Resumo: Tema controverso na doutrina e na jurisprudência, o conflito entre a segurança jurídica e a relativização da coisa julgada material ainda está longe de um consenso jurídico. Entretanto, as peculiaridades do tema exigem enfrentamento para resolução dos conflitos inerentes a uma sociedade dinâmica como a nossa. Não há dúvida que asegurança jurídica constitui princípio estruturante do ordenamento jurídico brasileiro, essencial para manutenção da sociedade, entretanto, é necessário investigar se em nome desta segurança pode-se coadunar com a manutenção de verdadeiras injustiças, contrárias ao projeto constitucional. Esse aspecto assume ainda maior relevância quando se passa a analisar a relativização da coisa julgada em ações coletivas, cujo alcance pode ser imensurável ou de difícil mensuração. A questão exige, mais do que uma ponderação principiológica, uma visão humana do intérprete, cujo parâmetro deve ser os direitos fundamentais.
Palavras-chave: Coisa Julgada Material. Segurança Jurídica. Relativização da Coisa Julgada.Direitos Fundamentais
Abstract: A controversial topic in the doctrine and in the jurisprudence, the conflict between juridical security and the relativization of the claim preclusion (Res Judicata Material) is still far from a juridical consensus. However, the peculiarities of this subject require a confrontation to resolve the inherent conflicts in a dynamic society such as our own. There is no doubt that the juridical security is a structuring principle of the brazilian legal system, essential for the maintenance of society. However, it is necessary to investigate whether on behalf of such security may be consistent with the maintenance of real injustice, contrary to the constitutional project. This aspect assumes even greater relevance when it comes to analyzing the relativization of claim preclusion in class actions whose scope can be immeasurable or really difficult to measure. The question requires more than a principled weighting, requires a vision of the human interpreter, whose parameter should be the fundamental rights.
Keywords: Res Judicata Material – Juridical Security – Relativization Of Res Judicata – Class Actions – Fundamental Rights
Sumário: Introdução. 1. Aspectos Constitucionais da Coisa Julgada. 1.1 Princípio da Segurança Jurídica. 2. Aspectos Processuais. 3. Relativização da Coisa Julgada. 3.1, Relativização da Coisa Julgada nos casos de Investigação de Paternidade. 4. Reflexos da Relativização da Coisa Julgada nas Ações Coletivas. 5. Considerações Finais
Introdução
Com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, estabeleceu-se o Estado Democrático Brasileiro e com ele a possibilidade de controle dos atos do Poder Público, aí incluídos os poderes legislativo, executivo e judiciário.
O controle que se opera sobre os poderes legislativo e executivo não abrange grandes dilações, uma vez que previsto no texto constitucional de forma expressa[1]. Entretanto, o controle de constitucionalidade dos atos do Poder Judiciário contra os quais não caiba mais recurso ou qualquer meio de impugnação, ainda não encontrou posicionamento consolidado na doutrina.
A coisa julgada, estabelecida como princípio de segurança das relações jurídicas e garantidora do equilíbrio social deve prevalecer em qualquer circunstância, ou existem hipóteses cabíveis de relativização?
1. Aspectos Constitucionais da Coisa Julgada
A coisa julgada é prevista constitucionalmente no art. 5º, XXXVI da CF/88[2] e seu conceito é estabelecido pelo art. 467 e seguintes do Código de Processo Civil: “Denomina-se coisa julgada material a eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário e extraordinário.”
A doutrina de Nelson Nery Junior, (2004. p. 716) vai além do texto legal e assim nos apresenta o instituto: “Coisa julgada material é a qualidade que torna imutável e indiscutível o comando que emerge da parte dispositiva da sentença de mérito, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário (…) nem à remessa necessária do art. 475 do CPC.”
No mesmo sentido, é o entendimento de Luiz Manoel Gomes Júnior (2012. p. 238) ao afirmar que, diferentemente do que foi estabelecido pelo texto da lei, a imutabilidade dos
efeitos da decisão judicial é uma característica fundamental da coisa julgada, que pode ser alterada até mesmo por convenção das partes.[3]
Desse modo, a Coisa Julgada Material é a imutabilidade dos efeitos substanciais da sentença de mérito que impede o ajuizamento de nova ação para discussão da mesma questão.
Lado outro, a Coisa Julgada Formal é concebida como a imutabilidade dos efeitos da sentença no processo em apreço, que se opera independente da análise do mérito.Sobre a diferenciação dos dois institutos, Alexandre Freitas Câmara (2002, p. 400) nos ensina que:
“A Coisa julgada formal é comum a todas as sentenças, ao passo que a coisa julgada material só poderia se formar nas sentenças de mérito. Por essa razão, todas as sentenças transitam em julgado (coisa julgada formal), mas apenas as sentenças de mérito, ou seja, definitivas, estariam acobertadas pelo manto da coisa julgada material.”
Em que pese o entendimento do renomado processualista, também acompanhado por grande parte da doutrina, compartilhamos do entendimento do professor Luiz Manoel Gomes Júnior (2005, p 189/190) que bem explica a questão da coisa julgada e a análise de mérito:
“O que se afirma, equivocadamente, é que a coisa julgada somente atingiria decisão que tivesse analisado o mérito (art. 474 do CPC). Não é bem isso. Extinta determinada demanda, ainda que sem análise do mérito, será inviável a repropositura sem que o vício que levou à emissão da decisão de extinção tenha sido corrigido, o que se traduz em um efeito da coisa julgada, ou seja, impossibilidade de ajuizamento de demanda já analisada.”
Como se pode ver, mesmo que a ação tenha sido extinta sem julgamento de mérito, ainda assim será atingida pelo manto da coisa julgada material, pois para que seja proposta novamente, necessariamente, deverá ser corrigida naquilo que a maculou e impediu sua plena apreciação.
1.1 Princípio da Segurança Jurídica
A função jurisdicional do Estado deve ser capaz de resolver os conflitos existentes entre os seus jurisdicionados de maneira a garantir a pacificação social e assegurar que as demandas não se perpetuem no tempo.
Como bem asseverou Deocleciano Batista(2005, p. 30) “seria insuportável conviver com o estado de dúvida que existiria se as relações entre as pessoas ficassem, ad aeternum, à mercê da incerta iniciativa do jurisdicionado eventualmente prejudicado por nulidades processuais”.
Desta maneira, o sentimento de certeza e a confiança do jurisdicionado proporcionam melhores condições para o aperfeiçoamento do Direito e da Justiça dentro do Estado Democrático de Direitos, a fim de trazer equilíbrio e paz social na solução dos conflitos.
Sobre esta função da coisa julgada, discorrem Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina (2003, p 20)
“Coisa julgada é instituto cuja função é a de estender ou projetar os efeitos da sentença definitivamente para o futuro. Com isso, pretende-se zelar pela segurança extrínseca das relações jurídicas, de certo modo em complementação ao instituto da preclusão, cuja função primordial é garantir a segurança intrínseca do processo, pois assegura a irreversibilidade das situações jurídicas cristalizadas endoprocessualmente.”
A segurança jurídica, portanto, tem como finalidade conceder aos indivíduos a garantia necessária para o desenvolvimento de suas relações sociais, tendo na justiça sua maior justificativa.
Numa perspectiva mais ampla, a Segurança Jurídica decorre do próprio Estado Democrático de Direitos e pode ser considerada como inerente e essencial ao mesmo, como um de seus princípios basilares.
Desta feita, o Princípio da Segurança Jurídica possui conexão direta com os Direitos Fundamentais e ligação com determinados princípios que dão funcionalidade ao ordenamento jurídico brasileiro, tais como: a irretroatividade da lei, o devido processo legal e o direito adquirido.
2 Aspectos Processuais
O atual ordenamento jurídico processual brasileiro não conta com um instrumento autônomo de impugnação da coisa julgada, que possa ser utilizado a qualquer tempo. Os instrumentos ora utilizados ficam sujeitos a prazos fixos, o que despertou a doutrina e a jurisprudência a buscarem um meio adequado a alcançar tal finalidade quando, pela via excepcional, se fizer necessário.
Alguns doutrinadores entendem que o prazo decadencial para a propositura da Ação Rescisória seria o veículo a assegurar a imutabilidade definitiva dos erros de julgamento.
Na lição de Marinoni, (2004, p. 03) diante da indispensabilidade do instituto da coisa julgada e ciente da possibilidade de decisões contrárias à ordem jurídica, o legislador já teria previsto a Ação Rescisória, com prazo próprio e hipóteses taxativamente enumeradas em lei (art. 485 do CPC).
Assim, decorrido o prazo decadencial de dois anos, contados do trânsito em julgado da decisão, a coisa julgada seria imutável, inatacável e irremediável, por mais absurda que tenha sido a decisão.
Admitir tal posicionamento, como bem asseverou Humberto Theodoro Júnior, (2003, p. 129) seria conferir ao Judiciário um poder absoluto e exclusivo de interpretar a Constituição, reduzindo-a ao direito que é aplicado nos tribunais, como resultado da decisão definitiva e irrecorrível de um juiz.
Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina (2003, p. 178/179) também defendem o uso da Ação Rescisória para desconstituir a Coisa Julgada Inconstitucional com base no art. 485, inciso V do CPC, que deve abranger não somente as hipóteses de violação à literal dispositivo de lei, como também os casos em que haja violação aos princípios jurídicos do Estado Democrático de Direitos.
Para Humberto Theodoro Júnior (2003, p. 142) trata-se de decisão nula, por isso não sujeita a prazos decadenciais ou prescricionais. A nulidade, portanto, poderia ser declarada a qualquer tempo, de ofício pelo juiz, ou mediante provocação através de qualquer ação com esse objetivo, seja rescisória (não sujeita a prazo), declaratória de nulidade ou embargos à execução.
Respeitosa vênia, tomando-se como referencial o fato de que a Relativização da Coisa Julgada só ocorre em casos extraordinários, para repelir injustiças ou erros flagrantes, parece-nos mais acertada uma visão que a invoque apenas em casos de violação à direitos fundamentais, que afinal, são os instrumentos para se alcançar o projeto constitucional.
Entretanto, reconhecer a nulidade a qualquer tempo, inclusive de ofício, por meio de qualquer ação com este objetivo, como sugere Humberto Theodoro Júnior, pode expor o ordenamento jurídico a eventuais abusos e menosprezar o devido processo legal.
Para garantir que a coisa julgada estará em consonância com a norma mãe, de onde deve emanar toda e qualquer relação jurídica, embasada nos princípios constitucionais dirigentes, é preciso estabelecer parâmetros e hipóteses legais, a fim de assegurar a estabilidades das relações jurídicas e sociais.
3. A Relativização da Coisa Julgada
Sob a ótica constitucionalizada atual, o instituto da coisa julgada deve conviver harmoniosamente com os demais princípios e normas constitucionais, uma vez que o nosso Estado Democrático de Direitos não admite a inconstitucionalidade, seja ela decorrente de lei, de ato administrativo ou de sentença, ainda que transitada em julgado.
Mesmo sob a ótica do Princípio da Segurança Jurídica, o indivíduo deverá se sentir seguro também, ao verificar que no corpo dos textos jurídicos, foram incluídos princípios fundamentais, que afinal, são fruto das conquistas sociais do homem. Neste sentido, bem adverte Costa Neves (2007, p. 02)
“[…] a busca cega pela segurança jurídica pode implicar, como se vê, o desprezo a outros valores também protegidos pelo sistema jurídico, como a justiça, a dignidade da pessoa humana, etc. Há sem dúvida, necessidade de se buscar uma adequação do instituto da coisa julgada à realidade do sistema jurídico como um todo. Para esse fim, tem-se lançado mão do princípio da proporcionalidade e da razoabilidade. A sistematização visa impedir que sejam perpetuados os efeitos da coisa julgada inconstitucional, ou seja, evitar que uma decisão contra a qual não caiba mais qualquer recurso ou ação rescisória, possa ferir, sob o pretexto de ser preservada a segurança jurídica, outros valores constitucionalmente protegidos”.
Humberto Theodoro Júnior (2003, p. 16) defende que a Coisa Julgada não tem tratamento constitucional, sendo disciplinado apenas por lei ordinária. Em função disso, o instituto não poderia ter caráter absoluto[4], ainda mais quando violar a própria Constituição Federal.
Sobre o caráter intocável e indiscutível da coisa julgada, típico da doutrina mais conservadora, Dinamarco (2001, p. 62) nos esclarece que a segurança jurídica não pode ser utilizada como argumento à inconstitucionalidade:
“É inconstitucional a leitura clássica da garantia da coisa julgada, ou seja, sua leitura com a crença de que ela fosse algo absoluto e, como era hábito dizer, capaz de fazer do preto branco e do quadrado redondo. A irrecorribilidade de uma sentença não apaga a inconstitucionalidade daqueles resultados substanciais política ou socialmente ilegítimos, que a Constituição repudia.”
Em recente decisão do STF[5], o Ministro Celso de Melo, expressou toda a sua discordância e temor em relação à relativização da coisa julgada. Veja-se:
“Tenho para mim que essa posição (a da relativização da coisa julgada), se admitida, antagonizar-se-ia com a proteção jurídica que a ordem constitucional dispensa, em caráter tutelar, à “res judicata”.
Na realidade, a desconsideração da “auctoritas rei judicatae” implicaria grave enfraquecimento de uma importantíssima garantia constitucional que surgiu, de modo expresso, em nosso ordenamento positivo, com a Constituição de 1934.
A pretendida “relativização” da coisa julgada – tese que tenho repudiado em diversos julgamentos (monocráticos) proferidos no Supremo Tribunal Federal (RE 592.912/RS – RE 594.350/RS – RE 594.892/RS – RE 594.929/RS – RE 595.565/RS, dos quais sou Relator) – provocaria conseqüências altamente lesivas à estabilidade das relações intersubjetivas, à exigência de certeza e de segurança jurídicas e à preservação do equilíbrio social, valendo destacar, em face da absoluta pertinência de suas observações, a advertência de ARAKEN DE ASSIS (“Eficácia da Coisa Julgada Inconstitucional”, “in” Revista Jurídica nº 301/7-29, 12-13):
“Aberta a janela, sob o pretexto de observar equivalentes princípios da Carta Política, comprometidos pela indiscutibilidade do provimento judicial, não se revela difícil prever que todas as portas se escancararão às iniciativas do vencido. O vírus do relativismo contaminará, fatalmente, todo o sistema judiciário. Nenhum veto, ‘a priori’, barrará o vencido de desafiar e afrontar o resultado precedente de qualquer processo, invocando hipotética ofensa deste ou daquele valor da Constituição. A simples possibilidade de êxito do intento revisionista, sem as peias da rescisória, multiplicará os litígios, nos quais o órgão judiciário de 1º grau decidirá, preliminarmente, se obedece, ou não, ao pronunciamento transitado em julgado do seu Tribunal e até, conforme o caso, do Supremo Tribunal Federal. Tudo, naturalmente justificado pelo respeito obsequioso à Constituição e baseado na volúvel livre convicção do magistrado inferior. Por tal motivo, mostra-se flagrante o risco de se perder qualquer noção de segurança e de hierarquia judiciária. Ademais, os litígios jamais acabarão, renovando-se, a todo instante, sob o pretexto de ofensa a este ou aquele princípio constitucional. Para combater semelhante desserviço à Nação, urge a intervenção do legislador, com o fito de estabelecer, previamente, as situações em que a eficácia de coisa julgada não opera na desejável e natural extensão e o remédio adequado para retratá-la (…). Este é o caminho promissor para banir a insegurança do vencedor, a afoiteza ou falta de escrúpulos do vencido e o arbítrio e os casuísmos judiciais.”
O ministro fundamenta ainda seu posicionamento filiando-se à corrente encabeçada por Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (2010, p. 715/716) que defende a impossibilidade de relativização ante a existência da coisa julgada material como elemento integrante do Estado Democrático de Direitos.
“A doutrina mundial reconhece o instituto da coisa julgada material como ‘elemento de existência’ do Estado Democrático de Direito (…). A ‘supremacia da Constituição’ está na própria coisa julgada, enquanto manifestação do Estado Democrático de Direito, fundamento da República (CF 1.º ‘caput’), não sendo princípio que possa opor-se à coisa julgada como se esta estivesse abaixo de qualquer outro instituto constitucional. Quando se fala na intangibilidade da coisa julgada, não se deve dar ao instituto tratamento jurídico inferior, de mera figura do processo civil, regulada por lei ordinária, mas, ao contrário, impõe-se o reconhecimento da coisa julgada com a magnitude constitucional que lhe é própria, ou seja, de elemento formador do Estado Democrático de Direito (…) O risco político de haver sentença injusta ou inconstitucional no caso concreto parece ser menos grave do que o risco político de instaurar-se a insegurança geral com a relativização (‘rectius’: desconsideração) da coisa julgada.”
A posição de Nelson Nery Junior é tão contundente que chega a relacionar a questão da Relativização da Coisa Julgada Material ao Nazismo, quando Adolf Hitler assinou, em 15 de julho de1941, a Lei para a Intervenção do Ministério Público no Processo Civil.
No episódio citado, foram conferidos poderes ao parquetpara declarar, no caso concreto, se asentença teria sido justa ou não, de acordo com os fundamentos do Reich alemão. Caso o Ministério Público alemão entendesse que asentença era injusta, poderia propor ação rescisória para que isso fosse reconhecido.
Com a devida vênia, não se pode comparar um ato típico do Totalitarismo Alemão com o instituto em apreço, que afinal, funda-se num Estado Democrático de Direitos. Além disso, com este ato os nazistas não se propuseram a relativizar nem desconsiderar a coisa julgada material e sim a criar uma nova causa de rescindibilidade da sentença de mérito, baseada em suposta injustiça, para ferir a coisa julgada, tudo com nítido propósito déspota de consolidar sua ideologia repugnante.
Ressalta-se ainda que, a escolha do termo empregado neste estudo não é ocasional. Isto porque inobstante a nomeação dada pela doutrina de “Desconsideração da Coisa Julgada” defende-se apenas a sua relativização, ainda assim como medida excepcional, onde for identificada nítida afronta à ordem constitucional. Afinal, “a ordem constitucional não tolera que se eternizem injustiças a pretexto de não eternizar litígios” (DINAMARCO, 2003, p. 72)
3.1. A Relativização da Coisa Julgada nos casos de Investigação de Paternidade
Como vimos, a Relativização da Coisa Julgada ainda encontra resistência por grande parte da doutrina e temor por parte dos tribunais. Entretanto, dada a sua relevância pessoal e social, a tese da relativização é aceita pelo STF em ações de Investigação de Paternidade, em que venha a ser comprovado através de exame de DNA posterior, o inverso daquilo que se admitiu na sentença transitada em julgado.
Nessa situação, é impossível ignorar a importância social e jurídica do problema, uma vez que o direito ao reconhecimento verdadeiro, em relação à filiação, é um direito fundamental da pessoa, diretamente relacionado à sua dignidade.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em tema de investigação de paternidade, firmou entendimento no sentido de admitir a Relativização da Coisa Julgada, por decisão do Plenário que reconheceu a existência de repercussão geral e proferiu decisão consubstanciada em acórdão assim ementado[6]:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE DECLARADA EXTINTA, COM FUNDAMENTO EM COISA JULGADA. REPROPOSITURA DA DEMANDA. POSSIBILIDADE, EM RESPEITO À PREVALÊNCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À BUSCA DA IDENTIDADE GENÉTICA DO SER, COMO EMANAÇÃO DE SEU DIREITO DE PERSONALIDADE.
1. É dotada de repercussão geral a matéria atinente à possibilidade da repropositura de ação de investigação de paternidade, quando anterior demanda idêntica, entre as mesmas partes, foi julgada improcedente, por falta de provas, em razão da parte interessada não dispor de condições econômicas para realizar o exame de DNA e o Estado não ter custeado a produção dessa prova.
2. Deve ser relativizada a coisa julgada estabelecida em ações de investigação de paternidade em que não foi possível determinar-se a efetiva existência de vínculo genético a unir as partes, em decorrência da não realização do exame de DNA, único meio de prova que pode fornecer segurança quase absoluta quanto à existência de tal vínculo.
3. Em respeito ao princípio da busca da identidade genética do ser, não devem ser impostos óbices processuais à veraz determinação de sua existência, em cada caso concreto, como forma de tornar-se igualmente efetivo o princípio da igualdade entre os filhos, inclusive de direitos e qualificações, bem assim o princípio da paternidade responsável.
4. Recursos extraordinários conhecidos e providos.”
A suprema corte de nosso país, portanto, possibilita à aqueles que tiveram suas demandas de investigação de paternidade julgadas sem a prova do exame de DNA, repropor a ação com o pedido de produção desta prova, única capaz de fornecer certeza quase absoluta quanto à filiação e o faz com base no direito à identidade genética e à origem, que em última instância, estão diretamente relacionados à dignidade humana.
4. Reflexos da Relativização da Coisa Julgada nas Ações Coletivas
Antes de analisar a questão sob o enfoque coletivo, deve-se ter em mente que o Código de Processo Civil foi concebido para a proteção dos direitos individuais. Desta feita, para a tutela de interesses transindividuais, exigiu-se um tratamento diferenciado da Coisa Julgada.
O regramento atual vigente cuidou da coisa julgada coletiva por meio dos arts. 16da Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7347/85) e 103 do Código de Defesa doConsumidor (Lei n. 8078/90). O quadro a seguir, elaborado por Hugo Nigro Mazzilli (2005, p. 9-14) nos dá real dimensão sobre os efeitos da coisa julgada coletiva.
Estabelecida a coisa julgada nos moldes acima, rompeu-se com a antiga noção de coisa julgada da tutela individual e surgiu a chamada coisa julgada secundum eventum litis, através do qual o resultado da demanda (procedência ou improcedência) é que determinará a ocorrência e o alcance da coisa julgada.
Percebe-se, portanto, que à semelhança do que ocorre nas Ações Rescisórias e na Revisão Criminal, a própria lei estabeleceu uma previsão de relativização da coisa julgada, nos casos de demanda coletiva.
Sobre a relativização em sede de Ação Civil Pública, Hugo Nigro Mazzili (2002, p. 288-289) questiona a possibilidade de uma ação restar improcedente não por falta de provas, mas por fraude na elaboração de perícias.
O autor entende que, especialmente em casos de interesse difuso, a coisa julgada não pode se sobrepor a direitos fundamentais como a vida, a saúde e ao meio ambiente equilibrado, motivo pelo qual não se forma a coisa julgada em desconformidade com a Constituição Federal, com o que concordamos.
Em linhas gerais, pode-se verificar que nas demandas coletivas, o instituto já se relativiza por expressa determinação legal, quando diante de sentenças de improcedência com base na deficiência do conjunto probatório.
Do mesmo modo, diante de uma decisão coletiva flagrantemente inconstitucional ou fraudulenta, cujo potencial lesivo é maior devido aos alcances transindividuais da tutela, seja ela inerente a direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos, caberá impugnação.
Esta impugnação, a nosso sentir, encontrará melhor respaldo se aviada através de Ação Declaratória de Nulidade, embasada não em disposição expressa de lei, mas a partir da uma interpretação aberta e ampla da constituição, de acordo com os princípios norteadores do Direito Material Coletivo,[7] tendo como norte os direitos fundamentais.
Enfim, a Ação Declaratória de Nulidade com a finalidade de relativizar a coisa julgada material contra a qual não caiba mais recurso ou rescisória, tanto na esfera individual quanto na coletiva, é instituto utilizável apenas de forma excepcional, quando for identificada, de pleno, nítida afronta a Direito Fundamental e quando, no caso concreto, depois de um juízo de ponderação, este direito lesado possa se sobrepor à coisa julgada, que é igualmente um direito fundamental[8].
5. Considerações Finais
Inobstante a Constituição Federal prever a coisa julgada como direito fundamental e ter na segurança jurídica um dos pilares de sustentação do Estado Democrático de Direito, este instituto não pode ser considerado como um dogma – intocável e inatingível.
Não se deve negar a necessidade de segurança e certeza na prestação jurisdicional e nas relações sociais, mas a coisa julgada deve ser interpretada juntamente com os demais princípios fundamentais, através da Proporcionalidade e da Razoabilidade.
Desta maneira, em casos excepcionais, decisões que contenham flagrante afronta à Constituição ou a algum princípio fundante seu, que lesem direitos fundamentais, ou ainda, embasadas no erro ou na fraude, são passíveis de revisão pelo judiciário, mesmo que já tenham sido atingidas pela coisa julgada material.
O Supremo Tribunal Federal já reconheceu a possibilidade de relativização da coisa julgada em casos de Investigação de Paternidade, abrindo precedentes para a sua aplicação em outras demandas, desde que preenchidos os requisitos atinentes.
Ante a ausência de previsão processual expressa para controlar os atos judicias transitados em julgado, não passíveis de impugnação através de Ação Rescisória, o meio mais correto para se pleitear a relativização da coisa julgada é a Ação Declaratória de Nulidade, que poderá ser aviada a qualquer tempo, tanto nas ações individuais como nas coletivas, desde que seja identificada nítida afronta a direito fundamental, e que, no caso concreto, após a aplicação do Princípio da Proporcionalidade, o direito fundamental lesado prevaleça.
A coisa julgada já é nitidamente relativizada nas ações coletivas por expressa disposição legal e suas decisões também poderão ser impugnadas à semelhança das demandas individuais, especialmente porque eventuais fraudes ou máculas na formação da coisa julgada podem gerar danos potencializados pelo alcance coletivo da sentença.
Depois deste breve estudo foi possível constatar que a segurança jurídica não decorre da letra da lei, nem da coisa julgada formal ou material e sim dos valores e princípios morais que norteiam a vida e sua existência com dignidade. Não se pode desenvolver plenamente o projeto constitucional nem alcançar a transformação social se tolerarmos, sob o argumento da coisa julgada, que se operem flagrantes injustiças.
Informações Sobre o Autor
Grasielly de Oliveira Spínola
Advogada. Mestranda em Proteção dos Direitos Fundamentais