Resumo: O trabalho visa demonstrar que muitas das polêmicas a respeito da “relativização da coisa julgada” são alimentadas pela falta de conhecimento do instituto, bem como que a solução para o tormentoso problema da coisa julgada quanto às ações de filiação pode ser encontrada no direito canônico e através de uma interpretação sistemática.
Palavras-chave: Coisa Julgada – Evolução Histórica – Direitos Romano e Canônico – Relativização.
Abstract: This work aims to demonstrate that many of the controversies concerning “the relativization of the judged thing” are fed by the lack of knowledge of the institute as well as the solution to the tormenting problem of the judged thing concerning the actions of filiation may be found in the Canonical Right and throughout a systematic interpretation.
Keywords: The judged thing – Historic Evolution – Canonical and Roman Rights – Relativization.
Sumário: 1. Importância do estudo da coisa julgada. 2. Fundamento da coisa julgada. 3. O valor constitucional da coisa julgada. 4. O valor constitucional da segurança jurídica. 5. Trajetória histórica do instituto da coisa julgada. 5.1 A coisa nos direito romano. 5.1.1 Elementos comuns aos dois primeiros modelos. 5.1.2 Diferenças entre os três modelos de processo. 5.1.3 A proibição de rem actam agere no processo das legis actiones. 5.1.4 O processo formular: os efeitos consumptivo e preclusivo da litis contestatio; a exceptio rei iudicatae vel in iudicium deductae; a autoridade do julgado. 5.1.5 A coisa julgada na extraordinaria cognitio. 5.2 A coisa julgada no direito canônico. 5.3 A coisa julgada em Chiovenda. 5.4 A coisa julgada em Liebman. 6. Considerações à luz da atual doutrina brasileira. 6.1 Coisa julgada formal e coisa julgada material. 6.2 Pressupostos da coisa julgada material. 6.3 Acepções da coisa julgada. 6.4 Limites subjetivos. 6.5 Limites objetivos. 6.6 Modo de produção. 6.7 Efeitos da coisa julgada e sua eficácia preclusiva. 6.8 A coisa julgada e as relações jurídicas continuativas. 6.9 Meios de revisão da coisa julgada. 7. Relativização da coisa julgada. 7.1 Síntese da tese de Dinamarco. 7.2 Síntese da tese de Marinoni. 7.3 Delimitação do problema e sugestão de solução. 8. Conclusões. 9. Referências.
1. IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DA COISA JULGADA
A coisa julgada é um instituto secular, remontando suas origens ao direito romano clássico, cujo alcance e limites foram paulatinamente desenvolvidos, ao longo de todo esse período até os dias de hoje, nos mais diversos ordenamentos jurídicos.
O tema da coisa julgada tem sido objeto de intensos debates, na doutrina e jurisprudência. O problema se apresenta em diversos campos, por exemplo: a) contraste entre decisões proferidas pelo STF, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, e sentenças proferidas em caso concreto; b) investigação de paternidade; c) sentenças que atribuem a bens desapropriados valores excessivos ou aviltantes; d) mudanças de orientações jurisprudenciais, etc. (TALAMINI, 2005, 23).
Ocorre que muitas dessas polêmicas a respeito da “relativização da coisa julgada” são alimentadas pela falta de conhecimento do instituto. Com efeito, constantemente, é atribuída a autoridade da coisa julgada a pronunciamentos que em verdade dela não se revestem e cuja injustiça ou ilegitimidade podem vir a ser corrigidas ou superadas independentemente de qualquer solução que envolva verdadeira quebra da coisa julgada (Idem, 2005, 25).
Donaldo Armelin demonstrou, na IV Jornada Brasileira de Direito Processual Civil (Fortaleza, agosto de 2001), que significativa parcela dos casos até então examinados pela doutrina e a jurisprudência sob o ângulo da “relativização da coisa julgada” resolvia-se pela aplicação das regras comuns que disciplinam o instituto (Idem, 2005,25).
Porém, desde logo, é preciso ter em mente que os problemas que verdadeiramente envolvem a “coisa julgada” devem ser encarados de frente, sem subterfúgios ou argumentos tangenciais; de forma que se afiguram insatisfatórios os artifícios destinados a negar o problema.
2. FUNDAMENTO DA COISA JULGADA
Os romanos justificavam a coisa julgada com razões inteiramente práticas de utilidade social, argumentando que para que a vida social se desenvolvesse o mais possível segura e pacífica, era necessário imprimir certeza ao gozo dos bens da vida e garantir o resultado do processo (CHIOVENDA, 1998, 447).
A suprema exigência da ordem e segurança da vida social, impõe que a situação das partes fixada pelo juiz com respeito ao bem da vida, que foi objeto de contestação, não mais pode ser discutida, daí por diante (Idem, 1998, 452).
Liebman (2006, 175/176) também entende que o instituto da coisa julgada encontra fundamento em motivos de política legislativa, que visam por fim à controvérsia, alcançando a segurança do direito e a pacificação social, através da preclusão dos meios de recurso (coisa julgada formal) e da imutabilidade da sentença, protegendo-a de futura decisão contraditória (coisa julgada material).
“A atribuição da autoridade da coisa julgada decorre de opção política entre dois valores: a segurança, representada pela imutabilidade do pronunciamento, e o ideal de justiça, sempre passível de ser buscado enquanto se permite o reexame do ato.” (TALAMINI, 2005, 47)
3. O VALOR CONSTITUCIONAL DA COISA JULGADA
A coisa julgada é instituto vinculado ao princípio geral da segurança jurídica. Mereceu expressa menção no texto constitucional, no rol dos direito e garantias fundamentais: “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (CF, art. 5º, XXXVI) (Idem, 2005, 50).
De uma análise sistemática da Constituição Federal, podemos construir as seguintes inferências:
i) Não há como se deixar de conferir relevância constitucional à coisa julgada, estando ela – como está – tutelada em dispositivo constitucional. É impossível dar ao inciso XXXVI do art. 5º estrito significado de mecanismo meramente instrumental de irretroatividade das leis (Idem, 2005, 50).
ii) A afirmação de que não é dado à lei suprimir a coisa julgada que já se tenha formado implica também o princípio geral de que o aplicar da lei não pode, ele mesmo, desrespeitar a coisa julgada. Ainda que não mediante fórmula explícita, o inciso XXXVI, do art. 5º, da CF consagra como garantia constitucional o próprio instituto da coisa julgada, que sequer pode ser suprimido por emenda constitucional (art. 60, § 4º, IV, CF) (Idem, 2005, 51). Liebman (2006, 51) já esposava o entendimento de que a autoridade da coisa julgada também se destinava ao aplicador do direito, afirmando: “essa imutabilidade característica do comando, nos limites em que disciplinada pela lei, opera, não já em face de determinadas pessoas, mas em face de todos os que no âmbito do ordenamento jurídico têm institucionalmente o mister de estabelecer, de interpretar ou de aplicar a vontade do Estado, não se excluindo o próprio legislador, que não poderá por isso mesmo mudar a normação concreta da relação, a qual vem a ser estabelecida para sempre pela autoridade da coisa julgada.”
iii) No entanto, a precisa definição do regime da coisa julgada é tarefa do legislador infraconstitucional. Cabe à lei disciplinar o campo de incidência, as condições para formação, os limites objetivos e subjetivos, os meios de revisão e todos os demais aspectos do instituto (TALAMINI, 2005, 51/52).
iv) Mas o legislador infraconstitucional não pode vir a abolir integralmente a coisa julgada, consagrando a possibilidade de revisão de todo e qualquer pronunciamento da jurisdição. Ainda que remetendo ao legislador infraconstitucional, dentro de certas condições, a liberdade de definição dos atos que serão revestidos da coisa julgada, a Constituição impõe a premissa de que o modelo processual jurisdicional contemplará a coisa julgada (Idem, 2005, 52).
v) O legislador infraconstitucional está adstrito a critérios constitucionais para atribuição da coisa julgada, não gozando, pois, de irrestrita liberdade para a essa escolha. Com efeito, apenas é constitucionalmente deferível a coisa julgada à decisão proferida em processo desenvolvido em regime de contraditório entre as partes e em causa de cognição exauriente (distinguir cognição sumária horizontal da vertical, só com relação a esta é que não se permite a coisa julgada) (Idem, 2005, 57).
4. O VALOR CONSTITUCIONAL DA SEGURANÇA JURÍDICA
A segurança jurídica é contemplada na Constituição Federal, em três faces: como princípio, como valor e como direito fundamental.
Como princípio a segurança aparece no caput do art. 1º; no inc. I, do art. 3º e, no inc. XXXVI, do art. 5º da CF. Com efeito, a segurança se constitui em requisito essencial à própria existência do Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, CF); é meio necessário à realização de objetivos fundamentais da República, como: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, CF) e, por último, é garantia de estabilidade nas relações jurídicas (art. 5º, XXXVI, CF).
Como valor a segurança é indicada desde o preâmbulo da Constituição: “Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e na ordem internacional, com a solução pacífica das controvérsias”. Note-se que, sob esse prisma, a segurança é, a um só tempo, um valor supremo de nossa sociedade (ao lado da liberdade, igualdade e justiça) e, um valor transcendente, através do qual se assegura a consecução dos demais.
Com o sentido de direito fundamental a segurança é prestigiada no caput, do art. 5º, da CF, onde aparece ao lado do direito à igualdade perante a lei, do direito à vida, à liberdade, e à propriedade.
Por conseguinte, “o princípio da intangibilidade da coisa julgada, expressão que é da segurança jurídica ‘no âmbito dos actos jurisdicionais’ é ‘subprincípio inerente ao princípio do Estado de direito na sua dimensão de princípio garantidor da certeza jurídica’.” (Idem, 2005, 65)
5. TRAJETÓRIA HISTÓRICA DO INSTITUTO DA COISA JULGADA
5.1 A coisa nos direito romano
O exame do tema no direito romano requer a consideração dos três modelos processuais ligados às seguintes fases históricas (TALAMINI, 2005, 197/198):
5.1.1 Elementos comuns aos dois primeiros modelos
O elemento comum dos dois primeiros modelos processuais era o procedimento bifásico. A primeira fase, in iure, desenvolvia-se perante o pretor (primitivamente, perante o rei). Estabelecida a contraposição entre as partes e verificada a presença dos requisitos de admissibilidade do processo, o pretor, com a participação da partes, escolhia o iudex e definia, na litis contestatio, os limites da controvérsia e as possibilidades de solução (Idem, 2005, 197). Na fase seguinte, apud iudicem, o iudex instruía o processo e julgava a causa nos limites e para os fins que haviam ficado estabelecidos na fase anterior (TUCCI; AZEVEDO, 2001, 59). A investidura do iudex advinha do ajuste feito entre as partes perante o pretor, e não de uma imposição estatal, de modo que sua sentença não estava sujeira a recurso.
5.1.2 Diferenças entre os três modelos de processo
Por trás da identidade estrutural entre o processo das ações da lei e o processo formular havia significativas diferenças entre os mesmos.
O processo das ações da lei era formal e solene, com traços herdados de sua origem religiosa. Existia um número restrito de ações cabíveis, fora das quais, não havia tutela possível. Assim, o processo arcaico estava ainda impregnado de ritualismo que remontava aos Primórdios de Roma, quando religião e direito estavam intimamente vinculados (DUCOS, 2007, 114/117; TUCCI, 2001, 30).
Já o processo formular foi progressivamente se instalando como fruto do trabalho criativo do pretor. Novas formas de tutela foram sendo moldadas. Além disso, era mais célere, menos formalista e já distante dos resquícios religiosos (DUCOS, 2005, 117/120; TUCCI, 2001, 39/43).
Com a afirmação do império, o processo da extraordinaria cognitio foi ocupando o posto de primazia em face do anterior modelo bifásico. No novo modelo, o procedimento desenvolvia-se em uma única fase, perante uma mesma autoridade. O magistrado, agente estatal, acumulava então também a função de juiz. Seu poder de julgar advinha diretamente da autoridade do imperador (e não da litis contestatio, que antes era ato também das partes). Passava a ter de motivar suas decisões, que estavam sujeitas a recursos para autoridades superiores (DUCOS, 2005, 121/122; TUCCI, 2001, 43/44).
5.1.3 A proibição de rem actam agere no processo das legis actiones
Nas notícias mais precisas sobre qual era a estabilidade conferida aos atos processuais no período mais remoto das ações da lei. Os dados mais conhecidos remontam a uma fase já avançada do sistema da legis actiones (séc. III a.C., em diante): o desenvolvimento de um processo impedia outro posterior sobre o mesmo objeto (de eadem re).
Aludia-se, então, a rem acta agere para indicar um ato que não poderia absolutamente conduzir ao resultado pretendido pelo autor e que, assim, seria inútil. Empregavam-se também as expressões res acata est ou actum est para designar algo irremediavelmente encerrado ou definido. Desse modo, atribuía-se ao agere das partes um “efeito preclusivo”, equiparável, modernamente, à função negativa da coisa julgada (TALAMINI, 2005, 198/199)
Ao que tudo indica, esse efeito advinha do simples desenvolvimento do processo, e não de seu resultado final: quando foi formulada a regra em questão, tinha-e em vista não a sentença, a res iudicata, mas particularmente o agere rem, que, na essência, constituía-se pela atividade das partes perante o pretor e tinha na litis contestatio o seu ponto culminante.
5.1.4 O processo formular: os efeitos consumptivo e preclusivo da litis contestatio; a exceptio rei iudicatae vel in iudicium deductae; a autoridade do julgado
No processo formular, a litis contestatio assumiu papel ainda mais relevante. Consistia na atuação das partes, perante o pretor, com a qual se fixavam os limites do objeto do processo e se estabelecia o compromisso de participar da fase apud iudiciem e se submeter ao que viesse a ser decidido pelo iudex. Como indicado, esse ato também já existia no processo das legis actiones, sob a forma de declarações verbais perante testemunhas e o pretor. Mas no novo sistema processual, além de assumir a forma escrita, a litis contestatio teve seu caráter de submissão à pronúncia do pretor. (TUCCI; AZEVEDO, 2001, 98/102)
Razões de conveniência pública e equidade levaram o pretor a passar a conceder uma exceção ao réu, que lhe permitia extinguir o segundo processo que se formasse com o mesmo objeto e entre as mesmas partes (semelhante à nossa litispendência). Era a exceptio in iudicium deducta vel de re iudicata, que haveria de ser inserida na fórmula do segundo processo.
Por sua vez, a sentença veiculava um pronunciamento do iudex que, pondo fim à controvérsia, estabelecia uma nova relação jurídica entre as partes: é a res iudicata. No direito romano clássico, a coisa julgada era compreendida como o próprio resultado, o estado jurídico advindo da sentença. A res iudicata, o próprio nome diz, era a situação em que se encontrava a “coisa” (o bem da vida objeto do litígio), uma vez julgada.
Como não cabiam recursos, a simples existência da sentença configurava esse resultado – de modo que nem se concebia qualquer distinção entre o iudicatum, seus efeitos e sua estabilidade.
Em face do efeito já operado pela litis contestatio, poderia parecer despido de sentido atribuir à res iudicata uma novo efeito extintivo sobre a relação controvertida. No entanto, a extinção gerada pela sentença era ainda mais ampla e profunda do que aquela antes produzida no final da fase in iure: o efeito da sentença absorvia e superava aquele ocasionado pela litis contestatio. Por exemplo, se o autor tinha “ações concorrentes” (vários fundamentos para o mesmo objeto), a litis contestatio atingiria apenas aquela formulada, ao passo que a res iudicata punha fim a todas. Além disso, a exceptio rei in iudicium deductae extraível da anterior litis contestatio dizia respeito apenas aos que foram parte no processo anterior. Já a força da res iudicata estendia-se também a alguns terceiros (p. ex., em casos de solidariedade, em relações interdependentes) (TALAMINI, 2005, 200/205).
É notável o progressivo fortalecimento dos efeitos da res iudicata (e o valor de sua respectiva exceção) em face daqueles advindos da litis contestatio (e da exceptio rei in iudicium deductae). Em certo sentido, esse fenômeno retratava o próprio gradual incremento do caráter público do processo romano. Ao que tudo indica, concebeu-se originalmente uma única exceptio rei in iudicium deducta vel rei iudicatae. Com o tempo, na medida em que ganharam força os efeitos extintivos e inovadores da coisa julgada, a exceptio rei in iudicium deductae acabava por ter serventia autônoma apenas no casos em que a fase apud iudicem não se concluísse com uma sentença (p. ex., pelo decurso dos prazo de dezoito meses em que o processo devia finalizar-se, segundo a Lex Iulia.)
No final da época clássica, ou melhor, na transição do processo formular para o processo de cognição extraordinária, formulou-se o princípio segundo o qual uma nova sentença pronunciada contra res prius iudicatas seria privada de qualquer valor (Const. 7, 64, 1, de Alexandre Severo, ano 222 d.C). Isso significa que, nessa época, o caráter público da intangibilidade da res iudicata estava definitivamente estabelecido. Julgar contra a anterior coisa julgada equivalia a julgar contra o próprio direito objetivo.
5.1.5 A coisa julgada na extraordinaria cognitio
Com o estabelecimento do processo monofásico, desenvolvido integralmente perante autoridade estatal, a litis contestatio definitivamente se despiu de toda a relevância que um dia tivera. Permaneceu existindo como ato ou momento processual, mas já sem nenhuma especial eficácia. Parte dos efeitos que dela advinham foi transferida para o momento inicial do processo (estabelecimento da litispendência, interrupção da prescrição, atribuição de caráter litigioso ao bem em disputa etc.). Os demais efeitos, atinentes à extinção e novação da relação controvertida, foram todos concentrados na res iudicata. Em certo sentido, esse foi o complemento do processo de paulatina publicização da res iudicata. Sua força deixou de se basear numa relação obrigacional, passando a fundar-se na autoridade do Estado. (TUCCI; AZEVEDO, 2001, 137/139)
Com o julgamento sendo feito por um agente estatal, generalizou-se o cabimento de recurso contra a sentença. Mas mesmo com o estabelecimento da appellatio como remédio ordinário, a sentença de primeiro grau permaneceu sendo direta e imediatamente identificada com a coisa julgada. Vale dizer: ainda não se dissociava o proferimento da sentença do seu “trânsito em julgado” (conceito que só surgiria com os canonistas); nem se distinguia a sentença da res iudicata. Proferida a sentença, seus efeitos se operavam desde logo. Os efeitos preclusivos e prejudiciais estavam desde logo em vigor. Sobrevindo apelação, a res iudicata era suspensa: se provido o recurso, então ela extinguir-se-ia; se desprovido, ela reassumia sua eficácia anterior.
5.2 A coisa julgada no direito canônico
Talvez nenhum instituto no direito processual da Igreja revista-se de tantas peculiaridades, em contraste com os modelos processuais laicos, como a coisa julgada. Existem significativas particularidades no que tange: (a) ao universo de causas em relação às quais é possível a formação da coisa julgada: prevalece o princípio da “não-passagem em julgado” das sentenças que decidam causas sobre o estado das pessoas (Código de Direito Canônico de 1983, c. 1643); (b) ao mecanismo de estabilização da sentença (com ou sem formação de coisa julgada, conforme o caso): vigora a norma da duplex sententia conformis (C. Dir., c. 1641, I, e 1682); (c) à abrangência dos instrumentos de impugnação do resultado já revestido pela coisa julgada, se comparados com os vigentes na maioria dos ordenamentos estatais: trata-se da restitutio in integrum (c. 1645, 2) e, do exercício de competência correcional pelo Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica (c. 1445, § 3º, 1º). Ademais, é previsto o instituto da querella nullitatis (c. 1619 e seguintes) que, conforme a perspectiva adotada, pode ser enquadrada em “a” ou “c”, acima (TALAMINI, 2005, 220/223).
No início, o direito canônico se abeberava do regime romano da coisa julgada, tendo, posteriormente, desenvolvido o instituto com elementos próprios, que, inclusive, influenciaram o direito laico.
O ponto de partida para o estudo da coisa julgada no direito canônico consiste no Decreto Graciano (1140). A coletânea elaborada por referido professor constituiu a “pedra angular” da sistematização do direito canônico.
O mencionado Decreto acolhia a noção romana de coisa julgada, prevendo, inclusive, a restitutio in integrum contra a sentença válida, mas iníqua.
Na época de Graciano, a idéia que se tinha de coisa julgada era ainda aquela da simples “definição judicial” da questão herdada do direito romano. A noção de “passagem em julgado” (transitus in rem iudicatam), no sentido de uma qualidade de irrevogabilidade da sentença – e não a sentença em si mesma –, foi uma criação canônica, mas posterior a Graciano, decorrente do trabalho dos glosadores, das decretais de Papas e das obras de outros doutrinadores (Idem, 220/223).
A necessidade da distinção entre sentença e a “passagem em julgado” surgiu, no instante em que se concebeu a possibilidade de sentenças que não eram imutáveis, de forma que a partir de então não se poderia identificar as duas categorias.
Essa foi a maior contribuição do direito canônico ao instituto da coisa julgada, eis que, a partir de então, reconheceu-se a existência de um momento formal em que a sentença adquire a força de coisa julgada – momento esse que não se identifica necessariamente com o do surgimento da própria sentença. Além disso, estabelecia-se que nem toda sentença definitiva precisaria revestir-se dessa eficácia.
Na decretal Lator praesentium sua nobis, de Alexandre III (1159-1181), tem-se a primeira enunciação formal do princípio da não-passagem em julgado nas ações de estado, excluindo o “transitus in rem iudicatum” em certas causas por razões espirituais.
5.3 A coisa julgada em Chiovenda
Chiovenda deu importantíssima contribuição à doutrina da coisa julgada, tendo influenciado fortemente o seu discípulo Liebman que alçou vôo próprio, elaborando a mais relevante obra sobre a coisa julgada (Eficácia e Autoridade da Sentença), que até hoje repercute nos ordenamentos jurídicos do ocidente.
Coube à Chiovenda apresentar as justificações político-sociais do instituto da coisa julgada, bem como lançar o gérmen da distinção entre eficácia da sentença e autoridade da coisa julgada, fio condutor de toda a teoria de Liebman.
Também coube à Chiovenda: distinguir a autoridade da coisa julgada da simples preclusão; diferenciar a coisa julgada formal da material; limitar a autoridade da coisa julgada à decisão que decide o mérito da ação, para declará-la procedente ou improcedente; limitar a coisa julgada à conclusão da sentença, subtraindo de seu campo toda a atividade puramente lógica desenvolvida pelo juiz no processo.
Sem sombra de dúvidas a mais importante contribuição de Chiovenda foi lançar as premissas da distinção entre eficácia da sentença e autoridade da coisa julgada, defendendo que a sentença existe e vale com relação a todos, mas não pode prejudicar terceiros, cabendo a esses alegar o prejuízo em ação autônoma, pois aos terceiros não pode ser oposta a exceção da coisa julgada. O seguinte exemplo expõe com precisão o entendimento de Chiovenda, vejamos: “Assim a sentença entre A e B, pela qual A é reconhecido proprietário dum imóvel, não impede a ninguém exceto a B, reivindicar o imóvel contra A. A sentença entre A e B, pela qual A é reconhecido titular de um crédito em relação a C, com exclusão de B, não obsta a D, E, F de se alegarem titulares daquele crédito em relação a A. Quanto a C, é obrigado a reconhecer credor a A em vez de B, mas pode sustentar que nem A é seu credor.” (CHIOVENDA, 1998, 501)
Essa percepção de Chiovenda proporcionou-lhe condições de traçar as linhas gerais dos limites subjetivos da coisa julgada, que podem ser sintetizadas em três premissas: a) Terceiros totalmente indiferentes – não podem impedir a formação da sentença, nem opor-se à sentença já formada, mas devem reconhecer pura e simplesmente o julgado; b) terceiros que não têm de reconhecer o julgado, porque são titulares duma relação jurídica incompatível com a relação decidida, e, pois, seriam prejudicados juridicamente se tivessem de reconhecer o julgado em questão e, c) terceiros que têm de reconhecer o julgado, porque são titulares duma relação compatível com a decidida, ou porque sua relação depende da relação das partes, ou ainda porque seu direito é o mesmo que constitui objeto da decisão, mas que são prejudicados de fato pelo julgado (Idem, 1998, 507/508).
Com relação aos limites subjetivos da coisa julgada, pode-se dizer que Chiovenda, em certos aspectos, foi até além de Liebman, pois percebeu que em decorrência da natureza especial de alguns direitos (direitos indivisíveis), alguns terceiros (litisconsortes unitários) seriam alcançados pela coisa julgada. Exmplo: a anulação de assembléia de sociedade, por um dos sócios.
5.4 A coisa julgada em Liebman
Liebman, partindo das premissas do seu mestre Chiovenda, proporcionou grande evolução ao instituto da coisa julgada, sistematizando-o e inovando-o em diversos aspectos. Como já afirmado a obra de Liebaman influenciou fortemente os ordenamentos jurídicos do ocidente.
As principais conclusões a que Liebman chegou foram as seguintes:
i) A declaração oriunda da sentença, assim como seus outros efeitos possíveis, pode conceder-se e produz-se independentemente da coisa julgada; na aptidão da sentença em produzir os seus efeitos e na efetiva produção deles (quaisquer que sejam, segundo o seu conteúdo) consiste a sua eficácia, e esta se acha subordinada à validade da sentença, isto é, à sua conformidade com a lei.
ii) A eficácia da sentença, nos limites de seu objeto, não sofre nenhuma limitação subjetiva; vale em face de todos.
iii) A autoridade da coisa julgada não é efeito ulterior e diverso da sentença, mas uma qualidade dos seus efeitos e a todos os seus efeitos referente, isto é, precisamente a sua imutabilidade. Ela está limitada subjetivamente só às partes do processo.
iv) Consequentemente, todos os terceiros estão sujeitos à eficácia da sentença, não, porém, à autoridade da coisa julgada; a sentença, nos limites do seu objeto, é sempre oponível a eles, que lhes podem repelir os efeitos, demonstrando a sua injustiça, uma vez que tenham interesse jurídico nessa demonstração (LIEBMAN, 2006, 165).
Quanto aos limites objetivos da coisa julgada, Liebman (2006, 52) entende que é só o comando pronunciado pelo juiz que se torna imutável, não a atividade lógica exercida pelo juiz para preparar e justificar a decisão.
No que concerne aos limites subjetivos da coisa julgada, Liebman (2006, 89/92) encampa a doutrina de BETTI, classificando, resumidamente, os terceiros em três categorias:
i) Terceiros juridicamente indiferentes, estranhos à relação e sujeitos de relação compatível com a decisão; para estes logram aplicação combinada e atenuada ambos os princípios, de tal modo que é a sentença juridicamente irrelevante para eles, mas vale como coisa julgada para outrem, e pode produzir mero prejuízo de fato;
ii) Terceiros juridicamente interessados, não sujeitos à exceção de coisa julgada, são os titulares de relação incompatível com a sentença; para estes logra aplicação exclusiva do princípio negativo (a coisa julgada é irrelevante com relação a terceiros) e, em consequência, podem desconhecer a coisa julgada que se formou entre as partes;
iii) Terceiros juridicamente interessados, sujeitos à exceção de coisa julgada, são os que se encontram subordinados à parte com referência à relação decidida; para estes logra aplicação exclusiva o princípio positivo, e a ciosa julgada que se formou entre as partes pode estender-se-lhes como sua própria.
No Brasil, a doutrina de Liebman sofreu críticas de Barbosa Moreira em dois aspectos:
i) Primeiro, quanto à acepção de que a coisa julgada seria uma qualidade (imutabilidade) dos efeitos da sentença. Sustenta Barbosa Moreira que os efeitos da decisão (condenação, constituição etc.) não são imutáveis, mas, sim, disponíveis e modificáveis. Não tendem a durar perpetuamente os efeitos da decisão passada em julgado. É o que se constata com exemplos elementares;
ii) Segundo, quanto aos limites subjetivos nas situações jurídicas que apresentem caráter indivisível. Liebman (2006, 113/114) entendia que: rejeitada a ação que visa à impugnação de deliberação de sociedade anônima, não tem a sentença outro conteúdo que não o de declarar a improcedência da ação proposta, ficando livre aos demais sócios a via processual para impugnar a mesma deliberação. Já o exercício vitorioso de uma ação por parte de um sócio atingiria o escopo comum a todas as partes, absorvendo-as e consumindo-as, por falta de interesse de agir nas eventuais ações sucessivas. Na opinião de Barbosa Moreira e de Ada Pellegrini, que evoluiu para acompanhá-lo, o acolhimento ou rejeição da anulação da assembléia faz coisa julgada para todos os sócios, dada a indivisibilidade do objeto da demanda e o litisconsórcio unitário que se estabelece entre os sócios.
6. CONSIDERAÇÕES À LUZ DA ATUAL DOUTRINA BRASILEIRA
6.1 Coisa julgada formal e coisa julgada material
A coisa julgada formal é a imutabilidade da decisão judicial dentro do processo em que foi proferida, porquanto não possa mais ser impugnada por recurso – seja pelo esgotamento das vias recursais, seja pelo decurso do prazo do recurso cabível. Trata-se de fenômeno endoprocessual, decorrente da irrecorribilidade da decisão judicial. Revela-se, em verdade, como uma espécie de preclusão (…) Seria a preclusão máxima dentro de um processo jurisdicional. Também chamada de ‘trânsito em julgado’. (DIDIER, 2007, 479)
A coisa julgada material é a indiscutibilidade da decisão judicial no processo em que foi produzida e em qualquer outro. Imutabilidade que se opera dentro e fora do processo. A decisão judicial (em seu dispositivo) cristaliza-se, tornando-se inalterável. Trata-se de fenômeno com eficácia endo/extraprocessual. (Idem, 2007, 479)
Perceba-se, contudo, que a coisa julgada formal é um degrau necessário, para que se forme a coisa julgada material. Em outros termos, a coisa julgada material tem como pressuposto a coisa julgada formal. (Idem, 2007, 479)
6.2 Pressupostos da coisa julgada material
Para que determinada decisão judicial fique imune pela coisa julgada material, deverão estar presentes quatro pressupostos: a) há de ser uma decisão jurisdicional, já que no sistema brasileiro todas as decisões administrativas são passíveis de revisão pelo Judiciário, não fazendo, pois, coisa julgada; b) o provimento há que versar sobre o mérito da causa (objeto litigioso) (lide, mérito, pedido/causa de pedir, decisões proferidas com base num dos incisos do art. 269 do CPC); c) o mérito deve ter sido analisado em cognição exauriente; d) tenha havido a preclusão máxima (coisa julgada formal). (Idem, 2007, 480)
6.3 Acepções da coisa julgada
Subsistem, na doutrina, diferentes acepções sobre o instituto da coisa julgada. Destacam-se as seguintes: a) a coisa julgada como um efeito da decisão; b) a coisa julgada como uma qualidade dos efeitos da decisão; c) e a coisa julgada como uma situação jurídica do conteúdo da decisão. (Idem, 2007, 482)
A primeira corrente doutrinária, perfilhada por Hellwuig, Rosenberg (dentre outros inúmeros autores alemães). Pontes de Miranda, Ovídio Baptista e Araken de Assis, etc, sustentam ser a coisa julgada um efeito da decisão. Esta concepção, de forte influência alemã, restringe a coisa julgada ao elemento (efeito ou eficácia) declaratório da decisão. A carga declaratória da decisão seria imutável, indiscutível, defendem, portanto, que nada apaga aquilo que o juiz declarou. Confinam a autoridade da coisa julgada à pura declaração de existência (ou inexistência) de um direito; seria uma força vinculante desta declaração que a torna obrigatória e indiscutível.” (Idem, 2007, 482)
A segunda corrente, capitaneada por Liebman, que apanha a maior parte da doutrina brasileira tradicional – dentre outros, Cândido Dinamarco, Ada Pelegrini, Moacyr Amaral Santos, Teresa Arruda Alvim Wambier, José Miguel Garcia Medina –, que define a coisa julgada como uma qualidade dos efeitos da decisão. Seria a imutabilidade que acoberta os efeitos da decisão judicial. (Idem, 2007, 483)
Conforme já asseverado, esse ensinamento liebmaniano é duramente criticado por corrente doutrinária, que sustenta, invariavelmente, que os efeitos da decisão (condenação, constituição etc.) não são imutáveis, mas, sim, disponíveis e modificáveis. Não tendem a durar perpetuamente os efeitos da decisão passada em julgado.
A terceira e última corrente refere-se à coisa julgada como uma situação jurídica do conteúdo da decisão. Consistiria na imutabilidade do conteúdo da decisão, do seu comando (dispositivo), que é composto pela norma jurídica concreta. Não há que falar em imutabildiade dos seus efeitos, vez que estes podem ser, como já exposto e exemplificado, disponíveis e, pois, alteráveis. Trata-se do entendimento de doutrina autorizada, como Machado Guimarães e Barbosa Moreira. Parece-nos o mais adequado. (Idem, 2007, 485)
6.4 Limites subjetivos
A questão dos limites subjetivos da coisa julgada consiste em saber quem está submetido à ela; se opera apenas em relação às partes, ou pode alcançar terceiros?
Para melhor analisar o tema dos limites subjetivos da coisa julgada, tem-se que antes de tudo partir da distinção de Liebman entre eficácia da sentença e autoridade da coisa julgada, levando em consideração as figuras dos terceiros juridicamente indiferentes; terceiros juridicamente interessados, não sujeitos à exceção de coisa julgada e, terceiros juridicamente interessados, sujeitos à exceção de coisa julgada, (MARINONI, 2003, 671/674; BAPTISTA, 2000, 502/507).
A eficácia da sentença consiste na aptidão em produzir os seus efeitos e na efetiva produção deles (quaisquer que sejam, segundo o seu conteúdo), estando, pois, subordinada à validade da sentença, isto é, à sua conformidade com a lei.
Já a autoridade da coisa julgada, segundo o Escólio de Barbosa Moreira, que nesse aspecto diverge de Liebman, consiste na situação de imutabilidade do conteúdo da sentença, do seu comando (dispositivo) (DIDIER, 2007, 485).
Pois bem, os efeitos da sentença estendem-se a todos, enquanto à autoridade da coisa julgada, em regra, restringe-se às partes (LIEBMAN, 2006, 165).
Em nosso sistema, a regra geral está consagrada no art. 472, CPC, de acordo com o qual ‘a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros.”
Porém, não se pode olvidar acerca incidência dos efeitos da sentença e, em certos casos, da autoridade da coisa julgada, com relação aos terceiros juridicamente indiferentes; terceiros juridicamente interessados, não sujeitos à exceção de coisa julgada e, terceiros juridicamente interessados, sujeitos à exceção de coisa julgada.
No que concerne aos terceiros juridicamente indiferentes, estranhos à relação e sujeitos de relação compatível com a decisão, temos que para eles logram aplicação combinada e atenuada ambos os princípios, de tal modo que é a sentença juridicamente irrelevante para eles, mas vale como coisa julgada para outrem, e pode produzir mero prejuízo de fato;
Com relação aos terceiros juridicamente interessados, não sujeitos à exceção de coisa julgada, são os titulares de relação incompatível com a sentença; para estes logra aplicação exclusiva do princípio negativo (a coisa julgada é irrelevante com relação a terceiros) e, em consequência, podem desconhecer a coisa julgada que se formou entre as partes;
Quanto aos terceiros juridicamente interessados, sujeitos à exceção de coisa julgada, são os que se encontram subordinados à parte com referência à relação decidida; para estes logra aplicação exclusiva o princípio positivo, e a ciosa julgada que se formou entre as partes pode estender-se-lhes como sua própria. Eduardo Talamini (2005, 118/19), defende que submeter o terceiro à coisa julgada de um processo em que não figurou como parte, afrontaria os princípios da inafastabilidade da tutela jurisdicional, do devido processo legal e do contraditório, de forma que à exceção da coisa julgada ao terceiro juridicamente interessado, estaria condicionada à sua intervenção no feito.
Segundo Didier (2007, 499), a coisa julgada ultra partes, exceção à regra geral, é aquela que atinge não só as partes do processo, como também determinados terceiros. Os efeitos da coisa julgada estendem-se a terceiros, pessoas que não participaram do processo, vinculando-os. São exemplos os casos de substituição processual, em que o substituído, apesar de não ter figurado como parte na demanda, terá sua esfera de direitos alcançada pelos efeitos da coisa julgada. A crítica que tecemos à essa tese é que pessoas como os substituídos processuais não são terceiros, e sim partes.
Tem-se, ainda, a coisa julgada ultra partes nos casos de legitimação concorrente ou de indivisibilidade do objeto da demanda. O sujeito co-legitimado para ingressar com uma ação (detentor de legitimação concorrente), que poderia ter sido parte no processo, na qualidade de litisconsorte unitário facultativo ativo, mas não foi, ficará vinculado aos efeitos da coisa julgada produzida pela decisão proferida na causa. Tal hipótese é polêmica na doutrina brasileira, posicionando-se, favoravelmente, Barbosa Moreira, José Rogério Cruz e Tucci e, Ada Pelegrini e, contrariamente, Eduardo Talamini. Neste particular, acompanhamos a tese defendida por Didier (2007,490), que condiciona a coisa julgada ultra partes à prévia intimação do co-legitimado para compor o pólo ativo da lide.
“A coisa julgada erga omnes, por fim, é aquela cujos efeitos atingem a todos os jurisdicionados – tenham ou não participado do processo. É o que ocorre, por exemplo, com a coisa julgada produzida na ação de usucapião de imóveis, nas ações coletivas que versem sobre direitos difusos ou direitos individuais homogêneos (art. 103, I e III do CDC) e nas ações de controle concentrado de constitucionalidade.” (TALAMINI, 2007, 491)
6.5 Limites objetivos
A questão atinente aos limites objetivos da coisa julgada, em nosso sistema, encontra-se positivada nos arts. 468 e 469 do CPC, de acordo com os quais somente se submete à coisa julgada material a norma jurídica concreta, contida no dispositivo da decisão, que julga o pedido (a questão principal), não se tornando imutável a atividade lógica exercida pelo juiz para preparar e justificar a decisão, pois se trata de decisão sobre questões incidentes (art. 469).
Em suma, os limites objetivos da coisa julgada são estabelecidos a partir do objeto do processo, isto é, da pretensão deduzida pelo autor – abrangente do pedido à luz da causa de pedir – e a apreciada pela sentença. E isso conduz ao exame da relação entre os limites objetivos da coisa julgada e a fundamentação da sentença, pois é preciso remontar ao fundamento da sentença, sempre que isso for necessário para estabelecer qual seja o bem da vida reconhecido ou negado pelo juiz (GRINOVER, 2009, 161/162).
Liebman (2006, 52/53), já defendia que a coisa julgada restringe-se à parte dispositiva, entendida, porém, a expressão, em sentido substancial e não formalístico, abrangendo, pois, não só a fase final da sentença, mas sim qualquer outro ponto em que o juiz tenha provido sobre a pretensão e a resistência.
Por conseguinte, infere-se que embora a autoridade da coisa julgada se limite ao dispositivo da sentença, esse comando pode e deve ser entendimento – tanto mais quando exista alguma margem para dúvida – à luz das considerações feitas na motivação, ou seja, na apreciação das questões surgidas e resolvidas no processo. “Assim, da mesma forma que, para a mais perfeita determinação do objeto do processo, se conjunta o pedido à causa de pedir, para determinação do objeto do julgamento – e da coisa julgada que sobre ele se forma – conjunta-se o mesmo aos motivos da decisão.” (GRINOVER, 2009, 165)
6.6 Modo de produção
Quanto ao modo de produção, há três diferentes tipos de coisa julgada, quais sejam:
i) Em primeiro lugar, temos a coisa julgada pro et contra, que é aquela que se forma independentemente do resultado do processo (regra geral do CPC);
ii) Em segundo lugar, temos a coisa julgada secundun eventum litis, que é aquela que somente é produzida quando a demanda for julgada procedente (art. 103, III, CDC);
iii) Em terceiro lugar, temos a coisa julgada secudum eventum probationis, que é aquela que só se forma em caso de esgotamento de prova [ações coletivas sobre direitos difusos ou coletivos (art. 103, I e II, CDC e art. 16 da Lei nº 7.347/85); ação popular (art. 18 da Lei nº 4.717/65) e, mandado de segurança (art. 19 da Lei nº 12.016/2009)] (DIDIER, 2007, 491/492).
6.7 Efeitos da coisa julgada e sua eficácia preclusiva
A coisa julgada produz um efeito negativo e um efeito positivo. O efeito negativo da coisa julgada impede que a questão principal já definitivamente decidida seja novamente julgada como questão principal em outro processo. Já o efeito positivo da coisa julgada determina que a questão principal já definitivamente decidida e transitada em julgado, uma vez retornando ao Judiciário como questão incidental, não possa ser decidida de modo distinto daquele como o foi no processo anterior, em que foi questão principal.
O art. 474 do CPC estabelece que: “Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido.” Nisso consiste a eficácia preclusiva da coisa julgada, segunda a qual sua imutabilidade se estende a todas as questões decididas e, bem ainda, a toda matéria que poderia ser oposta tanto ao acolhimento, quanto à rejeição do pedido.
“Em suma, a coisa julgada traz consigo, inclusive como forma de assegurar o resultado prático e concreto do processo, o impedimento à rediscussão do que foi discutido (ou poderia ter sido) na fase cognitiva.” (GRINOVER, 2009, 167).
Na doutrina pátria existem três correntes a respeito a respeito da eficácia preclusiva da coisa julgada (DIDIER, 2007. 497):
i) A corrente majoritária entende que a eficácia preclusiva só atinge argumentos e provas que sirvam para embasar a causa petendi deduzida pelo autor. O efeito preclusivo não atinge todas as causas de pedir que pudessem ter servido para fundamentar a pretensão formulada em juízo, mas tão-somente a causa petendi que, de fato, embasou o pedido apresentado pelo autor;
ii) A segunda corrente, entende que a eficácia preclusiva da coisa julgada abrange todas as possíveis causas de pedir que pudessem ter embasado o pedido formulado; implica, pois, o julgamento de todas as causas de pedir que pudessem ter sido deduzidas mas não foram;
iii) A terceira corrente, propugnada por José Maria Tesheiner, sugere uma visão intermediária, sustenta que o art. 474 apanha a hipótese de fatos da mesma natureza, conducentes ao mesmo efeito jurídico.
6.8 A coisa julgada e as relações jurídicas continuativas
Há sentenças que disciplinam relações jurídicas continuativas, que têm por objeto obrigações homogêneas de trato sucessivo, cuja relação jurídica se projeta no tempo, que não é instantânea, normalmente envolvendo prestações periódicas, como é o caso das ações de alimentos, das ações questionando tributos.
Tem quem defenda que as sentenças proferidas em tais tipos de relação jurídica não fazem coisa julgada, ante a possibilidade de modificação. Entretanto, tal concepção é de todo equivocada, pois tais sentenças são aptas a produzirem coisa julgada.
Na verdade, modificando-se os fatos que dão ensejo à relação continuativa, exsurge a possibilidade de propositura de uma nova ação, com elementos distintos (nova causa de pedir e novo pedido).
Ora, a coisa julgada não pode impedir a rediscussão do tem por fatos supervenientes ao trânsito em julgado, até por que a eficácia preclusiva só atinge aquilo que foi deduzido ou poderia ter sido deduzido pela parte à época (MARINONI, 2008-A, 144/145).
A nova sentença proferida para uma nova situação, não desconhece nem contraria a anterior, cujos pressupostos e elementos constitutivos já variaram com o passar do tempo. Na verdade, toda sentença proferidas nas relações jurídicas continuativas contém em si a cláusula rebus sic stantibus.
Entre nós, o art. 471 do CPC trata da matéria estabelecendo que a parte pode pedir revisão do que foi estatuído na sentença, se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito.
O Enunciado da Súmula 239 do STJ também trata do tema, dispondo que: “Decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação aos posteriores.”. Tal Súmula deve ser interpretada no sentido de que enquanto o substrato fático da relação jurídica já resolvida mantiver-se o mesmo, a coisa julgada é eficaz e deve ser respeitada, podendo, porém, ser ultrapassada caso haja alteração do quadro fático-normativo.
Ou seja, o supracitado enunciado deve ser entendimento da seguinte forma: “a decisão que reconhece a inexistência do dever de pagar tributo permanece eficaz enquanto permanecer o mesmo quadro normativo do mencionado tributo. Se o painel normativo do tributo sofrer alteração no exercício posterior, a decisão que houver reconhecido a inexistência do dever de contribuir no exercício anterior não mais se aplica.” (DIDIER, 2007, 503/504).
6.9 Meios de revisão da coisa julgada
O nosso sistema processual prevê os seguintes meios de revisão da coisa julgada:
i) Ação Recisória (art. 485, CPC);
ii) Impugnação da sentença inconstitucional (art. 475-L, § 1º e 741, parágrafo único, CPC);
iii) Impugnação com base na existência de erro material (art. 463, I, CPC).
Há quem inclua a querella nulitatis dentre os meios de impugnação, porém não concordamos, pois as sentenças sujeitas à revisão através de tal meio não produzem coisa julgada.
7. RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA
A flexibilização da coisa julgada é tema que há muito vem empolgando os doutrinadores pátrios e estrangeiros.
Pontes de Miranda (1976, 195) já discorria sobre as sentenças nulas de pleno direito, arrolando três impossibilidades que conduziam a isso: impossibilidade cognoscitiva, lógica ou jurídica e, apontando uma variedade de remédios jurídicos capazes de desconstituir tais sentenças, como: (a) nova demanda em juízo sobre o mesmo objeto, com pedido de solução conforme à ordem jurídica, sem os óbices da coisa julgada; (b) resistência à execução, inclusive, mas não exclusivamente por meio de embargos e, (c) alegação incidenter tantum em algum outro processo.
Outros renomados doutrinadores pátrios como Cândido Rangel Dinamarco, Humberto Theodoro Júnior e Hugo Nigro Mazzilli são entusiastas da relativização da coisa julgada.
Juristas latino-americanos como Juan Carlos Hitters e Eduardo Couture também são adeptos da mesma corrente, chegando este último a conceituar a coisa julgada deliquente, para, ao final, concluir que se fecharmos os caminhos para a desconstituição das sentenças passadas em julgado acabaremos por outorgar uma carta de cidadania e legitimidade à fraude processual e às formas delituosas do processo (DINAMARCO, 2002, 8/9).
Por outro lado, há doutrinadores, aos quais nos perfilhamos, como Fredie Didier Jr. e Luiz Guilherme Marinoni, assim como outros mais tradicionais como Araken de Assis, que são ferrenhos críticos da corrente que defende a relativização da coisa julgada de forma ampla e atípica.
Tais autores são peremptórios ao inadmitir a revisão da coisa julgada por critérios atípicos (não previstos em lei), por entenderem que relativizar a coisa julgada por critério atípico é o mesmo que exterminá-la, uma vez que ao se abrir a janela para a relativização atípica da coisa julgada, sob o fundamento de buscar a justiça e constitucionalidade das decisões, todas as portas se escancararão às iniciativas do vencido de buscar indefinidamente a revisão do julgado, indicando, claramente, que tal cenário de instabilidade ocasionará muito mais insegurança jurídica, que justiça nos casos concretos.
Neste particular Araken de Assis (ARMELIN, 2008, 112/113) leciona com sua habitual lucidez:
“Não é preciso infalível oráculo para prever, abertas as exceções e proposta a flexibilização do instituto, a rápida disseminação desse vírus do relativismo para todo o corpo. Nenhum veto, a priori, barrará o vencido de desafiar e afrontar o resultado precedente de qualquer processo invocando a pretensa ofensa desse ou daquele valor da Constituição. Esta possibilidade multiplicará os litígios, nos quais o órgão judiciário de primeiro grau decidirá, preliminarmente, se obedece ou não o pronunciamento transitado em julgado do seu Tribunal e, até, conforme o caso, do Supremo Tribunal Federal. A intervenção legislativa para estabelecer, previamente, as situações em que a eficácia de coisa julgada não opera na desejável e natural extensão e o remédio adequado para retratá-la, talvez nos termos já esboçados alhures, é o único caminho promissor para banir a insegurança do vencedor, a afoiteza ou falta de escrúpulos do vencido e o arbítrio e casuísmo judiciais.”
No Brasil, há dois estudos a respeito da relativização da coisa julgada, sendo um pró, de autoria de Cândido Rangel Dinamarco (2002, 01/28) e, outro, contra, de autoria de Luiz Guilherme Marinoni (2008, 263/282), que consideramos abordar com profundidade o tema. A seguir, exporemos os fundamentos de um e outro estudo.
7.1 Síntese da tese de Dinamarco
Dinamarco (2002, 01/28) inicia seu estudo destacando que a doutrina e jurisprudência começam a despertar para a necessidade de repensar a garantia constitucional e o instituto técnico-processual da coisa julgada, na consciência de que não é legítimo eternizar injustiças a pretexto de evitar a eternização de incertezas.
O autor cita como exemplo de aplicação jurisprudencial da relativização da coisa julgada o voto proferido pelo Min. do Superior Tribunal de Justiça, José Augusto Delgado, num caso em que a Fazenda do Estado de São Paulo havia sido vencida em processo de desapropriação indireta e, depois de feito acordo com os adversários para parcelamento do débito e pagas algumas parcelas, voltou a juízo com uma demanda que denominou ação declaratória de nulidade de ato jurídico cumulada com repetição de indébito, alegando que houve erro no julgamento da ação expropriatória, causado ou facilitado pela perícia, uma vez que a área supostamente apossada pelo Estado já pertencia a ele próprio e não aos autores. Apesar do trânsito em julgado e do acordo depois celebrado entre as partes, o Min. José Delgado, invocando os princípios da moralidade pública, da razoabilidade e proporcionalidade, votou no sentido de restabelecer, em sede de recurso especial, a tutela antecipada que o MM. Juiz de primeiro grau concedera à Fazenda e o Tribunal paulista, invocando a auctoritas rei judicatæ, viera a negar.
Dinamarco também cita como exemplos casos em que o Supremo Tribunal Federal, sob o argumento de preservar a garantia constitucional da justa indenização, mitigou a coisa julgada, para atualizar valor de imóvel desapropriado, cuja indenização havia sido demasiadamente defasada, em virtude da procrastinação do pagamento por culpa do ente expropriante.
Entre os estrangeiros, o Cândido Dinamarco alude à Eduardo Couture, o qual entende que se fecharmos os caminhos para a desconstituição das sentenças passadas em julgado, acabaremos por outorgar uma carta de cidadania e legitimidade à fraude processual e às formas delituosas do processo.
O jurista uruguaio cita como exemplo para relativização da coisa julgada, o caso do fazendeiro rico que, tendo gerado um filho em parceria com uma empregada, gente muito simples, para forrar-se às responsabilidades de pai induziu esta a constituir um procurador, pessoa da absoluta confiança dele, com poderes para promover a ação de investigação de paternidade. Citado, o fazendeiro negou vigorosamente todos os fatos constitutivos narrados na demanda e o procurador do menor e da mãe, que agia em dissimulado conluio com o fazendeiro, negligenciou por completo o ônus de provar o alegado; a conseqüência foi a improcedência total da demanda, passando em julgado a sentença porque obviamente o advogado conluiado não recorreu. Mais tarde, chegando à maioridade, aquele mesmo filho moveu novamente uma ação de investigação de paternidade, quando então surgiu o problema da coisa julgada.
Entre os brasileiros, Cândido Dinamarco invoca as lições de Hugo Nigro Mazzilli, que exemplifica caso de flexibilização da coisa julgada com a hipótese de uma ação civil pública ter sido julgada improcedente por serem inócuas ou mesmo benfazejas os gases liberadas na atmosfera por uma fábrica e, depois do trânsito em julgado, verificar-se o contrário, tendo em vista que a sentença havia se embasado em perícia fraudulenta.
Do Direito norte-americano, que não é tão apegado aos rigores da autoridade da coisa julgada como o nosso, de origem romano-germânica, o autor traz o pensamento de Mary Kay Kane, a qual entende que em certas circunstâncias a imutabilidade da coisa julgada deve ser superada por outras razões de ordem pública subjacentes à relação jurídica que estiver em discussão.
Após amparar sua tese no escólio de autores pátrios e estrangeiros, Cândido Dinamarco sugere o conceito técnico-jurídico da impossibilidade jurídica dos efeitos da sentença como ponto de equilíbrio entre a garantia constitucional da coisa julgada e os valores que entende substanciais; asseverando que as hipóteses de mitigação da coisa julgada devem se valer desse conceito técnico-jurídico.
De acordo com o pensamento do autor, a autoridade da coisa julgada sobre os efeitos substanciais da sentença só ocorre quando a mesma produz efeitos possíveis juridicamente; inexistindo, pois, a coisa julgada material, quando os efeitos da sentença forem juridicamente impossíveis.
O autor exemplifica a impossibilidade jurídica dos efeitos da sentença supondo: a) o caso de uma sentença que declarasse o recesso de algum Estado federado brasileiro, dispensando-o de prosseguir integrado na República Federativa do Brasil; b) uma sentença que condenasse uma pessoa a dar a outrem, em cumprimento de cláusula contratual, determinado peso de sua própria carne, em conseqüência de uma dívida não honrada; c) ou que condenasse uma mulher a proporcionar préstimos de prostituta ao autor, em cumprimento ao disposto por ambos em cláusula contratual.
Segundo Dinamarco, sentenças como essas, por produzirem efeitos juridicamente impossíveis, tropeçariam na barreira intransponível do pacto federativo, do zelo pela integridade física e pela dignidade humana, valores absolutos que a Constituição Federal cultiva. Destarte, cabe aos juízes de todos os graus jurisdicionais a tarefa de descobrir as extraordinariedades que devam conduzir à flexibilização da garantia da coisa julgada, recusando-se a relativizá-la sempre que o caso não seja portador de absurdos, injustiças graves, transgressões constitucionais etc.
Finalizando Dinamarco afirma que a linha proposta não vai ao ponto insensato de minar imprudentemente a autoridade da coisa julgada, propondo apenas um trato extraordinário, visando afastar absurdos, injustiças flagrantes, fraudes e infrações à Constituição. Nesse desiderato, aponta os remédios processuais adequados à relativização da coisa julgada como sendo: a) a propositura de nova demanda igual à primeira, desconsiderada a coisa julgada, b) a resistência à execução, por meio de embargos a ela ou mediante alegações incidentes ao próprio processo executivo e, c) a alegação incidenter tantum em algum outro processo, inclusive em peças defensivas.
7.2 Síntese da tese de Marinoni
Marinoni (2008, 263/282), combate com clareza, autoridade e fundamento a tese de Cândido Dinamarco, chegando ao ponto de rechaçar à necessidade de flexibilização da coisa julgada em cada um dos exemplos citados por este.
O autor inicia seu trabalhando afirmando que, ainda não existem condições de disciplinar um processo que sempre conduza a um resultado justo e que não há critérios seguros para a “relativização” da coisa julgada, de forma que a mitigação dessa pode, na verdade, conduzir à sua “desconsideração”, estabelecendo um estado de grande incerteza e injustiça.
Essa “desconsideração” geraria uma situação insustentável, como demonstra Radbruch citando a seguinte passagem de Sócrates: “crês, porventura, que um Estado possa subsistir e deixar de se afundar, se as sentenças proferidas nos seus tribunais não tiverem valor algum e puderem ser invalidadas e tornadas inúteis pelos indivíduos?” (MARINONI, 2008, 264)
Em seguida, o autor passa a demonstrar a desnecessidade de se relativizar a coisa julgada nos exemplos citados pela corrente de Dinamarco.
Com efeito, um dos exemplos que a doutrina tem usado para dar fundamento à tese da “relativização” é o da ação de investigação de paternidade, cuja sentença, transitada em julgado, declarou que o autor não é filho do réu (ou o inverso), vindo depois um exame de DNA a demonstrar o contrário. Diante disso, e para tornar possível a rediscussão do que foi afirmado pela sentença transitada em julgado, argumenta-se que a indiscutibilidade da coisa julgada não pode prevalecer sobre a realidade, e que assim deve ser possível rever a conclusão formada.
Nesse particular, o problema não é o de saber se é possível pensar em sentenças que, por possuírem vícios de extrema gravidade, podem ser desconsideradas independentemente de ação rescisória. O que importa é indagar se é possível e conveniente, diante de certas circunstâncias, dispensar a ação rescisória para abrir oportunidade para a revisão de sentenças transitadas em julgado, ou se é mais prudente e conveniente dar uma interpretação e aplicação mais extensiva aos meios rescisórios já previstos em lei.
Nessa senda, no caso do exame de DNA, poder-se-ia alargar o cabimento da ação rescisória, contando o prazo de dois anos para o seu ajuizamento, a partir da ciência da parte vencida sobre a existência do exame de DNA. Não obstante, a dificuldade de identificação dessa ciência, que certamente seria levantada, é somente mais uma razão a recomendar a imediata intervenção legislativa.
“Como essa ação possui relação com a evolução da tecnologia, ou melhor, com uma forma de produção de prova impensável na época em que o artigo 485 do CPC passou a reger a ação rescisória, é imprescindível que esse artigo seja alterado para deixar clara a possibilidade do uso da ação rescisória com base em laudo de DNA, bem como o seu prazo.” (MARINONI, 2008, 276/277)
Com relação aos casos de erro de avaliação sobre o imóvel nas hipóteses de ação de desapropriação, Marinoni defende que se o laudo tiver se fundado em prova falsa, caberá ação rescisória, em conformidade com o art. 485, VI do CPC. Isso porque a prova falsa, aí, dá constituição à própria perícia, na qual a sentença se fundou para chegar ao valor imposto à Fazenda Pública.
Marinoni (2008, 275) também critica a argumentação de Dinamarco, quando faz menção ao Direito norte-americando, afirmando que nesse sistema importa mais a realidade que a estabilidade. Citando a doutrina de Fleming James Jr., Geoffrey C. Hazard Jr. e John Leubsdorf, Marinoni demonstra que a citação de Dinamarco não parece ser a posição defendida pela doutrina americana mais abalisada, que reconhece que o propósito de um processo judicial não é somente fazer justiça material, mas trazer um fim a controvérsia, sendo importante que os julgamentos da Corte tenham estabilidade e certeza.
Outrossim, é importante destacar que Marinoni critica a utilização dos princípios da proporcionalidade, o da legalidade e o da instrumentalidade como argumento em favor da “relativização” da coisa julgada.
Segundo o autor, de nada adianta falar em direito de acesso à justiça, sem dar ao cidadão o direito de ver o seu conflito solucionado definitivamente. Por isso, se a definitividade inerente à coisa julgada pode, em alguns casos, produzir situações indesejáveis ao próprio sistema, não é correto imaginar que, em razão disso, ela simplesmente possa ser desconsiderada.
Nesse sentido, não parece que a simples afirmação de que o Poder Judiciário não pode emitir decisões contrárias à justiça, à realidade dos fatos e à lei, possa ser vista como um adequado fundamento para o que se pretende ver como “relativização” da coisa julgada.
Mesmo sem adentrar em complexos temas da filosofia do direito, pode-se logicamente argumentar que as teses da “relativização” não fornecem qualquer resposta para o problema da correção da decisão que substituiria a decisão qualificada pela coisa julgada. É que em se admitindo que o Estado-Juiz errou no julgamento que se cristalizou, obviamente implica em aceitar que o Estado-Juiz pode errar no segundo julgamento e, nessa hipótese, a idéia de “relativizar” a coisa julgada não trará qualquer benefício ou situação de justiça.
Quanto ao argumento da proporcionalidade, o autor argumenta a impossibilidade de o legislador acompanhar a velocidade do progresso da tecnologia não pode levar à conclusão de que o juiz pode definir, mediante a aplicação da regra da proporcionalidade, os direitos que não se submetem à coisa julgada material.
Segundo Marinoni, para se aceitar como plausível a alusão à proporcionalidade em face da ação de investigação de paternidade, a contraposição não estaria sendo feita entre o direito à descoberta da relação de filiação e a coisa julgada material em abstrato, mas sim no caso concreto, considerado o surgimento do meio técnico do DNA como capaz de dar nova conformação à decisão transitada em julgado. Porém, não há qualquer possibilidade ou razão para apelo à “harmonização” quando o que está em jogo é o surgimento de meio técnico capaz de modificar o julgamento. Se o exame de DNA pode alterar o julgamento que se formou na sentença acobertada pela coisa julgada, o correto é interpretar tal exame como um “documento novo” que não pôde ser utilizado, mas que é capaz, por si só, de “assegurar um pronunciamento favorável” (art. 485, VII do CPC).
Ainda segundo Marinoni, nesse caso o prazo da ação rescisória deve decorrer a partir da ciência da parte a respeito da existência dessa técnica – e não, evidentemente, do trânsito em julgado. Ademais, diante da natureza da prova do momento dessa ciência, caberá ao réu da rescisória demonstrar que o autor teve tal ciência há mais de dois anos.
Marinoni também demonstra que a ‘tese da relativização’ contrapõe a coisa julgada material ao valor justiça, mas surpreendentemente não diz o que entende por “justiça” e sequer busca amparo em uma das modernas contribuições da filosofia do direito sobre o tema. Aparentemente parte de uma noção de justiça como senso comum, capaz de ser descoberto por qualquer cidadão médio (l’uomo della strada), o que a torna imprestável ao seu propósito, por sofrer de evidente inconsistência.
Concluindo Marinoni assevera que uma teoria que conseguisse fazer com que todos os processos terminassem com um julgamento justo seria a ideal. Mas, na sua falta, não há dúvida de que se deve manter a atual concepção de coisa julgada material, sob pena de serem cometidas injustiças muito maiores dos que as pontuais e raras levantadas pela doutrina. Aliás, a essa mesma conclusão chegou o autor da mais moderna teoria da justiça da atualidade, o recentemente falecido John Rawls, quando escreveu que “a única coisa que permite que aquiesçamos com uma teoria errônea é a carência de uma melhor, analogicamente, uma injustiça é tolerável somente quando é necessária para evitar uma injustiça ainda maior.” (MARINONI, 2008, 282/283)
7.3 Delimitação do problema e sugestão de solução
Assinale-se, por oportuno, que somos absolutamente contrários às teorias favoráveis à relativização da coisa julgada, pois entendemos que a intangibilidade da coisa julgada, relevante manifestação do princípio da segurança jurídica, não pode ser desconsiderada, em virtude de alegações de injustiça e irrazoabilidade, principalmente, nas demandas envolvendo direito patrimonial, cujas ilegalidades e injustiças podem ser questionadas através da vasta gama de recursos previstos no CPC e, ainda após do trânsito em julgado, através da Ação Recisória (art. 485, CPC); Impugnação da sentença inconstitucional (art. 475-L, § 1º e 741, parágrafo único, CPC) e, Impugnação com base na existência de erro material (art. 463, I, CPC).
Com efeito, entendemos que os inúmeros recursos previstos em lei e os meios típicos de impugnação da coisa julgada são mais que suficientes para proteger a parte, seja ela particular ou a fazenda pública, de ilegalidades e/ou injustiças.
Porém, não se pode olvidar que persiste ainda um único problema não solucionado pelo sistema, que pertine, exatamente, às sentenças sobre estado de pessoa (especialmente as relativas à filiação).
Nas ações relativas à filiação, há inúmeros casos em que após a formação da coisa julgada, descobre-se através do exame de DNA que o resultado da demanda deveria ser diverso.
Neste particular, não concordamos com a tese esposada por Marinoni (2008, 276/277), no sentido de a solução estaria na flexibilização do prazo bienal da Ação Rescisória, a ser contado a partir da data em que o interessado teve conhecimento do exame de DNA.
Com relação a esse problema das ações de filiação, inspirados no Direito Canônico e com fulcro na interpretação sistemática, preferimos erigir uma tese original, defendendo que essas ações, pela relevância do valor em discussão – dignidade da pessoa humana – não devem fazer coisa julgada.
É que a preclusão, a prescrição e a coisa julgada têm todas o mesmo fundamento, qual seja, a segurança jurídica. Acontece que nosso sistema convive perfeita e harmonicamente com a existência de direitos imprescritíveis, de forma que também não haverá óbice à existência de determinado tipo de causa que não faça coisa julgada.
Nesse sentido, o art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) embasa nossa tese ao estabelecer que: “O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça.”
Pois bem, se as ações relativas ao estado de filiação, pela relevância da matéria envolvida, são imprescritíveis, pela mesma razão não devem sujeitar-se a intangibilidade da coisa julgada.
No Direito Canônico, tal matéria é assente, já que vige o princípio positivado no Cânone 1.643 de que: “Nunca passam em julgado causas sobre o estado das pessoas, não excetuando causas sobre separação de cônjuges.”
Entretanto, é importante esclarecer que o fato de defendermos que as sentenças produzidas nas ações de filiação não fazem coisa julgada, não significa que possam ser revisadas por meio de simples alegação de uma parte descontente. Entendemos que o direito pátrio deve instituir e sistematizar uma forma de impugnação de tais sentenças, a exemplo do instituto da restitutio in integrum do Direito Canônico, positivado nos Cân. 1.644 e 1.645 do Código de Direito Canônico.
8. CONCLUSÕES
De todo o exposto, podemos concluir que muitas das polêmicas a respeito da “relativização da coisa julgada” são alimentadas pela falta de conhecimento do instituto.
Constantemente, é atribuída a autoridade da coisa julgada a pronunciamentos que em verdade dela não se revestem e cuja injustiça ou ilegitimidade podem vir a ser corrigidas ou superadas independentemente de qualquer solução que envolva verdadeira quebra da coisa julgada
Significativa parcela dos casos até então examinados pela doutrina e jurisprudência sob o ângulo da “relativização da coisa julgada”, podem e devem ser resolvidos através da aplicação das regras comuns que disciplinam o instituto.
Porém, não se pode olvidar que persiste ainda um único problema não solucionado pelo sistema, que pertine às sentenças sobre estado de pessoa (especialmente as relativas à filiação).
Com relação a esse problema das ações de filiação, inspirados no Direito Canônico e com fulcro na interpretação sistemática, preferimos erigir uma tese original, defendendo que essas ações, pela relevância do valor em discussão – dignidade da pessoa humana – não devem fazer coisa julgada.
Por conseguinte, sugerimos uma alteração legislativa, para que as sentenças sobre filiação não façam coisa julgada; assim como sugerimos a criação de um instituto semelhante a restitutio in integrum, visando regulamentar a forma de impugnação dessas sentenças.
Formado pela Universidade Federal da Paraíba, Advogado militante, Especialista em Direito Processual Civil pelaUniversidade Potiguar – UNP, Mestrando em Direito Processual Civil pela UNICAP
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