Resumo: O presente artigo visa a analisar a reforma parcial do Código de Processo Penal brasileiro efetivada pela Lei n. 11.690/2008 e o discurso político de manutenção/modificação da cultura processualística pátria. Através do estudo crítico da nova redação dos artigos 155, 156 e 157, procura-se evidenciar os resquícios inquisitivos constantes do discurso de celeridade processual e sua desconformidade com a Carta Política nacional.
Palavras-chave: Reforma processual penal. Norma e cultura. Atividade probatória. Sistema inquisitivo. Celeridade processual.
Abstract: The present article aims to analyse the partial reform of the Code of Penal Brazilian Process brought into effect by the Law n. 11.690/2008 and the political speech of maintenance/modification of the culture processualistic native. Through the critical study of the new editorial staff of the articles 155, 156 and 157, try to show up the inquisitive constant traces of the speech of process celerity and sweats discordance with the Political national Letter.
Key-words: Process penal reform. Norm and culture. Probational activity. Inquisitive system. Process celerity.
Sumário: 1. Introdução. 2. Artigo 155: livre convicção inquisitória. 3. Artigo 156. 4. Artigo 157: o regramento das provas ilícitas. 5. Conclusão. Obras consultadas.
1. Introdução.
A grande questão da processualística legislativa moderna diz respeito à relação entre norma e cultura[1]. Em termos claros, questiona-se se uma norma jurídica (em sentido amplo) é capaz de fomentar uma determinada forma de agir, de modificar (ou manter) uma cultura estabelecida ou, diferentemente, é exatamente a modificação cultural que exige a adaptação legislativa no período contemporâneo.
O sistema penal, estruturado sobre o princípio da legalidade – dogma do Estado de direito – não fica imune à discussão. Por certo, um Direito Penal meramente fático (cultura pré e extranormativa) seria totalmente reprovável, tirânico, haja vista o Estado, historicamente, exceder-se na senda repressiva discricionária. Por outro lado, um Direito Penal legislativo desapegado de sua função de limitação dos abusos estatais e de proteção do status dignitatis restaria inegavelmente ilegítimo (norma jurídica criando cultura incongruente, acarretando um ordenamento jurídico penal desarrazoado[2]) e iria de encontro aos necessários fins humanísticos de proteção do hipossuficiente na execução do jus puniendi.
Entretanto, é através do Processo Penal – sistema formal de garantias do acusado – que se verifica a maior relação entre produção legislativa e desenvolvimento de uma cultura de valorização do indivíduo enquanto tal (individualismo[3] garantista/democrático) ou do indivíduo em prol da sociedade em que está inserido (segmento da interpretação organicista[4] do Estado). A primeira, de viés acusatório, na qual os acusados são sujeitos de direito e partes na dialeticidade processual; a segunda, de viés inquisitivo, na qual os acusados são simples objetos de investigação/acusação.
Na atualidade jurídico-legislativa brasileira, o tema ganha em importância em decorrência das recentes reformas do Código de Processo Penal (Leis n. 11.689/2008, 11.690/2008 e 11.719/2008), que alteraram o rito do Tribunal do Júri, a disciplina da atividade probatória, da suspensão do processo, da emendatio libelli, da mutatio libelli e do procedimento comum (ordinário e sumário).
A discussão, aqui, gira em torno da concepção processualística adotada pelo Legislador brasileiro: seguiu ele a cultura inquisitiva herdada pelo vigente diploma processual[5] ou utilizou-se da norma jurídica para introduzir na cultura política-social brasileira os postulados expressos na Constituição de 1988?
Nos termos propostos inicialmente: a roupagem pós-reforma assumida pela legislação processual penal brasileira representa uma ratificação do pensamento até então vigente (norma mantendo cultura) ou, contrariamente, expõe um novo ideal processual condizente com um Estado realmente (e não pretensamente) democrático e garantidor dos direitos fundamentais (norma transformando cultura – ao menos em nível nacional)?
Visando a debater esses aspectos, das reformas pontuais acima referidas, optou-se pela análise da nova disciplina da atividade probatória, pois esta sintetiza de forma cristalina o ideal cartesiano/linear que parece ter vinculado os redatores do texto final[6]. Assim, neste trabalho, analisar-se-ão as modificações constantes dos artigos 155, 156 e 157 do Código de Processo Penal brasileiro.
2. Artigo 155: livre convicção inquisitória.
Com a reforma processual penal levada a efeito pela Lei n. 11.690/2008, o artigo 155 do Código de Processo Penal Brasileiro passou a contar com a seguinte redação[7]:
“Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”.
O dispositivo em comento manteve o princípio da livre apreciação da prova, já incorporado ao ordenamento brasileiro através da antiga redação do artigo 157 do Código Processual. Entretanto, uma vez mais, e agora de modo expresso, equivocou-se o Legislador quanto à natureza do instituto.
Com efeito, o princípio da livre convicção do juiz nasceu dentro do modelo processual acusatório, em coerência com outros princípios reciprocamente interdependentes (não presunção legal de culpabilidade, na presença de tipos de prova abstratamente previstos em lei; presunção de inocência; ônus de prova para condenação a cargo da acusação; questionabilidade de qualquer prova – evidenciando a dúvida como hábito profissional do julgador; contraditório entre as partes; separação pura entre acusação e juiz, etc)[8], como alternativa democrática à autoritária sistemática de provas legais.
Entretanto, o período pós-Revolução Francesa (com a noção de Direito como “ciência” da certeza e da completude) proporcionou a inserção deste modelo de “apreciação livre” no interior do sistema inquisitivo, o qual se fundamenta na busca da verdade absoluta. Surgem, assim, os denominados “sistemas mistos”: uma parte introdutória inquisitiva (secreta e sumária) e uma segunda etapa pretensamente acusatória, sustentada nos elementos produzidos com ausência total de dialeticidade[9].
Nos ensinamentos do professor italiano:
“Compreende-se que tal ‘monstro, nascido do acoplamento do processo inquisitivo e do acusatório’, tenha somado os defeitos de um e de outro, comprometendo de fato o único valor comum a ambos: a obrigação de o juiz decidir juxta alligata atque probata, que caracteriza tanto o processo puramente inquisitivo, no qual é necessária a prova legal, quanto o processo acusatório, em que o juiz é passivo diante da atividade probatória das partes e está a ela vinculado”[10].
No atual panorama brasileiro, pós-reforma processual parcial, o equívoco legislativo toma corpo de manobra política em prol de um utilitarismo processual[11]. Isso porque, após a nova redação do dispositivo acima transcrito reafirmar as bases da livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial[12], expressou a possibilidade de utilização do material pré-processual (inquisitório) como reforço – ou auxílio – decisório[13].
Ao inserir a expressão “exclusivamente” na atual redação do artigo 155, o Legislador brasileiro optou por um modelo essencialmente inquisitivo (neste particular, fugindo um pouco do modelo retratado por Ferrajoli, de caráter misto). Isso porque se baseia em uma apreciação da prova com livre convicção judicial (motivada! mas, é bom frisar, a abertura retórica na motivação judicial é ampla) aberta ao material amplo, seletivo, estigmatizante, sigiloso, administrativo, “informativo” etc, do inquérito policial, o que, em última análise, apresenta-se ainda mais autoritário e arbitrário que o modelo de prova legal – própria e naturalmente inquisitivo.
A título de reforço, convém frisar, ainda, que a processualística penal, como cediço, se fundamenta na pretensa busca “da” verdade real. Necessário obtemperar, entretanto, que uma vez instrumentalizado pela técnica indutiva, o máximo que se alcançará com o processo (na decisão final) é a explicitação de uma hipótese explicativa (para o fato investigado) de natureza provável. Conforme Ferrajoli:
“Diferentemente da dedução, que sempre é tautológica, a verdade das premissas da indução não implica jamais a verdade da conclusão, pois, se as premissas são verdadeiras, não há qualquer necessidade lógica, senão apenas uma relevante probabilidade, de que a conclusão seja verdadeira (e nenhuma contradição ou impossibilidade, senão apenas uma relevante improbabilidade de que seja falsa)”[14].
Na atual sociedade complexa[15], de interação de fatores indeterminados, de intensa conflituosidade entre sistema e entorno, com maior evidência se apresenta a falência do discurso da verdade substancial. O exame do nexo de causalidade indica, apenas, uma possibilidade quanto à relação entre uma ação imputada, a culpabilidade de um sujeito (investigado/acusado) e o conjunto de fatos observados[16]. Assim sendo, o processo não é, em absoluto, expressão da realidade, quiçá de pretensa verdade.
Ao que parece, a inserção da expressão “exclusivamente” no artigo sob comento quer estancar a abertura sistêmica à proteção de direitos e garantias fundamentais preconizada pela Carta Política e, conseqüentemente, sufragar o entendimento do processo penal como instrumento de “conhecimento”[17], produtor de saberes e indutor de verdades fabricadas e úteis.
Nesse sentido, pertinente a crítica, em forma de questionamento, de Aury Lopes Junior: “quem precisa ‘cotejar’ e invocar o inquérito policial, quando a prova judicializada é suficiente?”[18]. Percebe-se que o Legislador, explicitamente, procurou deixar aberta a porta para o arbítrio[19], facultando ao julgador a remição aos atos de investigação, ausente de contraditório e completamente antidemocrático.
Este ideal legislativo é próprio de um modelo cultural que preconiza a sobreposição do discurso jurídico em relação à discussão política, ainda com uma agravante: a centralização do julgador – livre – como produtor de saberes irrefutáveis, o que se verifica na postura redacional do artigo sob análise, dos dispositivos a seguir abordados e do sistema penal nacional pátrio como um todo.
3. Artigo 156
O art. 156 do Código de Processo Penal, por sua vez, passou a dispor[20]:
“Art. 156 – A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I- ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;
II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.”
No caput, o Legislador tratou da distribuição do ônus da prova no processo penal e estabeleceu, como na redação anterior, que o encargo incumbe àquele que alegar o fato. Ao interpretar este dispositivo, doutrina e jurisprudência majoritárias defendem que, no processo penal, entrega-se ao acusador a prova dos fatos constitutivos e ao réu a prova de sua inocência se aduzir fatos extintivos, modificativos ou impeditivos.
Este entendimento deve sofrer alterações. Isso porque a nova redação do art. 386, VI, do Código de Processo Penal[21] determina que o ônus da defesa é impróprio em relação às causas que excluem o crime ou isentam de pena, pois basta para a absolvição que haja fundada dúvida sobre sua existência[22].
É imprescindível, contudo, reconhecer que a alteração do art. 386, VI, do CPP restou aquém do necessário e não está de acordo com o sistema acusatório. Isso porque, como bem observa Aury Lopes Júnior, a partir do momento em que o imputado é presumidamente inocente, não lhe incumbe provar absolutamente nada. Existe uma presunção que deve ser destruída pelo acusador, sem que o réu (e muito menos o juiz) tenha qualquer dever de contribuir nesta desconstrução[23].
E esta desoneração do acusado não vai, ressalta-se, de encontro à literalidade caput do art. 156. Este dispositivo determina que “a prova da alegação incumbirá a quem a fizer”; e é imprescindível reconhecer que a primeira (e principal) alegação feita é aquela que consta na exordial acusatória. Neste contexto, cabe ao Acusador o ônus total e intransferível de provar a existência do delito, demonstrando a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade e, logicamente, a inexistência das causas de justificação.[24]
Nos incisos da nova redação do art. 156, o Legislador consagrou, mais uma vez, a possibilidade de determinação de diligências de ofício pela autoridade judicial. Mais, permitiu a produção antecipada de provas, mesmo antes de iniciada a ação penal.
Quando da vigência da antiga redação do art. 156, parte da doutrina já denunciava, acertadamente, a inconstitucionalidade da atribuição de poderes instrutórios ao juiz. Isso porque essa concessão externa a adoção do princípio inquisitivo, o qual funda o sistema inquisitório, e representa uma quebra da igualdade, do contraditório e da própria estrutura dialética do processo[25].
Mais, como bem observa Jacinto Miranda Coutinho, na estrutura inquisitória, há uma fusão das funções de acusador e juiz e a conseqüente confusão entre o que seriam métodos para acusar e métodos para julgar. “O juiz, senhor da prova, sai em seu encalço guiado essencialmente pela visão que tem (ou faz) do fato privilegiando o mecanismo ‘natural’ do pensamento da civilização ocidental que é a lógica dedutiva, a qual deixa ao inquisidor a escolha da premissa maior, razão por que pode decidir antes e, depois, buscar quiçá obsessivamente a prova necessária para justificar a decisão.”[26] Fulmina-se, assim, a principal garantia da jurisdição, qual seja, a imparcialidade do julgador[27].
A nova redação, conforme referido, mantém o juiz num papel ativo na produção probatória e vai além, pois possibilita a produção de provas antes do início da ação penal. Em outras palavras, possibilita a atuação do magistrado quando sequer há ação penal instaurada ou acusação formal.
Se a redação anterior já violava o sistema acusatório e a Carta da República, a nova é ainda mais afrontosa, pois possibilita que o magistrado se antecipe à formação do opinio delicti do titular da ação penal e usurpe atribuições que são constitucionalmente asseguradas ao Ministério Público na ação penal pública[28].
Em suma, parece que o Legislador não enfrentou adequadamente o delicado tema dos limites probatórios do juiz na esfera penal. O dispositivo analisado é inconstitucional e inválido e não deve ser aplicado pelos operadores do direito, sob pena de retrocesso inquisitório.
4. Artigo 157: o regramento das provas ilícitas.
Por seu turno, assim dispõe a nova redação do artigo 157 do diploma processual penal pátrio[29]:
“Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais[30].
§ 1o São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.
§ 2o Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova.
§ 3o Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente[31].
§ 4o (VETADO).”
Com efeito, o Legislador brasileiro, atento ao anacronismo da legislação processual penal pátria, entendeu disciplinar o disposto no artigo 5º, LVI[32], da Constituição Federal, expondo, em sede infraconstitucional, o debate acerca das provas ilícitas e de suas derivadas (teoria dos frutos da árvore envenenada[33]) no pretenso[34] processo penal acusatório.
Entretanto, o artigo 157 acima transcrito, embora se revista de garantia fundamental, em verdade – ao utilizar-se de redação não minimamente taxativa, determinada – expõe as diretrizes de um processo penal seletivo e inquisitório[35].
Em virtude da vagueza dos “conceitos” de fonte independente e de nexo de causalidade (artigo 157, §1º e 2º, CPPB), certamente a casuística estigmatizante que caracteriza o sistema penal brasileiro vai dar azo a interpretações cambiantes, por óbvio tendo por base a classe social do acusado, a boa técnica do defensor contratado, o trabalho (louvável, mas com estrutura precária) da Defensoria Pública, etc. Questiona-se: como ficarão as questões da causalidade tênue entre prova ilícita e derivada(s)? Em um legítimo processo penal democrático, elas deveriam ser rechaçadas, mas não há dúvidas de que será o caso concreto (e suas circunstâncias) que conduzirá à resposta; ou melhor, o status do réu vinculará a decisão[36].
Mas, por ora, essa questão (ao menos neste trabalho tópico) é tangencial. Pretende-se focar algo mais complexo, sistêmico, estrutural, que bem demonstra a intenção legislativa de manutenção de um status quo: a situação do juiz da instrução que manteve contato com a prova ilícita desentranhada[37].
É certo que sua decisão não poderá a ela reportar-se. Mas, com a manutenção (de duvidosa constitucionalidade) da inquisitória possibilidade de o juiz produzir prova de ofício (artigo 156, I e II, CPPB), não vai ele buscar, ex oficio, elementos para suprir (fundamentar) sua pré-concepção condenatória (reforçada pela prova ilícita produzida)? Não vai o julgador, com amparo legal (artigo 155, CPPB), buscar fundamentos nos atos pré-processuais (inquérito policial), cujos elementos de informação constam dos autos do processo, embora produzidos com ausência de dialeticidade?
Por razões como tais que não se pode concordar com o veto presidencial ao parágrafo quarto[38] do artigo sob comento.
Segundo a redação original do parágrafo citado, o juiz que conhecesse do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderia proferir a sentença ou o acórdão. A mensagem de veto esclarece a intenção legislativa (e o ideal sistêmico adotado – ou, se se quiser, mantido): “O objetivo primordial da reforma processual penal consubstanciada, dentre outros, no presente projeto de lei, é imprimir celeridade e simplicidade ao desfecho do processo e assegurar a prestação jurisdicional em condições adequadas. O referido dispositivo [parágrafo quarto, vetado] vai de encontro a tal movimento, uma vez que pode causar transtornos razoáveis ao andamento processual, ao obrigar que o juiz que fez toda a instrução processual deva ser, eventualmente, substituído por outro que nem sequer conhece o caso. Ademais, quando o processo não mais se encontra em primeira instância, a sua redistribuição não atende necessariamente ao que propõe o dispositivo, eis que mesmo que o magistrado conhecedor da prova inadmissível seja afastado da relatoria da matéria, poderá ter que proferir seu voto em razão da obrigatoriedade da decisão coligada”.
Ao que parece, acabou-se excluindo um dos pontos positivos do projeto de lei. De que vale disciplinar a temática das provas ilícitas, dando uma roupagem garantista (embora com uma redação traiçoeira), explicitando sua inadmissibilidade, e continuar permitindo a permanência do julgador, que com ela manteve contato direto, na condução do processo?
Na doutrina de Aury Lopes Júnior:
“A desconsideração de que se opera uma grave contaminação psicológica (consciente ou inconsciente) do julgador faz com que a discussão seja ainda mais reducionista. Esse conjunto de fatores psicológicos que afetam o ato de julgar deveria merecer atenção muito maior por parte dos juristas, especialmente dos tribunais, cuja postura até agora tem-se pautado por uma visão positivista, cartesiana até, na medida em que separa emoção e razão, […] , o que se revela absolutamente equivocado no atual nível de evolução do processo[39].”
Não se pode negar que com o advento da noção de complexidade sistêmica todos os fatores sociais estão interligados. O processo penal não foge a essa sistemática.
Acreditar que o juiz que manteve contato direto com uma prova ilicitamente produzida (e oportunamente desentranhada) vai julgar exclusivamente com base na razão é enxergar o processo de forma poética, desapegada da realidade. Se mesmo com o afastamento do julgador originário não se consegue superar os prejuízos que uma prova ilícita causa ao acusado (é inegável que o novo julgador também não se encontrará no ápice de sua imparcialidade!), que dirá de sua manutenção na condução do processo. A declaração de sua suspeição[40] é fator de justiça, por ser a medida menos afrontosa à dignidade processual.
Por razões como tais, nos termos propostos por Lopes Júnior, “não basta anular o processo e desentranhar a prova ilícita: deve-se substituir o juiz do processo, na medida em que sua permanência representa um imenso prejuízo, que decorre dos pré-juízos (sequer é pré-julgamento, mas julgamento completo!) que ele fez”[41].
Nem se argumente que a identidade física do juiz impediria tal proposição, uma vez ser a imparcialidade do julgador dogma do Estado Democrático de Direito, devendo sobrepor-se (cristalinamente) à nova redação do artigo 399, §2º, CPPB[42]. Ademais, a própria máxima da identidade física do juiz e o anseio por celeridade processual (fundamento último da reforma processual penal e razão de veto do §4º, do artigo 157, CPPB) são mecanismos de proteção do cidadão acusado em processo penal, não podendo servir de obstáculo à própria efetivação de suas garantias fundamentais[43].
Por isso, advoga-se pelo reconhecimento (ex oficio, inclusive) da suspeição do magistrado nessas situações, devendo-se substituir por outro e imparcial julgador (na medida do possível!), de acordo com as regras de organização judiciária, elevando-se o respeito ao réu (hipossuficiente na relação acusatória estatal) e a dignidade da justiça como um todo.
5. Conclusão.
Toda mudança cultural requer choque estrutural. A evolução ao processo penal brasileiro ideal (ou o mais próximo dele) só seria possível, em tese, com a redação de um novo diploma legal, totalmente desapegado das raízes inquisitivas que dão sustentação ao modelo pátrio. A reforma processual efetivada, por ser parcial, dificilmente alterará a sistemática antigarantista reinante, mantendo um abismo entre a abertura sistêmica-humanística da Constituição Federal e a prática forense com base infraconstitucional.
No presente texto, ao abordar a nova disciplina da atividade probatória no Código de Processo Penal, objetivou-se – através de um ponto de vista crítico, mas delimitador de uma visão interpretativa – analisar o que se encontra de extradiscursivo no interesse legislativo de atualização da legislação nacional. De forma direta, procurou-se abordar as falhas ou lacunas (conscientes ou inconscientes) da Lei n. 11.690/2008, mais especificamente em uma abordagem da nova redação dos artigos 155, 156 e 157 do CPPB[44], e a manutenção do princípio inquisitivo na colheita do material probatório; agora, sob o manto utilitário da celeridade processual.
Não se pretende, com o texto (obviamente), estancar a discussão; nem mesmo fazer terra arrasada sobre o material produzido, até porque não há como negar a evolução em alguns pontos determinados, oportunamente analisados. O que se critica – isto sim de forma efusiva – é a tentativa de manipulação da coletividade (ou manipulação efetiva) através do discurso repressivo, utilizando-se para tanto o Processo Penal, sob o rótulo de garantia social.
O processo penal, frisa-se, não é garantia social. Ou melhor, não é instrumento próprio para garantia e estabilização social. Trata-se, em verdade, de um mecanismo de garantia individual em prol da presunção de inocência e, em última análise, da dignidade humana, refletindo indiretamente (aí sim) nas relações sociais, como freio ao anseio punitivo estatal.
Espera-se que a presente, limitada e pontual reforma sirva de ponto de partida para uma verdadeira discussão política, em prejuízo das também limitadas discussões jurídicas. Parece necessário um choque estrutural capaz de alterar a dogmática contemporânea, introduzindo no processo penal positivado elementos de política criminal que identifiquem este ramo jurídico como garantia formal e não como instrumento da sistêmica seleção social, aproximando-se, verdadeiramente, dos ideais democráticos que devem nortear a produção normativa e impulsionar a almejada transformação cultural.
Advogado, pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade IDC.
Assessor Jurídico do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Público e especializando em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade IDC
Advogada criminalista, Mestranda em Ciências Criminais (PUC/RS), especialista em Direito Penal e Processual Penal (Faculdade IDC).
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