Reflexões sobre os crimes de perigo abstrato

Resumo: O estudo examina a utilização dos crimes de perigo abstrato como forma encontrada pelo legislador para tentar conter a criminalidade oriunda da sociedade contemporânea. Analisam-se as características da sociedade posta na atualidade, com ênfase nos fenômenos da globalização e nos conceitos da “sociedade do risco”, bem como à influência que estes conceitos exercem no Direito Penal, levando este a uma hipertrofia e acentuando nele um caráter preventivo, com a edição de tipos penais de perigo abstrato.


Sumário: 1. Reflexões Iniciais. 2. Considerações sobre a sociedade contemporânea e a expansão do Direito Penal. 3. Considerações sobre os crimes de lesão e crimes de perigo. 3.1 Distinção entre crimes de dano e crimes de perigo. 3.1.1 Subsidiariedade dos crimes de perigo em relação aos crimes de dano. 4. Características dos crimes de perigo concreto. 5. Apontamentos sobre os crimes de perigo abstrato. 6. Reflexões finais. 7. Referências bibliográficas.


1 – Reflexões iniciais


Hodiernamente, é incontestável que a sociedade mundial ou a aldeia global – sincronizando o termo com nosso tempo – tem passado por inúmeras e profundas transformações.


O sociólogo português Boaventura de Souza SANTOS[1], sobre o nosso tempo, escreveu que:


Vivemos num tempo atônito que ao debruçar-se sobre si próprio descobre que os seus pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos já não sermos, ora pensamos não termos ainda deixado de ser, sombras que vêm do futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca virmos a ser.


Estamos submersos numa época aturdida, de transição, na qual a ambigüidade e a complexidade provocam o descompasso dos que vivem e interagem na sociedade planetária. Nesta época, como afirma Antônio Carlos WOLKMER[2]


os grandes discursos e as narrativas norteadoras que deram fundamentação às formas de saber, ao modo de organização da vida, à regulação dos procedimentos comportamentais, às práticas uniformes de representação social e às configurações centralizadas da estrutura de poder passaram por questionamentos radicais, por processo de descentralização, por múltiplas redefinições e por realidades emergenciais


Nesta perspectiva, vivemos, então, num tempo de transição entre uma sociedade industrial e uma sociedade digital, entre uma sociedade nacional e uma sociedade global, entre a lógica-formal cartesiana e a cultura dos espaços virtuais, plurais e fragmentados.


Estamos envoltos em uma sociedade de risco[3], na qual o homem e o planeta vivem cercados pelo perigo, decorrente do exacerbado avanço tecnológico desprovido da consciência da finitude dos recursos naturais. Riscos oriundos da crença de uma tecnologia perfeita capaz de resolver todos os problemas do homem e do lugar onde ele habita. Riscos vindos do pensamento forjado na crença representada pela esperança na capacidade humana, pois, carregamos conosco o dogma: o que é errado hoje será corrigido amanhã ou depois pela nossa capacidade criativa e inventiva.


O certo é que vivemos numa sociedade em que a percepção e a reflexão do risco aumentaram, e a conseqüência óbvia desta constatação é a tentativa desenfreada de redução destes riscos que, por sua vez, debruça sua confiança no conhecimento técnico.


Ocorre que a percepção e a reflexão do risco aumentaram no mesmo grau em que à confiança na ciência diminui. Fato que trouxe medo ao corpo social, haja vista a dificuldade, a complexidade e impossibilidade de se lidar com determinadas ocorrências.


Este sentimento de insegurança real, emergente da própria sociedade do risco é potencializado pelos meios de comunicação, tendo em vista ser esta sociedade a da informação.


E notório que “entre rupturas e continuidades, entre novos riscos e velhas seguranças, entre mal-estares conhecidos e mal-estares desconhecidos, entre emergências e inércias[4], a sociedade queixa-se da falta de mecanismos de travagem, sistemas de direção, de previsão, de um ponto de ancoragem, a fim de se libertar das ameaças conhecidas de catástrofes, já que se percebe a impossibilidade de reduzir suas probabilidades, mesmo sabendo de onde elas vêem, quais são os problemas a enfrentar e quem são os perpetradores.


A concepção de risco na seara jurídica passou a ser de suma importância devido à influência direta que alguns operadores do Direito sofreram de uma série de argumentos alarmistas que favoreceram a proliferação de movimentos dedicados a uma ampliação do Direito Penal com o nítido escopo de tentar barrar a denominada criminalidade moderna.


Nesta senda, a ciência jurídica é convocada a dar respostas sobre os novos temas da sociedade pós-moderna: danos imprevisíveis e não subsumíveis às coordenadas do tempo e espaço, exigências da globalização e da integração supranacional, reforçadas pela quebra de barreiras jurídicas na circulação de pessoas e bens e efetiva punição dos infratores (pessoas/agentes/grupos).


Da análise destes pontos, vê-se que o direito tradicional-liberal-antropocêntrico (paradigma das sociedades democráticas industriais do fim do século XX) não pode fazer frente a esta nova ordem, pois o fenômeno global está a modificar a realidade local de forma instantânea.


De tudo isso se conclui que existe uma nova demanda de modelos de operar na ciência jurídica. O catálogo conceitual clássico desta ciência não consegue mais responder aos anseios desta sociedade de risco, devendo, pois, o direito sofrer um processo de adaptação e mutação para se enquadrar nesta nova realidade.


Contudo, a resposta do Estado tem sido a da concepção de um Direito Penal cada vez mais punitivo, preventivo e hipertrofiado. Um destes efeitos traduz-se na abundante utilização de tipos penais de perigo abstrato, em contraposição aos de lesão e perigo concreto, paradigmas do Direito Penal Clássico.


Essa técnica legislativa e político-criminal das últimas décadas, mormente das duas últimas, quando a sociedade global tomou consciência dos riscos e ameaças que caracterizam o processo de evolução da tecnologia, suscita não só conflitos com princípios fundamentais da ciência penal, senão também sérios e graves problemas de legitimação do ius puniendi, de sua fundamentação e de seus limites, já que a criminalização com uso do modelo dos tipos de perigo abstrato trata-se de flagrante antecipação da punição criminal.


HASSEMER[5], com muita propriedade, relata que o instrumento do Direito Penal da sociedade contemporânea, o qual serve claramente a uma ampliação de sua capacidade, é a forma delitiva dos crimes de perigo abstrato. Este crime é a forma delitiva da modernidade para o legislador. Os crimes de perigo concreto ou os crimes de dano parecem estar ultrapassados.


Vislumbra-se, então, que tentando dar uma solução para esta crise da sociedade, o Direito Criminal é chamado “em primeira mão”, e levado a trabalhar cada vez mais com os crimes de perigo abstrato, que abrangem no muito das vezes situações prévias ao crime (punem o pré-delito). No entanto, este alargamento do uso de tipos preventivos constitui-se em notória contradição aos princípios do Direito Penal Liberal que primam sempre pela punição do resultado efetivamente lesivo ao bem jurídico tutelado.


O presente trabalho buscará, pois, examinar a utilização dos crimes de perigo abstrato como forma encontrada pelo legislador para tentar barrar a criminalidade oriunda da sociedade posta na atualidade.


Assim, analisar-se-á a forma pela qual a sociedade contemporânea vem se caracterizando, as justificativas utilizadas pelo legislador para criminalizar condutas de perigo. Após, ver-se-á as diferenças entre os crimes de perigo e os crimes de dano, os conceitos de crimes de perigo concreto e abstrato e a fundamentação da existência e abundância deste último nas legislações penais da sociedade contemporânea, bem como as violações que o mesmo acarreta no Direito Penal Clássico, tendo em vista a existência de notória antecipação da tutela penal.


2 – Considerações sobre a sociedade contemporânea e a expansão do Direito Penal


“As coisas andam rápido! Tudo está integrado e funcionando em tempo real!”[6]


Fundamental, haja vista a rápida expansão e mutação da realidade social em que vivemos, traçar breves linhas sobre a nova sociedade que se impõe perante a humanidade nos dias de hoje, para, ao final, demonstrar a transformação que a mesma incute no direito penal.


Verifica-se, sem sombra de dúvidas, que o extraordinário desenvolvimento da sociedade da era industrial, não obstante ter sido responsável pelo incremento da qualidade de vida e pela satisfação de inúmeras necessidades humanas trouxe consigo uma aceleração, nem sempre positiva, “causando ao homem a sensação de que hoje viva em um só ano, o que o homem do século XIX teria de viver em cem”, conforme a lição de Paulo Silva FERNANDES[7]. Os avanços da humanidade acabaram por criar novos riscos, e dada sua gravidade, estes assumem proporções capazes de colocar em xeque a vida no nosso planeta.


São características desta sociedade pós-industrial em que estamos inseridos: globalização, integração supranacional, predomínio do poder econômico sobre o político, imprevisibilidade, risco ou aparecimento de novos riscos, insegurança, identificação da maioria social com a vítima, descrédito nas instâncias de proteção, reforço da criminalidade organizada e o conseqüente surgimento de um direito penal hipertrofiado e essencialmente preventivo.


Sobre a globalização, importante frisar que este movimento constitui-se em um fenômeno cujas dimensões ultrapassam as fronteiras econômicas chegando as esferas social, política, jurídica, cultural e religiosa que se interconectam de maneira complexa. Desta forma, qualquer explicação simplista, que busque reduzir o fenômeno em algo estagnado numa área apenas, tende a não traduzir a realidade.


Sobre o caráter econômico da globalização, Otávio IANNI[8] assinala que a globalização expressa um novo ciclo de expansão do capitalismo, como modo de produção e processo civilizatório de alcance mundial. Uma realidade ainda desconhecida, ou pouco compreendida, que desafia as práticas e ideais, as situações consolidadas e interpretações sedimentadas.


Boaventura de Souza SANTOS[9], por sua vez, relata que a globalização é um


processo complexo que atravessa as mais diversas áreas da vida social, da globalização dos sistemas produtivos e financeiros à revolução nas tecnologias e práticas de informação e de comunicação, da erosão do Estado nacional e redescoberta da sociedade civil ao aumento exponencial das desigualdades sociais, das grandes movimentações transfronteiriças de pessoas como emigrantes, turistas ou refugiados, ao protagonismo das empresas multinacionais e das instituições financeiras multilaterais, das novas práticas culturais e identitárias aos estilos do consumo globalizado.


Tópico muito importante a ser focalizado nesta enumeração é a substituição do Estado – dono do poder político – pelas empresas – detentoras do poder econômico, sendo estas as protagonistas do mercado. Nota-se que há décadas as decisões tomadas em alguns Estados ou em algumas organizações internacionais refletem-se extrafronteiras, dada a capacidade destas decisões afetarem a Terra.


A surpreendente amplitude e profundidade destas interações transnacionais, atravessadas por movimentos simultâneos de integração e fragmentação, levaram a interação de alguns fatores, como, por exemplo, a eliminação das fronteiras nacionais com a criação de Comunidades de Países combinada com o aumento da diversidade local dentro do território destes próprios países, como pode ser visto, mais claramente, na atualidade, no continente Europeu.


Conforme posto por Stuart HALL[10], o processo de mudança constante, rápido e permanente causado pela globalização, bem como o impacto deste fenômeno diante da identidade do indivíduo, acentuou o contraste das sociedades “modernas”, nas quais as práticas sociais são reexaminadas (refletidas) e reformadas à luz de informações recebidas sobre estas próprias práticas, o que altera continuamente seu caráter, em relação as sociedades “tradicionais”, as quais, baseadas na tradição e na valorização de símbolos que perpetuam a experiência de gerações tentaram paralisar o tempo, ao inserirem qualquer atividade ou experiência particular numa linha de práticas do passado.


As sociedades contemporâneas “são caracterizadas pela diferença; são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes ‘posições de sujeito’ – isto é, identidades – para os indivíduos”.[11]


Não existe centro, ou princípio organizador único, na contemporaneidade. A sociedade não se apresenta como um todo unificado, e nem por isso deixa de existir, já que seus diferentes elementos e identidades, em certas circunstâncias, articulam-se entre si, deteriorando identidades estáveis do passado e abrindo a possibilidade da produção de novas identidades, novos sujeitos. A pós-modernidade é vista como um processo de rupturas e fragmentações sem-fim, de descontinuidades, de deslocamento, não de substituição.


A questão da velocidade na sociedade atual é outro ponto a ser relatado, pois aumenta a dificuldade de previsão dos acontecimentos e, por conseguinte, torna impossível a controlabilidade dos mesmos.


Sobre esta questão, Ruth GAUER[12] destaca na sociedade atual “a onipresença do fator ‘velocidade’, a qual constitui, para Paul Virilio, ‘a alavanca do mundo’. Na atual velocidade, o mundo está chegando a um ponto de instantaneidade nos nossos deslocamentos” .


Atualmente, vive-se num mundo no qual grande parte dos acontecimentos dá-se quase ou de forma instantânea. Um bom exemplo é a transmissão da informação pelos meios computadorizados. Neste ponto, se destaca não só a velocidade da transmissão, como também a quantidade e a simultaneidade da transmissão.


Outro ponto a ressaltar é a “instantaneidade nos nossos deslocamentos[13]. Hoje, por intermédio da Internet, as pessoas podem relacionar-se com outras que estão do outro lado do mundo apenas fazendo clicks com o mouse. Enviam-se fotos, fala-se com imagem simultânea e em tempo real, etc. Podemos estar, virtualmente, em vários lugares ao mesmo tempo, o que para o modelo de conhecimento da modernidade, baseado no paradigma galilaico-newtoniano, era impossível.


Veja-se que se desfaz “num simples click” o modelo da modernidade de previsibilidade e de determinação dando lugar a uma sociedade de diferença e de imprevisão. Cumpre, neste ponto, mostrar o pensamento de BAUMANN[14]: “O mundo pós-moderno está se preparando para a vida sob uma condição de incerteza que é permanente e irredutível”. Desta forma, vê-se que é difícil – ou impossível – legislar para prevenir ou conter riscos.


Sobre os “riscos” cumpre salientar que estes são provocados por decisões humanas, que põe em perigo a própria sobrevivência do homem. Ressalte-se o fato de que não há mais fronteiras para a ação humana, pois os riscos são globais, podendo ser produzidos em qualquer local do globo e se prolongarem no tempo. Ademais, os riscos são locais e globais ao mesmo tempo, transcendem as gerações e as noções de espaço e tempo, visto o fosso temporal entre a prática de uma ação e sua conseqüência, vide, neste sentido, o acidente nuclear de Chernobyl que até hoje continua provocando danos à humanidade.


Na sua obra, La sociedad del riesgo global, Ulrich BECK, apresenta conceitos como “risco”, “perigo” e “sociedade de risco”, doutrinando, ao final, que risco e perigo acabam sendo sinônimos. BECK[15] afirma que “Riesgo es el enfoque moderno de la previsión y control de las consecuencias futuras de la acción humana, las diversas consecuencias no deseadas de la modernización radicalizada. Es um intento (institucionalizado) de colonizar el futuro, un mapa cognitivo.


Paulo de Souza MENDES[16] define o risco como uma avaliação moderna do conteúdo informacional, consistente na expressão de algum grau de incerteza sobre a ocorrência de certos efeitos secundários, geralmente indesejáveis, associados ao desempenho de determinada atividade ou ato, normalmente dirigido para a obtenção de um fim útil qualquer.


Os conceitos de risco e sua evolução são apresentados por David GOLDBLATT[17] e se dividem em três etapas, a saber: na primeira fase, a da sociedade liberal do século XIX, o risco assume a forma de acidente, isto é, de um acontecimento exterior e imprevisto, de um acaso, e é simultaneamente individual, repentino e irremediável. Nesta época, os perigos eram perceptíveis mediante os sentidos e o direito penal não podia dar conta dos riscos; na segunda fase, surge a emergência da noção de prevenção e segurança, entendendo-se como tal a atitude coletiva, racional que se destina a reduzir a probabilidade de ocorrência e a gravidade de um risco, que, por óbvio, era, na esteira da modernidade, objetivo e mensurável. A utopia da ciência perfeita e da técnica infalível de uma sociedade capaz de resolver racionalmente seus problemas faz o risco ser controlado pela estatística, pelo cálculo de probabilidades e o torna socialmente suportável pela divisão das responsabilidades pelos danos; na terceira fase da história do risco, ou na atualidade, o risco é encarado como algo invisível, imensurável, catastrófico, irreversível, pouco ou nada previsível, que destrói as nossas esperanças de prevenção e de domínio, sendo um efeito perverso ou secundário das próprias decisões humanas. A sociedade da atualidade, “do risco” é, pois, uma sociedade que se põe por seus próprios atos em perigo.


Assim, a auto-reflexão, a consciência do risco, torna-se caráter fundamental e diferenciador da sociedade pós-moderna. Neste sentido, cabe mencionar que: “A modernidade torna-se, assim, reflexiva o que vale por dizer que, a par da constatação da presença ubiquitária de novos riscos – anteriormente ausentes -, causados pela expansão cega da sociedade industrial, e como elemento subjectivo dessa percepção, surge a reflexão sobre os próprios fundamentos desse desenvolvimento desmesurado…. [18]


Percebe-se, nestas linhas, que grande parte das ameaças a que os cidadãos estão expostos provém de decisões que outras pessoas adotam, as quais surtirão efeito apenas no futuro e que são derivadas de aplicações técnicas de desenvolvimentos industriais. A partir daí, ocorre uma mobilização para que o Direito abarque tais situações em suas disposições com a finalidade de proteger os cidadãos destas ameaças que não são visíveis e que ultrapassam fronteiras de espaço e categorias de tempo.


Os sujeitos do Iluminismo, plenos de consciência, racionais, objetivos, que esperaram tudo que fora prometido durante anos pelos modelos do Estado Liberal e Social, passaram a perceber que perderam o controle e, por conseguinte, identificaram-se como vítimas de algo que não conseguiram enxergar e explicar racional e objetivamente, requisitando, haja vista o medo generalizado, a ação urgente de algo que proporcionasse uma ancoragem drástica na sociedade. No caso, o Direito Penal.


Na sociedade caracterizada acima, inicia-se a formação de um direito penal hipertrofiado, prevencionista e expansivo, sendo que este caráter de expansão explica-se pela acolhida de novos bens jurídicos (tais como meio ambiente, saúde pública, mercado de capitais, tributos, relações de consumo), pelo adiantamento das barreiras entre o comportamento impune e o punível e pela redução das exigências para a reprovabilidade da ação humana, o que se expressa na mudança de paradigma que vai da lesão do bem jurídico para a perigosidade da ação em si mesma, já que, muitas vezes, o núcleo do dano causado talvez não possa ser atribuído a alguém, todavia, acaba-se adotando a postura de considerar tais casos como resultantes de falta de cuidado, havendo um incremento na tipificação dos crimes de perigo, crimes comissivos por omissão, não-distinção ente autoria e participação, inversão da carga de prova, além da substituição do modelo clássico de justiça pela justiça negociada (ver o casos dos juizados especiais criminais e da delação premiada na lei de tóxicos).


Veja-se, então, que para responder a esta sociedade insegura, o Direito Penal é adaptado à ótica da sociedade do risco, recebendo uma função de “eminente instrumento de prevenção”.


Assim, o Direito Penal oriundo da sociedade do risco pretende a minimização do risco e a produção de segurança. Trata-se da idéia de prevenção, de proteção dos bens jurídicos através de uma orientação pelo risco. Ou seja, nada mais do que a reedição, com outro enfoque, do projeto falido que fora construído pela modernidade nos últimos três séculos.


3 – Considerações sobre os crimes de lesão e crimes de perigo


Far-se-á, neste tópico, uma distinção entre os crimes de perigo e os crimes de dano, ressaltando-se, após, a subsidiariedade dos crimes de perigo em relação aos crimes de dano.


3.1 – Distinção entre crimes de dano e crimes de perigo


Eduardo CORREIA[19] aduz que, “considerados os interesses significativos para o direito criminal e os objectos que o encaram, pode a lei exigir sua lesão efectiva, v.g. a morte de outrem, ou colocar esses interesses em simples perigo, o criar-se uma situação tal que seja possível a sua lesão”.


Blanca Mendoza BUERGO[20], referindo-se à distinção entre delitos de perigo e delitos de dano, a seu turno, leciona que:


Habitualmente, la caracterización de una infracción penal como delito de lesión se realiza atendiendo a la formulación del tipo, siendo fundamental a estos efectos no solo la descripción de la conducta típica, esto es, la forma o modalidad del ataque sino, más bien, las características que reviste la consecuencia del mismo; es decir, si el tipo reclama la incidência de tal conducta, en su caso, sobre um objeto típico y, con ello, la producción de un efecto en el mismo que supone la destrucción o afectación del bien jurídico y, em definitiva, la lesión de este o si, por el contrario, la realización de la conducta implica simplemente la amenaza de producción de tal efecto lesivo. El elemento distintivo básico es, por tanto, el grado de afección del bien jurídico tutelado.


O tipo penal pode, então, estatuir que o crime se perfaz com a efetiva lesão ao bem jurídico, “que vem a ser ofendido pela eliminação ou diminuição em face da ação delituosa”, conforme ensina Miguel REALE JÚNIOR[21].


Já em outras figuras penais a descrição típica não exige a provocação de um dano, mas a colocação do bem jurídico em perigo de lesão. Crime de perigo é, pois, aquele que, sem destruir ou diminuir o bem jurídico tutelado pelo direito penal, representa uma ponderável ameaça ou turbação à existência ou segurança de ditos valores tutelados, uma vez existir relevante probabilidade de dano a estes interesses.


Então, conforme o tipo descreva um dano ao bem jurídico tutelado, objeto da proteção penal, ou um perigo para integridade deste objeto, os tipos distinguem-se em tipos de lesão e tipos de perigo. Os tipos de perigo, por sua vez, em tipos de perigo abstrato e tipos de perigo concreto que mais adiante serão delineados.


3.1.1 – Subsidiariedade dos crimes de perigo em relação aos crimes de dano


Sinale-se que o os crimes de perigo são subsidiários em relação aos crimes de dano, pois como muito bem pontua Walter COELHO[22]diante da relevância do bem juridico tutelado, estende o Direito Penal a sua proteção desde a remota e potencial situação perigosa (contravenção), passando pelo perigo iminente ou próximo (crime de perigo), ate a efetiva lesão do interesse a ser resguardado”.


Com esta medida pretende a lei penal realmente proteger o bem ou interesse jurídico que entende relevante para determinado grupo social, circunscrevendo todo seu âmbito com a proteção do Estado, prescrevendo crimes de perigo somente nos caso em que o bem jurídico necessita eminentemente de proteção. Esta questão da subsidiariedade fica clara quando enfocamos os crimes contra a vida, nos quais temos proteções desde o âmbito do mínimo perigo, conforme o artigo 10 da Lei 9.437/97 (atirar com arma de fogo para o alto), passando para o artigo 132 (expor a vida a perigo), depois para o 129 (lesão corporal) do Código Penal e culminando na lesão máxima prevista no artigo 121 (homicídio) do mesmo diploma legal.


4 – Características dos crimes de perigo concreto


Indispensável, antes de se abordar os crimes de perigo abstrato, referir sobre os crimes de perigo concreto.


Inicia-se frisando que o fundamento da punição dos crimes de perigo concreto encontra-se no fato de “o legislador querer, sem duvida proteger um determinado bem jurídico e pode fazê-lo porque considera que o por em perigo é elemento bastante para justificar uma pena criminal”, como acentua Jose Francisco de FARIA COSTA[23].


Neste diapasão, os delitos de perigo concreto são aqueles que requerem, para sua verificação, a produção de um resultado, individualmente verificável no caso fático, de real perigo de dano ao objeto protegido pela norma.


Tais delitos são de resultado como os delitos de lesão, mas sua verificação importa em critérios de imputação divergentes, pois ao invés de apresentarem um resultado lesivo de dano, apresentam um resultado de criação de perigo de resultado de dano, de assunção do risco de lesão não permitido pela norma.


Günther JAKOBS[24] refere que nos crimes de perigo concreto existe algo mais que a execução de uma ação em determinada situação subjetiva, existe a verificação de que esta ação ocasiona objetivamente uma determinada situação de perigo para um objeto também determinado e visado pela ação. Explana, ainda, que nos delitos de perigo concreto, o agente da ação possui juízo – conhecimento – do perigo que está produzindo, possui, por conseqüência, dolo de perigo e as vezes até dolo eventual de lesão. Como exemplo, cite-se o crime de transmissão de moléstia sexual grave (artigo 130 do CP).


Neste diapasão, tem-se que nos crimes de perigo concreto, a realização do tipo pressupõe efetiva produção de perigo para o objeto da ação, de modo que a ausência de lesão para o objeto da tutela penal pareça meramente obra do acaso. Juarez Cirino dos SANTOS[25] aduz que “segundo a moderna teoria normativa do resultado de SCHÜNEMANN, o perigo concreto se caracterizaria pela ausência casual do resultado, e a casualidade representa circunstância em cuja ocorrência não se pode confiar”.


Claus ROXIN[26], por sua vez, acentua que nos delitos de perigo concreto “la realización del tipo presupone que el objeto de la acción se haya encontrado realmente em peligro em el caso individual”.


Assim, para a caracterização dos crimes de perigo concreto faz-se necessário a coexistência de no mínimo três situações, a saber: primeiramente, é fundamental existir um objeto tutelado que entre no âmbito de conhecimento e volição daquele que pratica determinada ação que acaba expondo tal objeto a perigo de dano; em segundo lugar, esta ação realizada deve criar real e individual perigo de dano ao objeto da ação; e em terceiro lugar, do ponto de vista do bem jurídico, esta exposição concreta a perigo traduz-se em uma situação em que, apresenta-se provável a causação de uma lesão, que não pode ser evitada de forma alguma.


5 – Apontamentos sobre os crimes de perigo abstrato


A questão da antecipação da tutela penal, especialmente sua realização através dos delitos de perigo, e nos últimos anos mais focalizada nos delitos de perigo abstrato, tem se constituído, em muitos meios, sejam acadêmicos, político-administrativos, técnico-legislativos, na tônica do debate político criminal da sociedade contemporânea.


Delito de perigo abstrato é, nas palavras de Claus ROXIN[27], “aqueles em que se castiga a conduta tipicamente perigosa como tal, sem que no caso concreto tenha ocorrer um resultado de exposição a perigo”.


A técnica dos delitos de perigo abstrato constitui-se numa das características mais visíveis do desenvolvimento atual das legislações penais, acentuando-se seu uso nos campos mais problemáticos da regulação positiva, nos quais se sente a necessidade de política de segurança mais aguda, como, por exemplo, no direito penal econômico e do meio ambiente, até mesmo para facilitar e diminuir os problemas processuais – dificuldades na produção de provas, na verificação dos sujeitos ativos – nas averiguações destes delitos.


Neste sentido, cumpre citar a penalista espanhola Blanca Mendoza BUERGO[28]:


El problema de la cada vez mayor ampliación del Derecho penal al campo de la punición de meras acciones definidas como peligrosas com carácter general es especialmente intenso cuando, además, ello se instrumenta para la protección de intereses cada vez menos delimitados, de carácter supraindividual, dificilmente reconducibles a interesse identificables con claridad”.


Esta tendência tem justificativa na característica preventiva que o direito penal contemporâneo tem demonstrado, orientado na diminuição do risco, e não mais na antiga idéia do direito penal clássico de punição, de vingança institucionalizada, pela lesão do objeto protegido pela lei.


Urs KINDHÄUSER[29] enfatiza que não há como negar que o Direito Penal da sociedade contemporânea busca retirar o delito de lesão, no qual o bem jurídico tutelado sofre um dano substancial, do centro de sua tipologia conceitual, deslocando para este lugar o delito de exposição do bem jurídico tutelado a perigo abstrato. Informa, ainda, que o delito é de perigo abstrato porque o tipo penal não descreve uma necessidade de real exposição do bem jurídico a qualquer perigo, mas sim encerra o tipo legal a descrição de uma conduta perigosa em si mesma.


Característica que chama a atenção nestes delitos é que o castigo punitivo recai na própria conduta do agente sem requer eventual lesão ao bem jurídico protegido, ou, menos ainda, cogitar-se, sequer, de dolo respectivo a causação de resultado danoso em determinado objeto tutelado pelo Direito.


Nestas linhas, Blanca Mendoza BUERGO[30] explica que


Los delitos de peligro abstracto castigan la puesta en prática de uma conducta reputada generalmente peligrosa, sin necessidad de que haga efectivo un peligro para el bien jurídico protegido. En ellos se determina la peligrosidad de la conduta típica a través de uma generalización legal basada en la consideración de que determinados comportamientos son tipicamente o generalmente para el objeto típico y, em definitiva, para el bien jurídico. Así, al considerar que la peligrosidad de la acción típica no es elemento del tipo sino simplemente razón o motivo de la existência del precepto, se concluye que no solo no es necesario probar si se há producido o no en el caso concreto uma puesta em peligro, sino ni siquiera confirmar tal peligrosidad general de la conducta en el caso individual, ya que el peligro viene deducido a través de parâmetros de peligrosidad preestablecidos de modo general por el legislador.


Vislumbra-se que os crimes de perigo abstrato não buscam responder a determinado dano ou prejuízo social realizado pela conduta, senão evitá-la, barrá-la, prevenindo e protegendo o bem jurídico de lesão antes mesmo de sua exposição a perigo real, concreto, efetivo de dano. Ao fazer uso desta modalidade delitiva, quer o Direito Penal da atualidade proporcionar, ou melhor, dar a sensação de segurança ao corpo social.


A definição jurídica de tal modalidade delitiva dependerá não da previsão de uma conduta com probabilidade concreta de dano, isto é, de um resultado efetivamente perigoso para a vida social, mas da prática de um comportamento simplesmente contrário a uma lei formal, em outras palavras, a simples realização de um ato proibido pelo legislador, sem causar necessariamente dano ou sequer um perigo efetivo à ordem jurídica. Ou seja, pune-se ainda que não ocorra o dano efetivo do bem jurídico, ou, ao menos, sua possibilidade concreta. Pune-se, pois, a pura violação normativa.


Gunther JAKOBS[31], partindo deste entendimento, leciona que as condutas punidas através dos delitos de perigo abstrato são aquelas que perturbam não apenas a ordem pública, mas lesionam um direito à segurança, esta entendida no sentido antes referido, no sentido normativo.


Sobre esta argumentação, prossegue JAKOBS[32] tecendo os seguintes comentários:


o legislador costuma concretizar centralmente os postulados normativos, e o faz de tal modo que ele mesmo descreve – também sem mencionar de modo algum o resultado desejado da ação – a configuração dos comportamentos contrários à norma e com isso, o que se vai produzir descentralizadamente fica reduzido à simples de em que caso se dá tal configuração de comportamento. Assim, a lei proíbe coisas muito diferentes, desde o falso testemunho até a condução de veículo sob a influência de bebidas alcoólicas, e o faz também quando o individuo não vê resultado perigoso de seu comportamento, e quiçá, tampouco poderia vê-lo: nesses crimes de perigo abstrato, o tipo de comportamento se define como não permitido por si mesmo é dizer, centralizadamente, sem atender a especialidades não centrais”.


Nesta diapasão, como doutrina Marco Aurélio Costa Moreira de OLIVEIRA[33], o legislador oportunizou ao julgador a atribuição de procurar potencialidades danosas, bem como se deu a competência para criar bases normativas destinadas a punir antecipadamente condutas. Nasceram daí normas com previsões genéricas, que concederam ao juiz um amplo espectro decisório, sem previsão específica do campo de atuação do agente, ou do desvalor de sua atuação.


Nota-se, pois, que o legislador facilita os caminhos da punição criminal, pois se renuncia a prova de um dano e a prova da causalidade entre a conduta e o resultado, já que este e presumido, na busca de uma efetiva repressão ao crime.


Todas as críticas, feitas pela doutrina alemã, aos crimes de perigo abstrato foram sistematizadas por Juarez Cirino dos SANTOS[34], cumprindo, por sua excelência mencionar:


JAKOBS fala da ilegitimidade da incriminação em áreas adjacentes à lesão do bem jurídico; GRAUL rejeita a presunção de perigo dos crimes de perigo abstrato; SCHRÖDER propôs admitir a prova da ausência de perigo; CRAMER pretendeu redefinir o perigo abstrato como probabilidade de perigo concreto. Por outro lado, destacando a finalidade de proteção de bens jurídicos atribuída aos tipos de perigo abstrato, aparentemente indissociáveis de políticas comprometidas com o controle ecológico, o controle das atividades econômicas e, de modo geral, a garantia do futuro da Humanidade no planeta, HORN e BREHM propõe fundar a punibilidade do perigo abstrato na contrariedade ao dever, como um perigo de resultado (e não como resultado de perigo) e FRISCH pretende compreender os delitos de perigo abstrato como delitos de aptidão (Eignungsdelikte), fundado na aptidão concreta ex ante da conduta para produzir a conseqüência lesiva.


Vê-se, pois, que os crimes de perigo abstrato tem sua danosidade presumida, independentemente da produção de lesão ou de perigo real ao interesse tutelado pela norma penal.


Ocorre que ao fazer isto o legislador opera uma inversão da carga probatória no processo penal, pois abdicando do dano e do nexo de causalidade a situação delitiva fica muito mais fácil de ser provada. No caso concreto não é necessário provar qualquer situação concreta, apenas a pura violação da norma jurídica, o que, com certeza, proporciona ao acusado poucas possibilidades de defesa.


Com efeito, os tipos de perigo são fontes de inesgotáveis debates, acarretando sérios problemas na interpretação e aplicação da lei, uma vez que realizam verdadeira virada conceitual no Direito Penal Clássico, propondo criminalizar condutas por elas mesmas, presumindo a existência de um fato perigoso. Sinale-se, todavia, que a conduta do homem é fenômeno ocorrente no plano da experiência não podendo ser jamais presumida ou imaginada, mas sim verificada.


Claramente, desse emprego dos tipos penais de perigo abstrato, resulta afronta ao enunciado de Direito Penal clássico nullum crimen sine injuria, e, por conseguinte, inobservância ao princípio constitucional da ofensividade, pois não há crime sem resultado. Ainda, neste sentido, a disposição do artigo 13 do Código Penal.


Para FARIA COSTA[35], tendo em vista o princípio da ofensividade, só existe possibilidade de se criminalizar situações concretas de exposição objetiva a perigo. Relata o doutrinador que:


De fora fica, em verdadeiro rigor, todo o reino de legitimidade da punição de condutas cujo traço essencial não está no facto de o perigo se ter concretamente desencadeado, mas sim e diferentemente em o perigo ser considerado como mera motivação pra o legislador punir tal conduta. Ao sancionar-se penalmente um comportamento dentro destes parâmetros de valoração somos confrontados com a inexistência de uma qualquer ofensividade relativamente a um concreto bem jurídico.


Nilo BATISTA[36], refere que esse princípio transporta para o terreno penal a questão geral da alteridade do direito: ao contrário da moral – não se olvidando da relevância jurídica que possam ter atitudes interiores, associadas, como motivo ou fim de agir, a um sucesso externo.


Neste sentido, cumpre também trazer à baila o entendimento de Lênio Luiz STRECK[37], que aduz:


Ora, será demais lembrar que somente a lesão concreta ou a efetiva possibilidade de lesão imediata a algum bem jurídico é que pode gerar uma intromissão penal do Estado? Caso contrário, estará o Estado estabelecendo responsabilidade objetiva no direito penal, punindo condutas in abstracto, violando os já explicitados princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da secularização, conquistas do Estado Democrático de Direito.


Este pequeno arrazoado sobre o principio da lesividade demonstra o “perigo” que representa a construção de tipos penais de perigo abstrato, através dos quais é punida a ação humana por mera vontade do legislador, sem a necessária comprovação de que algum bem jurídico relevante tenha sofrido ao menos o perigo concreto de lesão.


Além disso, em razão de sua abstração, tais tipos penais de perigo abstrato muitas vezes também contrariam o princípio constitucional de taxatividade. Nesta senda, Miguel REALE JUNIOR[38], enumera como exemplo o crime de gestão temerária, previsto artigo 4º da Lei 8.492/86, no qual, por comodismo, o legislador esculpiu verdadeira cláusula geral de imputação, dando amplo espectro de atuação ao acusador e ao julgador, ao mesmo tempo em que restringiu a defesa do ofensor, ao usar a indefinida expressão “gerir fraudulentamente”.


Por outro lado, nas linhas do magistério de Urs KINDHÄUSER[39], violam também, os delitos de perigo abstrato, o princípio da presunção da inocência, visto que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória, não se podendo presumir a culpabilidade de alguém sem a necessária comprovação através do devido processo legal, no qual o cidadão acusado possa fazer a contra-prova da imputação, bem como, ainda, violam o principio da igualdade, pelo simples fato de o cidadão ter menos acesso a busca de meios absolutórios para a conduta abstratamente considerada criminosa.


Por derradeiro, frise-se que a excessiva tipificação dos crimes de perigo abstrato, em flagrante contradição aos princípios que são vigas-mestras do ordenamento constitucional e penal brasileiro, representa essa exacerbada preocupação prevencionista do direito criminal da sociedade contemporânea, que quer antecipar a punição de condutas, com o fim de prevenir perturbações e garantir segurança, usando, para isso, o recurso do simbolismo da lei penal e da intimidação dos cidadãos com o estigma da punição criminal.


6 – Reflexões finais


É inegável que o avanço da técnica e o conseqüente aumento de sofisticação da vida na sociedade contemporânea, principalmente das atividades econômicas, das relações de consumo, das relações humanas, do acesso a informação, da intervenção do Estado na vida das pessoas, do incremento e da percepção do risco, ocasionou uma mutação da ciência jurídica criminal pelo fato de se passar a considerar como resultado penalmente punível o que anteriormente era considerado mera situação de risco. Esta virada conceitual tem a clara finalidade de produzir um impacto tranqüilizador sobre a opinião pública, acalmando os sentimentos incontroláveis de insegurança.


Nota-se que, paulatinamente, na ânsia de aumentar a segurança social, quebrando a sistemática clássica do Direito Penal, passou-se a compreender que até mesmos resultados mais remotamente prováveis ou até apenas possíveis, segundo um juízo hipotético, deveriam ser considerados como puníveis, desde que pudessem causar potencialmente esse perigo. Cada vez mais se acentua uma ideologia punitiva, ampliando o campo das condutas penalmente condenáveis, mesmo sem estarem ligadas a um resultado danoso, ou sem apresentarem uma direta, ou perceptível, situação de dano próximo.


Põe-se em relevo, então, um dos traços mais evidentes do Direito Penal hipertrofiado, que consiste precisamente na criminalização adiantada ou antecipada de algumas condutas frente ao que tradicionalmente foi considerado seu núcleo básico: a lesão.


JAKOBS[40] refere que o que “a elevação dos crimes de perigo abstrato a mera infração contra a ordem pública (como mera perturbação, ou ao menos principalmente perturbação da ordem) a delito criminal (como ataque contra a identidade social) se fez contando com boas razões para isso, ou, ao contrário, se fez de modo intervencionista”. Prossegue referindo que o que se busca na tipificação de delitos de perigo abstrato “é a de manutenção da vigência da norma[41].


Essa destacada tendência político-criminal da sociedade contemporânea, sociedade esta consciente dos riscos e ameaças que caracterizam o processo de globalização, suscita não só conflitos com princípios fundamentais da ciência penal e do direito constitucional, senão também sérios e graves problemas de legitimação, fundamentação e dos limites da pretensão punitiva estatal, que, agora, procura desesperadamente manter a vigência da sua legislação, e não punir lesões.


Tal polêmica de manutenção da norma, relacionada com a antecipação da punição, vem hoje centrada no que se chama Direito penal do risco, no qual há um abandono dos critérios de imputação do direito penal clássico.


Este Direito orienta-se, dentre outras coisas, pelo abundante uso de delitos de perigo abstrato como forma de estabelecer que o crime decorra de uma previsão conceitual, ligada à ideologia da segurança e aos interesses de um Estado poderoso de Lei e Ordem. E a técnica de tipificação mais compatível com esses anseios de antecipação máxima da proteção penal seria a criminalização antecipada do perigo, a fim de se evitar que o planeta corra riscos ou catástrofes anunciadas.


Todavia, essa ampla utilização da técnica dos delitos de perigo abstrato, não só dificulta enormemente o direito ao contraditório, a ampla defesa e ao devido processo legal, ao mesmo tempo em que simplifica a atividade da persecutio criminis, produz uma relativização do conceito de bem jurídico, pois a multiplicidade, a contingência, a inconsistência e a facilidade na criação de bens jurídicos equivalem na realidade a uma desvalorização de bem jurídico merecedor de tutela penal.


7 – Referências bibliográficas

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Notas:

[1] SANTOS, Boaventura de Souza. Um Discurso Sobre as Ciências, p. 07.

[2] WOLKMER, Antônio Carlos e LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Os Novos Direitos no Brasil: Natureza e Perspectivas, p. VII.

[3] O temo ‘sociedade de risco’ foi cunhado pelo sociólogo alemão Ultrick Beck em 1986, na obra La sociedad del riesgo: Hacia una nueva modernidad, ano este em que ocorreu o acidente nuclear de Chernobyl.

[4] SANTOS, Boaventura de Souza (org.). A Globalização e as Ciências Sociais, p. 11.

[5] HASSEMER, Winfried. Características e Crises do moderno Direito Penal, p. 54.

[6] A empresa de tecnologia IBM possui uma campanha de marketing, veiculada na mídia televisiva, na qual demonstra como as pessoas, mormente os empresários, que desconhecem a tecnologia da atualidade, principalmente as interações proporcionadas pela computação, ficam para trás no jogo do mercado global. A frase posta em evidência é dita por um empresário, caricaturado no comercial com terno xadrez, óculos com lentes grossas, gel gorduroso no cabelo e gravata em total desarmonia com o traje vestido, quando percebe que não consegue acompanhar a velocidade da transmissão da informação e perde clientes e negócios em virtude disso. Chocado com isto, convoca um consultor, caricaturado como um mágico, que lhe apresenta como solução dos seus problemas uma máquina do tempo, um objeto de metal com luzes coloridas piscantes, que nunca fora testado. A propaganda acaba com o empresário perplexo e com o slogan da empresa que diz ter soluções para um mundo “on demand”.

[7] FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal, p. 32.

[8] IANNI. Otávio. A Era do Globalismo, p. 11.

[9] SANTOS, Boaventura de Souza. A Globalização e as Ciências Sociais, p. 11.

[10] HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, ver principalmente os dois primeiros capítulos p. 07/50.

[11] HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, p. 18.

[12] GAUER, Ruth M. Chittó. Conhecimento e Aceleração (Mito, Verdade e Tempo), p. 94.

[13] GAUER, Ruth M. Chittó. Conhecimento e Aceleração (Mito, Verdade e Tempo), p. 94.

[14] BAUMANN, Zigmunt. O mal-estar da pós-modernidade, p. 32.

[15] BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global, p. 05.

[16] MENDES, Paulo de Souza. Vale a pena o Direito Penal do ambiente?, p. 47/48.

[17] GOLDBLATT, David. Teoria Social e Ambiente, notadamente o quinto capítulo, p. 227/269.

[18] FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal, p. 56.

[19] CORREIA, Eduardo. Lições de Direito Penal, p. 287-288.

[20] BUERGO, Blanca Mendoza. Limites dogmáticos y Político-Criminales de los delitos de peligro abstracto, p. 10.

[21] REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal, Volume I, p. 278.

[22] COELHO, Walter, Teoria Geral do Crime, Volume I, p. 102.

[23] COSTA, José Francisco de Faria. O Perigo em Direito Penal, p. 623.

[24] JAKOBS, Günther. Derecho Penal: Parte General, p. 206/207.

[25] SANTOS, Juarez Cirino dos. A Moderna Teoria do Fato Punível, p. 40.

[26] ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General, Tomo I, p. 336.

[27] ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General, Tomo I, p. 407.

[28] BUERGO, Blanca Mendoza. Limites dogmáticos y Político-Criminales de los delitos de peligro abstracto, p. 04.

[29] KINDHÄUSER, Urs. Derecho Penal de la culpabilidad y conducta peligrosa, p. 11.

[30] BUERGO, Blanca Mendoza. Limites dogmáticos y Político-Criminales de los delitos de peligro abstracto. p 19/20.

[31] JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa, p. 27.

[32] JAKOBS, Günther. Ciência do Direito e Ciência do Direito Penal, p. 33/34.

[33] OLIVEIRA, Marco Aurélio Costa Moreira de. Crimes de perigo abstrato, p. 01.

[34] SANTOS, Juarez Cirino dos. A Moderna Teoria do Fato Punível, p. 41.

[35] COSTA, José Francisco de Faria. O Perigo em Direito Penal, p. 624.

[36] BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, 91.

[37] STRECK, Lênio Luis. O “Crime de Porte de Arma” à Luz da Principiologia Constitucional e do Controle de Constitucionalidade: Três Soluções à Luz da Hermenêutica, p. 54.

[38] REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal: Parte Geral, Volume I, p. 279.

[39] KINDHÄUSER, Urs. Derecho Penal de la culpabilidad y conducta peligrosa, p.79/81.

[40] JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa, p. 25/26.

[41] JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa, p. 27.


Informações Sobre o Autor

Diego Romero

Advogado criminalista, Especialista em Direito Penal Empresarial/PUCRS, Mestre em Ciências Criminais/PUCRS


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