólveres, pistolas e munição nas casas comerciais de armas ou se a vitória do “sim” reduzisse em patamares drásticos e fabulosos a violência nacional. Nem um, nem outro. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Há que se ponderar. Há que se agir com sensatez, com bom senso.
Tenho minha opinião formada e pouco mencionei os argumentos pelos quais me convenci, pois o meu objetivo neste artigo não é angariar votos para esta ou aquela linha ideológica, mas refletir sobre as entrelinhas dessa consulta popular.
Todavia, para não me furtar ao debate, devo dizer: sou favorável ao “não”, ao menos nesta nossa etapa da história. Sou favorável à não proibição do comércio de arma de fogo no Brasil, desde que aliada ao rígido controle na autorização do porte. Entendo que para o desarme da população seria preciso antes que o Estado (aqui entendido como o Poder Público) melhor se aparelhasse no combate à criminalidade e mazelas sociais, combatesse a corrupção em todos os níveis, aplicasse mais recursos, inicial e primordialmente, no ensino público – fundamental, médio e superior – e realizasse políticas públicas efetivas que propiciassem ao cidadão vida digna. Pode levar muito tempo? Sim, provavelmente, mas é preciso fazer algo. É preciso começar.
O resultado do referendo, ao que parece, foi sinalizado quando a Lei n. 10.826/2003 ainda era um projeto e já havia sido apelidada de Estatuto do Desarmamento. Se a própria lei já ficou impositivamente conhecida em prol do desarmamento (leia-se: proibição ao comércio de arma de fogo e munição para a grande maioria dos cidadãos), vamos votar, de fato, o quê? Apesar desse descompasso, o que não deve haver é a perpetuação do politiquês, que induz o cidadão a acreditar que o resultado das urnas no dia 23 de outubro de 2005, seja ele “sim” ou “não”, será a medida eficaz contra a violência no Brasil.
Em 11.OUT.2005.
Professor de Direito Penal e Processo Penal do Curso Ordem Mais. Mestre em Direito (PUC/PR). Especialista em Direito Criminal (UniCuritiba). Assessor jurídico do Ministério Público Federal
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