Reflexões sobre o tratamento jurídico-penal do fenômeno da corrupção no Brasil

Resumo: A história da corrupção confunde-se com a própria história da humanidade. Considerada como um fenômeno altamente complexo e fluído, a corrupção foi, ao longo do tempo, assumindo novos contornos, o que tem gerado sérios entraves ao seu adequado enquadramento legal. Dotada de alto grau de nocividade aos valores e instituições democráticas, a corrupção desperta a necessidade de ser exercida uma política ostensiva de combate e repressão. O Direito Penal, por sua vez, constitui, através da incessante edição de normas penais, o principal instrumento de resposta às práticas corruptivas, de modo que para atingir à finalidade de serem cessados os efeitos danosos da corrupção é submetido a profundas transformações na sua feição legitimadora. Isto é, o Direito Penal fundado em premissas liberais, orientado pelos princípios da ultima ratio, proporcionalidade e dignidade da pessoa humana, dá lugar à larga intervenção jurídico-penal de cunho simbólico, preventivo e emergencial, numa franca violação às estimas de um Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Corrupção. Hiperinflação legislativa. Direito penal simbólico.

Abstract: The history of corruption become mixed up with the history of the humanity itself. Taking in consideration that the corruption is a phenomenon highly complicated it was, along the time, getting new shapes which has generated serious obstacles to its legal and appropriate fitting. With high level of harmfulness against the values and democratics institutions, the corruption stimulates the necessity to be performed a severe politic of action and repression. The Penal Code, for the time being, establish through the incessantly editions of penals rules, the main instrument of response for corruptible practices, in order to reach the target to stop the prejudicial effects of the corruption it is submitted to a deep changes for its legitimating aspect. In other words, the Criminal Law founded on a liberal basis, guided by the first cause of ultima ratio, proportionality and dignity of the human being, aiming a wide intervention penal and juridical of symbolic aspects, preventive and crucial, with a spontaneous transgression to the respect to a Democratic State of Right

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Keywords: Corruption. Surfeit Legislative. Symbolic Criminal Law.

Sumário: Introdução; 1. Crime de corrupção e direito: obsoletismo legal; 2. Hiperinflação legislativa e incongruências sistêmicas; 2.1. Concussão versus corrupção passiva; 2.2. Advocacia administrativa; 3. Combate à corrupção e funções instrumentais simbólicas do direito penal na pós-modernidade; 4. Conclusão

INTRODUÇÃO

O fenômeno da corrupção admite diversas feições, de modo que traduzi-lo sob um único prisma é se valer de uma compreensão manifestamente insatisfatória, obsoleta e inadequada. Justamente por conta da sua alternância e dinamicidade surgem, a todo o instante, novas concepções, com o fito de abranger os mais variados elementos que o integram.

Este trabalho, por seu turno, adotará o ângulo de visão voltado à acepção do ato corruptivo perante a Administração Pública, o qual será traduzido pela vantagem obtida pelos agentes públicos, no exercício de suas funções, apta a gerar prejuízos aos bens, serviços e interesses do Estado.

Em decorrência do seu elevado grau de danosidade, especialmente naquilo que toca à subversão do sistema jurídico e solapamento das instituições democráticas, a corrupção passa a ser fortemente reprimida por um novo Direito Penal, fundado em premissas casuais e simbólicas, marcado, notadamente, pela edição desenfreada de normas penais incongruentes, desprovidas da necessária técnica legislativa e, sobretudo, alheias às orientações constitucionais, próprias de um Estado Democrático de Direito.

Nesse contexto, o presente estudo analisará criticamente os novos contornos dados à legislação penal, na medida em que constitui a principal ferramenta de contenção aos efeitos provocados pela corrupção.

1. CRIME DE CORRUPÇÃO E DIREITO: OBSOLETISMO LEGAL

O fenômeno da corrupção é tão antigo quanto a própria humanidade. Logicamente, suas características e particularidades sofreram alterações ao longo do tempo, de modo que o tratamento jurídico que lhe é dispensado teve de acompanhar sua evolução, bem como adequar-se aos novos contornos, a fim de dar ao assunto a atenção necessária e devida.

Em que pese se perceba a pretensão legislativa em enfrentar o problema da corrupção de forma contundente, a carência de um diploma legal eficaz é manifesta, uma vez que nem as legislações extravagantes, tampouco o Código Penal são capazes de esgotar o assunto, ante as céleres mudanças dos atos corruptivos. (HABIB, 1994, p.145)

O fenômeno da corrupção deixou de ser um problema local com características invariáveis, próprias de determinada sociedade. Tornou-se um fenômeno difuso, muitas vezes relacionado com o crime organizado, ultrapassando fronteiras, assumindo contornos altamente dinâmicos, mediante as sofisticadas técnicas empregadas a distribuição de funções que se adaptam às peculiaridades dos diversos sistemas jurídicos, o que dificulta sua definição precisa. (LIVIANU, 2006, p.46)

Obviamente, não se pode exigir que os diplomas legais prevejam de forma exaustiva todos os mecanismos possíveis de corrupção, uma vez que não é factível reduzi-los à tipicidade, ante sua natureza fluida e dinâmica. (FAZZIO JUNIOR, 2002, p.32) 

A velocidade com que a criminalidade se desenvolve não é a mesma observada na previsão de tipos penais, o que os torna defasados, insatisfatórios e incompletos. Isto é, sem acompanhar o processo evolutivo da corrupção, a legislação brasileira tem mostrado sua fragilidade, ao oferecer zonas obscuras e lacunas acerca do tema, de modo que o apego ao tecnicismo jurídico favorece a fixação de empecilhos à solução final do problema. (LIVIANU, 2006, p.46)

Ainda que sejam constantemente acrescidas novas formas de delitos à legislação pátria, não se consegue debelar o déficit que assola a previsão legal no intuito de coibir o fenômeno da corrupção, pois as próprias inovações legais, na maioria das vezes, se revelam reduzidas, sem que atinjam amplamente os aspectos da corrupção[1]. (HABIB, 1994, p.145)

2. HIPERINFLAÇÃO LEGISLATIVA E INCONGRUÊNCIAS SISTÊMICAS

No contexto globalizado, onde se insere o fenômeno da corrupção, o aparecimento de novos tipos penais, a ampliação dos riscos jurídico-penalmente relevantes e o aumento de bens e interesses tuteláveis é uma realidade inafastável. Em decorrência deste panorama surgem, ao lado e um Direito Penal clássico ou primário, novos microssistemas jurídicos, marcados essencialmente por um Direito Penal secundário ou extravagante, contido em leis avulsas não integradas no Direito codificado. (MELLO, 2004, p.112)

O que ocorre, na verdade, não é exatamente uma inovação dos tipos penais, senão o fato de conferir-lhes nova roupagem, a fim de atender muito mais aos princípios do microssistema do que aos princípios fundamentais do Direito Penal, abrigando tais normas sob o manto do princípio da especialidade, dando-lhes prevalência sobre a previsão codificada.

Toda esta técnica legislativa tipo mosaico, particularizada pelo processo de “criação”, ou, melhor dizendo, de transformação e reformulação dos crimes, criminosos e vítimas, aparece como fonte de conflitos, ao invés de significar uma resposta às demandas sociais, na medida em os emergentes microssistemas “criam sua própria realidade em alto grau de independência em relação ao ambiente”. (HULSMAN, 1996, p.22)

Destinada tão somente a conformar determinado interesse imediato, a edição de normas penais extravagantes nada tem de técnica, delas não se pode extrair nenhuma ratio, nenhum princípio, nenhum valor, senão revelam infindáveis dúvidas e incertezas, possuindo a capacidade de desintegrar o Direito codificado. (MELLO, 2004, p.115)

Contaminado pelo populismo punitivo, donde se extrai o incremento e materialização de políticas criminais autoritárias, o plano legislativo tem causado justa perplexidade, em razão da falta de critério que permeia a referida atividade, encontrando-se distante do necessário rigor técnico e da orientação cientifica. (WUNDERLICH, 2010, p.10) 

A avalanche legislativa penal, oriunda do intenso e permanente processo de criminalização de condutas, impõe à composição do sistema punitivo tipos penais alheios aos limites e requisitos materiais mínimos à sua criação, destinados a cumprir essencialmente funções promocionais e simbólicas à funções ideais, de natureza instrumental à tutela de bens jurídicos relevantes. (GOMES, 2006, p.1-2)

É gerado, por meio do incremento constante das leis penais, um estado de insegurança jurídica, em que o Direito Penal passa a ser identificado pela excessiva severidade, pela imprevisibilidade das penas e pela ausência de parâmetros certos e racionais de convalidação e de anulação. (FERRAJOLI, 1995, p.105)

Mais que isso, a hipertrofia do sistema dogmático acaba por dificultar sua sistematização, ante a diversidade (ou a falta) de critérios, antinomias, redundâncias e juízos valorativos próprios, distantes dos princípios fundamentais do Direito Penal, prejudicando o estabelecimento necessário de conexões axiológicas, teleológicas e lógico-formais entre todo o sistema.

Em face do excesso de particularismo e da falta de técnica na edição de normais penais, a compreensão do Direito Criminal torna-se, cada vez mais, uma missão complicada, pois a sobreposição de normas, a todo o momento, forma uma verdadeira babel não apenas entre os cidadãos comuns, mas também entre os operadores do Direito (juízes, promotores, advogados etc), trazendo à superfície a ausência de uma política criminal cientificamente pensada. (TORON, 1995, p.80)

Dá-se espaço, então, ao adensamento da política criminal de ordem populista, mediante a qual as propostas legislativas revelam um caráter emergencial, intentadas a oferecerem respostas meramente emotivas, geradas em casos episódicos, divorciadas dos requisitos constitucionais e alheias à realidade do sistema penal.

Este fenômeno de reação simbólica, por sua vez, revela a capacidade de viciar a postura dos operadores do direito, de sorte que se tornam cada vez mais identificados ideologicamente com esta política criminal antidemocrática fortemente apoiada no imaginário social de pânico fomentada pelos meios de comunicação de massa. (WUNDERLICH, 2010, p.10)

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Ao consagrar verdades parciais em atendimento a interesses restritos ou servindo como instrumento de administração de situações particulares, de respostas contingentes a situações emergenciais concretas[2], a legislação extravagante nada mais é que a criação de um produto legislativo diferenciado, conduzido à observância dos anseios de determinado grupo, sem que cidadão comum, não pertencente àquele grupo, tenha a oportunidade de opor qualquer resistência, afrontando a liberdade e dignidade da pessoa humana. (MELLO, 2004, p.118)

Em conexão a isso, a tentativa de atender a determinados interesses através do aumento da edição de lei penais tem gerado consequências imediatas. Isto porque, a grande quantidade de normas de natureza criminal não tem passado pelo filtro constitucional, havendo, a partir disto, uma violação dos conteúdos principiológicos existentes na Constituição, em especial, os direitos fundamentais.

Sob a ótica de Wunderlich e Salo de Carvalho (2010, p.10), o produto normativo das legislações de pânico demonstra-se em visível desobediência à necessária limitação das fontes de criação de proibições penais, mormente à regra de codificação, estando, pois, apartada dos princípios definidos pela Constituição, enquanto base normativa, fundamental ao alcance da coerência da ordem vigente.

Geram, então, um quadro de incertezas para os cidadãos, de sorte que os tipos penais não desempenham mais sua função originária, pois ao invés de servirem como uma garantia aos membros da sociedade civil contra a atuação arbitrária do Estado possibilitam, contrariamente, uma atuação estatal penal desmesurada, quando não maculada pela ilegalidade. (COPETTI, 2000, p.73)

Nessa esteira, é preciso ter em mente que a devida sistematicidade, coerência e inteligibilidade das normas penais são imperativos derivados de direitos fundamentais constitucionais, de sorte que a exigência de adequação técnica no processo legislativo penal representa uma garantia fundamental do cidadão, sob pena de destituir do exercício do poder punitivo estatal a necessária legitimação democrática.  

O que se intenta demonstrar é que a necessidade de coibir condutas ilegais, especialmente aquelas de natureza ímproba e corrupta, não significa atribuir aos esforços engendrados no combate à criminalidade uma carga de repressão a todo o custo, abusiva e excessiva, numa clara erosão do Direito Penal clássico, liberal, cimentado em bases garantistas e axiológicas. (GOMES, 1995, p.119)

O fator criminalidade, portanto, passa a ser utilizado como plataforma eleitoral de políticos, no intuito de transformá-lo como suporte às arbitrariedades cometidas pelo legislador, num evidente desprezo pelo estudo da ciência penal na elaboração das normas e, principalmente, às finalidades desejadas pelo Estado Democrático.

Isto é, sob o falso argumento de refrear a expansão do fenômeno da criminalidade, o direito penal vem assentando suas bases em num sistema repressivo simbólico, preocupado tão somente com uma produção legislativa que cause uma impressão tranquilizadora perante a opinião pública.

Para isso, desliga-se de qualquer cuidado e observância devida aos princípios penais estabelecidos, implícita ou explicitamente, na Constituição Federal, especialmente no que se refere a proporcionalidade, enquanto instrumento limitador do poder punitivo do Estado frente à garantia dos direitos fundamentais dos indivíduos.

O resultado deste processo legislativo penal inflacionário não pode ser outro, senão a implantação de sérios entraves ao bom funcionamento do sistema criminal, face ao surgimento constante de incongruências sistêmicas, decorrentes da instituição de tipos penais atentatórios contra toda à ordem, doutrina penal e, sobretudo, dignidade da pessoa humana. 

2.1. Concussão versus corrupção passiva

Confrontar o crime de concussão com o delito de corrupção passiva é observar uma série de semelhanças como a identidade de tutela do bem jurídico, que é a Administração Pública, a figura do funcionário público como sujeito ativo dos crimes, a natureza formal de ambos, etc. No entanto, o que chama atenção é a flagrante violação à proporcionalidade, naquilo que toca a definição das condutas criminosas e as respectivas sanções penais.

Em que pese as diversas características que aproximam tais delitos, há uma distinção crucial entre a prática da concussão e da corrupção passiva, a qual dará ensejo à afronta da proporcionalidade. Isto é, no crime do artigo 317, a consumação se dá mediante as condutas de solicitar ou receber a vantagem indevida, ao passo que o tipo penal do artigo 316, caput, se perfaz com a exigência, direta ou indireta, da vantagem indevida, por parte do funcionário público.

Sem muito esforço, é possível perceber, a partir deste breve sumário do tipo objetivo dos crimes em apreço, que a conduta exercida pelo autor da concussão é mais gravosa do que a do autor da corrupção passiva, na medida em que, por óbvio, a exigência se mostra mais drástica do que a aceitação, recebimento ou aceitação da promessa.

A despeito desta aparente obviedade, o Código Penal tratou com maior rigor o crime do artigo 317, de sorte que previu uma pena de reclusão cujo patamar mínimo é de 02 (dois) anos, com o limite máximo de 12 (doze) anos, além da pena de multa, ao passo que o crime de concussão tem sua sanção penal estipulada em 02 (dois) a 08 (oito) anos de reclusão, acrescida em multa. Ou seja, a pena máxima privativa de liberdade do crime de concussão é sensivelmente inferior àquela cominada ao ato concussivo.

Ora, se, ao estabelecer as penas máxima e mínima, o legislador já previu, em abstrato, o quão danosa poderia ser aquela conduta à sociedade, estipulando a reprovação que entendeu pertinente, não se mostra proporcional, nesta situação, o seu juízo valorativo empregado, uma vez que a concussão, por conta da sua essência drástica, tem maior capacidade em gerar prejuízos ao bom funcionamento da Administração Pública.  

Contata-se, então, uma absurda inversão na gradação legislativa da sanção cominada. A concussão, na qualidade de crime mais grave, recebe punição mais branda, enquanto que o crime de corrupção passiva, comparativamente menos grave, recebe punição consideravelmente mais grave. (BITENCOURT, 2007, p.65)

Referida atecnia, por sua vez, não se deu por acaso. Isto porque, tal distorção decorreu da aprovação da Lei nº 10.763/2003, quando alterou a redação do artigo 317 do Código Penal, fixando esta pena para o crime de corrupção ativa, em razão das constantes denúncias de corrupção, à época, aderindo à lógica do Direito Penal emergencial, simbólico, sem que fosse procedida uma análise acerca de todo o sistema, olvidando, assim, o tratamento legal conferido ao crime de concussão, no que resultou na flagrante afronta à proporcionalidade penal. (ARAÚJO, 2011, p.172)

2.2. Advocacia Administrativa

O crime de advocacia administrativa, por seu turno, é objeto de frequente previsão legal, na medida em que a mesma figura penal consta em mais de um estatuto, estando prevista não apenas no art. 321 do Código Penal, mas também no art.91 Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93), bem como no art. 3º, inciso III, da Lei nº 8.137/90.

Ora, o patrocínio infiel é refletido em três modalidades – uma geral e duas especiais- punindo, pela mesma conduta, sanções absolutamente distintas[3], embora esteja se tratando do mesmo bem jurídico tutelado, o que evidencia a ofensa aos princípios básicos da isonomia, da proporcionalidade e da humanidade da pena criminal. (BITENCOURT, 2007, p.115)

Isto é, a objetividade jurídica é uma só, havendo pequenas distinções apenas no tocante ao sujeito ativo, de sorte que não basta a condição de mero funcionário público, senão que nas figuras especiais é exigida a qualidade especial de funcionário público responsável pelo recolhimento de imposto ou por processo licitatório. (STOCO, 2001, p. 3895-6)

Em verdade, os tipos legais referidos tratam essencialmente da mesma conduta, ensejadora do crime de advocacia administrativa, mas que impõem penas quantitativa e qualitativamente desiguais, tornando tais figuras penais extravagantes dispensáveis e redundantes, numa manifesta incongruência sistêmica.

Como se constata, a Lei 8.137/90, em seu art. 3º, III, prevê como crime funcional contra a ordem tributária o patrocínio direto ou indireto, de interesse privado perante a administração fazendária, valendo-se da qualidade de funcionário público, revelando a evidente redundância deste tipo penal, na medida em que a administração tributária nada mais é que um segmento da administração pública, tratada de forma ampla e suficiente pelo art. 321 do CP.

Dessa forma, se o servidor está lotado no setor da administração tributária e emprega uma conduta de patrocínio de interesse privado, restará submetido à sanção penal cominada no art.3º, inciso III, da Lei 8.137/90, de reclusão de 1 a 4 anos, e multa, ao passo que aquele funcionário público que comete a mesma conduta, ao patrocinar interesse privado perante a administração pública, incidirá sobre o tipo penal do artigo 321, do CP, cuja pena é de detenção de 1 a 3 meses, transparecendo a desproporção no tratamento legal dado às condutas idênticas.

Não é outro panorama que abrange o crime previsto no art. 91, da Lei 8.666/93, uma vez que a conduta de advocacia administrativa, se praticada com fins licitatórios, é apenada com detenção de 06 meses a dois anos, notadamente superior àquela cominada no exercício da modalidade simples, prevista no art. 312 do CP.

Considerando que a fixação da sanção penal deve lastrear-se em critérios como a gravidade da lesão ao bem jurídico, a relevância do bem jurídico ofendido, a danosidade da conduta empregada etc, não se vê razão, no presente caso, em diferenciar-se o quantum sancionatório, haja vista a total identidade no bom jurídico tutelado, na relevância do mesmo e na forma da conduta perpetrada pelo agente.

Muito embora, trate-se de previsões legais extravagantes, o princípio da especialidade não pode servir como via de rompimento às barreiras sistêmicas, colocando em risco a sua própria coerência! (NUCCI, 2011, p.16)

Em face deste panorama, as penas estabelecidas nos tipos penais de natureza especial, referentes ao crime de advocacia administrativa, revelam-se naturalmente contrárias a regra da proporcionalidade, na medida em que impõe uma intervenção estatal excessiva e abusiva à tutela do bem jurídico, por meio da restrição indevida e desmesurada dos direitos fundamentais do individuo. 

Tais delitos de natureza corruptiva, na realidade, constituem exemplos claros da manipulação legislativa voltada a contenção simbólica do fenômeno da corrupção, na medida em que as reformas e inovações legais se perfazem de maneira desvirtuada, ineficiente e alheia a real finalidade de tutela a que deveriam destinar-se, dando ensejo  a materialização de um Direito Penal parcial, seletivo e contingente.

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3. COMBATE À CORRUPÇÃO E FUNÇÕES INSTRUMENTAIS E SIMBÓLICAS DO DIREITO PENAL NA PÓS-MODERNIDADE

De modo geral, a corrupção, materializada a partir de uma diversidade de condutas, representa um fenômeno a ser coibido, seja por estratégias repressivas ou mecanismos preventivos, na medida em que é percebida como ato portador de grande nocividade, afetando não apenas o Estado, mas numerosos setores da vida social. (LUZ, 2011, p.431)

Naquilo que tange à necessidade de repressão aos atos ímprobos e corruptos não parece haver dissenso, senão especificamente naquilo que toca ao modo de fazê-lo. Isto porque, a adoção de um tipo de regulação em detrimento de outro é capaz de gerar efeitos não somente sobre a efetividade do controle estatal sobre tal fenômeno, mas também sobre a liberdade dos cidadãos vigiados, acusados e condenados por este tipo de conduta.

Daí a importância de ser avaliado o papel do Direito Penal contemporâneo e seu âmbito de atuação na luta contra a corrupção, sob uma perspectiva ampla, tendo em vista ser este o principal instrumento utilizado como resposta jurídica frente a tal problema, justamente por conta da insegurança que causa este tipo de criminalidade.

No entanto, a dogmática jurídico-penal, na conjuntura atual, enfrenta reais dificuldades para o seu efetivo exercício, não apenas preventivo, como, principalmente, repressivo, contra as ações corruptas, em razão da própria natureza complexa do fenômeno, caracterizada a partir de pontos problemáticos como a delimitação do bem jurídico a ser protegido, a função do direito penal e a função da pena na denominada sociedade de risco. (LIVIANU, 2006, p.162-3)

Ao bem jurídico fora atribuída a função estruturante no âmbito do Direito Penal, porquanto lhe confere um conteúdo fundamental que o orienta, limita e legitima, sendo o norte de seu telos punitivo. (CANTON FILHO, p.03)

Exatamente por conta desta posição de primazia dentro do Direito Penal, a proteção do bem jurídico tem sido utilizada indiscriminadamente como argumento legitimador da expansão do punitivismo, tornando seu discurso um verdadeiro instrumento de manipulação a uma intervenção penal irracional, destituída de fundamentação constitucional e em descompasso com a realidade. (ARAÚJO, 2011, p.164)

A pretexto de uma falsa proteção aos bens jurídicos fundamentais é robustecida a tendência dominante da legislação penal moderna, marcada basicamente pela inserção de novos tipos penais, agravamento dos já existentes, ampliação dos espaços de riscos jurídico-penalmente relevantes, flexibilização das regras de imputação e relativização dos princípios político-criminais de garantia, numa clara expansão do Direito Penal. (SILVA SANCHEZ, 2002, p.21)

O surgimento de novas necessidades à tutela penal não pode ser compreendido apartado da realidade atual em que está inserida a sociedade. Entender as bases que se finca determinado modelo social parece ser o caminho mais adequado à solução dos problemas dela emergentes, especialmente no que toca às expectativas depositadas no papel exercido pelo Direito Penal, quando se demanda, cada vez mais, o aparato estatal à proteção dos bens jurídicos mais fundamentais do indivíduo.

Independentemente da denominação que se dê à conjuntura social atual, seja ela “sociedade de risco”[4], “modernidade líquida”[5] ou “sociedade da insegurança”[6], certo é que os tempos atuais sofrem substanciosas mudanças, sobretudo, no que tange à dinâmica das relações humanas e o funcionamento da sociedade perante o Estado, resultando no aparecimento de novos paradigmas.

Marco central de toda essa transformação, a globalização entra em cena como o principal fator desencadeador de toda a insegurança que ronda a sociedade moderna, marcada, sobretudo, pela imprevisibilidade e aparição de novos riscos[7]. Se a idéia vendida à sociedade acerca do processo de globalização era de libertação, quebra de fronteiras e autodeterminação, os efeitos desta promessa, aparentemente sedutora, na prática, materializaram-se às avessas. A “abertura” material e intelectual favorecida, em tese, à sociedade, em verdade, tornou-lhe refém de uma globalização seletiva, fomentadora dos sentimentos de ansiedade, impotência e vulnerabilidade (BAUMAN, 2007, p.13). Daí, deflui o medo. 

De fato, as incertezas geradas pelo mundo globalizado fazem do mundo moderno um verdadeiro palco na luta contra o medo, sentimento, hoje, indissociável do ser humano. Se antes, o avanço tecnológico estava destinado à segurança e desenvolvimento da humanidade, hoje, passa a ser utilizado no incremento de formas delitivas, expondo os indivíduos à denominada “síndrome do Titanic”[8]. O ambiente movido pelo sentimento de medo não interfere unicamente nas relações interpessoais, conforme demonstrado em linhas anteriores, mas cria novas situações ao Direito, ganhando destaque aqui, o subsistema de natureza penal, o qual ganha nova feição ante as transformações sociais. 

Até então, o direito penal clássico preocupava-se essencialmente à proteção de bens jurídicos individuais, fundamentais ao desenvolvimento do sujeito, promovendo sua intervenção quando verificada a lesão a tais direitos, sob o amparo de princípios vetores, como a proporcionalidade, ofensividade e intervenção mínima.

Esse modelo tradicional, no entanto, não se mostra suficiente dentro do contexto moderno. O progresso tecnológico aplicado a nova criminalidade gera novas demandas e produz resultados capazes de ultrapassar fronteiras, atingir número indeterminado de vítimas e perpetuar os riscos, em face da alta complexidade que envolve as novas formas delitivas.

Por trás do mero aparecimento de tipos penais inéditos existe uma seqüência de elementos justificadores ao surgimento de novos bens jurídicos. O primeiro deles diz respeito à conformação de novas realidades que antes não existiam. Em seguida, faz-se alusão à deterioração de realidades tradicionalmente abundantes, mas que começam a manifestar-se como bens escassos, sendo-lhes atribuído valor que antes não lhes correspondiam, a exemplo do meio ambiente. Por último, vale pontuar o incremento essencial de valor que esses novos interesses passam a experimentar, como conseqüência de evolução social e cultural. (SILVA SANCHEZ, 2002, p.27)

Em face deste cenário, o novo Direito Penal se apresenta como um instrumento qualificado à contenção, prevenção e gestão desses novos riscos[9] oriundos das atividades geradoras de perigo (GRACIA MARTIN, 2005, p.48). Atento às variações sociais, o Direito Penal irá ocupar-se com a tutela de bens jurídicos fundamentais não apenas ao desenlace do cidadão, mas àqueles de caráter relevante ao crescimento da humanidade, quais sejam os de feição supra-individual.

Paralelo à mudança de titularidade do bem jurídico, em que prevalece a de cunho difuso, o conteúdo material do delito se altera, dando lugar aos crimes de perigo, o qual basta a exposição do bem jurídico a perigo para que se configure completamente, sem que seja exigida a sua efetiva lesão, conforme se vê nos crimes de dano, modelos dominantes no direito penal clássico.

Com a inserção de tipos penais destinados à tutela de bens jurídicos supra-individuais, vê-se uma evidente flexibilização do princípio penal da ofensividade, tendo em vista a antecipação da tutela penal, a fim de que o Direito Penal atue de forma imperativa no controle dos riscos, antes mesmo que haja qualquer produção de dano. (MACHADO, 2009, p.50) 

A transição do modelo de “delito de lesão de bens individuais” ao modelo de “delito de perigo (presumido) para bens supra-individuais”, em face de contextos cada vez mais genéricos, conduz o Direito Penal a relacionar-se com fenômenos de cunho estrutural, global ou sistêmico, numa clara atividade de gestão punitiva dos riscos gerais, que o torna “administrativizado”. (SILVA SANCHEZ, 2002, p.114)

Melhor dizendo, transfere-se à ingerência penal aqueles fatos que deveriam ser monopólio do Direito administrativo sancionador, em virtude da ausência de elementos de lesividade e periculosidade geral, quando praticados isoladamente[10]. Nessa perspectiva, ao Direito Penal moderno cabe não somente regular comportamentos lesivos aos bens jurídicos, mas especialmente comportamentos de perigo à ordenação de setores da atividade. (GRACIA MARTIN, 2005, p.100-1)

Traço marcante do novo sistema punitivo, o adiantamento da intervenção penal ao estágio prévio à lesão do bem jurídico[11] reflete uma cultura preventiva, própria da sociedade de risco, que pugna pela revitalização da idéia do Direito Penal como força conformadora de costumes, como mecanismo de orientação social de comportamentos, levando, com isso, o desapreço pelas formalidades e garantias penais liberais, consideradas, na realidade moderna, como verdadeiros obstáculos à eficiência do sistema punitivo diante da profunda insegurança. (WERMUTH, 2011, p.34-5)

Na crescente onda do medo, a segurança se converte numa verdadeira pretensão social à qual se exige do Estado, especialmente do Direito Penal, uma resposta (SILVA SANCHEZ, 2002, p.40). Elege-se, então, este subsistema jurídico como a ferramenta adequada ao atendimento dos clamores midiáticos, provocados pela “midiatização do medo”. Em razão do incremento do rigor dispensado à edição de novas leis, o âmbito da interferência penal alarga-se na vida social, na tentativa de tranqüilizar a alarmada população, proporcionando-lhe maior “segurança”. (WERMUTH, 2011, p.52)

Pressionado pela opinião pública, o Estado converte o rigor excessivo da legislação penal como solução imediata à contenção de todo o caos social. Isto é, ao legislador infraconstitucional recai o dever de praticar reformas penais, a fim de tornar o sistema repressivo mais enérgico, drástico e implacável a expansão da criminalidade, conferindo nítido cunho simbólico aos dispositivos legais, numa tentativa de manipular a percepção dos indivíduos acerca da realidade, passando-lhes uma falsa idéia de segurança.

Todo o processo de incriminação, por sua vez, acaba por se transformar, em vez de uma real ofensa a bem jurídico fundamental, numa satisfação ou resposta do Estado ao(s) grupo(s) de interesses que tiram proveito da elaboração do microssistema, para demonstrar supostamente o “grau de preocupação” do poder estatal com aquele segmento da realidade (MELLO, 2004, p.111)

Como não poderia deixar de ser, a instituição de um Direito Penal simbólico tem como pano de fundo razões tipicamente políticas. Logicamente, os poderes públicos se valem dos efeitos midiáticos acerca da delinqüência para produzirem discursos essencialmente populistas, destinados à oportuna adesão ao programa de forte repressão, com o fito de aproximar e conquistar maior número de eleitores[12]. (ZAFFARONI, 2007, p.78)

Aduz, então, Zaffaroni (1997, p.19-20) que as leis penais são um dos meios preferidos do “Estado espetáculo” e de seus operadores “showmen”, ante a facilidade de sua propaganda e manipulação da opinião acerca da sua eficácia. Gera, portanto, alto crédito político com baixo custo.  

No afã de dar respostas rápidas e eficientes aos anseios sociais, o Direito Penal assume cada vez mais o caráter simbólico, traduzido no seu atual papel de prima ratio, indo de encontro à sua própria natureza, na medida em que deve atuar de forma instrumental, quando não haja mais qualquer alternativa à solução das demandas sociais[13]. (WERMUTH, 2011, p.58)

Busca-se, de imediato, a ingerência do Direito Penal, sem que se tenha apurado, em momento anterior, a inadequação de outros meios de controle não-penais. Torna, então, o Direito Penal como primeiro ou único meio de solucionar os conflitos sociais e, principalmente, os setorizados, vulnerando, por completo, seus princípios informadores da subsidiariedade ou da ultima ratio. (MELLO, 2004, p.114)

O que interessa, de fato, é o efeito político gerado por um direito penal simbólico. Pouco importa se o sistema punitivo exerce sua função dentro dos limites democráticos, pois o escopo primordial é amenizar a indignação popular ante a criminalidade, por meio de ações expressivas, de uma legislação penal conveniente àquele momento experimentado, capaz de assegurar resultados político-eleitorais imediatos. 

Instala-se, portanto, uma cultura penal eficientista, na qual se busca a imediata produção de resultados, ainda que, para isso, se pague um preço muito alto pelos direitos e garantias individuais. O que vale é o fomento da falsa idéia de tranqüilidade e segurança aos cidadãos, por intermédio de símbolos jurídicos manipuladores, de cunho meramente ilustrativo.

Não é à toa, por conseguinte, que a sanção penal passa a figurar como um mecanismo de reafirmação da confiança institucional na ordem jurídica, em que a pretensão é fazer prevalecer as funções simbólicas às funções instrumentais dos crimes previstos, numa clara formação de uma tutela penal cada vez mais promocional e simbólica, ao invés de real e efetiva. (BARATTA, 1994, p.21)

O que a sociedade espera do Direito Penal moderno não é primordialmente o cumprimento da sua função instrumental de proteção aos bens jurídicos, mas que a atividade legislativa penal seja praticada com fins de produzir efeitos meramente simbólicos, aptos a transmitir aos indivíduos certas mensagens ou conteúdos valorativos, de forte influência mental, porém carecedores de fundamentos materiais justificadores de sua adoção[14]. (DÍEZ RIPOLLÉS, 2011, p.1)

Nesse mesmo trilho, Gracia Martin (2005, p.103-4) adverte que o Direito penal moderno não apenas deixa de cumprir sua função instrumental de tutela aos bens jurídicos, mas sequer cumpre as funções que motivam a sua expansão, como proporcionar efetivamente à sociedade maior segurança e atendimento aos novos interesses, senão reduz sua missão ao mero simbolismo.

Enfim, as considerações feitas em linhas anteriores demonstram, ainda que de forma sucinta, o panorama que se encontra inserido o direito penal moderno. Novos tipos delitivos, nova concepção de bem jurídico, sociedade do medo, a supremacia dos meios de comunicação, direito penal simbólico, todos esses fatores começam a moldar um novo sistema punitivo, distinto daquele surgido em bases essencialmente liberais e institucionalizado em um Estado Democrático de Direito.

Em meio a tantas ponderações acerca da realidade cambiante que se insere o direito penal moderno, valioso destacar a força e capacidade da opinião pública no processo de transformação. Se utilizada como massa de manobra ao atendimento de interesses políticos escusos, é preciso que esse esforço se volte à construção de um sistema punitivo conectado às mudanças sociais, sem que para isso deixe de lado as conquistas e garantias próprias de um Estado Democrático de Direito.

Enquanto destinatária das normas penais, a sociedade tem o dever de participar efetivamente no debate acerca dos bens que realmente requerem a proteção penal, refutando as influências de cunho meramente político e sensacionalista, sob pena de restar desvirtuada a missão e natureza próprias do Direito Penal. A criação de tipos penais faz necessária a participação popular, desde que seja guiada de maneira criteriosa, arrazoada e atenta ao poder de persuasão irrefreável que exerce a mídia. (FARIA, 2010, p.276)

Balizas constitucionais se fazem necessárias à formação do novo direito penal, pois concebê-lo sob uma ótica demasiadamente abrangente, acaba por atacar os próprios fundamentos do sistema de garantias de toda a Constituição, uma vez que a tentativa dirigida à proteção máxima de determinado bem, através de medidas exarcebadas, tende a provocar a flexibilização dos direitos individuais, das garantias processuais e dos princípios vetores de todo o ordenamento, convertendo o Estado Democrático de Direito em estado de exceção[15]. (CANTON FILHO, 2012, p. 150)

Há quem diga, inclusive, que a atuação dos sistemas penais, em tempos de pós-modernidade, surge como fator negador do Estado Democrático de Direito, basicamente por duas razões: primeiro, porque diante do aumento da criminalidade, e considerando-se a ineficácia do modelo penal em realizar objetivos, que aparentemente se propõe, o Estado tem,-se valido de mecanismos normativos criminalizadores de forma exarcebada, sem qualquer respeito aos princípios e garantias constitucionais, numa franca violação aos direito humanos; em segundo lugar, porque em razão do aumento da criminalização e, consequentemente, do número de ações sujeitas à atuação dos sistemas penais, tem o Estado aumentado o seu aparto repressivo para combater crimes que ele mesmo tem criado, com a conseqüência próxima do aumento da despesa em segurança pública, o que inviabiliza a realização de outros direitos sociais muito mais fundamentais para as necessidades das populações. (COPETTI, 2000, p.77)

O Direito Penal eficaz na luta contra a corrupção é aquele que está amparado na adequação de novos perfis que a realidade apresenta, sem que possa fica estranho aos princípios garantistas que limitam o poder punitivo estatal. Isto porque, o Direito Penal contém não apenas garantias constitucionais conferidas ao cidadão, senão especificamente ao cidadão que delinque, o que exige da aplicação da norma penal a noção exata da proporcionalidade, porquanto presente a clássica tensão entre garantia e eficácia. (TORRE, 2009, p.25)

4. CONCLUSÃO

A corrupção representa um fenômeno social, multidimensional e com múltiplas concepções, o que torna seu tratamento jurídico uma tarefa altamente intricada. Objeto de constantes mudanças legislativas, a criminalidade de natureza corruptiva encontra, ainda, sérios entraves acerca do seu devido enquadramento normativo, revelando, muitas vezes, a natureza hipossuficiente das normas penais que tratam da matéria.

O obsoletismo legal, por sua vez, reflete a velocidade com que esta espécie de criminalidade se desenvolve, evidenciando a fragilidade da legislação jurídico-penal em tentar, em vão, prever exaustivamente as modalidades correlatas à prática ímproba, o que favorece o surgimento de zonas defasadas, obscuras e lacunosas acerca do tema.

Ainda que sejam constantemente acrescidas novas formas de delitos à legislação pátria, não se consegue debelar o déficit que assola a previsão legal no intuito de coibir o fenômeno da corrupção, pois as próprias inovações legais, na maioria das vezes, se revelam reduzidas, sem que atinjam amplamente os aspectos da corrupção.

Isto porque, a hiperinflação legislativa detectada nos crimes de corrupção nada mais é que o produto de um Direito Penal extravagante de natureza simbólica e contingente, destinado a oferecer respostas imediatas e emergenciais àqueles fatos dotados de alto grau de danosidade, assim considerados pelo movimento midiático do medo.

Com isso, a política criminal distancia-se, cada vez mais, do plano legislativo, do necessário rigor técnico e da orientação científica, a fim de ceder espaço às inovações legais de cunho meramente punitivo, capazes de despertar o falso sentimento de segurança no ambiente social.

O Direito Penal, no entanto, enquanto principal instrumento de contenção ao fenômeno da corrupção não pode traduzir reações de índole puramente populistas, senão estar assentado em bases democráticas, contornos garantistas e alinhado aos valores fundantes constitucionais, aptos a delinear sua estrutura reitora, na defesa dos direitos fundamentais do cidadão.

 

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Notas:
 
[1] Com o advento da Lei nº 7.492/86, apostou-se que lacunas seriam preenchidas no que se refere aos delitos praticados contra o sistema financeiro nacional. No entanto, a nova lei tratou apenas da prática corruptiva associada aos aspectos financeiros, sem que fizesse qualquer referência a ordem econômica, enquanto sistema mais abrangente e completo. (HABIB, 1994, p.145)

[2] Alinhado ao pensamento de Alessandro Baratta (1994, p.13)

[3] A figura genérica do art. 321 do CP prevê a pena de três meses a um ano de detenção; o art. 91 da Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93) estabelece a pena de seis meses a dois anos de detenção e o tipo penal do art. 3º, inciso III, da Lei nº 8.137/90 fixa a pena de um a quatro anos de reclusão.

[4] A concepção de “sociedade de riscos” elaborada por Ulrich Beck (1998, p.19 e 25) está estreitamente ligada à modernização advinda da sociedade industrial, facilmente identificada pelos problemas e conflitos decorrentes da produção técnico-científica. O impulso na geração de riquezas, o crescimento econômico e o fortalecimento do modelo capitalista formam um conjunto de fatores responsáveis à nova formação social, que se vê constantemente sob a ameaça de novos riscos, debilidades e incertezas. 

[5]  A idéia de liquidez cunhada por Zygmunt Bauman sobrevém da facilidade atual em organizações sociais serem dissolvidas e decompostas, justamente em razão dos laços interpessoais e valores se tornarem cada vez mais frágeis, temporários e aleatórios. A sociedade moderna promove a divisão em detrimento da unidade, incentiva a competição ao rebaixar a colaboração e estimula orientações laterais às verticais. (2007, p.9)

[6] Sob o ponto de vista de Silva Sanchez, as características que revestem a sociedade pós-industrial vão além dos riscos apontados inicialmente por Beck. Classificada como “sociedade da insegurança”, tanto pelo prisma objetivo quanto subjetivo, seu sinal mais forte gira em torno da incerteza na vida social, na qual radica não apenas na criação dos riscos, mas na sua distribuição. (SILVA SANCHEZ, 2002, p.30-3)

[7] Acerca da globalização, Gracia Martin (2005, p.66-7) analisa o fenômeno como fomentador do incremento e fluidez das atividades e transações econômicas internacionais, que, via de regra, escapa ao controle político e jurídico. A partir daí, são criadas condições específicas à prática da uma nova delinqüência associada à globalização, a exemplo das novas fraudes. No mesmo rumo, André Copetti (2000, p.71) aponta a globalização como fator de aumento da criminalidade, que se processo paralelamente à incapacidade estatal de combater as atividades criminosas.  Da mesma forma, Francis Beck (2004, p.41 ss) impõe ao processo globalizador as mudanças ocorridas no sistema de controle penal. 

[8] Denominada pelo sociólogo Zygmunt Bauman (2008, p.27-8), a “síndrome do Titanic” retrata a inquietude do indivíduo decorrente da sua condição de impotência frente aos riscos e catástrofes do mundo moderno. A idéia de que podem surgir a qualquer momento e atingir qualquer sujeito, aleatória e inexplicavelmente, torna a sociedade despreparada e indefesa, incapaz de reagir às surpresas e incertezas que a vida reserva. 

[9] No intuito de prevenir novos riscos, a intervenção penal é intensificada às custas de mudanças importantes na estrutura e nas garantias do direito penal. o que se vê é um exagero na utilização do direito penal, de maneira a comprometer seu funcionamento e, com isso, provocar um déficit de operacionalidade marcante, oriundo da incapacidade de o sistema recolher e dar soluções a todos os problemas que se lhe apresentam. (BECK, 2004, p.43)

[10] Em vista de uma “administrativização” do direito penal, o Estado lança mão de um intervencionismo repressivo excessivo e desproporcional, porquanto para atingir os fins colimados, formas diversas ao direito repressor poderiam ter sido empregadas, a exemplo do direito administrativo. Se o instrumento penal tem o poder de atacar drasticamente as liberdades individuais, seu emprego deve estar pautado na subsidiariedade, já que sua existência se dá em um Estado democrático e social de direito, calcado em princípios informadores fundamentais. (FARIA, 2010, p.304-5)

[11] Sobre o assunto, José de Faria Costa (2009, p.39-40) caracteriza o Direito Penal atual como “tutelador do futuro”, na medida em que se afasta do princípio vetor da causalidade, dando lugar ao juízo de probabilidades como marco orientador da sua atuação. Em síntese, “[…] o direito penal parece já nada querer com o desvalor dos resultados do presente, quer olhar exclusivamente para o desvalor dos resultados que irão acontecer no futuro e, por outro lado, quer vestir o fato de polícia de giro, quer ser preventivo, quer estar antes que os factos aconteçam, parece que se quer abandonar a idéia nobre e profunda de liberdade, que é a que cinge um direito penal do facto, para se defender um direito penal, para sermos generosos, do ante-facto ou, no outro extremo, do post-facto.

[12] Melhor dizendo, aquele representante que adota medidas penais mais incisivas, sob o pretexto da busca pela segurança social, fatalmente cairá nas graças da sua comunidade, rendendo-lhe preciosos votos. No entanto, a máscara da almejada segurança oculta o desprezo político pelas providências de viés estrutural aos problemas sociais, por estas se mostrarem mais custosas e de reflexo mediato.
Atraído pelas alocuções confortantes dos candidatos, as quais primam pela reação instantânea da ingerência estatal frente ao “avanço da criminalidade”, o público, na maior parte das vezes, não percebe que abraçar a falsa promessa de uma sociedade mais segura e tranqüila, acaba por legitimar o estabelecimento de um sistema punitivo distorcido, autoritário e alheio aos valores democráticos deste Estado de Direito.

[13] A promoção da tutela penal de um bem jurídico somente deverá ser procedida quando verificada a falha de outros mecanismos de controle social, de modo a atuar na condição de ultima ratio da política social, fazendo prevalecer o caráter subsidiário que reveste o direito penal democrático, regido pelo princípio da intervenção mínima. (BURGALHO, 2007, p.293)

[14] Reforça Roberto Livianu (2006, p.168): “Os efeitos simbólicos da legislação penal, muito utilizados na atualidade como resposta do Estado aos conflitos sociais determinados pela criminalidade complexa, em que se inclui o crime de corrupção, não atingem o efeito desejado, uma vez que não conseguem modificar a realidade, nem mesmo proteger os bens jurídicos a que se propõem.”

[15] Acerca da necessidade de se promover uma atuação estatal equilibrada e proporcional, André Copetti (2000, p.79) destaca: “Sem aprofundar a análise de que uma intervenção penal máxima somente poderia servir à formação de um Estado totalitário, também um modelo mínimo ou a abolição de toda e qualquer forma de controle social penal do Estado podem servir a uma atuação penal desmedida e autoritária, distanciada da realização de um Estado Democrático de Direito, especialmente se, paralelamente às reduções, depararmo-nos com uma supressão de garantias.”


Informações Sobre o Autor

Rebecca Cerqueira Rocha

Advogada criminalista, mestranda em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia


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