Resumo: A presente monografia aborda o tema do instituto processual indispensável ao Estado Democrático de Direito, a coisa julgada. Analisa sua intangibilidade em decorrência da exigência da segurança jurídica. Questiona, porém, se a coisa julgada seria intocável mesmo quando viola norma constitucional. Neste sentido, relata opiniões que entendem que a res judicata deve ser compreendida em um sentido relativo, sucumbindo diante de valores, princípios e regras constitucionais. Analisa as medidas típicas contra a coisa julgada inconstitucional, concluindo, todavia, que a ação rescisória, a ação declaratória e os embargos de execução são os únicos meios legais aptos à quebra da coisa julgada inconstitucional. Trata-se, por tanto, de um tema bastante controvertido, longe de ser pacificado.[1]
Palavras-chave: Coisa julgada. Relativização. Segurança jurídica.
Sumário: Introdução. 1. A coisa julgada. 1.1. Conceito. 1.2. Coisa julgada formal. 1.3. Coisa julgada material. 1.4. Limites da coisa julgada 1.4.1. Limites Objetivos da Coisa Julgada. 1.4.2. Limites Subjetivos da Coisa Julgada. 2. Sentença julgada inconstitucional. 2.1. Conceito de inconstitucionalidade. 2.2. Limites da sentença. 2.3. Sentença inconstitucional transitada em julgado. 2.3.2. Sentença inconstitucional: nula ou inexistente? 3. Relativização da coisa julgada inconstitucional. 3.1. Considerações iniciais. 3.2. Relativização e segurança jurídica. 4. Meios de desconstituição da coisa julgada. 4.1. Ação rescisória. 4.2. Ação declaratória. 4.3. Embargos a execução. Conclusão. Referência
INTRODUÇÃO
O presente trabalho sobre a desconstituição da coisa julgada inconstitucional não tem a intenção de inovar a respeito desse assunto tão polêmico da atualidade, mas sim, possibilitar uma reflexão sobre o tema.
O controle do conteúdo do comando judicial é preocupação constante na seara acadêmica, como também agita o próprio espírito dos jurisdicionados, aos quais o comando é dirigido para a resolução dos conflitos intersubjetivos de interesse que surgem aqui e acolá, movimentando a cada momento o Estado, a quem os próprios jurisdicionados se submeteram aguardando a devida composição do litígio.
Em conseqüência dessa prestação jurisdicional do Estado, surge o instituto da coisa julgada, que apesar de sua conceituação aprimorada ao longo da história do Direito, sempre se baseou na necessidade de o ordenamento jurídico proteger as decisões judiciais de questionamentos intermináveis, impedindo, assim, a perpetuação das demandas e trazendo segurança jurídica.
A coisa julgada, então, protege as prestações jurisdicionais, emprestando-lhes o caráter de imutabilidade e indiscutibilidade que impedem novos questionamentos, em juízo, acerca da questão decidida.
Muitas vezes, porém, essas prestações jurisdicionais violam o texto constitucional e se cristalizam pelo decurso do tempo, ganhando status de intocáveis.
Assim, este trabalho apresenta como problemática para reflexão a impossibilidade de a lei ou ato normativo inconstitucional ser fundamento de uma decisão judicial imutável.
É notório que, atualmente, tanto na doutrina como na jurisprudência, há uma tendência crescente em se mitigar os limites da conceituação clássica do instituto da coisa julgada. Dessa forma, percebe-se que muitas vezes o julgador é chamado a se manifestar em situação nos quais a aplicação do código jurídico usual fornece decisões, a priori, inadequadas.
Questiona-se, desse modo, se devem ser consideradas intangíveis as decisões judiciais que apresentam conteúdo contrário à constituição? Se deve a coisa julgada inconstitucional ser relativizada? Quais os meios adequados para o seu controle da coisa julgada? Ou ainda, o que se pode dizer de uma decisão que põe fim a uma demanda, mas foi calcada em uma lei julgada posteriormente como inconstitucional?
Para muitos, a intangibilidade da res judicata encontra-se constitucionalizado no Direito Brasileiro – art. 5º XXXVI, da CF. Todavia, nem todos os intérpretes encontram a consagração da intangibilidade da coisa julgada.
Observaremos, no decorrer deste trabalho, que a doutrina já sinaliza no sentido de que a res judicata deve ser compreendida em um sentido relativo, devendo sucumbir diante de valores, princípios e regras constitucionais.
O presente trabalho divide-se em quatro capítulos: no capítulo 01 trataremos do instituto da coisa julgada, discorrendo sobre o seu conceito e limites; no capítulo 02 dissertaremos sobre a sentença julgada inconstitucional, indagando se a sentença incompatível com a constituição seria nula ou inexistente; o capítulo 03 discutiremos sobre a possibilidade da relativização da coisa julgada inconstitucional e o princípio da segurança jurídica; e por fim, analisaremos no capítulo 04 os instrumentos existentes em nosso sistema processual positivo aptos ao ataque à res judicata inconstitucional, ou seja, a ação rescisória, a ação declaratória e os embargos a execução.
1. COISA JULGADA
1.2 CONCEITO
Preliminarmente, pode-se conceituar a coisa julgada como o faz a o art. 467 do CPC que a denomina como a “a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.”
Nesse sentido, a Lei de Introdução ao Código Civil, em seu art. 6º, parágrafo 3º, a define onde se lê que “chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba mais recurso.” Porém, esse conceito não parece ser completo, uma vez que a coisa julgada não é somente a decisão em si, mas uma qualidade sua.
Várias teorias foram formuladas na tentativa de definir o instituto em exame, o que gera, até os dias atuais, grandes discussões entre os doutrinadores. Dentre essas teorias destacam-se a teoria da presunção da verdade, a qual defendia que, por ser o alcance da verdade no processo algo inatingível, a coisa julgada seria o que mais se aproxima da verdade. Já a teoria da ficção da verdade, desenvolvida por Savigny, leva em consideração o conflito entre segurança jurídica e certeza. Segundo esta teoria, a insegurança é mais maléfica à sociedade do que a incerteza, o que justifica a coisa julgada atribuir força legal a uma determinada situação que poderia ser justa ou injusta e até mesmo sem equidade[2].
Doutrinariamente, a conceituação da coisa julgada, dentre diversas teorias, girou em torno de duas, a primeira liderada por Chiovenda e a segunda por Liebman.
Chiovenda entende que res judicata é o efeito da sentença que a completa, corresponderia à eficácia da sentença que acolhe ou rejeita o pedido, ou seja, para este ilustre mestre, a coisa julgada decorreria dos efeitos da sentença[3].
Na doutrina brasileira, posição semelhante foi tomada por Celso Neves, para quem a coisa julgada seria:
“O efeito da sentença definitiva sobre o mérito da causa que, pondo termo final à controvérsia, faz imutável e vinculativo, para as partes e para os órgãos jurisdicionais, o conteúdo declaratório da decisão judicial”[4].
A segunda corrente, defendida por Liebman, adotou um conceito mais moderno ao considerar que a coisa julgada é uma qualidade inerente a todos os efeitos da sentença, não só o elemento declaratório, mas também os elementos constitutivos e condenatórios, sendo este o conceito aceito pela maior parte da doutrina. Liebman define coisa julgada como:
“A imutabilidade do comando emergente de sua sentença. Não se identifica ela simplesmente com a definitividade e intangibilidade do ato que pronuncia o comando; é, pelo contrário, uma qualidade, mais intensa e mais profunda, que reveste o ato também em seu conteúdo e torna assim imutáveis, além do ato em sua existência formal, os efeitos, quaisquer que sejam do próprio ato”[5]
Humberto Theodoro Júnior também defende que a coisa julgada não é um efeito da sentença e sim uma qualidade dela representada pela imutabilidade de seu julgado e de seus efeitos[6].
Alexandre Câmara entende que a coisa julgada é a imutabilidade da sentença (coisa julgada formal) e a imutabilidade de seu conteúdo (coisa julgada material) não cabendo dessa forma qualquer recurso. Segundo ele, a coisa julgada formal teria alcance limitado ao processo em que foi proferida a sentença, impedindo dessa forma que nova discussão naquele mesmo feito, e que a coisa julgada material teria alcance no conteúdo da sentença, extrapolando dessa forma o processo em que foi prolatada a decisão, tornando a decisão indiscutível e imutável em qualquer outro processo[7].
Prado assevera que “a coisa julgada não é efeito da sentença, e sim, uma qualidade que a torna imutável”[8]. Explica que:
“Ela pode ser “formal”, que é a imutabilidade da sentença dentro do processo em que se deu, ou “material”, que é a decisão que, enfrentando a questão de mérito, não é passível de ser impugnada por mais nenhum recurso ou o prazo para o aforamento de recursos se expira[9]”.
Dessa forma, pode-se afirmar que a coisa julgada é uma situação jurídica consistente na imutabilidade e indiscutibilidade da sentença (coisa julgada formal) e de seu conteúdo (coisa julgada substancial), quando tal provimento jurisdicional não está sujeito a qualquer recurso[10].
1.3 COISA JULGADA FORMAL
È uníssono entre os doutrinadores que a coisa julgada formal é a imutabilidade da sentença como ato jurídico processual. Dessa forma, pode-se dizer que ocorre a coisa julgada formal “quando estiverem esgotados todos os recursos previstos na lei processual, ou porque foram todos utilizados e decididos, ou porque decorreu o prazo de sua interposição”.[11] Conseqüentemente, tem-se “a imutabilidade da decisão dentro do mesmo processo por falta de meios de impugnação possíveis, recursos ordinários ou extraordinários”.[12]
“A coisa julgada formal, ou preclusão máxima, dá à sentença imutabilidade como ato processual de encerramento da relação processual”.[13] Tornando imutável a decisão, como ato processual, a coisa julgada formal é condição prévia da coisa julgada material, que é a mesma imutabilidade em relação ao conteúdo do julgamento e “mormente aos seus efeitos”[14].
A coisa julgada formal é o primeiro dos dois momentos do instituto da coisa julgada e opera no interior do processo, entre o juiz e as partes, mas não impede que o objeto discutido no julgamento volte a ser novamente discutido em outro processo.
Pode-se dizer que a coisa julgada formal significa: ” Diz-se da decisão em cujo processo não mais pode ser impugnada, seja porque precluíram os prazos recursais, seja porque se esgotaram todos os recursos previstos na lei”[15]. Como bem explica Vitagliano, “trata-se da impossibilidade de reformar a sentença por vias recursais, seja porque a última instância proferiu sua decisão, ou seja, por haver transcorrido o prazo para interpor recurso, ou finalmente porque se desistiu do recurso ou a ele se renunciou”[16].
Segundo Alexandre Câmara, “A coisa julgada formal, porém, só é capaz de pôr termo ao processo, impedindo que se reabra a discussão acerca do objeto do processo no mesmo feito. A mera existência da coisa julgada formal é incapaz de impedir que tal discussão ressurja em outro processo”[17].”
Cândido Rangel Dinamarco afirma que toda sentença nasce para extinguir um processo e portanto todas elas sãos aptas a receberem a coisa julgada formal. Assim, na coisa julgada formal o processo se extingue e nenhum recurso é mais cabível, por força da decisão judicial proferida naquele processo [18].
Já Frederico Marques entende que: “A sentença se torna imutável na relação processual (ocorrendo assim a coisa julgada formal) quando inadmissível qualquer recurso para reexame da decisão nela contida”[19].
Pode-se dizer, então, que a coisa julgada formal é ao mesmo tempo o resultado da inadmissibilidade de qualquer recurso e o fator impeditivo da substituição da sentença por outra.
Formada a coisa julgada formal, a sentença adquire a imutabilidade como ato processual. Isto significa “que o mesmo Juiz que prolatou a sentença não a pode mais modificar, visto que ela adquiriu os contornos de ato processual imutável, inimpugnável, incontestável, portanto, definido”[20].
Conforme está disposto no artigo 474 do Código de Processo Civil, afirma Vitagliano que com o surgimento da coisa julgada formal, “todas as questões que constituem o cerne do litígio, não só as que foram efetivamente deduzidas, como as que poderiam ter sido alegadas mas não o foram, não podem mais ser objeto de argüição e de apreciação.”[21]
“Art. 474: Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido.”
Acrescenta, ainda, o autor que, “com as questões não argüidas, embora pudessem tê-lo sido,” realiza-se “o fenômeno da preclusão, ou seja, a perda de um direito ou faculdade processual de alegar novamente aquelas questões.”[22]
Finalmente, pode-se dizer que com a coisa julgada formal,
“o Juiz cumpre e acaba o ofício jurisdicional ou, em outras palavras, o Estado entrega ao particular a prestação jurisdicional que foi invocada, resultando, daí, que o litígio resta definitivamente composto, com a aplicação da vontade da Lei ao caso concreto”.[23]
1.4 COISA JULGADA MATERIAL
A coisa julgada material consiste na imutabilidade e indiscutibilidade do conteúdo (declaratório, constitutivo, condenatório) da sentença de mérito, e produz efeitos para fora do processo. Formada esta, não poderá a mesma matéria ser novamente discutida, em nenhum outro processo [24].
Dessa forma, se ingressarem com novo processo no judiciário cujo objeto já tenha sido discutido e apreciado por sentença definitiva e já tenha adquirido o status de coisa julgada material, deverá este novo feito ser extinto, sem resolução do mérito, em razão da existência da coisa julgada material (art. 267, V, CPC).
Segundo ensina Vitagliano,
“Na coisa julgada material concentra-se a autoridade da coisa julgada, ou seja, o mais alto grau de imutabilidade a reforçar a eficácia da sentença que decidiu sobre o mérito ou sobre a ação, a fim de que se impeça, futuramente, qualquer indagação sobre a justiça ou injustiça de seu pronunciamento”.[25]
Para a corrente dominante, a coisa julgada material só se forma nos julgamentos de mérito e consiste na imutabilidade não mais da sentença, mas de seus efeitos [26]. Essa imutabilidade projeta-se para fora do processo e impede que a pretensão seja novamente posta em juízo, pelas mesmas partes, com os mesmos fundamentos, no mesmo ou em outro juiz ou tribunal.
O juiz ao julgar uma pretensão, poderá conceder ou não a tutela pretendida, a sentença, transcorrido o prazo e recursos cabíveis, torna-se definitiva, resolvendo em caráter imutável e indiscutível a relação de direito material.
A segurança jurídica que advém da coisa julgada vem da constituição Federal no capítulo dos direitos e garantias individuais. Em seu art. 5º, inciso XXXVI, que dispõe que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
O significado literal de coisa julgada “é a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.”[27]
A sentença transita em julgado, após exauridos e resolvidos os recursos manifestados contra a sentença, ou não sendo manifestado nenhum[28]. O que faz Surgir, conseqüentemente , dois fenômenos simultâneos:
“O primeiro é o advento da coisa julgada formal, isto é, a sentença, como ato processual torna-se imutável dentro da relação processual. Este fenômeno só se faz presente dentro do processo. O segundo fenômeno é a formação da coisa julgada material ou substancial. Esta que tem como pressuposto lógico a coisa julgada formal, caracteriza-se pela imutabilidade dos efeitos declaratórios, condenatórios ou constitutivos da sentença de mérito, chamados “principais”, como imutáveis também se mostram os efeitos secundários da sentença. Tais efeitos – principais e secundários – adquirem uma qualidade, que é a sua imutabilidade. Fala-se, assim, em “autoridade da coisa julgada”.”[29]
Estes efeitos, ao se tornarem imutáveis, extrapolam a relação processual, irradiam-se para fora do processo de forma a impedir que outros Juizes ou Tribunais possam reapreciar aquele mesmo litígio[30]. Assim “o comando que emerge da sentença de mérito transitada em julgado faz lei entre as partes, isto é, obriga o réu vencido a cumprir o decisório, bem como dá, ao vencedor, a faculdade de fazer valer o direito reconhecido na sentença.”[31]
Em explanação sucinta, Alexandre Freitas Câmara conclui que:
“A coisa julgada material tem como efeito impedir qualquer nova apreciação da questão já resolvida e não, como já se chegou a afirmar, obrigar os juízes a decidir sempre no mesmo sentido da decisão transitada em julgado.”[32]
Por fim, pode-s afirmar que todos os efeitos da sentença, seja eles principais ou secundários, tornam-se imutáveis fazendo lei entre as partes. Entendimento este que pode ser verificado nos artigos 467 e 468 do atual Código de Processo Civil:
“Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.
Art. 468. A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas.”
1.5 LIMITES DA COISA JULGADA
A coisa julgada evita que sejam debatidos aspectos já decididos em sentença que já transitou em julgado. Mas essa asseveração não é absoluta. È necessário verificar o que pode e o que não pode ser mais debatido e quais sujeitos não podem mais rediscutir aquilo que foi objeto de sentença anterior transitada em julgado. Ou seja, verificar quais são os limites objetivos e subjetivos da coisa julgada.
1.5.1 Limites Objetivos
Importante enfatizar que a coisa julgada “possui limites que estão fixados no dispositivo da sentença. Esses limites podem ser de ordem objetiva e subjetiva.”[33] Assim, segundo Prado, “Limites objetivos da coisa julgada referem-se à abrangência que o decisum teve em relação às questões decididas pelo prolator, decididas na motivação ou mesmo na fundamentação, desde que haja prolação de teor decisório”[34].
O Código de Processo civil inicia a regulamentação da matéria pelo art. 468, segundo o qual “a sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas”. Como se sabe, no sistema do CPC, a sentença faz coisa julgada nos limites do objeto do processo, o que significa dizer, nos limites do pedido.[35]
Verifica-se, desta forma, que o art. 468 do CPC leva à conclusão (e não poderia ser de outra forma) que apenas aquilo que foi deduzido no processo e, por conseguinte, objeto de cognição judicial, é alcançado pela autoridade de coisa julgada.[36]
Já o art. 469 e 470 do CPC completa, no sentido que os motivos e a fundamentação da sentença, não fazem coisa julgada, por mais relevantes e indispensáveis que sejam para determinar o alcance da parte dispositiva. Apenas ajudam no esclarecimento da decisão e no alcance desta, mas não a mudam. Podem ser levantados e decididos em outro processo, sem que a coisa julgada obtida em processo anterior os impeça.
Marcia Pelissari ao responder o questionamento: Quais os limites objetivos da coisa julgada? Aduz de forma esclarecedora que
“Os limites objetivos da coisa julgada referem-se àquilo que: a) tenha sido pedido pelos autos; b) tenha sido decido pela sentença. Em consonância com o art. 468 do CPC, a qualidade de coisa julgada é feita nos limites da lide e das questões decididas. E os limites da lide são traçados pelo pedido inicial (128 e 460 do CPC). Destarte, os limites objetivos da coisa julgada são extraídos da conjugação entre o pedido e o que constou no dispositivo. Não faz coisa julgado aquilo que tenha sido pedido, mas não tenha sido julgado (sentença citra petita) ou aquilo que tenha sido decidido pela sentença sem que tenha sido pedido pelo autor (sentença ultra ou extra petita).”[37]
1.5.2 Limites subjetivos
Da mesma forma que a coisa julgada possui limites objetivos, ela também possui limites subjetivos. Estabelece o art. 472 do CPC que : “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros”. Dessa forma, a lei estabelece quais são as pessoas atingidas pela coisa julgada, segundo o artigo supracitado a coisa julgada só alcança as partes, não beneficiando nem prejudicando terceiros, ou seja, terceiros não são alcançados pela imutabilidade e indiscutibilidade da sentença.[38]
A res judicata não pode beneficiar nem prejudicar terceiros estranhos ao processo. o principal fundamento é o de que o terceiro não teve direito ao contraditório[39], logo, não pode ser prejudicado pela imutabilidade e intangibilidade da coisa julgada.
Assevera Prado que: “os limites de ordem subjetiva se dão somente quanto às partes que integraram a relação jurídica processual.”[40] Segundo o autor, esse é o entendimento de Dinamarco[41] ao enfatizar que os limites subjetivos da coisa julgada se dão no processo, pois este é o resultado da soma de “uma relação jurídica processual e de um procedimento”.
Para Prado “a coisa julgada pode repercutir na esfera de índole material de terceiros que não fizeram parte desta relação jurídica”. Adota como, como exemplo, “os credores das partes, como avalizados, como afiançados, como co-avalistas, terceiros com iguais direitos, mesmos pedidos e mesmos fundamentos.”[42]
Nesse sentido, compatível é o pensamento de Lima ao dizer que a expressão “Limite Subjetivo da Coisa Julgada” significa que somente aqueles que são
“atingidos pela coisa julgada, aí incluído o estudo da possibilidade de a sentença produzir efeitos num universo de indivíduos maior do que o daquele atingidos pelas demais eficácias da sentença, ou seja, limite subjetivo da coisa julgada é a definição das pessoas que se submetem à imutabilidade do comando inserido na sentença, bem assim das pessoas que sofrem qualquer laivo de eficácia decorrente da decisão.”[43]
Reforça, ainda, esse entendimento as situações excepcionais, em que “pode haver a extensão da coisa julgada a quem não integrou a relação jurídica processual, devido à posição especial ocupada no plano das relações de direito material e de sua natureza”[44].
Dentre esses casos, Prado destaca:
“a situação dos sucessores das partes, que estão sujeitos à coisa julgada pelo fato de receberem direito e ações no estado de coisa julgada; o do substituído, no caso de substituição processual, em que o substituto é a parte, mas o direto material é do substituído, o qual tem sua relação jurídica decidida com força de coisa julgada; o dos legitimados concorrentes para demandar, no caso dos credores solidários”.[45]
Defende essa concepção Azambuja, criticando: “Também, somente num esquema, ou forma privatista do processo e da coisa julgada, podemos aceitar o dogma romano de fazer a autoridade da coisa julgada meramente aos que participaram do feito”.[46]
Lima[47], ainda, aprofunda o seu entendimento no sentido de que haja a extensão dos limites objetivos da coisa julgada mesmo no processo individual, atingindo os limites subjetivos de forma indireta, pois outras pessoas seriam beneficiadas com as razões da sentença, caso as mesmas transitassem em julgado. Com isso ter-se-ia alcançados pela coisa julgada os motivos, a verdade dos fatos e a apreciação da questão prejudicial que estão excluídos pelo artigo 469, do CPC.
“Art. 469 – Não fazem coisa julgada: I – os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; II – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença; III – a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo.”
Por isso, Lima afirma que:
“Muito mais acertado seria o Direito Processual pátrio optar pela extensão dos efeitos da coisa julgada a todas as questões efetivamente decididas, desde que relativas a fatos jurídicos concretos e indissociáveis da conclusão última da sentença”.[48] Assim, ele iria se preocupar apenas com as questões que não tivessem sido objeto de apreciação no primeiro julgamento. Facilitaria, profundamente a tarefa do judiciário e com isso contribuiria para que os efeitos da sentença se estendessem a outro ou outras pessoas que ingressassem no judiciário com base nos mesmos fundamentos ou causa de pedir, uma vez que esta já estaria reconhecida de forma incontroversa.”
Dúvida não há que a ampliação dos limites objetivos da coisa julgada, proposta por Lima, iria contribuir favoravelmente em favor de terceiros que não participaram da relação jurídica processual originária.
2. SENTENÇA JULGADA INCONSTITUCIONAL
2.1 CONCEITO DE INCONSTITUCIONALIDADE
Antes de adentrarmos na sentença inconstitucional, julgamos necessário apresentar uma noção sobre o que é a inconstitucionalidade.
Celso Ribeiro Bastos ensina que “a inconstitucionalidade não reside exclusivamente na Constituição nem no ato ou comportamento com ela confrontados. Na verdade, a inconstitucionalidade repousa na relação de contrariedade normativa entre uma e outra”[49].
Marcelo Caetano doutrina que “a inconstitucionalidade é, pois, o vício das leis que provenham de órgãos que a Constituição não considere competente, ou que não tenham sido elaboradas de acordo com o processo prescrito na Constituição ou contenham normas opostas às constitucionalmente consagradas”.[50]
Marcelo Neves define o que vem a ser inconstitucional como “um ato normativo cujo conteúdo ou cuja forma contrapõe-se, expressa ou implicitamente, ao conteúdo de dispositivos da Constituição”[51]. È, portanto, a lei ou ato, numa relação imediata de incompatibilidade vertical com a normas constitucionais. Aponta,mais adiante, o citado autor:
“Na acepção lógica dos termos, o problema não se reduz aos casos das leis em relação de contrariedade ou de contradição com a Constituição. Estas duas hipóteses correspondem apenas à inconstitucionalidade material, que implica contrariedade ou contradição, aplicando-se, como Bobbio, estes conceitos da lógica clássica às antinomias entre normas jurídicas. A inconstitucionalidade formal não resulta de contradição ou contrariedade, no sentido lógico dos termos, entre lei e Constituição. A incompatibilidade normativa, nesta hipótese, decorre da inadequação ou desconformidade do procedimento efetivo de elaboração legislativa (plano do ser) ao conteúdo de norma constitucional prescritiva do processo legislativo (plano do dever ser). Daí porque a definição de lei inconstitucional deve denotar não só a incompatibilidade resultante de contradição e contrariedade entre conteúdos normativos (legal e constitucional), mas também a proveniente da desconformidade entre procedimento de produção normativa e conteúdo normativo (contitucional).”[52]
Em tais considerações, o referido autor quer dizer o que pode ser conceituado como desconformidade do ato normativo em relação a algum preceito ou princípio previsto na Constituição Federal.
Quanto aos tipos, as inconstitucionalidades são classificadas em:
a) Formal e orgânica – é aquela que decorre de vício de incompetência do órgão autor do ato normativo, e consiste em uma das hipóteses de inconstitucionalidade formal. Uma lei ou ato é, portanto, considerada formalmente inconstitucional quando é elaborada por um órgão incompetente para tal, ou, mesmo sendo competente, quando adote medidas que estejam em desacordo, ou seja, firam o que esteja previsto na Constituição. Implica dize que a inconstitucionalidade pode resultar de vício de elaboração ou de incompetência.
b) material – é aquela que se reporta ao conteúdo do ator normativo, ou seja, consiste em verificar se ele é compatível com o que se contém na Carta Magna. Caso haja discordância quanto ao seu conteúdo, significa que o ato normativo será considerado materialmente inconstitucional.
Havendo, portanto, contradição entre o conteúdo da norma e o conteúdo Constitucional, poderá ser declara a inconstitucionalidade material. Também, poderá ocorrer inconstitucionalidade material nos casos em que a norma, embora disciplinando matéria deixada pelo constituinte à liberdade de conformação do legislador tenha sido editada não para realizar os concretos fins constitucionais, mas sim para perseguir outros, diferente ou mesmo de sinal contrário àqueles, ou caso sua edição tenha ocorrido com o desígnio de realizar finalidades apontadas na Constituição Federal, mas ofende a norma constitucional por tê-lo feito de modo inapropriado, desnecessário, desproporcional ou, sem suma, de modo não – razoável.
Assim, a sentença, como ato normativo, é inconstitucional quando pressupõe, vincula ou gera uma afronta e/ou incompatibilidade com a Constituição.
2.2 LIMITES DA SENTENÇA
Dispõe o art. 468 do Código de Processo Civil que “a sentença que julgar total ou parcialmente a lide tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas”.
Vitagliano ensina que nem tudo na sentença se torna imutável, o que faz coisa julgada material é o dispositivo da sentença, a sua conclusão. Pode-se dizer que a coisa julgada se restringe à parte dispositiva da sentença; a essa expressão, todavia, deve dar-se um sentido substancial e não formalista, de modo que abranja não somente a parte final da sentença, mas também qualquer outro ponto em que tenha o juiz eventualmente provido sobre os pedidos das partes[53].
Dessa forma, os limites de atuação são os limites da sentença no mundo real após prolatada e passar a produzir seus efeitos, limitando-se ao caso sub judice. O juiz não pode extravasar os limites do objeto mediato do pedido. Por isso, diz-se que o julgamento é extra petita quando o juiz julga pedido diverso do que foi formulado. Ultra petita quando o juiz julga a mais, além do que foi pedido. Citra petita quando o juiz julga aquém do que foi pedido.
O pedido estabelece seus limites pelo: objeto imediato, a providência judicial (sentença pedida); e, objeto mediato, o bem jurídico pretendido[54].
2.3 SENTENÇA INCONSTITUCIONAL TRANSITADA EM JULGADO
Quando uma sentença é prolatada ela deve respeitar in totum as normas consagradas pelo texto constitucional. Na hipótese em que há o desrespeito à Constituição é que surge a noção de sentença inconstitucional, a qual “é aquela cujo comando pressupõe, veicula ou gera uma afronta à Constituição. ‘Inconstitucionalidade’ assume aqui o sentido amplo de situação inconciliável entre um ato e normas (regras ou princípios) constitucionais”.[55]
Destarte, a sentença que contraria a Lei Fundamental de um Estado Democrático de Direito é inconstitucional. E, “o que é inconstitucional não pode valer. O que não vale – não tem valor – não pode subsistir.”[56]. Na lição de Cármen Lúcia Antunes Rocha “Isto, que é lição pacífica para que se faça o controle dos atos dos poderes legislativo e executivo, começa, somente agora, a tomar forma clara também para os atos judiciais, incluídos os terminativos dos processos (sentenças e acórdãos).”[57] .Mais adiante, assevera:
“Sentença (ou acórdão) é ato estatal. Logo, o ato judicial terminativo, ou não, da ação há que se ater aos fundamentos e aos limites constitucionalmente definidos. A obrigação judicial de ater-se aos comandos constitucionais não pode ser excepcionada sob qualquer argumento, incluído o tão comumente apresentado como é o da soberania dos atos do juiz, menos, ainda por um pensar judicante que depois se demonstra não ser coerente, compatível, adequado constitucionalmente”.
Soberania não está na caneta do juiz, mas na tinta constitucional com que ela se aperfeiçoa e que a dota de força de poder estatal aderente e obrigante.
É certo que a sentença prolatada judicialmente, pondo fim à ação, impõe-se superiormente a outros questionamentos e respostas submetidos à apreciação, incluídos alguns feitos pelo próprio Estado. Nem por isso se tem uma “supraconstitucionalidade” ou “aconstitucionalidade” autorizada juridicamente ao juiz.
Ato inconstitucional diz-se nulo, na celebrada lição que vem desde Marshall[58]. Para tanto, verifica-se que a sentença é tida por inconstitucional quando seu comando provoca uma violação a preceitos estabelecidos pela Constituição Federal.
A sentença pode ser inconstitucional por violar as regras processuais relativas ao ato processual, ou seja, por violar a constituição em seu aspecto formal no desrespeito ao processo de elaboração e na falta de competência para julgamento do processo.
A inconstitucionalidade da sentença pode ser verificada também quando se verificar que a sua fundamentação baseia-se em lei inconstitucional ou contrária aos princípios constitucionais. Assim, esse tipo de inconstitucionalidade pode ocorrer em diversas hipóteses. Eduardo Talamini ressalta-as, in verbis:
“(a) A sentença amparada na aplicação de norma inconstitucional.
[…] Pode ocorrer de a sentença se basear em : (i) uma norma que já foi antes declarada inconstitucional em sede de controle concentrado (ou que já foi “suspensa” pelo Senado Federal, depois de reconhecida incidentalmente sua inconstitucionalidade pelo Supremo); (ii) uma norma que, posteriormente, vem a ser declarada inconstitucional no controle concentrado (ou vem a ser posteriormente retirada do ordenamento pelo Senado); (iii) uma norma cuja inconstitucionalidade, embora existente, não é averiguada em controle direto – seja porque ele não cabe, seja porque nenhum dos legitimados pleiteou-o – e, portanto, não é declarada (e tampouco a norma é retirada do ordenamento pelo Senado).[…]
A aplicação da norma inconstitucional não precisa situar-se na própria sentença. Pode haver ocorrido antes, no curso do processo, e repercutir diretamente sobre a sentença. Ademais, pode tanto ser norma atinente ao direito material quanto ao processo. […]
Essa primeira hipótese de ‘sentença inconstitucional’ é a mais freqüentemente lembrada e estudada, porém não é a única.
(b) Sentença amparada em interpretação incompatível com a Constituição.
[…] não se ofende a Constituição apenas quando se aplica uma lei cujo teor literal é francamente inconstitucional. A violação constitucional pode também advir da adoção de uma interpretação incompatível com a Constituição, em detrimento de outra afinada com os desígnios constitucionais. Há que se buscar sempre a interpretação conforme à Constituição.
(c) Sentença amparada na indevida afirmação de inconstitucionalidade de uma norma.
[…] pode estar havendo com a não-aplicação da norma indevidamente reputada inconstitucional a afronta direta a outros valores e normas constitucionais, e não a simples ofensa reflexa à legalidade (p. ex., no caso em que a norma que se deixa de aplicar prestava-se a dar eficácia a algum direito ou garantia constitucional, de modo que sua indevida não aplicação cria uma espécie de ‘inconstitucionalidade por omissão’ in concreto).
(d) Sentença amparada na violação direta de normas constitucionais ou cujo dispositivo viola diretamente normas constitucionais.
(e) Sentença que, embora sem incidir em qualquer das hipóteses anteriores, estabelece ou declara uma situação diretamente incompatível com os valores fundamentais da ordem constitucional.”[59]
Exemplificando, ainda mais, os casos em que uma sentença contrarie comando constitucional, José Augusto Delgado também cita diversas situações, entre elas, destaca: a sentença ofensiva à soberania estatal; violadora dos princípios guardadores da dignidade humana; que autorize alguém a assumir cargo público descumprindo os princípios fixados na Constituição e nas leis específicas; que ofenda, nas relações jurídicas de direito administrativo, os princípios da legalidade, da moralidade, da eficiência, da impessoalidade e da publicidade, dentre outros muitos casos em que há violação as normas constitucionais.[60]
Percebe-se, portanto, que todas essas hipóteses geram um vício de extrema gravidade, as quais levam hodiernamente diversos doutrinadores a repensarem a necessidade de relativização da coisa julgada inconstitucional.
2.2.3 Sentença inconstitucional: nula ou inexistente?
Segundo grande parte da doutrina a sentença que viole a Constituição Federal ou, até mesmo seus princípios implícitos, é nula. Isto porque a sentença existe, uma vez que reúne requisitos mínimos que a identifique como tal.
Poder-se-ia dizer que uma sentença é inexistente, por exemplo, se prolatada por uma pessoa que não fosse juiz. Com arrimo neste entendimento, colhe-se a lição de Theodoro Júnior[61]:
“Uma decisão judicial que viole a Constituição, ao contrário do que sustentam alguns, não é inexistente. Não há na hipótese de inconstitucionalidade mera aparência de ato. […] Mas, contrapondo-se a exigência absoluta da ordem constitucional, falta-lhe condição para valer, isto é, falta-lhe aptidão ou idoneidade para gerar os efeitos para os quais foi praticado.”
Assim, embora existente, a exemplo do que se dá com a lei inconstitucional, o ato judicial é nulo, estando sujeito em regra geral, aos princípios aplicáveis a quaisquer outros atos jurídicos inconstitucionais.
Para concluir, faz-se mister socorrer-se à sempre terça lição de Pontes de Miranda, citado por Cândido Dinamarco, que discorre sobre as hipóteses em que a sentença é nula de pleno direito, arrolando três impossibilidades que conduzem a isso: impossibilidade cognoscitiva, lógica ou jurídica[62]. Assim, a impossibilidade jurídica de uma decisão inconstitucional, conduz, fatalmente, à afirmação de que a sentença é nula, e não inexistente.
3 RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL
3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Primeiramente, cumpre destacar a distinção feita pela doutrina entre coisa julgada ilegal e coisa julgada inconstitucional. Esta é aquela que viola a própria Constituição Federal, enquanto que aquela apenas contraria a lei ordinária.
No tocante à coisa julgada ilegal, ou seja, decisão que viola dispositivo infraconstitucional, o entendimento da doutrina é de que ela deve permanecer imodificável e intangível, tendo em vista que a natureza da proteção da res iudicata é infraconstitucional, assim como a do dispositivo violado. Vale então transcrever a lição de Paulo Otero:
“A segurança e a certeza jurídicas apenas são passíveis de salvaguardar ou validar efeitos de atos desconformes com a Constituição quando o próprio texto constitucional expressamente o admite. […] Fora de tais situações, repete-se, os valores da segurança e da certeza não possuem força constitucional autônoma para fundamentarem a validade geral de efeitos de atos inconstitucionais.”
E conforme assinalado na doutrina de Theodoro Júnior[63], a coisa julgada não pode suplantar a lei, em tema de inconstitucionalidade, sob pena de transformá-la em um instituto mais elevado e importante que a lei e a própria Constituição. Se a lei não é imune, qualquer que seja o tempo decorrido desde a sua entrada em vigor, aos efeitos negativos da inconstitucionalidade, porque o seria a coisa julgada? E questão de lógica jurídica[64].
“Estudos sobre o direito antigo confirmam, revelada, por exemplo, nas origens do direito norueguês, em que era completamente ignorado o princípio da coisa julgada. A sentença era executória, mas sempre aberto o debate sobre a sua exatidão, com base em novas provas, ou sem elas.”
No magistério de Dinamarco[65], a sentença abusiva não é sentença.
“A coisa julgada não é em si mesma um efeito e não tem dimensão própria, mas a dimensão dos efeitos substanciais da sentença sobre a qual incida […] Por isso, como a CF não permite que um Estado se retire da Federação, ou que se imponha por execução forçada o cumprimento da obrigação de dar um peso da própria carne, etc., da inexistência desses efeitos juridicamente impossíveis decorre logicamente a inexistência da coisa julgada material sobre a sentença que pretenda impô-los”, Assim, tem-se que apenas a coisa julgada inconstitucional deve ser desconstituída, merecendo reparo a assertiva de Ovidio A. Baptista da Silva, ao criticar a relativização da coisa julgada ilegal, fato este que nunca foi defendido por nós e nem pelos demais doutrinadores e defensores desta tese”.[66]
Prosseguindo, e de acordo com os argumentos já expendidos, a coisa julgada foi criada para trazer, principalmente, segurança jurídica à sociedade. No entanto, a partir do momento em que se torna possível a convalidação no tempo de uma decisão inconstitucional, tem-se que, aí sim, surgirão insegurança e incerteza entre nós.
O juiz deve ser ativo, não passivo. Não queremos, com isto, ferir o princípio dispositivo, mas apenas que o juiz seja mais dinâmico, atento aos fatos e às mudanças sociais, ou seja, que o direito deve evoluir juntamente com as necessidades da sociedade. Não é preciso lembrar, ainda, que pelo princípio inquisitivo, o juiz é livre para determinar as provas necessárias à busca da verdade real.
Do contrário, caso o magistrado insista em apegar-se a formalidades, não se tornará possível a pacificação social com a distribuição de justiça, que vem a ser a principal função do Estado como o detentor da jurisdição.
“Ao juiz cabe o papel de árbitro do equilíbrio das tensões sociais, que no processo se manifestam. Mais do que dar soluções a pretensões, aos conflitos em si mesmos, ele precisa estar atento à relação global entre as pessoas e pronto a restabelecer o equilíbrio afetado […]. Entra aqui, outra vez, o que tem sido dito sobre a participação do juiz na revelação do direito do caso concreto. Ser sujeito à lei não significa ser preso ao rigor das palavras que os textos contém, mas ao espírito do direito do seu tempo. Se o texto aparenta apontar para uma solução que não satisfaça ao seu sentimento de justiça, isso significa que provavelmente as palavras do texto ou foram mal empregadas pelo legislador, ou o próprio texto, segundo a mens legislatores, discrepa dos valores aceitos pela nação no seu tempo presente. Na medida em que o próprio ordenamento jurídico lhe ofereça meios para uma interpretação sistemática satisfatória perante o seu senso de justiça, ao afastar-se das aparências verbais do texto e atender aos valores subjacentes à lei, ele estará fazendo cumprir o direito.
Foi dito que, em paralelismo com o bem-comum como síntese dos fins do Estado contemporâneo, figura o valor justiça como objetivo-síntese da jurisdição no plano social. A eliminação de litígios sem o critério de justiça equivaleria a uma sucessão de brutalidades arbitrárias que, em vez de apagar os estados anímicos de insatisfação, acabaria por acumular decepções definitivas no seio da sociedade“[67].
Todavia, com entendimento um pouco diferente do expendido até então, e com uma visão mais formal, Celso Neves entende que “permitir que, pelo mero decurso do tempo, uma sentença rigorosamente válida passe a ser nula, e uma sentença visceralmente nula se convalide significa contrariar a finalidade da coisa julgada que significa obrigar todos os juízes à obediência ao ato jurisdicional, vinculativo não só das partes, como também do próprio poder público”[68]. E lembra ainda que “são requisitos de formação da coisa julgada, portanto: a) o exercício de jurisdição contenciosa; b) a validade da sentença, como ato jurídico processual”[69].
Ainda, para aqueles que entendem que a flexibilização da res iudicata é uma verdadeira afronta ao princípio da segurança jurídica, nos socorremos aos ensinamentos de Teresa Wambier e José Medina[70], em obra de autoria de ambos com o sugestivo nome o dogma da coisa julgada.
“Veja-se, portanto, que optar pelo cabimento de ação rescisória ou declaratória de inexistência, em todos estes casos, não é desprezar o valor da segurança! Quem fica com a possibilidade de impugnar tais decisões opta não só pelo valor justiça, mas pelos valores justiça e segurança, num sentido um pouco diverso do tradicional. Segurança, com os olhos voltados para o futuro, segurança no sentido de previsibilidade. E só parcialmente verdadeiro dizer-se que quem opta pela imutabilidade ou pela possibilidade de se impugnarem decisões em leis tidas (incidenter tantum, reiteradamente) por inconstitucionais estaria optando pelo valor segurança. Que segurança é essa? Segurança da subsistência do que já há, do que já existe, do que já é conhecido, ainda que não se trate do melhor? Segurança com os olhos voltados só para o passado?
A segurança pela qual optamos, que não é a segurança por si mesma, mas a segurança de se ter conseguido o melhor, portanto segurança com conteúdo“[71].
Entretanto, Araken de Assis[72], apesar de ver com bons olhos a revolucionária mudança do CPC, entende que “parece pouco provável que as vantagens da justiça do caso concreto se sobreponham às desvantagens da insegurança geral”. Porém, acredita-se que a referida mudança veio em boa hora e, desde que aplicada com muita cautela, a verdadeira segurança jurídica só tem a ganhar.
Portanto, a necessidade de se relativizar a coisa julgada material decorre de vários motivos, quais sejam: a) estamos numa época em que se busca justiça nas decisões, e não é justo eternizar uma decisão inconstitucional com o argumento de preservação dos efeitos decorrentes da auctoritas rei judicatae; b) os atos dos poderes Executivo e Legislativo podem ser revistos e declarados inconstitucionais a qualquer tempo, logo, as decisões judiciais também; c) entende-se que uma sentença que vai contra a Constituição Federal e seus princípios não pode ser considerada uma sentença, assim, como a coisa julgada é uma qualidade da sentença, e não há uma sentença propriamente dita, nem efeitos susceptíveis de ficarem imunizados, pode-se dizer que uma decisão inconstitucional não está acobertada sob o manto da coisa julgada, e d) a absurda hipótese de admitir que a coisa julgada inconstitucional convalesça no tempo, seria o mesmo que dar a ela maior importância que a própria lei.
3.2 RELATIVIZAÇÃO E SEGURANÇA JURÍDICA
O conflito que se procura estabelecer entre segurança e justiça, na perspectiva lógica da aplicação do direito, é de mera aparência. É de fato, inadmissível a segurança servir de base para impedir a impugnação da coisa julgada, imutável, imodificável e absoluta, de acordo com o pensamento dos processualistas mais conservadores. Contudo, é fundamental que se enfrentem tais resistências, eliminando a idéia de superação do Estado de Direito pelo Poder Judiciário[73].
O Direito Constitucional abarca valores fundantes do Estado, tratando, assim, da organização político-administrativa dos Poderes circunscritos aos seus desígnios, com o intuito de viabilizar o equilíbrio social. A decisão como manifestação da vontade do ente federativo não deve demonstrar visão pessoal do seu prolator. De acordo com Delgado[74], em sua dimensão ética, o Estado “não protege a sentença judicial, mesmo transitada em julgado, que bate de frente com os princípios da moralidade e da legalidade, que espelhe única e exclusivamente vontade pessoal do julgador e que vá de encontro à realidade dos fatos”.
Nesse sentido, torna-se inviável ser invocada a segurança jurídica para acolher a tese de que a coisa julgada faz do preto o branco, ao se querer impingir-lhe o caráter de absolutividade de que não é revestida. Os princípios da moralidade, da justiça e da eqüidade devem ser realçados como apanágio de uma sociedade civilizada, de forma que sobressaia seu degrau de superioridade em confronto com os demais que povoam o universo jurídico.
Além disso, o acatamento da coisa julgada não é colocado em dúvida pela probabilidade de uma pretensão de nulidade contra o julgamento que viola preceito constitucional, notoriamente porque seu alcance sofre limitações no seu aspecto subjetivo, com a possibilidade de manuseio da rescisória, para desconstituição do julgado. Em segundo lugar, porque presente nesses casos, os pressupostos da relatividade inerentes à natureza das coisas. Evidentemente, a pretensa impermeabilidade que deseja se atribuir às decisões emanadas do Poder Judiciário não existe[75].
Tenta-se, então, travestir a coisa julgada da argamassa de intocabilidade[76], tentando revelar sua faceta de cunho absoluto, que não resiste a mais detida análise dentro do cenário da principiologia, lastreada no constitucionalismo. Diante da evidência dos fatos, toda iniciativa que objetive reverter essa situação não tem recebido a devida simpatia pelos contrários a qualquer esforço renovador, visando ao aperfeiçoamento da sistemática até então adotada. Apesar de tudo, a mudança há de se impor com a remoção dos óbices que impedem ou limitam seu avanço.
Silva salienta que o princípio da segurança, conformador da coisa julgada, não deve, em determinadas circunstâncias, se opor à idéia da justiça, pois a coisa julgada não é valor absoluto, e no confronto entre ela e a idéia de justiça, esta é que deve prevalecer. Entende-se, portanto, que não é necessário mais do que um passo no sentido de fazer subsistir a responsabilidade do Estado pelo exercício da função institucional, ainda que isso implique alguma restrição da amplitude do conceito da coisa julgada[77].
A Coisa Julgada não redunda necessariamente na consolidação da segurança jurídica, já que o mecanismo constitucional que a protege objetiva preservar a irretroatividade. A garantia assegura sua incolumidade, evitando, assim, que seja alcançada por lei superveniente, capaz de desfigurar o conteúdo decisório que lhe deu conformação.
Não é possível que a inconstitucionalidade que contamina a coisa julgada povoe o ordenamento jurisdicional, dando-lhe o contorno de conteúdo pronto e acabado. Nada pode ser definitivo, se não por terem concorrido para sua construção elementos que, pela sua consistência, tenham sido concebidos conforme a eqüidade[78].
A regra emanada do Texto Maior proporciona, então, a conclusão singela do seu proveito no equacionamento dos problemas suscitados pela coisa julgada inconstitucional. Desnecessários outros dispositivos para regular todas as situações que possam surgir nesse campo. Essa percepção estritamente legalista de certa doutrina, que não se compraz com hermenêutica constitucional, postula a ampliação legislativa para regular procedimento, malgrado já se tenha para tanto a solução adequada com os instrumentos existentes.
Não existe pertinência entre as sentenças iníqua, injusta e inconstitucional, com a segurança jurídica, visto configurar coisas diametralmente opostas. A segurança jurídica pressupõe decisão conforme a constitucionalidade, encontrando no princípio da moralidade o pilar básico de sua sustentação. Fora disso, é a consolidação de absurdo, como pretexto para tornar definitiva uma situação que não resiste ao menor argumento ético e jurídico[79].
Lembra Alvim[80] que a doutrina tenta explicar o fenômeno da sentença transitada em julgado pelo aspecto político e jurídico, em razão do seu caráter de definitividade que não comporta qualquer modificação. Entretanto, o Estado permite às partes a modificação das sentenças erradas ou injustas, mediante os instrumentos processuais adequados. Mas essa procura de justiça “[…] deve ter um limite, além do qual não mais se permita discutir a justiça ou injustiça do julgamento operado através de sentença. Do contrário, não haveria estabilidade dos direitos e ninguém teria assegurado o gozo dos bens da vida”[81].
Uma vez em que a sentença possa ser vista pela ótica política ou jurídica, isso não quer dizer que ela se preste ao papel de consagradora de uma injustiça. A estabilidade social que se pretende obter a partir de uma solução definitiva, nessa condição, não resiste à menor análise. De fato, a busca da justiça não deve sofrer limitação de qualquer ordem, pois, se assim fosse, haveria de correr-se o risco de transformar a iniqüidade num manto de satisfação. Pretende-se com essa tese, fazer ver que a sentença, mesmo nula, deve prevalecer, a pretexto de que concorre para a segurança jurídica. Contudo, a sentença deve ser justa, conforme a eqüidade, dando a cada indivíduo o que merecido, segundo máxima romana.
Assim, a superação da justiça pela segurança jurídica não tem a menor acolhida entre os pensadores contemporâneos, em face da total impossibilidade de sua interação com o ambiente processualista constitucional. Tanto que Silva chega até a admitir que essa tese, embora ressaltando necessidade de um estudo mais aprofundado ao seu derredor, causa repugnância ao sentimento dos que estão comprometidos com o processo justo.
O tema Relatividade da Coisa Julgada merece tratamento aprofundado, que o espaço desta exposição não comporta, ou seja:
“Pode-se dizer que a coisa julgada é relativa na medida em que pode ser desfeita por ação rescisória nos casos previstos em lei. Mas a questão que tem sido posta não é essa, mas a questão do conflito que pode haver entre a segurança jurídica que a coisa julgada confere e o valor da justiça. Então, pergunta-se se a coisa julgada deve prevalecer, mesmo quando ela acoberta uma decisão profundamente injusta. Certamente que repugna ao sentimento jurídico ver a justiça suplantada pela segurança”[82].
Em outra passagem, Silva destaca, como proeminente, o valor justo: “As idéias de segurança, ordem e certeza formam os valores do direito positivo. Mas é o valor do justo que deve merecer a primazia, porque o direito, especialmente o direito constitucional, há de ser o meio de sua realização”[83]. A ordem e a certeza sempre serão valores instrumentais da efetivação da justiça na sua feição social. Sem essa idéia de justiça a segurança, a ordem e a certeza podem derivar para o arbítrio. “Onde a justiça reina, a convivência democrática estará salvaguardada” [84].
A segurança jurídica não se revela apenas pelo seu ângulo conceitual nem pode ser apreendida dentro de um contexto estritamente legal, pois ela transcende o ordenamento jurídico, na medida em que outros ingredientes concorrem para sua conformação. A própria realização do direito é assimilada como elemento fundante das necessidades humanas, por isso que sua estrutura formal exige o concurso de elementos fundamentais. Assim sendo, além da eficácia que perpassa todo o seu conteúdo, depende da certeza de cognoscibilidade e, sobretudo, de previsibilidade e do suporte jurídico como ponto determinante da certeza de validade dos seus efeitos no universo a que se circunscreve.
Têm-se atribuído à coisa julgada uma função de pacificação social, seu fundamento tem conotação de natureza política, visto que busca harmonizar certas situações jurídicas. Decorrente disso, sua imutabilidade diz respeito a uma necessidade circunstancial, não necessariamente de caráter legal.
A prescrição segundo a qual a lei não prejudicará o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada é matéria no plano do Direito Constitucional. Nesse caso, a coisa julgada vive e se agita no ângulo do direito processual. O enunciado, portanto, a vincula pelo aspecto estritamente de natureza temporal, impedindo sua retroação no âmbito legislativo.
Outro equívoco é pensar que a segurança jurídica pode ser alcançada sem que a sentença seja manifestamente justa. É absurda a idéia segundo a qual a revisão da coisa julgada possa implicar insegurança geral.
A segurança jurídica não decorre do ato do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário. Ao contrário, têm-se observado, com muita freqüência, que o processo decisório opera, muitas vezes, em detrimento dos interesses fundamentais da sociedade, pelo casuísmo e fraude que determinam sua formulação no campo da objetividade jurídica ou administrativa. Fato que induz ao sentimento de que essa produção estatal sempre há de ser olhada de modo crítico e com certa reserva.
Nesse caso, a segurança jurídica, como de resto determinadas regras processuais, surgem como elementos de oposição à plena realização do fenômeno jurídico. São tomadas em si mesmas, como um valor enclausurado no próprio corpo que lhe dá consistência, transformando-se num instrumento de imposição ao sacrificar o direito em sua homenagem. Em razão disso, usa-se a segurança como pretexto para negar o direito do cidadão, escamoteado por sentenças injustas, fraudulentas e inconstitucionais.
Se for certo afirmar que a decisão judicial abarca os fatos passados – exceção das relações jurídicas continuativas –, não menos verdadeira é a constatação de que segurança jurídica insere-se no contexto da irretroatividade, supondo-se que ela decorra de uma exigência legal. Por conseguinte, o que assegura a Constituição é que a lei não prejudicará a coisa julgada. Essa, entretanto, poderá ser objetivo de desconstituição através de outra decisão judicial, o que não afeta o comando constitucional referido.
“A segurança jurídica pode ser tomada por vários ângulos no tocante à sua formulação conceitual. Entretanto, a noção que basta a este estudo vincula-se aos valores fundamentais que conformam o Estado. Neste aspecto, sua função torna-se primordial, na medida em que busca estabelecer harmonia entre a sociedade e o Estado, através de vínculo de legitimidade política”[85].
Como se denota, a seguridade desponta como própria razão de ser do direito, tendo presente que este desempenha uma função de garantia daquela, a fim de instaurar uma relação de confiança entre os sujeitos da relação jurídica. Realiza-se nesse plano, quando se afirma como uma ordem certa, eficaz, identificando-se com a previsibilidade da norma jurídica (administrativa, legal, judicial).
Supondo-se que a segurança jurídica configura, no plano axiológico, um valor alto do sistema jurídico, não menos verdade é que ela não pode ser utilizada como uma garantia da insegurança.
Os valores morais, éticos, sociais são tão edificantes na construção do direito justo que sem eles a sociedade seria levada ao caos. Então, esta colaboração de outros instrumentos é válida na busca incessante da eficácia das regras de direito, pois o sistema carece dessa sinergia, como adverte Ramírez:
“A insegurança jurídica não pode sobrepor-se ao princípio da justiça, em detrimento dos princípios da eqüidade e da moralidade devido ao seu caráter de arbitrariedade como elemento de negação do direito, guardando, destarte, identidade com o abuso de poder. Desse modo, a insegurança não reside numa frustração de confiança no direito”[86].
Também não escapa dessa ótica, quanto às decisões judiciais, a percepção crítica de Bermudes, que entende que relativamente às decisões judiciais cuja subsistência é repugnante, existe a certeza de que elas não podem prevalecer de nenhum modo. Seria contra-senso pretender-lhe a eficácia, em nome da segurança jurídica, quando elas são causa de insegurança jurídica pelas incertezas, pela incredulidade, pelos temores que infundem. Produzem efeito contrário à sua finalidade institucional. Não se pode admitir o cumprimento destes atos, nem mesmo depois de preclusos todos os meios legais para a sua impugnação[87].
Quanto ao modus operandi do Poder Judiciário Bermudes demonstra sua preocupação:
“Sem dúvida, devem-se aperfeiçoar os meios hábeis a prevenir as sentenças aberrantes. Um deles será aumentar a qualidade da jurisdição, porque, como mostra a experiência, o fator determinante da prestação jurisdicional escandalosa é a precariedade em todos os níveis, materiais, humanos, morais, de exercício da função estatal de fazer justiça”[88].
Importante frisar que o direito não se confunde com a coisa julgada, pois, na observação de Rocha[89] ela configura apenas uma garantia do direito e este não persegue a injustiça segura. Fica, portanto, sem sentido a idéia de uma coisa julgada petrificada, porque nem mesmo a Constituição é intocável.
E assim a referida constitucionalista entende que o Direito não busca com a coisa julgada a segurança jurídica como direito, mas como garantia de direitos. E o Direito busca a justiça segura, não a injustiça segura. Não se pode buscar fazer da coisa julgada ato pétreo ou intocável do Estado, intangível pelo próprio Estado, ainda quando sobrevenham demonstrações de seu erro ou tangibilidade necessária por meios próprios. Se nem ao menos a Constituição é intocável, admitindo-se a sua reforma quando se faça necessário e mais justo e legítimo, o que seria de um Estado no qual a força das coisas mostradas e demonstradas parecessem intocáveis por ter um juiz decidido de forma definitiva[90].
Há quem negue, inclusive, a segurança jurídica como um valor a ser preservado pelo sistema jurídico, ao encará-la como um suposto mito. Tal posição radical é sustentada por Frank[91], conforme comentário tecido a esse respeito por Ramírez, que põe em destaque algumas linhas centrais da tese desenvolvida no livro Law and the Modern Mínd. Para Frank[92], a decisão jurisdicional é que importa, posto que o direito não se contém no texto legislativo. De sorte que a segurança jurídica não decorre pura e simplesmente do ordenamento jurídico positivo.
4. MEIOS DE DESCONSTITUIÇÃO DA COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL
Relatadas as premissas pertinentes à coisa julgada, verifica-se que o instituto se apresenta como um dogma jurídico, sendo intransponível, evitando que o pronunciamento judicial que a conduz fosse passível de desconstituição por meio de recursos ou de ações judiciais[93].
Este entendimento vem sofrendo mitigações, flexibilizações, sendo espancado em diversas situações, as quais demonstram que o instituto da coisa julgada pode acobertar injustiças processuais e/ou ilegalidade. Nesse sentido, indaga-se: o que reveste de maior relevância jurídica? A segurança própria de uma sentença judicial intocada ou a eliminação de uma mácula também gerada por essa mesma decisão?
Há entendimentos doutrinários que se revelam convincentes à relativização da coisa julgada inconstitucional, senão veja-se:
Para Nascimento[94], nula é a sentença que não se adéqua ao princípio da constitucionalidade, dado que as normas respeitantes à coisa julgada são de natureza infraconstitucional, o que não se pode admitir que sobreponha às normas constitucionais.
Defende o autor que uma vez transcorrido o prazo decadencial da ação rescisória “deve-se valer da ação declaratória de nulidade tendo presente que ela [a sentença] não perfaz a relação processual, em face de grave vício que a contaminou inviabilizando, assim, seu trânsito em julgado”.[95]
Dinamarco[96] reconhece que “o valor da segurança das relações jurídicas não é absoluto no sistema, nem o é, portanto a garantia da coisa julgada, porque ambos devem conviver com outro valor de primeiríssima grandeza, que é o da justiça das decisões judiciais, constitucionalmente prometido mediante a garantia do acesso à justiça”. Com sua inteligência privilegiada, externa que “os princípios existem para servir à justiça e ao homem, não para serem servidos como fetiches da ordem processual”.
Delgado[97] ressalta que a “segurança jurídica deve imperar quando o ato que a gerou não esteja contaminado por desvios graves que afrontam o ideal de justiça”.
Para Tereza Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina
“a relativização da coisa julgada se faz necessária para evitar a estabilização de situações indesejáveis, imposta por decisões definitivas do judiciário ao caso concreto”. Dão dois caminhos para se relativizar a coisa julgada. O primeiro consiste em reconhecer situações que a coisa julgada não se teria nem mesmo formado, ou seja, seria inexistente porque emanada de um vício de origem. Exemplos seriam as sentenças juridicamente inexistentes, pois prolatadas por uma pessoa que não fosse magistrado. O remédio processual cabível seria a ação declaratória de inexistência. O segundo consiste em se dar uma nova interpretação ao inciso V do art. 485 do CPC (violar literal disposição de lei), alcançando-se os princípios constitucionais, pois “uma violação a um princípio é muito mais nociva e prejudicial ao direito, porque potencialmente mais danosa do que uma ofensa à letra de um dispositivo legal”[98].
Por sua vez, Brandão conclui ser “possível haver a relativização da coisa julgada material quando ela macular a própria norma constitucional.” Oportuno citar os seguintes critérios para a relativização da coisa julgada inconstitucional, defendidos pelo autor:
“Caso 1: A sentença que infringiu diretamente uma norma ou princípios inseridos na própria Constituição ou que deixou de aplica-los. Essa sentença nunca pode ser convalidada.
Caso 2: A sentença que se baseou em determinada norma, que foi supervenientemente declarada inconstitucional, com efeitos ex tunc pelo Supremo Tribunal Federal através do controle concentrado de constitucionalidade, ou pelo controle difuso de constitucionalidade, tendo a norma sido suspensa pelo Senado Federal. Nesses casos, afasta-se a aplicação da Súmula 343 do STF.
Caso 3: O título executivo judicial que foi fundamentado em uma determinada lei, a qual foi supervenientemente declarada inconstitucional pelo STF, pode ser considerado inexeqüível com fundamento no art. 741, parágrafo único, do CPC.
Os remédios processuais para viabilizar estas situações são os seguintes:
– Sentenças com nulidades ipso iuri ou inexistentes:
a) Ação rescisória até o prazo de 02 (dois) anos do trânsito em julgado da decisão;
b) Ação declaratória de nulidade / inexistência da sentença, sem prazo para interposição.
Caso 1: Ação rescisória até o prazo de 02 (dois) anos do trânsito em julgado da decisão, ou ação declaratória de inconstitucionalidade da sentença, sem prazo para interposição.
Caso 2: Só cabe ação rescisória, afastando a Súmula 343 do STF.
Caso 3: São cabíveis quatro tipos de remédios processuais: ação rescisória (artigo 485, V, do CPC), os embargos à execução (artigo 741, § único, do CPC), a exceção de pré-executividade e a ação declaratória de inexigibilidade de título executivo judicial.”[99]
Como se depreende intuitivamente, a proteção a coisa julgada é a materialização, sob a forma de uma regra explícita, do princípio da segurança jurídica, em cujo âmbito se resguardam a estabilidade das relações jurídicas, a previsibilidade das condutas e a certeza jurídica que se estabelece acerca de situações anteriormente controvertidas[100]. Daí por que, no Brasil, a coisa julgada,deixou de ser apenas um instituto de direito processual para adquirir status constitucional.
As advertências à utilização da tese da relativização da coisa julgada aumentam quando se observa que a coisa julgada inconstitucional, antes de se sedimentar, passou pela análise e julgamento do Poder Judiciário, e muitas vezes por todas as instâncias, desde a ordinária até a extraordinária, respeitando o devido processo legal, sendo oportunizado às parte o direito à ampla defesa da tese que buscava defender em Juízo, utilizando-se ainda de todos os recursos processuais previstos constitucionalmente e na legislação infraconstitucional, não sendo o bem que era objeto de decisão judicial sido declarado inconstitucional nesse momento, e porque essa foi a manifestação última do Poder Judiciário[101].
Agora, ainda que se busque tutela jurisdicional para desconstituir a coisa julgada, devem ser observados os meios previstos na legislação processual para tanto, empedindo que em qualquer hipótese se permita a desconstituição de uma coisa julgada através de um processo sumário[102].
A doutrina tem debatido a possibilidade de relativização da coisa julgada diante de injustiças flagrantes e teratológicas. Validar uma sentença abusiva e mesmo inexistente como pronunciamento judicial seria medida odiosa, que não pode ficar presa ao fato de ter sido ultrapassado o prazo para a propositura da ação rescisória[103].
Segundo França Junior, “a doutrina tem apontado – em rol disjuntivo – os seguintes meios de controle de constitucionalidade da coisa julgada:”
a) ação rescisória, se ainda presente o prazo de 2 anos a que alude o art. 495 do CPC;
b) ação rescisória, ainda que superado o referido prazo (Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria);
c) ação autônoma declaratória desconstitutiva de coisa julgada inconstitucional;
d) embargos à execução da sentença que contém o citado vício da inconstitucionalidade.[104]
4.1 AÇÃO RESCISÓRIA
Quanto à via a ser adotada para obter o desfazimento da coisa julgada, a doutrina processualista tem sido surpreendentemente liberal: admite a ação rescisória, sem sujeição ao prazo decadencial de dois anos, sob o fundamento de que a coisa julgada inconstitucional é nula, e, como tal, não se subordina a prazos decadenciais ou prescricionais[105].
No que diz respeito à ação rescisória, se ainda presente o prazo de 2 anos, cabe ressaltar que se encontra pacifico o entendimento na jurisprudência no sentido de que quando o artigo 485, inciso V do CPC assevera que cabe a rescisão quando a sentença rescindenda “violar literal disposição de lei” está-se usando o termo “lei” em sentido que abarca a Constituição Federal, sendo absolutamente correta esta tese, pois o objetivo da norma é impedir a consolidação de sentença contrária à Lei, não teria o CPC interesse em preservar uma sentença contrária à Lei Maior.
Assim como a revisão criminal, a ação rescisória é o processo previsto constitucionalmente para a desconstituição da coisa julgada que resguarda este direito fundamental do cidadão.
Prevista nos artigos 485 e seguintes do CPC, a ação rescisória é o equivalente cível da revisão criminal. Conceitua a doutrina a ação rescisória como ação impugnativa autônoma constitutiva negativa (ou desconstitutiva), vez que se destina a rescindir coisa julgada cível. Como exemplificação, cita-se a ação rescisória não é recurso porque trata-se de uma ação autônoma, que não só tem lugar noutra relação processual, subseqüente àquela onde fora proferida a sentença a ser atacada, como pressupõe o encerramento definitivo dessa relação processual. A ação rescisória (artigo 485 do CPC), em verdade, é uma forma de ataque a uma sentença já transitada em julgado, daí a razão fundamental de não se poder considerá-la um recurso[106].
A ação rescisória visa a rescindir, a romper a sentença como ato jurídico viciado. É a ação pela qual se pede a declaração de nulidade da sentença.
O termo “nulidade”, usualmente empregado para caracterizar a sentença rescindível, tem um significado diferente daquele que se atribui aos vícios dos demais atos jurídicos. O que é nulo, como se sabe, não produz nenhum efeito e não reclama desconstituição judicial.
Salvo o caso de sentença inexistente, a sentença rescindível, produz os efeitos da res iudicata e apresenta-se exeqüível enquanto não revogada pelo remédio próprio da ação rescisória. Em outras palavras, enquanto não rescindido, o julgado prevalece.
Com exclusão das sentenças inexistentes, após o trânsito em julgado, há poucos casos em que a sentença apresenta-se eivada de nulidade absoluta. Mas, em tal situação, em decorrência da natureza do vício do processo e, em conseqüência, da sentença, não terá de valer-se, obrigatoriamente, da rescisória, para furtar-se aos efeitos da res iudicata. Nos próprios embargos à execução, conseguirá a declaração de nulidade de todo o processo, inclusive da sentença.
Por afastar o inconveniente de identificar a sentença rescindível com o ato nulo e por abranger a possibilidade de cumulação do judicium rescindens com o judicium rescissorium, agora expressamente adotada pelo Código, deve-se reconhecer como completa a definição de Barbosa Moreira, para quem: “Chama-se rescisória à ação por meio da qual se pede a desconstituição de sentença transita em julgado, com eventual rejulgamento, a seguir, da matéria nela julgada”[107].
A decisão de recorrer ao instituto da coisa julgada parte da opção feita pelo legislador no sentido de fazer preponderar a segurança das relações sociais sobre a “justiça material”.
Com efeito, há situações excepcionalíssimas em que tornar indiscutível uma decisão judicial, por meio da coisa julgada, representa injustiça tão grave, e solução tão ofensiva aos princípios que pautam o ordenamento jurídico, que é necessário prever mecanismos de revisão da decisão transitada em julgado. De fato, embora normalmente a coisa julgada sane todo e qualquer vício do processo em que operou, este defeito (que permite a utilização da ação rescisória) é tão grave que fazer vistas grossas seria altamente prejudicial à legitimidade do ordenamento jurídico e da prestação jurisdicional.
Nota-se, cf. Humberto Theodoro Júnior[108], como na ação de revisão criminal: a presença de dois juízos: o judicium rescindens e o judicium rescissorium. Esta é a norma prevista no artigo 488 do CPC:
A petição inicial será elaborada com observância dos requisitos essenciais do artigo 282, devendo o autor:
I – cumular ao pedido de rescisão, se for o caso, o de novo julgamento da causa;
II – depositar a importância de 5% (cinco por cento) sobre o valor da causa, a título de multa, caso a ação seja, por unanimidade de votos, declarada inadmissível, ou improcedente.
Existe, pois, na ação rescisória, a necessidade de cumulação da pretensão de rescisão da sentença (desconstitutiva ou constitutiva negativa) e a de nova solução para o mérito da causa, se for o caso.
Ressalta Humberto Theodoro Júnior que,
“no judicium rescindens, é constitutiva a decisão que acolhe pedido, pois cria situação jurídica nova, ao desfazer a autoridades da coisa julgada. A que o julga improcedente é de natureza declaratória (negativa), pois se limita a declarar a inexistência de motivo legal para desconstituir a sentença impugnada. No judicium rescisorium, o pronunciamento do tribunal substitui a sentença primitiva e será, naturalmente, a mesma natureza dela, se coincidir com o seu teor. Mas poderá ser de sentido contrário, hipótese em que as respectivas naturezas são diversas em que a decisão do tribunal, destarte, poderá assumir todas as feições admissíveis, quais sejam: declaratória, constitutiva ou condenatória, conforme a prestação jurisdicional apresentada às partes”[109]
Seguindo ao ponto crítico da abordagem, verifica-se que o artigo 495 do CPC narra que “o direito de propor ação rescisória se extingue em 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da decisão”.
O prazo é decadencial e não prescricional[110], conforme se depreende da emenda que o Congresso introduziu no projeto do Ministro Buzaid, para substituir a expressão “prescreve” por “extingue-se” no texto do art. 495.
“Não se dá, em face do caráter decadencial, a possibilidade de suspensão ou interrupção do prazo extintivo do direito de propor rescisória, ao contrário do que ocorre com a prescrição. Como, no entanto, os prazos processuais não vencem em dias não úteis, prevalece o entendimento na jurisprudência de que “concluído o prazo para ingresso da ação rescisória durante as férias forenses, fica o mesmo prorrogado até o primeiro dia útil seguinte ao término daquele período”[111]
Interessante assinalar, nesse tópico, que não existe uma discussão acentuada, tanto doutrinária quanto jurisprudencial, a casos de inaplicabilidade deste artigo. Considera-se que o prazo de dois anos é fatal para todas as situações jurídicas, não existindo hipóteses, por mais especiais que fossem, que estariam resguardadas da aplicação da norma processual infraconstitucional.
Vale dizer que, no direito pátrio, haveria apenas uma exceção à desconstituição da coisa julgada sem a previsão de prazo decadencial: a revisão criminal pro reo.
Considerando a totalidade de nosso ordenamento jurídico e os diferentes direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição, entende-se no mínimo como inquietante a solução de que só, e somente só, única e exclusivamente, poderia haver um “erro judicial” relevante, que permitisse uma mitigação da garantia constitucional da coisa julgada, nos casos de ofensa ao status liberta tis (dignitatis) oriundo de ação penal.
Segundo Porto, para explicitar a similitude das duas ações impugnativas autônomas, em tempos de reformas processuais, parece oportuna a revisão das hipóteses de cabimento de ação rescisória e, quiçá, até mesmo, o exame da vigência do prazo decadencial existente, observando, por derradeiro, que no plano criminal a revisão – irmã siamesa da rescisória – não goza desta limitação, em face da natureza relevante do direito posto em causa e, ao que consta, tal circunstância não gera uma crise social intolerável[112].
Ora, existem diversos direitos e garantias fundamentais previstas constitucionalmente que se encontram no mesmo patamar da garantia da coisa julgada ou do resguardo ao status libertatis do cidadão. Assim, acredita-se que deve existir alguma outra hipótese, ou algumas, que permitam a desconstituição da coisa julgada, ainda que ultrapassado o prazo da ação rescisória.
4.2 AÇÃO DECLARATÓRIA
Outro instrumento conveniente para desconstituir a coisa julgada inconstitucional é a ação declaratória de nulidade. Trata-se de ação autônoma, processada pelo rito ordinário, a ser ajuizada em primeiro grau de jurisdição, com a finalidade de atacar o caráter imutável da decisão judiciária e declarar a ineficácia do decisum, promovendo sua desconstituição e restaurando o direito lesado.
Tem suas origens na actio querela nullitatis. A ação declaratória de nulidade é oriunda do direito romano, era usada na Idade Média com vistas a refutar a sentença contaminada por vício insanável, baseada na idéia de que alguns vícios são tão graves que nem o esgotamento dos recursos ou o transcurso do tempo seriam aptos a convalidá-lo.
A jurisprudência do STJ é no sentido de possibilitar a entrada em juízo por meio da querela nullitatis, com o objetivo de declarar a nulidade do processo no qual não houve citação do réu ou tendo esta ocorrido, restou manifestamente nula.
“A tese da querela nullitatis persiste no direito positivo brasileiro, o que implica em dizer que a nulidade da sentença pode ser declarada em ação declaratória de nulidade, eis que, sem a citação, o processo, vale falar, a relação jurídica processual, não se constitui, nem validamente se desenvolve. Nem por outro lado, a sentença transita em julgado, podendo, a qualquer tempo, ser declarada nula, em ação com esse objetivo, ou em embargos à execução, se for o caso”.[113]
Em outro julgado é esclarecedor o entendimento do STJ no sentido de admitir a utilização da ação declaratória de nulidade para desconstituir a decisão judicial:
“1. Os defeitos processuais das decisões judiciais são corrigidos por via da ação rescisória, mas os defeitos da base fática que retiram da sentença a sua sedimentação, tornando-a nula de pleno direito ou inexistente podem ser corrigidos, como os demais atos jurídicos, pela relatividade da coisa julgada nula ou inexistente.
2. Se a sentença transitada em julgado, sofre ataque em sua base fática por parte do Estado, que se sente prejudicado com a coisa julgada, pode o Ministério Público, em favor do interesse público, buscar afastar os efeitos da coisa julgada.
3. O ataque à coisa julgada nula fez-se incidenter tantun, por via de execução ou por ação de nulidade. Mas só as partes no processo é que têm legitimidade para fazê-lo”[114].
4.3 EMBARGOS A EXECUÇÃO
Em sede de embargos, tem-se admitido a execução da sentença inquinada de inconstitucionalidade. Segundo França Junior, os embargos à execução da sentença, ganhou “força no Direito Positivo a partir da edição da Medida Provisória n.º 2.180-35/2001, em vigor em face da cláusula de convalidação prevista no art. 2.º da Emenda Constitucional n.º 32/2001, cujo ato normativo prevê a seguinte regra no âmbito do CPC:”[115]
“Art. 741. Na execução fundada em título judicial, os embargos só poderão versar sobre: […]
II – inexigibilidade do título; […]
Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal.”
Trata-se, como se vê, de uma nova causa de inexigibilidade do título judicial, consistente na declaração de inconstitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal, da lei ou ato normativo que lhe serviu de fundamento, ou mesmo em razão de aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal.
Diante da regra supracitada,
“não há dúvida de que a parte executada em uma ação que tenha por objeto a aplicação do comando de uma Lei já declarada inconstitucional ou “em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal” pode perfeitamente se valer dos embargos à execução para desconstituir a sentença (“título judicial”) que inconstitucionalmente encampou a tese contrária ao entendimento do Pretório Excelso”.[116]
A Constituição, como Lei maior, está acima de todas as leis, portanto, qualquer decisão judicial deve a ela adequar-se. Assim, os atos que a contrariarem são nulos de pleno direito, não produzindo efeitos.
CONCLUSÃO
A nossa Magna Carta erigiu a coisa julgada ao status de dogma constitucional mas, essa mesma constituição não concede poderes ilimitados à coisa julgada, pois faculta ao cidadão o amplo acesso ao judiciário, e a lei prevê casos em que, apesar de existir uma sentença transitada em julgado, a mesma, viciada de alguma forma, pode ser passiva de uma ação que a inutilize.
Da mesma forma que todo o nosso ordenamento jurídico protege a coisa julgada, visando dar segurança às decisões do judiciário, também não deve ser permitido que essa mesma proteção sirva de instrumento para que o julgador transforme atos ilegais (nulos) em legais, por estarem cobertos, neste momento, com o manto da chamada coisa julgada.
Os atos nulos, assim com os instrumentos que os combatem e as sentenças que, apesar de transitada em julgado, são viciadas de alguma forma, visando rescindi-las, são previstos tanto na legislação formal como na material e, nesse momento, apresentamos uma sistematização de cada assunto, assim como um pouco dos entendimentos doutrinários sobre o tema.
Esta pesquisa teve como objetivo a reflexão sobre a possibilidade da relativização da coisa julgada inconstitucional. É imprescindível uma posição da doutrina e, especialmente, da jurisprudência, sobre o instituto da coisa julgada, quando violadora da Constituição, em face da perplexidade que provoca a diversidade de julgados contraditórios, especialmente quando há, entre eles, um que afronta a Constituição.
Sabe-se que o objetivo do direito e da segurança jurídica é sempre a justiça e que antes de ser uma finalidade, é uma condição sine qua non, uma característica do próprio do direito em si.
Apontamos os instrumentos existentes em nosso sistema processual capazes de atacar a res judicada inconstitucional. Porém, da forma como a jurisprudência vem tratando a ação rescisória, tal remédio jurídico não é suficiente para corrigir uma decisão tida como inconstitucional, depois do trânsito em julgado.
O sistema jurídico brasileiro está embasado em diversos princípios que dão sustentação ao ordenamento, como os da hierarquia das normas, os da legalidade, isonomia e separação de Poderes, os quais deverão ser observados pelo julgador ao aplicar a norma.
A sentença que afronta um princípio constitucional deve ser tida como nula, por sua incoerência com o ordenamento jurídico vigente.
Há de ser entendida como de perplexidade, a situação de um jurisdicionado que vai ao Judiciário e se depara com uma decisão contrária à Constituição e não tem como remediar esse erro, o que leva o órgão estatal a sofrer pesadas críticas e ser, logicamente, incompreendido em sua real função.
Como forma de se corrigir, o quanto antes, mesmo sem necessidade de reforma da lei ou da Constituição, essa suposta omissão instrumental, seria a jurisprudência aceitar a ação rescisória com fundamento da inconstitucionalidade do julgado e sem prazo de decadência, como forma mais prática e eficaz da ação declaratória desconstitutiva de coisa julgada inconstitucional, a qual se compatibiliza e harmoniza com o ordenamento jurídico brasileiro.
Conforme proclama Alexandre Freitas Câmara, (2004, p.28), “é preciso, pois, relativizar a coisa julgada material, como forma de se manifestar crença na possibilidade de se criar um mundo mais justo”.
Bacharel em Direito
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