Reflexões sobre o direito civil constitucional e a eficácia horizontal dos direitos fundamentais

Resumo: Aborda-se, por meio desse artigo, o Direito Civil Constitucional, com vistas a uma eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Para tal, estabelecem-se, primeiramente, as distinções entre as teorias da eficácia vertical e horizontal dos direitos fundamentais, algumas questões concernentes ao Direito Público e ao Direito Privado, da Idade Média aos dias atuais, perpassando as dicotomias inerentes a cada época, bem como que o Estado Democrático de Direito impõe um novo paradigma, em que a Constituição protagoniza o cenário jurídico, elevando a pessoa ao centro de todas as atenções. Nesse quadro, assevera-se que o direito civil deva ser aplicado para dar uma eficácia horizontal aos direitos fundamentais guarnecidos pela Constituição da República de 1988, pois é ela quem fundamenta todo o ordenamento jurídico, inclusive os estatutos civis. Procura-se demonstrar ainda, que ao aplicador do direito é reservado um papel de busca da justiça, sendo certo que diante de todo e qualquer caso, o estudo da melhor maneira de sua resolução consubstanciar-se-á numa leitura eminentemente constitu­cional, com vistas à garantia e efetividade dos direitos fundamentais.

Palavras-chave: Constituição; Direito civil; Eficácia horizontal; Efetividade dos direitos fundamentais;

Abstract: Covers up, through this article, the Civil Law Constitutional toward a horizontal effectiveness of fundamental rights. To do this, set up, primarily, the distinctions between the theories of vertical and horizontal effectiveness of fundamental rights, some questions regarding the Public Law and Private Law from the Middle Ages to the present day, spanning the dichotomies inherent in each season as well as the democratic rule of law requires a new paradigm, in which the Constitution carries the legal scenario, the person bringing the center of attention. In this context, he says-that the civil law must be applied to give an effective horizontal fundamental rights garrisoned by the Constitution of 1988, it is she who founded the entire legal system, including civil statutes. It seeks to demonstrate further that the investor the right is reserved a role in the pursuit of justice, given that before any case, the study of the best way to substantiate its resolution will be a reading eminently constitutionality, with a view to ensuring effectiveness and fundamental rights.

Keywords: Constitution; Civil law; Efficacy horizontal; Effectiveness of fundamental rights.

Sumário: Introdução. 1 A eficácia horizontal dos direitos fundamentais. 2 Dicotomia entre direito publico e direito privado em Kant e Bobbio. 3 Idade Média e Estado liberal: distinção e interpenetração entre direito público e direito privado. 4 Constitucionalismo social e a mudança de paradigma. 5 Considerações finais. Referências.

Introdução

O tema a ser explanado retrata um novo paradigma a ser seguido no Direito contemporâneo, de modo que o Direito Civil, como toda a legisla­ção infraconstitucional, deva ser analisado pela ótica Constitucional.

Em outras palavras, o paradigma impõe que interpretemos todas as searas do Direito, sejam elas a penal, processual, administrativa, e, inclusive, a cível, conforme a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (no que diz respeito nosso país), almejando-se a efetiva tutela dos direitos fundamentais.

Primeiramente, apresentamos algumas questões concernentes ao tema expostos bem como ao di­reito público e ao direito privado, sob a égide dos pensamentos de Emanuel Kant e Norberto Bobbio. Posteriormente, procura-se demonstrar que em determinado período da Idade Média, o senhor feudal acumulava na sua pes­soa, verdadeiro poder estatal, pois todos habitantes de seu feudo lhe deviam subordinação, exercendo este, funções, de ordem política, legislativa e judicial.

Ademais, assevera-se que no período correspondente ao Estado Liberal, houve certa interpenetração entre direito público e privado, tendo em vista interesses do monarca bem como da classe burguesa.

A partir desse momento histórico, os códigos civis foram encarados como um sistema fechado, numa perspectiva de centro da vida privada, de instrumentos legislativos totalizantes, de completude, donde se extrairia mandamentos legais tendentes à resolução de todos os fatos do convívio social. A lei era vislumbrada como norma suprema e os princípios jurídi­cos concebidos como conceitos ético-valorativos, fontes subsidiárias, apli­cados exclusivamente, para garantia da segurança das relações jurídicas e a eficácia da lei.

Em seguida, tecem-se alguns comentários a respeito do constitucio­nalismo social e da correlata mudança de paradigma no mundo jurídico. Aludimos, que diversamente do que se prelecionava no Estado Liberal, graças ao positivismo jurídico exacerbado (legalismo), não deveremos entender os códigos civis como sendo o centro do direito privado, mas sim, que a Constituição é o centro de todo ordenamento, inclusive do cível, pois vige, no nosso tempo, um sistema jurídico aberto em que a Constituição ocupa papel principal, restando aos demais institutos, desempenhar um papel coadjuvante.

Fundados no referido, concebe-se que os princípios jurídicos alcan­çaram status de normas, contendo, além de conceitos ético-valorativos, a ta­refa, como normas que o são, de incidirem na resolução de casos concretos.

1 A eficácia horizontal dos direitos fundamentais

Por força da conhecida teoria eficácia vertical dos direitos fundamentais, a aplicação dos direitos fundamentais nas relações estabelecidas entre o particular (pessoa física ou jurídica privada) e o poder público (Estado) não se discute, pois esses direitos nasceram, sob a égide do Estado liberal, para defender o indivíduo de eventuais arbitrariedades por parte do Estado.

Corroborando a alegação, aduz George Marmelstein:

“Como se sabe, os direitos fundamentais foram concebidos, originariamente, como instrumentos de proteção dos indivíduos contra a opressão estatal. O particular era, portanto, o titular dos direitos e nunca o sujeito passivo. É o que se pode chamar de eficácia horizontal dos direitos fundamentais, simbolizando uma relação (assimétrica) de poder em que o Estado se coloca em uma posição superior em relação ao indivíduo” ( MARMELSTEIN, 2009, p. 336).

Assim, sabe-se, por exemplo, que para se aplicar dada sanção ao indivíduo (sujeito de direito) deve-se percorrer os caminhos da ampla defesa e do contraditório (CF, art. 5º, LV), bem como que em dado concurso público, deve-se observar o princípio da isonomia (igualdade), previsto no art. 5º, caput da Constituição Federal.

O problema surge quando se pensa na aplicação dos direitos fundamentais entre particulares. Tendo os direitos fundamentais nascido como um meio de defesa do indivíduo contra o arbítrio estatal, será que com o advento do Estado Democrático de Direito referidos direitos não ganharam outra roupagem, sendo passíveis de aplicação nas relações entre particulares?

A pergunta se torna pertinente pelo fato de que, atualmente, reconhece-se os direitos fundamentais projetando-se, também, nas relações entre particulares, até porque os agentes privados, especialmente aqueles detentores de poder social e econômico, são capazes de causar danos efetivos aos princípios constitucionais, podendo oprimir tanto ou até mais do que o Estado.

Nesse viés, conforme Pedro Lenza (2010), algumas situações são fáceis de ser resolvidas. Sem dúvidas, por exemplo, se um empresário demitir um funcionário em razão da sua cor, o judiciário poderá reintegrar o funcionário, já que o ato motivador da demissão, além de triste e inaceitável crime praticado, fere, gravemente, o princípio da dignidade da pessoa humana, dentre outros.

Num desses casos de fácil constatação de aplicação dos direitos fundamentais na relação entre particulares, o Supremo Tribunal Federal se manifestou:

“SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOSDIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIADOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantiasfundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aosdireitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aosdireitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdadesfundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores – UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dosdireitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitosautorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO” (BRASIL, 2005, p. 01).

Enfim, em algumas situações a aplicação dos direitos fundamentais será facilmente visualizada. O problema surge (LENZA, 2010) quando se pensa, por exemplo, na aplicação do direito à igualdade (CF, art. 5º) na relação entre indivíduos. O dono do negócio poderá demitir alguém simplesmente por não estar gostando de sua aparência? Numa entrevista de emprego, o dono do negócio deverá contratar o melhor candidato?

A partir do problema, surgiram três teorias: a teoria da ineficácia, a teoria da eficácia indireta (mediata) e a teoria da eficácia direta (imediata).

A primeira teoria, teoria da ineficácia, aplicada nos Estados Unidos, repele a aplicação dos direitos fundamentais entre particulares. Segundo adeptos desta vertente, os direitos fundamentais, conforme o seu nascimento, servem, unicamente, para que o indivíduo possa defender-se do arbítrio estatal, devendo a relação entre indivíduos, ser pautada na autonomia privada.

Os defensores da teoria da eficácia indireta ou mediata sustentam a possibilidade de aplicação dos direitos fundamentais entre particulares, desde que o legislador preveja em quais situações e sobre quais direitos isso vai se dar.

Já aqueles que defendem a teoria da eficácia direta ou imediata, aduzem que os direitos fundamentais podem ser aplicados às relações privadas sem que haja necessidade de intermediação legislativa para sua concretização.

Em defesa da aplicação direta, Steinmetz (2004) sustenta a possibilidade de aplicação direta não significa uma sobreposição das ponderações judiciais em relação às legislativas. Havendo regulação legislativa específica, desde que compatível com a Constituição e com os direitos fundamentais, deve prevalecer a aplicação da norma infraconstitucional. Somente na hipótese de serem deficitárias, insuficientes, lacunosas ou manifestamente inconstitucionais é que as concretizações legislativas deverão ser afastadas.

Nesse quadrante, desenvolvendo citadas correntes doutrinárias, Marcelo Novelino adverte:

“Três teorias foram desenvolvi­das acerca do tema. A primeira, conhecida por Teoria da Ineficácia Horizontal nega qualquer efeito dos direitos fundamentais na relação entre particulares. A segun­da, Teoria da Eficácia Horizontal Indireta, sustenta que os direitos fundamentais poderiam ser relativizados nas relações contratuais a favor da autonomia privada e da responsabilidade individual, cabendo ao legislador a tarefa de mediar a aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas, por meio de uma regulamentação compatível com os valores constitucionais. A terceira, Teoria da Eficácia Horizontal Direta, defende que a incidência dos direitos fundamentais deve ser estendida às relações entre particulares, independentemente de qualquer intermediação legislati­va, ainda que não se negue a existência de certas especificidades nessa aplicação, bem como a necessidade de ponderação dos direitos fundamentais com a autonomia da vontade” (NOVELINO, 2008, p. 335).

2 Dicotomia entre direito publico e direito privado em Kant e Bobbio

Sempre houve e sempre haverá quem diga existir uma dicotomia en­tre direito público e direito privado. Entretanto, uma nova visão sobre o di­reito aflora hodiernamente diante do pós-positivismo, levando-nos a supe­rar essa distinção, entendendo para tal, como já fora explicitado quando dos precedentes comentários, que todos os ramos do direito infraconstitucional hão de ser interpretados à luz da Constituição (inclusive o direito civil). Todavia, é necessário fomentar, para a devida compreensão da problemática que envolve o tema, algumas questões no que tange o entendimento de exis­tirem dois polos distintos no direito, vale dizer, o direito público e direito privado. É o que passamos a fazer a partir de agora.

Antes de apresentarmos o pensamento kantiano no que tange a tais questões, é necessário lembrar, por mais que não seja nossa pretensão de­senvolvê-lo, por tratar-se nosso trabalho de seara bem mais humilde, que o fundamento filosófico do seu direito é o imperativo categórico, também conhecido como lei moral. Em suma, o imperativo categórico nos transmite a ideia de que, fundado na noção de liberdade como autonomia, a máxima que o sujeito segue, e que ele próprio concebeu, é de tal ordem que todos poderiam aceitá-la, valendo como lei universal (todos dariam a ela seu sentimento) sem que o sujeito abra uma exceção para si (que a lei só valha para si, mas não para os outros, ou que só valha para os outros, mas não para si) (NOUR, 2004).

Posto isso, passamos à nossa proposta, ou seja, refletir acerca do di­reito público e do direito privado, com base em Kant e Bobbio.

Segundo Soraya Nour (2004), em O Legado de Kant à Filosofia do Direito, para Kant, há três tipos de direito: direito natural (Naturrecht), di­reito privado (natürliches Recht) e direito público (öffentliches Recht).

Para Kant, o direito natural (Naturrecht) corresponde, a priori, a cri­térios de justiça, o direito em condição natural (natürliches Recht), ao con­junto de leis que podem ser legitimamente pensadas, independentemente de instituições jurídico-políticas que o assegurem – corresponde às leis da sociedade, mesmo sem o Estado, e que se considerava na época como o di­reito privado: “[…] o conjunto de leis que não precisam de uma declaração exterior” Enquanto o direito público (öffentliches Recht) corresponde ao di­reito das instituições político-jurídicas: “[…] o conjunto de leis que necessi­tam de uma declaração pública.” (NOUR, 2004, p. 93).

À luz do referido, afirma Soraya Nour que a divisão interna principal que há na doutrina do direito de Kant não é entre um estado de natureza desprovido de direito e um estado jurídico, mas, sim, entre a sociedade, re­gida pelo direito privado, e o Estado, regido pelo direito público, ou seja, as instituições político-jurídicas que asseguram o cumprimento do direi­to privado. Tendo concluído que, tanto o direito privado quanto o público têm seus princípios de justiça determinados pelo direito natural. Assim, a doutrina do direito, ao ter por objeto o direito natural, assume a tarefa de investigação dos princípios de legitimidade do direito privado e do direito público (NOUR, 2004).

Norberto Bobbio, como nos informa Ingo Wofgang Sarlet, esta­belece, principalmente, a forma e a matéria da relação jurídica como cri­térios para distinguir direito público do direito privado (BOBBIO apud SARLET, 2006).

Para Bobbio, conforme Sarlet, com base na forma da relação jurídica, distinguem-se as relações de coordenação entre sujeitos de nível igual das de subordinação entre sujeitos de níveis diferentes, dos quais um é superior e outro inferior. Nesses termos, as relações de direito privado seriam carac­terizadas pela igualdade dos sujeitos, sendo, portanto, relações de coorde­nação. De outro modo, as relações de direito público seriam caracterizadas pela desigualdade dos sujeitos, logo, seriam relações de subordinação.

No que tange a matéria que constitui objeto da relação, Sarlet infor­ma, que segundo Bobbio, distinguem-se os interesses individuais, que se referem a uma única pessoa, dos interesses coletivos, que dizem respeito à totalidade das pessoas, à coletividade. Nesses termos, o direito privado seria caracterizado pela proteção que oferece aos interesses privados e o direito público pela proteção oferecida aos interesses coletivos.

Após essa breve explanação acerca do que estabelecem Kant e Bobbio para diferir direito público do direito privado, demonstra-se que em vários pe­ríodos da história um se sobrepôs ao outro, bem como estiveram envolvidos.

3 Idade Média e Estado liberal: distinção e interpenetração entre direito público e direito privado

No período mais intenso da idade medieval, houve certa absorção do público pelo privado, tendo em vista a primazia da propriedade territorial sobre os demais institutos, fossem eles, econômicos, políticos e jurídicos. Nesse tempo, os senhores feudais exerciam verdadeira função pública, pois ditavam regras obrigatórias, impunham e arrecadavam tributos, além de julgarem e executarem suas decisões.

Com o advento do Estado moderno, houve uma nova interpenetração entre público e privado, por interessar à burguesia emergente (privado) o fortalecimento da monarquia nacional (público), pois com a centralização do governo, favorecer-se-ia o desenvolvimento do comércio, reduzindo-se, consequentemente, as barreiras alfandegárias, as múltiplas moedas e de­mais searas. Por outro lado, também interessava ao púbico (monarca) a ascensão do privado, pois com o fortalecimento da burguesia, o monarca poderia cobrar tributos cada vez maiores, além do que, era dessa classe que se obtinha empréstimos para custear o financiamento de campanhas (SARLET, 2006).

À época, século XVI, o jusnaturalismo moderno dominara a filosofia do direito, sendo um dos triunfos ideológicos da burguesia e o combustível das revoluções liberais (BARROSO, 2006). Mais tarde, com o Estado Liberal, houve uma acentuada diferencia­ção entre direito público e direito privado. Nesse contexto, o direito priva­do passou a ser encarado como aquele que disciplina a sociedade civil, as relações intersubjetivas e o mundo econômico, enquanto o direito público, passou a ser concebido como ramo do direito que regula, tão-somente, a estrutura, organização e funcionamento do Estado.

Na esfera política, a interferência do Estado, com o tempo, passa a ser ínfima, principalmente a partir do liberalismo econômico, caracterizado pela pouca regulamentação Estatal. Nesse cenário, restava ao Estado, es­tritamente, zelar pela “tutela” dos indivíduos de modo a lhes assegurar seu espaço de liberdade econômica perante o próprio Estado.

Nesse sentido, Jane Reis Gonçalves Pereira, em A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, organiza­da por Luís Roberto Barroso, aduz que, o Estado Liberal de Direito erigi-se sobre as promessas de neutralidade e não intervenção, a fim de viabilizar o desenvolvimento pleno dos indivíduos, à margem da atuação dos poderes públicos. Nesse modelo de total separação entre Estado e sociedade civil, o direito privado desempenha a função de estabelecer as regras mínimas de convivência entre as pessoas, que desfrutam da mais ampla liberdade no âmbito social. De outro lado, ao direito público cabe disciplinar as relações entre os indivíduos e o Estado, cuja nota característica é a verticalidade.

Os códigos civis desse período, tendo como marco o Código Napoleônico de 1804, caracterizavam-se por centralizarem a propriedade, com ênfase na imobiliária, que detinha caráter absoluto e individualista. É época de voluntarismo jurídico, da liberdade vinculada à autonomia contra­tual bem como da igualdade estritamente formal.

Conforme Maria Celina Bodin de Moraes (2006), o contexto histó­rico burguês e liberal concebeu o direito civil como ramo do direito apto a garantir a regulação mínima necessária para o livre jogo dos negócios, voltado, unicamente, à proteção do patrimônio, fundado exclusivamente na tutela da propriedade e da autonomia privada de cunho econômico.

Nesse contexto, passa a imperar a ideia de monossistema, sendo os códigos encarados de uma forma totalizante, de completude (SARLET, 2006). Tais códigos ocupam a centralidade no mundo privado, e por isso, concebidos como verdadeiras constituições que regem a vida privada, de modo que regulariam todas as hipóteses concernentes ao convívio social. Os códigos eram tidos como infalíveis e detentores da previsão de todos os fatos da vida, que se subsumiriam às suas normas.

Nesse segmento, conforme Konrad Hesse (2001), o código cível tornou-se lei privada, a lei que institui a sociedade burguesa, com o qual a lei Constitucional era de importância secundária.

Mais uma vez vale observar as palavras de Jane Reis Gonçalves Pereira, sustentando que o paradigma da cisão entre direito público e direi­to privado foi o Código Napoleônico de 1804, que veio a tornar-se um mo­delo para outros países europeus, quando diz que o caráter autossuficiente e sistemático do code expressava um dos valores mais caros à teoria liberal: a segurança jurídica. Segundo a autora, de fato, enquanto a Constituição era, por sua própria essência, abstrata e permeável a opções políticas, o código regulava, de forma analítica e precisa, as situações jurídicas individuais, po­dendo ser aplicado pelos juízes com elevado grau de certeza (PEREIRA, apud BARROSO, 2006).

Note-se, que o juiz, nesse tempo, era tido como um mero aplicador da lei, restringindo-se unicamente a tomada de conhecimento do fato, à procura e escolha de qual regra ser-lhe-ia aplicada. Não se tinha abertura para o magistrado pensador, que fosse buscar, de maneira ampla, a melhor maneira de se resolver o caso que lhe era encomendado. Sua atividade era adstrita ao sentido objetivo da lei, exercendo uma interpretação lógico-de­dutiva, limitando-se a elementos tradicionais da hermenêutica, tais como o gramatical, o histórico, o sistemático e o teleológico.

A lei era concebida como exauriente, com a capacidade de prever todos os fatos da vida, como uma “embalagem” para qualquer produto (SARLET, 2006). O indivíduo era tido como ente abstrato e não por suas diferenças e peculiaridades.

No que tange ao código civil brasileiro de 1916, corroborando os dizeres alhures, observa-se que predominava o raciocínio jurídico, no que tange ao processo de realização do direito, ao paradigma da aplicação, en­tendendo-se como tal, o procedimento lógico-dedutivo que, a partir da nor­ma geral e abstrata, e por meio do silogismo jurídico, chegava-se automati­camente à decisão do caso individual (TATURCE; CASTILHO, 2006).

O legalismo imperava, e por isso o magistrado exercia uma atividade si­logística, pois estava “engessado” pela lei, o que o levava a observar, unicamen­te, o acontecimento mundano que, ao mesmo, é levado, e simplesmente, in­vestigar no ordenamento jurídico, qual norma seria a mais adequada ao caso.

Nesse diapasão, Daniel Sarmento alude que:

“de fato, para o positi­vismo clássico, a aplicação do direito deveria reduzir-se a uma subsunção, sendo a atividade do intérprete meramente declaratória, e do juiz desem­penhar o papel secundário de “boca que pronuncia as palavras da lei”. Não sobrava qualquer espaço para a argumentação jurídica, pois o aplicador da norma era um autômato, a serviço da vontade de um legislador suposta­mente onipotente” (SARMENTO, 2004, p. 79 – 80).

Relativamente aos princípios gerais de direito, regulamenta o Art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro 4.657/1942, que quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito.

De acordo com essa previsão legal, os princípios gerais de direito só teriam aplicabilidade num terceiro momento, após frustrarem-se as chances de a celeuma ser resolvida por meio da analogia e dos costumes.

Vige um sistema fechado, em que a lei é norma suprema e os princí­pios jurídicos são encarados como conceitos ético-valorativos, fontes subsi­diárias, sendo aplicados, unicamente, para garantir a segurança das relações jurídicas e a eficácia da lei.

Nesse sentido, (BONAVIDES, 2006) vale observar que a segunda fase da teorização dos princípios vem a ser a juspositivista, com os princípios entrando nos códigos como fonte normativa subsidiária ou, segundo Gordillo Canãs, como “vál­vula de segurança”, que “garante o reinado absoluto da lei”. Ou seja, os prin­cípios entram nos Códigos como uma “válvula de segurança” e não como algo que se sobrepusesse à lei, ou lhe fosse anterior, senão que, dela extraí­dos, foram ali introduzidos para estender sua eficácia, de modo a impedir o vazio normativo.

Essa referida realidade começou a mudar com o constitucionalismo social, que nos países ocidentais sucedeu o segundo pós-guerra, conforme analisaremos a seguir.

4 Constitucionalismo social e a mudança de paradigma

O constitucionalismo social, diversamente do Estado Liberal, pro­curou destinar ao Estado a promoção da igualdade substancial, ainda que implicasse reduções no que tange a liberdade econômica.

Na esfera pública, procurou-se limitar o executivo por meio do prin­cípio da legalidade que já existia no período precedente; o legislativo pelo controle de constitucionalidade; e o judiciário, sujeitando-o a uma concepção de legalidade, com o dever de controlar a legitimidade constitucional da legislação ordinária.

No que concerne ao âmbito privado, a autonomia da vontade dos particulares ficou limitada, principalmente, a partir da concretização dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e solidariedade social (SARLET, 2006).

Nesse período, abandonou-se a ideia de monossistema, da suposta completude dos códigos totalizantes. O polissistema surgiu por meio da inserção das legislações extravagantes, tais como, no que concerne o orde­namento jurídico pátrio, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto do Idoso entre outras.

A partir disso, ocorreu a chamada fragmentação do Direito privado, decorrente de uma sociedade complexa, pluralista e de risco, dominada pelo conhecimento e pela informação, que já não aceita, irrestritamente, o mo­nismo jurídico (TATURCE; CASTILHO, 2006).

No que diz respeito a fragmentação do direito privado, pode-se falar, que o sistema jurídico unitário, simbolizado pelo código civil, detentor da pretensão de disciplinar todos os aspectos da vida privada, vê-se esfacelado em uma miríade de leis e decretos que subtraem determinados institutos da monolítica disciplina codicista. Esses novos estatutos passam a disciplinar tais temas sobre outros enfoques e princípios, intuindo garantir um mínimo de unidade sistemática, buscando subordinar todo o direito privado à orien­tação unificadora da Constituição. “O papel unificador do sistema […] é de­sempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo Texto Constitucional” (SARLET, 2006, p. 42).

Começa a ser superada a crença de que as normas jurídicas, em ge­ral, e as normas constitucionais, em particular, tragam sempre, um sentido único, objetivo, válido para todas as situações sobre as quais incidem, bem como que caberia ao intérprete uma atividade de mera revelação do conteú­do preexistente na norma, sem desempenhar qualquer papel criativo na sua concretização.

Um novo paradigma evidencia-se, sob o qual, as cláusulas constitu­cionais, por seu conteúdo aberto, principiológico e extremamente depen­dente da realidade subjacente, não se prestam ao sentido unívoco e objetivo que uma tradição exegética lhes pretende dar.

De forma contrária à concepção positivista jurídica (legalismo), o re­lato de uma norma, muitas vezes, demarca apenas uma moldura dentro do qual se desenham diferentes possibilidades interpretativas. E mais, à vista dos elementos do caso concreto, dos princípios a serem preservados e dos fins a serem realizados é que será determinado o sentido da norma, com o intuito de encontrar a solução constitucionalmente adequada para o proble­ma (BARROSO, 2006).

A Constituição passa a ser, de forma mais intensa, a norma que dá fundamento a todas aquelas normas infraconstitucionais, inclusive as de direito civil, podendo-se sustentar que as normas constitucionais conquis­taram o status de normas jurídicas, dotadas de imperatividade, aptas a tutelar, direta e imediatamente, todas as situações que contemplam. Mais do que isso, a Constituição passa a ser a lente através do qual se leem e se interpretam todas as normas infraconstitucionais. A Lei fundamental e seus princípios deram novo sentido e alcance ao direito civil, ao direito processual, ao direito penal, ou seja, a todos os demais ramos do direito, sendo a efetividade da Constituição, a base sobre a qual se desenvolve a nova interpretação constitucional (BARROSO, 2006).

Nossa Constituição, no que tange a esfera privada do direito, passa a abarcar institutos que outrora se reduziam ao código civil, tais como famí­lia, propriedade e atividade econômica.

Indaga-se que, em sentido mais moderno, pode-se encarar o fenô­meno da constitucionalização do direito privado sob dois enfoques. O primeiro deles, trata-se da descrição do fato de que vários institutos, que tipicamente eram tratados apenas nos códigos privados (família, proprie­dade, etc.), passaram a ser disciplinados também nas Constituições con­temporâneas, além de outros institutos que costumavam ser confinados a diplomas penais ou processuais.

Numa segunda acepção, que costuma ser indicada com a expressão constitucionalização do direito civil, o fenô­meno vem sendo objeto de pesquisa e discussão apenas em tempos mais recentes, estando ligado às aquisições culturais da hermenêutica contem­porânea, tais como a força normativa dos princípios, a distinção entre princípios e regras, a interpretação conforme a Constituição, entre ou­tras. Esse segundo aspecto é mais amplo do que o primeiro, pois implica analisar as consequências, no âmbito do direito privado, de determinados princípios constitucionais, especialmente na área dos direitos fundamen­tais, individuais e sociais. Assim, o fenômeno pode ser compreendido sob determinada ótica hermenêutica, aquela da interpretação conforme a Constituição (SARLET, 2006).

Não foi por acaso que o constituinte originário incluiu em nossa Constituição Republicana de 1988 princípios típicos de direito privado, outrossim, para que todo ordenamento jurídico privado seja interpretado conforme nossa Lei Maior. Ela consagra, além de normas de formação, estrutura e organização do Estado, aquelas que atinam sobre as necessi­dades essenciais de todo e qualquer indivíduo.

É imprescindível ressaltar que uma das principais características do Direito Constitucional contemporâneo, é a importância central atribuída aos princípios e o reconhecimento de sua força normativa. Hoje, na her­menêutica Constitucional há um aceitação da hegemonia dos princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta-se todo o edifício jurídico do novo sistema Constitucional (SARMENTO, 2004).

Os princípios constitucionais, explícitos ou não, passam a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico. Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. Servem, em outras palavras, de guia para o intérprete, cuja atuação deve pautar-se pela identificação do princípio maior que rege o tema apreciado, indo, em seguida, ao mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da norma concreta que vai reger a espécie. Ou seja, os papéis desempenhados pelos princípios são o de con­densar valores, de dar unidade ao sistema e o de condicionar a atividade do intérprete (CUNHA; GRAU, 2003).

A inserção no Código Civil Brasileiro de 2002 de cláusulas gerais e princípios jurídicos indeterminados, fez com que o direito civil se apresente como um sistema aberto, no sentido de uma ordem axiológica ou teleológica de princípios jurídicos gerais, o que lhe permite superar o formalismo do sistema de 1916, promovendo de tal modo uma verdadeira “principializa­ção” do modelo interpretativo (TATURCE; CASTILHO, 2006).

Segundo Luís Roberto Barroso (2010), denominadas cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados contêm termos ou expressões de tex­tura aberta, dotados de plasticidade, que fornecem um início de significação a ser complementado pelo intérprete, levando em conta as circunstâncias do caso concreto. A norma em abstrato não contém integralmente os elemen­tos de sua aplicação. Ao lidar com locuções como ordem pública, interesse social e boa fé, entre outras, o intérprete precisa fazer a valoração de fatores objetivos e subjetivos presentes na realidade fática, de modo a definir o sen­tido e o alcance da norma. Como a solução não se encontra integralmente no enunciado normativo, sua função não poderá limitar-se à revelação do que lá se contém; ele terá de ir além, integrando o comando normativo com sua avaliação.

Conforme lembra Ferdinand Lassale (1985), sendo a constituição a Lei Fundamental de uma nação, será qualquer coisa, que logo poderemos definir e esclarecer, ou, uma força ativa que faz, por uma exigência da ne­cessidade, que todas as outras leis e instituições jurídicas vigentes no país sejam o que realmente são, de modo que não se pode decretar outras leis contrárias à fundamental.

Observa-se que há uma nova mentalidade, no sentido de que, para a resolução do caso concreto, impõe-se ao aplicador do Direito a necessi­dade da observância do ordenamento jurídico como um todo intangível, principalmente, com vistas à efetividade dos princípios constitucionais, que atuarão diretamente na órbita do direito privado.

O intérprete do direito já não está adstrito a uma atividade mera­mente silogística, de simples exegese, mas a um trabalho de permanente construção jurídica.

Nesse sentido, Francisco Amaral (apud BARROSO, 2005) asse­vera que o novo modelo não se apresenta mais como uma estrutura lógi­co-dedutiva, mas como uma rede, um entrelaçamento de relações sob o predomínio ou a orientação de princípios jurídicos que funcionam como pautas abertas de comportamento à espera da necessária concretização. O movimento interno do sistema não é ascendente, mas circular. Enquanto o sistema axiomático usava a razão em sentido teorético, o sistema circu­lar usa-a em sentido prático, substituindo-se o rigor lógico pela probabi­lidade dos fatos.

O Direito não é independente, capaz de realizar-se em si mesmo, mas necessita de outros ramos da ciência, tais como a sociologia, medicina, informática, etc, para lhe orientar na resolução de um caso complexo. O Direito deve ser concebido em uma totalidade social e dinâmica, suficien­temente aberta para acolher os problemas que se renovam, sem prejuízo da sua ordenação sistemática, exigindo-se uma visão global e compreensiva da totalidade que se forma com as normas, as relações e as instituições, inte­gradas em um conjunto unitário, coerente e dinâmico, que se processa sob a égide de valores e princípios fundamentais.

O viver é constituído de dinamismo, e o direito não mais satisfaz às necessidades de uma sociedade que evolui mais depressa que ele (AMARAL apud BARROSO, 2005), o obriga esse ramo do conhecimento a se esforçar para acompanhá-la, pois deve ser encarado como um ordenamento formado não só de normas, mas também de valores consubstanciados em princípios jurídicos. Deve ser encarado como produto da relação dialética entre a in­tenção sistemática, exigida pelo postulado da ordem, e a experiência proble­mática, imposta pela realidade social.

Ocorreu uma metamorfose constitucional, sendo redefinida a posi­ção da Constituição na ordem jurídica brasileira.

Renan Lotufo, nesse segmento, afirma que as Constituições pas­saram a ter um conteúdo mais amplo, desvinculando-se da mera estru­turação do Estado, o que resultou em uma visão diferente do papel da Constituição. Segundo o autor, hoje, no mundo dos sistemas jurídicos legislados, as Constituições passaram a ter significado mais relevante e eficácia muito mais ampla (LOTUFO, 1998).

De fato, nas últimas décadas o código civil foi perdendo sua po­sição de preeminência, mesmo no âmbito das relações privadas, onde se formaram diversos microssistemas (consumidor, criança, adolescen­te, locações, direito de família). Progressivamente, foi-se consumando no Brasil um fenômeno anteriormente verificado na Alemanha, após a segunda Guerra, ou seja, a passagem da Lei Fundamental para o centro do sistema. À supremacia até então, meramente formal, agregou-se uma valia material e axiológica à Constituição, potencializada pela abertura do sistema jurídico e pela normatividade de seus princípios (CUNHA; GRAU, 2003).

Corroborando as palavras acima mencionadas, Judith Martins Costa assevera que o código civil, na contemporaneidade, não tem mais por paradigma a estrutura que, geometricamente desenhada como mode­lo fechado pelos sábios iluministas, encontrou a mais completa tradução na codificação oitocentista. Hoje sua inspiração, mesmo do ponto de vista de técnica legislativa, vem da Constituição, farta em modelos jurídicos abertos (COSTA BARROSO, 2005).

Neste segmento, fomenta Daniel Sarmento que os princípios cons­titucionais encarnam juridicamente os ideais de justiça de uma comunida­de, escancarando a Constituição para uma “leitura moral”, pois é, sobretu­do, por meio deles que se dará uma espécie de positivação constitucional dos valores do antigo direito natural, tornando impossível uma interpre­tação axiologicamente asséptica da constituição (SARMENTO, 2004).

Vislumbrando o futuro do direito civil brasileiro, perquire Luiz Edson Fachin (2003) que três perspectivas se presentificam em direção ao por­vir: de uma parte, considerando-se que um código não está na ordem do dado, uma dimensão criativa é a que fará, sob as luzes da jurisprudência, doutrina e legislação superveniente, e concretude real e efetiva da Lei n. 10.406, de janeiro de 2002, de outra, uma teoria crítica, inclusive por co­erência, deve estar no campo do inacabado, do refazimento permanente, o que se alça como alavanca metodológica de análise e não apenas como dissecação estável de seu objeto; e por derradeiro, a dimensão constitu­cional do direito civil brasileiro contemporâneo abarca, ao lado dos ho­rizontes formais e substanciais dessa base, a perspectiva de reconstrução incessante do próprio direito civil para que, no limite, acerte o passo com as demandas de seu tempo, e na possibilidade, contribua na edificação da justiça.

5 Considerações finais

Ante ao exposto, pudemos notar que o paradigma a ser seguido ho­diernamente é o de que o direito civil deva ser aplicado de forma a dar uma eficácia horizontal aos direitos fundamentais guarnecidos pela Constituição da República de 1988, pois é ela quem vai fundamentar todo o ordenamen­to jurídico, inclusive os estatutos civis.

No mundo jurídico atual, pode-se dizer que os direitos humanos fundamentais parecem ser o único consenso ético-político. Esse paradigma impõe a necessidade de se saber como esses direitos se legitimam frente aos problemas contemporâneos e as atividades dos órgãos legislativo, executivo e, principalmente, judiciário.

A Constituição Federal de 1988 revela um profundo compromisso com os direitos humanos, contendo o que talvez seja o mais amplo elenco de direitos fundamentais do constitucionalismo mundial, composto não só por liberdades civis clássicas, como também por direitos econômicos e sociais, incorporando, igualmente, direitos como o meio ambiente e a proteção à cultura.

Nesse diapasão, o aplicador do direito deverá, diante do caso con­creto, procurar a melhor maneira de sua resolução, numa leitura eminente­mente constitucional, em busca da garantia dos direitos fundamentais do sujeito de direito.

 

Referências
BARROSO, L. A. Situação atual do art. 4º da lei de introdução ao código civil. Revista Brasileira de Direito Constitucional, São Paulo, n. 5, jan.jun. 2005.
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TATURCE, F.; CASTILHO, R. (orgs.). Direito patrimonial e direito existencial. São Paulo: Editora Método, 2006.

Informações Sobre o Autor

Hugo Garcez Duarte

Mestre em Direito pela UNIPAC. Especialista em direito público pela Cndido Mendes. Coordenador de Iniciação Científica e professor do Curso de Direito da FADILESTE


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