Autora: Vitória Xavier Barbosa¹
Resumo
A questão agrária no Brasil tem raízes históricas no sistema latifundiário, que concentra terras nas mãos de poucos desde o período colonial, prolongando desigualdades socioeconômicas e ambientais. Este artigo busca avaliar, por meio de análises bibliográficas e jurisprudenciais, o desenvolvimento da legislação relacionada à questão fundiária no Brasil e seus reflexos no cenário contemporâneo. O objetivo foi analisar se houve uma evolução legislativa sobre a Reforma Agrária, especialmente no âmbito constitucional, se ocorreram mudanças significativas na concentração de terras no país, e as consequências desse quadro para a sociedade brasileira. O método adotado é o hipotético-dedutivo. A pesquisa revelou que, embora a Constituição de 1988 ofereça bases para a Reforma Agrária, estabelecendo critérios como a função social da terra e o pagamento de indenizações, outras disposições legais, aliadas à influência do agronegócio e dos latifundiários, bem como à atuação prática do Judiciário, continuam a retardar sua efetiva implementação. A análise dos recursos de poder das diferentes classes sociais indica que, em muitas ocasiões, pontos de veto na ordem constitucional são utilizados por membros das elites políticas de modo a impedir mudanças estruturais no país, preservando a propriedade rural das pressões redistributivas e favorecendo os grandes proprietários.
Palavra-chave: Reforma Agrária. Sistema Constitucional Brasileiro. Movimentos Sociais.
Abstract
The agrarian issue in Brazil has historical roots in the latifundia system, which has concentrated land ownership in the hands of a few since the colonial period, perpetuating socio-economic and environmental inequalities. This article aims to evaluate, through bibliographical and jurisprudential analyses, the development of legislation related to land issues in Brazil and its implications for the contemporary landscape. The objective was to examine whether there has been legislative progress on Agrarian Reform, particularly within the constitutional framework, whether significant changes in land concentration have occurred in the country, and the consequences of this scenario for Brazilian society. The method adopted is the hypothetical-deductive approach. The research revealed that, although the 1988 Constitution provides a foundation for Agrarian Reform, establishing criteria such as the social function of land and compensation payments, other legal provisions, combined with the influence of agribusiness and landowners, as well as the practical actions of the Judiciary, continue to delay its effective implementation. The analysis of power resources among different social classes indicates that, on many occasions, veto points within the constitutional order are used by members of the political elites to prevent structural changes in the country, thereby shielding rural property from redistributive pressures and favoring large landowners.
Key words: Land Reform. Brazilian Constitutional System. Social Movements.
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1.Advogada com OAB de nº 73.775, pós-graduanda em Direito Penal Econômico e Empresarial, fundadora da Liga Acadêmica de Estudos Políticos e membro das Comissões: Advocacia Jovem e Direito Criminal, da OAB/GO.
Sumário: Introdução; 1. Aspectos históricos acerca da formação de latifúndios no Brasil; 1.1. Brasil Colônia; 1.2. Brasil República; 1.2.1 Antigo Código Civil e a “função social”; 1.2.2. Estatuto da Terra; 2. Pós-1988; 3. A influência do Judiciário; 3.1. Da atuação do STF. Conclusão. Referências.
Introdução
A questão agrária no Brasil é profundamente enraizada na história e estrutura socioeconômica do país, marcada pela consolidação de um sistema latifundiário que perpetua a concentração de terras nas mãos de poucos, uma realidade presente desde o período colonial.
Além disso, a concepção distributivista a respeito do que é a Reforma Agrária é reducionista e empobrece, por vezes, a exploração do tema, gerando sérios obstáculos ao diálogo entre governos, proprietários de terras e representantes dos movimentos sociais e, consequentemente, à sua evolução.
A presente pesquisa avaliou, por meio de análises dedutivas da bibliografia, os aspectos contemporâneos da situação agrária no Brasil, abordando o histórico legal e social da posse de terras e a evolução do tratamento do tema pela legislação, com ênfase na Constituição Federal. A má distribuição de terras no Brasil não apenas perpetua a pobreza e a desigualdade social, como também agrava o desemprego rural e os danos ambientais, destacando a necessidade urgente da reforma agrária para garantir a função social da propriedade (MARQUES, 2015).
Assim, o estudo visa, através da uma análise da formação histórica do latifúndio e da importância da reforma agrária como instrumento de desenvolvimento socioeconômico, aprimorar a compreensão da regulação constitucional do direito de propriedade e da reforma agrária, abordando a legislação anterior, além de avaliar como os dispositivos têm sido aplicados pelos poderes Executivo e Judiciário.
Portanto, a finalidade é analisar se após a evolução das normas constitucionais sobre da Reforma Agrária, bem como as mobilizações a respeito, ocorreram mudanças significativas no status quo da concentração fundiária no Brasil, e as consequências deste cenário para a sociedade brasileira.
1. Aspectos históricos acerca da formação de latifúndios no Brasil
O processo de formação do latifúndio no Brasil tem suas origens no início do período colonial do país, pontualmente com a assinatura do Tratado de Tordesilhas. A este ponto, a administração das terras se dava pelo instituto das sesmarias, onde se iniciou a colonização de grandes porções de terras, doadas pelo Rei Dom João III a nobres de sua confiança.
1.1. Brasil Colônia
Neste contexto, para sustentar a massiva exploração das enormes extensões de terra disponibilizadas, nasceu o período escravista brasileiro, quando a mão de obra da população nativa e dos negros trazidos da África começou a ser utilizada para fins de viabilizar a exploração mais barata dessas terras (BOSI, 2003).
A situação insustentável decorrente do regime das sesmarias perdurou pelos próximos 28 anos após o seu fim, período que permaneceu sem legislação, até a edição da Lei de Terras (Lei nº 601). Neste espaço de tempo, houve uma ocupação desordenada no vasto território brasileiro, causando o apossamento indiscriminado de áreas sem qualquer impedimento, o que culminou em um quadro de propriedade e posse que variava entre proprietários legítimos, possuidores de terras originárias que não receberam confirmação devido ao descumprimento de obrigações assumidas, possuidores sem nenhum título hábil e terras devolutas.
A Lei de Terras entra como uma forma de transição entre o sistema de domínio de terras pela coroa, para sua mercantilização. Embora tivesse os objetivos de priorizar a propriedade de nativos, outorgar títulos de domínio e assegurar a legitimação de posses (MARQUES, 2015), acabou por manter os pobres e negros na posição de sem-terra, além de legalizar a propriedade privada de grandes latifundios, já que o único critério estabelecido era o pagamento (MST, 2006).
1.2. Brasil República
Com o início do período republicano, surgiram também atualizações legislativas sobre o tema. Por exemplo, foi editado o Decreto 451-B, que estabelecia o registro e Transmissão de Imóveis pelo Registro Torrens. Visava evitar o avanço das posses sobre terras devolutas, bem como a continuidade, sem regularização nem legitimação, de terras possuídas antes da Lei de Terras (JONES, 1997), mas acabou sendo uma tentativa administrativa falha.
Além disso, houve o Decreto 10.105 de 05.03.1913, que revia as disposições da Lei de Terras, aprovando o novo regulamento de terras devolutas da União, definindo sua descrição, critérios e procedimentos de legitimação.
1.2.1 Antigo Código Civil e a “função social”
O Código Civil brasileiro, com grande influência do francês, entrou em vigor em 1916, trazendo conceitos e critérios genéricos quanto a bens, posses e propriedades públicas e privadas, através de uma orientação marcadamente ultraliberal. Sobre as limitações ao exercício do direito de propriedade, não se exigia, nenhum dever do proprietário e tampouco as condições sociais lhe impunham explorar economicamente seus domínios, prescindindo de qualquer tipo de exploração produtiva, para que lhes fosse reconhecido valor econômico ou questionada a legitimidade de sua titularidade (VAZ, 1992).
Ademais, o Código Civil também assegurou meios para o proprietário defender sua propriedade contra eventuais investidas, considerando-a um direito real de natureza absoluta (erga omnes), exclusivo e perene, sujeito apenas às limitações estabelecidas por lei, tais como restrições, servidões e desapropriação. Portanto, ao definir conceitos, especialmente no que diz respeito ao direito e ao exercício da posse e da propriedade, não condicionou o uso destes direitos por seus detentores a qualquer função social.
Os princípios a respeito da propriedade permaneceram inalterados até a Constituição de 1934 que trouxe pela primeira vez as expressões “utilidade pública” e “interesse social” se referindo ao direito de propriedade.
Porém, apesar da breve menção, somente com a Constituição Federal de 1946, condicionou-se o uso da propriedade ao bem estar social, e a função social da propriedade privada só aparece explicitamente como um dos princípios base da ordem econômica e social na Carta Constitucional de 1967. Porém, como não ocorreu uma redefinição da estrutura agrária, a concentração da propriedade de terras permaneceu aumentando de forma profundamente à sociedade brasileira.
Sob a ditadura militar, as Constituições de 1967 e 1969 incorporaram o princípio da “função social da propriedade” e adotaram regras específicas que autorizavam a União a indenizar a desapropriação da propriedade rural por meio de títulos da dívida pública. Juntamente com o Estatuto da Terra, essas normas propiciaram a implementação de políticas de reforma agrária no período.
Conforme dito, a importância do direito de propriedade é reconhecida pelas Constituições modernas, que o elegem como um direito individual. No Brasil, a propriedade é garantida desde a Constituição de 1824, todavia, apenas no século posterior, as Constituintes brasileiras passaram a declarar que esse direito estaria condicionado pelo “interesse social ou coletivo” (1934) e pelo “bem-estar social” (1946).
1.2.2. Estatuto da Terra
A partir daí, além da já mencionada criação da Lei de Terras ser um dos grandes marcos do nascimento do Direito Agrário no Brasil, pode-se afirmar que a Emenda Constitucional nº 10/64 (Estatuto da Terra) institucionalizou o Direito Agrário no Brasil (MARTINS, 2015).
Publicada em 1964, inseriu o Direito Agrário no rol de matérias de competência exclusiva da União para legislar, além de regular o uso, ocupações e relações fundiárias no Brasil. Tentou assegurar a oportunidade de acesso à propriedade da terra, e o dever do Poder Público de zelar pela obrigatoriedade do cumprimento de sua função social. Procurava-se dar aplicabilidade à Reforma Agrária mediante os dispositivos constitucionais de 1946.
A partir da década de 1980, em que o Brasil estava saindo do período de ditadura militar, houve maiores movimentos de lutas pela terra e congruente a isso, maiores formas de repressão estatal. Neste contexto foi criado o MST e outros movimentos fortalecidos por sua criação, com o apoio da igreja católica.
Os movimentos sociais do campo compreenderam que a aprovação de normas constitucionais favoráveis à reforma seria um meio eficaz para eliminar as barreiras legais existentes e, tal como vimos, mobilizaram-se para apresentar propostas à nova Constituição. Paralelamente, os grandes proprietários rurais também se organizaram para evitar que o arcabouço legal herdado da ditadura militar fosse alterado.
O acirramento desses confrontos, aliado ao caráter fragmentado do processo constituinte brasileiro de 1987-1988, contribuiu para que houvesse muitas mudanças nas regras sobre o direito de propriedade e a reforma agrária durante a elaboração da Constituição de 1988.
2.Pós-1988
Neste cenário, a Constituição de 1988 veio estabelecer a função social como condição de permanência e garantia dos direitos inerentes à propriedade por quem a possua. Previu o procedimento de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou interesse social, mediante prévia e justa indenização, incluindo, inclusive, no capítulo da Política Urbana e Fundiária e Reforma Agrária a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária ao imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social.
Pode-se então afirmar que a ideia de propriedade foi concebida ao lado da ideia de função social, acarretando consequências jurídicas até então inexistentes (VAZ, 1992), num aperfeiçoamento das Constituições anteriores que já consagraram a desapropriação de imóveis rurais ou urbanos, por necessidade ou utilidade pública e por interesse social.
O pacto que selou a fusão entre a burguesia e os proprietários de terras, com o aval do Estado brasileiro, manteve intacta a estrutura latifundista no campo, ao abdicar de qualquer possibilidade de realização da reforma agrária clássica. O resultado mais explícito deste pacto político é que chegamos ao século XXI como uma das nações mais desiguais do planeta (CARTER, 2010).
Devido à polarização política ocorrida na época, a Constituinte oferece várias oportunidades para que as diferentes partes em conflito buscassem garantir seus interesses no texto constitucional, buscando utilizar a rigidez constitucional para limitar as opções políticas do legislador ordinário. Dadas as características desse processo, a formação de maiorias para aprovar a nova Constituição dependeu em grande parte de concessões mútuas feitas entre os grupos políticos. Por meio dessas concessões, a regulação constitucional de uma determinada matéria busca atender a interesses divergentes ou leva um grupo a ceder em um tema em troca da proteção de seus interesses em outro (MAUÉS; SANTOS, 2008).
O saldo desse processo, contudo, foi contraditório. Por um lado, a Constituição de 1988 inscreveu a reforma agrária como uma política pública que impõe deveres ao Estado e criou os instrumentos para sua consecução; por outro lado, o direito de propriedade recebeu novas garantias no texto constitucional e, no que se refere à propriedade rural, retrocedeu até mesmo em relação à legislação aprovada durante o regime autoritário.
Nos termos desse acordo, que é a base dos atuais incisos XXII a XXV do art. 5º da Constituição de 1988, os progressistas cediam à consagração da propriedade como um direito fundamental e à garantia de indenização prévia e justa em dinheiro em troca da aceitação, pelos conservadores, do princípio da função social da propriedade e da possibilidade de excetuar a regra da indenização em dinheiro na própria Constituição, o que aproveitaria às políticas de reforma agrária e urbana.
A decisão da Constituinte resultou em uma proteção robusta do direito de propriedade no Brasil. A Constituição de 1988 não se limitou a oferecer uma garantia genérica desse direito, mas inclui disposições específicas que não podem ser alteradas pela legislação ordinária. Assim, as hipóteses legais de desapropriação restringem-se àquelas previstas na Constituição e a indenização justa e prévia em dinheiro mantém-se como regra constitucional que não pode ser excetuada pelo legislador. Ademais, ao impor proibições ao Estado, a Constituição atribui ao Poder Judiciário competências para fiscalizar e restringir ações dos demais Poderes que visem à redistribuição da propriedade.
Inclusive, na prática, os governos posteriores à promulgação da atual Constituição pouco fizeram pelo tema.
Apesar de ter sido apoiado pelo MST na candidatura anterior à sua primeira gestão (de 2003 a 2006), Lula prometeu mas não agiu de forma proporcional às promessas sobre o tema. O primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) foi elaborado em 1985, no governo do José Sarney, porém rejeitado pelos ruralistas, com a criação da União Democrática Ruralista (UDR), que impediu a implantação do PNRA. No início do século XXI, o principal opositor da reforma agrária foi o agronegócio, ao defender o acesso à terra sob o seu controle, “sem luta de classe e sem conflitos” (BRUNO, 2008).
Nas eleições de 1994 e 1998, Fernando Henrique Cardoso (FHC) foi eleito como Presidente da República, tendo realizado uma ampla política de assentamentos rurais. Todavia, mudou de estratégia em seu segundo mandato, adotando uma política agrária repressora, que criminaliza a luta pela terra e desenvolvendo uma política de mercantilização em torno dela (CARDOSO, 1991).
Não bastasse a ampliação da concentração fundiária, durante o governo de Jair Bolsonaro (de 2019 a 2022), a criação de assentamentos rurais foi praticamente abandonada. Sua antecessora, a presidente Dilma Rousseff, quando em seu mandato, não possuía a Reforma Agrária como uma de suas prioridades. E, atualmente, restam dúvidas sobre como a questão vai ser tratada pela gestão do então Presidente da República (Lula).
A influência do Judiciário
A situação brasileira exemplifica a utilização da Constituição como um instrumento para os conflitos distributivos. Enquanto as demandas por redistribuição foram incorporadas de maneira abrangente no texto constitucional, especialmente no que trata da regulamentação dos direitos sociais e das políticas públicas que os acompanham, concedendo ao Poder Público diversas atribuições e instrumentos para atuar nessa área, as elites econômicas também obtiveram conquistas na constituição, aprovando normas que protegem seus interesses ao estabelecer restrições às ações do Estado no âmbito econômico e tributário.
Por essas razões, uma parte significativa da Constituição é dedicada a disposições sobre políticas públicas (COUTO e ARANTES, 2006), mas muitas das emendas aprovadas à Constituição de 1988 tratam de questões relacionadas à tributação e ao orçamento público.
Por este ângulo, a principal inovação do sistema político pós-1988 foi o fortalecimento do Poder Judiciário, cujas atribuições foram ampliadas, assim como sua independência em relação aos demais poderes. No regime atual, o Poder Judiciário conta com diversos instrumentos para supervisionar os atos dos Poderes Legislativo e Executivo, podendo se tornar um ponto de veto para suas decisões.
Isso ocorre porque, além de assegurar a proteção dos direitos fundamentais previstos na Constituição, por meio de uma ampla variedade de instrumentos processuais, o STF, juntamente com os demais juízes e tribunais do país, também possui a competência de realizar o controle de constitucionalidade das leis em sua aplicação a casos concretos.
Ao receber a competência para julgar com base na Constituição, e não apenas nas leis, o Judiciário passa a dispor de vários mecanismos para impedir a implementação de decisões dos demais poderes, podendo atuar como uma “arena política” que favorece certos grupos em detrimento de outros.
Contudo, a proteção ao direito de propriedade, garantida pelo texto constitucional, não afeta apenas as deliberações do Congresso Nacional sobre a regulamentação da reforma agrária. Por ser considerado um direito fundamental, a propriedade pode ser defendida judicialmente tanto contra atos do Poder Legislativo quanto contra atos do Poder Executivo, o que inclui o controle judicial da constitucionalidade das leis.
A combinação entre as disposições constitucionais sobre o tema e as competências atribuídas ao Judiciário transforma este em um ponto de veto que pode ser estrategicamente utilizado por setores interessados em preservar a atual estrutura de distribuição da propriedade no país.
Em outras palavras, o aspecto positivo de se ter um órgão com a capacidade de vetar decisões inconstitucionais em todo o país pode, nesse contexto, ser utilizado de forma negativa, servindo para representar interesses econômicos individuais que visam manter a estrutura fundiária brasileira estagnada, perpetuando seus prejuízos.
3.1. Da atuação do STF
Considerando sua posição como órgão de cúpula do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal (STF) desempenha um papel fundamental na definição da jurisprudência relacionada à reforma agrária. Ademais, dois fatores processuais são determinantes para que suas decisões exerçam um impacto significativo sobre essa política pública. Conforme estabelece a legislação, cabe ao presidente da República a responsabilidade pela edição do decreto que declara um imóvel rural como de interesse social, iniciando, assim, o processo de desapropriação. Por se tratar de um ato presidencial, o decreto expropriatório pode ser contestado no STF por meio de mandado de segurança, conforme previsto no artigo 102, inciso I, alínea “d”, da CF.
No âmbito do controle de constitucionalidade, o STF detém a competência exclusiva para avaliar a compatibilidade das leis com a Constituição por meio da via direta, sendo as ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) o principal instrumento utilizado. As decisões do STF proferidas por essa via possuem eficácia erga omnes, ou seja, são válidas contra todos, vinculando os demais órgãos do Poder Judiciário e da administração nos níveis federal, estadual e municipal. Em todas essas situações, as decisões do STF são irrecorríveis.
Em três áreas, a construção jurisprudencial do Tribunal exerceu uma influência significativa sobre a implementação dessa política no Brasil:
a) propriedade imune à desapropriação: Uma das principais vitórias dos setores conservadores na Constituinte foi tornar a propriedade produtiva imune à desapropriação, disposição que inexistia em textos constitucionais anteriores. Paralelamente, exigiu-se a aprovação de uma lei complementar para regulamentar o processo judicial de desapropriação;
b) indenização: Ao aplicar o parâmetro da “justa indenização” também aos casos de desapropriação para reforma agrária, a Constituição cria um outro espaço de controle das decisões do legislador pelos juízes. Tendo em vista a amplitude interpretativa da palavra “justa”, esse limite constitucional possibilita que os critérios utilizados na legislação, para definir o valor da indenização, sejam revistos pelos tribunais e até mesmo substituídos por critérios judiciais. Nesse campo, a jurisprudência influencia o custo das desapropriações e, assim, tem o potencial de afetar o caráter redistributivo da reforma agrária;
c) garantias processuais: A proteção constitucional do direito de propriedade incide igualmente sobre os procedimentos, tanto judiciais quanto administrativos, que devem ser seguidos no processo de desapropriação. Nesse ponto, o STF também efetuou uma interpretação extensiva das garantias previstas na Constituição, em particular no que se refere à exigência de notificação e acompanhamento da vistoria prévia do imóvel pelo proprietário.
Conforme veremos, o mandado de segurança tem sido um instrumento frequentemente utilizado para questionar os decretos expropriatórios do presidente da República. Pesquisa realizada pelo professor e mestre Antonio Maués na página da internet do STF identificou, no período entre 1989 e 2020, 153 decisões do plenário do Tribunal sobre reforma agrária, que resultaram no deferimento de sessenta pedidos (39%) de anulação do decreto presidencial.
O levantamento foi feito utilizando como buscadores as palavras-chave “decreto expropriatório” e “decreto reforma agrária não expropriatório” e foram excluídos os resultados que não se aplicavam ao objeto da pesquisa. Além das decisões plenárias, no mesmo período, houve decisões monocráticas (liminares e terminativas) em 272 mandados de segurança, dentre as quais 71 (26%) foram favoráveis à parte autora.
Fonte: Lua Nova, São Paulo, 115: 191-224, 2022
Embora o número de mandados de segurança concedidos seja consideravelmente inferior ao total de decretos expropriatórios emitidos pelo presidente da República durante esse período, observa-se que o STF tem aplicado sua interpretação das normas constitucionais referentes à propriedade e à reforma agrária para anular dezenas desses decretos. Isso demonstra que, tanto por meio do controle de constitucionalidade das leis quanto pelo controle dos atos administrativos, os atores que se opõem à implementação da reforma agrária têm conseguido utilizar o Tribunal como um ponto de veto. O sucesso dessas ações, seja em casos específicos ou no exame de constitucionalidade, resulta na criação de jurisprudência que deve ser seguida por outros juízes e tribunais do país, criando novas oportunidades para dificultar a implementação da reforma agrária (MAUÉS, 2022).
Conclusões
Ficou evidente que a atual Constituinte trouxe uma evolução significativa na abordagem legislativa sobre a Reforma Agrária. No entanto, também ficou claro que, embora a legislação seja um requisito essencial para a elaboração de planos de reforma, sua execução depende fortemente da conjuntura política, que frequentemente deixa a desejar. A pesquisa revelou que a influência do agronegócio na política, aliada à falta de apoio popular, cria brechas na legislação que dificultam a aplicação efetiva das normas previstas.
Apesar do conservadorismo político predominante e da perda de relevância do tema na agenda nacional, as ações de Reforma Agrária ganharam certa força nos últimos vinte anos. No entanto, a distribuição de terras continua ineficiente. Para que a Reforma Agrária atinja seu objetivo de emancipar as famílias assentadas e garantir-lhes dignidade, é necessário que o Estado se comprometa com um planejamento adequado e um orçamento suficiente.
Nesse contexto, a alta competitividade da agricultura empresarial, a rigidez da estrutura fundiária e a histórica tendência à manutenção da concentração de terras impõem a necessidade de uma articulação política mais robusta. É essencial que se criem vínculos efetivos entre o planejamento governamental, as políticas agrárias e os projetos nacionais de desenvolvimento.
Referências
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