Remendos novos em tecido velho: A rotura do direito eleitoral brasileiro

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Resumo: O artigo aponta alguns temas afetos ao direito eleitoral brasileiro, a maioria dos quais ligados ao registro de candidaturas, para suscitar a discussão sobre pontos salientes, fazendo críticas e perguntas.


 “Ninguém põe remendo de pano novo em roupa velha, pois o remendo forçará a roupa, tornando pior o rasgo.” (Mt 9.16)


As palavras proferidas por Jesus no evangelho retratam, de certa forma, o que vem ocorrendo na legislação eleitoral brasileira. A cada dia novos “remendos” hermenêuticos e legislativos são postos provocando a ruptura do tecido, exigindo, em conseqüência outro “remendo” maior, que gera novo rasgo, num ciclo confuso e catastrófico.


Antes de 1997 as eleições brasileiras eram regidas por leis editadas para cada eleição. Nesse sentido foram as Leis n. 9.100, de 29.09.1995, para as eleições de 1996, n. 8.713, de 30.09.1993, para as eleições de 1994, n. 8.214, de 24.07.1991, para as eleições de 1992, n. 7.664, de 29.06.1988, para as eleições de 1988 etc. A partir de 1997 a Lei n. 9.504/97 pretendeu ser uma lei permanente e dar certa estabilidade à regulamentação normativa das eleições.


Todavia, não só a lei eleitoral, mas a própria Constituição e, em destaque, a jurisprudência ao longo desse período têm passado por modificações diversas a ponto de não se saber ao certo que norma legislativa ou entendimento jurisprudencial aplicar sobre um determinado caso.


Adriano Soares da Costa[1] chegou, em uma ocasião, a se reportar a uma transformação do direito eleitoral brasileiro em um “direito do caso”, dada a ausência de tratamento científico que deveria ser dispensado a esse tão importante ramo do direito.


Vários fundamentos são indicados para justificar essas bruscas mudanças, como: a omissão do Legislativo, o absurdo uso da máquina administrativa para fins eleitorais, os aberrantes e bizarros casos de corrupção, “limpeza ética” no país, “limpeza dos costumes eleitorais”[2], uma forma de ativismo judicial[3] etc.


Nessa “roda viva” vão os tribunais, a doutrina, o legislador. É como se estivéssemos em meio a um tiroteio na escuridão em que todos atiram contra todos e temos apenas uma vítima: o direito eleitoral. Se isso produzirá efeitos positivos ou negativos, só o tempo dirá. O certo é que o momento vivido é de bruscas mudanças e a incerteza é a companheira fiel.


Diversos exemplos ilustram isso. Começando pelo exemplo da (in)fidelidade partidária, todos os demais estarão atrelados ao registro de candidatura[4]:


1. O TSE em outubro de 2007 publicou a Resolução 22.610 disciplinando o processo de perda de cargo eletivo nas hipóteses de infidelidade partidária e de justificação de desfiliação partidária. Apesar dos seus defensores, o TSE, com o aval do STF, legislou sobre matéria privativa da União, extraindo da Constituição 19 anos depois, em nome de uma leitura principiológica, aquilo que o texto nunca disse. A Corte Eleitoral gerou, com isso, uma anomalia à própria competência da Justiça Eleitoral. Marcos Ramayana[5] diz com muita propriedade que compete à Justiça Eleitoral “processar e julgar causas que estejam compreendidas entre o alistamento e a diplomação”, ressalvando a competência para processar e julgar o recurso contra diplomação e ação de impugnação de mandato eletiva. Esta última com assento constitucional. Depois disso, em regra, as questões deveriam ser resolvidas pela Justiça Comum. Outorgou a dita resolução, por exemplo, uma legitimidade ao Ministério Público, que o próprio Órgão a rejeitou ao, através do Procurador-Geral da República, propor Ação Direta de Inconstitucional perante o STF, julgada, infelizmente, improcedente (ADI 4086). Quanto ao mérito da própria infidelidade partidária no texto constitucional, não custa registrar a opinião autorizada de José Afonso da Silva[6] ao dizer que “a Constituição não permite a perda do mandato por infidelidade partidária. Ao contrário, até o veda (…)”. Sobre esse entendimento fixado pelo STF em matéria de (in)fidelidade partidária, ELIVAL RAMOS, citado por INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO[7], denominou-o de “exercício candente de ativismo judicial”. Apesar disso, não se pode deixar de reconhecer que essa via transversa tem produzido relevantes mudanças nos costumes político-eleitorais do país. Há quem sustente que a tão propalada reforma política está sendo feita pelo Judiciário, diga-se, pelo TSE e pelo STF. Sendo assim, como os fatos têm demonstrado, a anomalia em forma de remendo salta aos olhos.


2. A Constituição de 1988 consagrou o princípio da autonomia partidária e a atual lei dos partidos (Lei n. 9.096/95) espelhou-a, excluindo, por exemplo, a figura do “observador da Justiça Eleitoral” previsto na Lei n. 5.682/71 da época do regime militar. Vânia Siciliano Aieta[8] diz que “não obstante a clareza normativa assecuratória da autonomia partidária” persiste um quantum, ainda que diminuto, “de controle dos partidos pela Justiça Eleitoral”. Lamentavelmente, os partidos políticos brasileiros ainda têm aquela característica singular e triste indicada por Pontes de Miranda[9] de que “O Brasil é o único país do mundo sem partidos políticos… O que há são agrupamentos em torno de um homem ou alguns homens”. A denominada “verticalização” está estritamente ligada à discussão sobre a autonomia partidária. Foi em 2002, em resposta à Consulta n. 715, que o TSE reconheceu o que chamou de “caráter nacional” dos partidos a partir de uma nova interpretação da lei eleitoral taxada de “princípio da coerência na formação das coligações”. O jogo de embates (embora negado) entre o Judiciário e o Legislativo em torno de temas eleitorais corporificou-se na EC n. 52/06, que estabeleceu plena liberdade e autonomia aos partidos políticos para celebrarem coligações. Foi o Legislativo emitindo resposta contunde àquele entendimento, tido por alguns como indevida intromissão, por parte do Judiciário. Agora mesmo nesta eleição (2010) o TSE pretendia fixar uma modalidade de “verticalização na propaganda eleitoral”, retrocedendo, todavia, em sessão de 12.08.10, por apertada maioria de 4 x 3.


3. As convenções partidárias, segundo JOEL CÂNDIDO[10], como atos político-partidários estão atreladas ao estatuto do partido político aos quais cabe disciplinar sua composição, direito a voto, quoruns etc. Trata-se, portanto, de matéria interna corporis, já que vinculada à administração interna da agremiação partidária. Eventualmente, a Justiça Eleitoral, nas hipóteses de conflitos, poderá ser acionada para dirimir desobediência a aspectos procedimentais, uma vez que as convenções refletem diretamente no registro de candidaturas, mas nunca poderá o Judiciário praticar atos de gestão em questões de fundo da convenção. Os próprios órgãos superiores do partido, por conta da estrutura hierarquizada dos partidos políticos no Brasil, poderão, nos termos do estatuto, anular atos decorrentes de convenções.


4. As coligações partidárias na definição precisa de Walter Costa Porto[11] são “alianças eleitorais entre partidos, que visam alcançar, assim, o maior número de postos em uma eleição proporcional ou o melhor resultado em um escrutínio majoritário”. São entes jurídicos pro tempore que nascem nas convenções, são formalizadas perante a Justiça Eleitoral com o registro das candidaturas e das alianças celebradas, encerrando-se com a eleição. Talvez fosse o caso de destacar aqui neste tópico que os inúmeros partidos políticos existentes no Brasil, que hoje já são 27, segundo o TSE[12], decorrem do pluripartidarismo atualmente adotado. As legendas menores não raras vezes são utilizadas para fins espúrios. As coligações não deixam de alimentar, de certa forma, esse questionável sistema. Aqui cabe séria reflexão, ainda mais depois da manifestação negativa do STF quanto à “cláusula de barreira ou de desempenho” (ADIs 1351 e 1354). Por isso mesmo, como salientado por BENJAMIN ALVES RABELLO FILHO[13], “O pluripartidarismo frequentemente é confundido com ausência de partidos. Em nações onde a opinião pública se divide em grupos numerosos, porém, estáveis, não temos o verdadeiro pluripartidarismo, pois não há partidos políticos efetivamente”.


5. As candidaturas no Brasil são escolhidas, formalmente, nas convenções partidárias. Apesar disso, todos sabemos, e as eleições deste ano são mais um exemplo disso, que os candidatos ou pré-candidatos nascem muito tempo antes. As convenções servem quase sempre para chancelar como mero ato formal o que, nos bastidores das cúpulas partidárias, já foi deliberado. Não temos no Brasil candidaturas avulsas ou independentes à semelhança do que ocorre em outros países como Estados Unidos e França onde tais candidaturas são admitidas conforme registra OLIVIA RAPOSO DA SILVA TELLES[14]. A nossa democracia repousa em bases partidárias. Dessa forma, se o filiado não for escolhido em convenção, não poderá pleitear cargo eletivo. Não existe no Brasil candidato que não tenha sido indicado em convenção. Não são poucos os filiados que alegam ausência de democracia interna nas agremiações onde haveria indicações arbitrárias de candidaturas pelas cúpulas partidárias. A advertência de Canotilho[15] de que a “democracia de partidos” postula a “democracia no partido” é válida também para os partidos brasileiros.


6. Outro tema ainda afeto à autonomia dos partidos é a previsão da lei eleitoral quanto ao percentual de cada sexo por ocasião da escolha dos candidatos que concorrerão ao pleito eleitoral. O texto original da Lei n. 9.504/97 dispunha que deveria ser feita “uma reserva” de, no mínimo, 30% do número de vagas para determinado sexo (art. 10 § 3º). Com a reforma introduzida pela Lei n. 12.034/09 passou a constar no texto da lei que cada partido ou coligação “preencherá” esse número. A mudança foi tópica e a interpretação parecia clara. É evidente que a regra, apesar de não especificar o sexo, refere-se à participação feminina na política, haja vista, segundo Carlos Mário da Silva Velloso e Walber de Moura Agra[16], que “elas constituem a maioria do eleitorado brasileiro, sem, infelizmente, obter representação política compatível com sua participação na sociedade”. Todavia, quanto à reforma, o TSE tem entendido em decisões recentes (Respe 78432, decisão de 12.08.2010; Resolução 23270, de 27.05.2010) que esse percentual deve ser cumprido, mas sobre o número de candidatos efetivamente apresentado e não sobre o total das vagas; excepcionalmente, se o partido apresentar justificativa, esse percentual poderá não ser cumprido. As questões que envolvem esse tema são muitas: seria a norma constitucional diante da autonomia reservadas aos partidos?[17] Se a filiação é uma faculdade como pode a lei obrigar o partido a apresentar filiados que eventualmente não disponha? Se o partido deve “reservar” e não “preencher”, segundo uma interpretação mais mitigada como as de José Jairo Gomes[18] e JOEL CÂNDIDO[19], qual teria sido o sentido da alteração introduzida pela Lei n. 12.034/09? Ou se o partido justificar porque não apontou as candidaturas no percentual mínimo e essa justificativa for aceita, a letra da reforma não será esvaziada? E se o partido não observar a regra, entendendo-a como obrigatória sem mitigações, haveria indeferimentos em massa? Essas são perguntas que exigem respostas equilibradas que só virão, por parte da jurisprudência, com o amadurecimento e ponderações justas na análise dos casos concretos, mas, espera-se, sem remendos.


7. No caso das candidaturas majoritárias, o registro do titular não é realizado sem o dos seus suplentes, no caso de Senador, ou sem o do vice, em se tratando de concorrente à titularidade do Executivo. Não são possíveis nesses casos, segundo Pedro Roberto Decomain[20], candidaturas isoladas diga-se, desacompanhadas do vice ou do suplente, conforme o caso. Daí dizer-se que a chapa é una e indivisível. Esse tema sofreu reviravolta profunda desde o julgamento do RCED 703 pelo TSE ocorrido em 21.02.2008, no aspecto processual (litisconsórcio). Antes, a jurisprudência entendia que não havia litisconsórcio entre o titular e o vice exatamente porque a chapa era una e indivisível segundo o art. 91 do CE. A partir daquele julgamento, passou-se a entender que o vice tinha sim interesse em defender direito próprio na condição de litisconsorte passivo necessário. A celeuma foi tal que se desdobrou no seguinte: processos com decisões transitadas em julgado nos quais o vice não havia sido citado não seriam revistos; processos em trâmite cuja inicial houvesse sido ajuizada antes de 21.02.2008 deveriam ser baixados em diligência para que o vice fosse citado; processos em trâmite cuja inicial houve sido ajuizada depois de 21.02.2008 e ainda no prazo para a propositura da ação poderiam ter a exordial emendada pelo autor para inserir o vice, que deveria ser citado; processos em trâmite cuja inicial houvesse sido ajuizado depois de 21.02.2008 e já tivesse sido extrapolado o prazo para a propositura da ação deveriam ser extintos em razão da decadência; nesta última hipótese, passou-se a entender, posteriormente, que se houvesse a possibilidade de aplicação de multa, sendo o ilícito de ordem pessoal não estendido ao vice, a sanção pecuniária seria aplicada ao titular, mas o processo extinto quanto às demais sanções. Não precisa nem dizer o que isso gerou entre os operadores do direito eleitoral.


8. Não há dúvida de que um dos temas mais controvertidos no direito eleitoral brasileiro é aquele atinente às condições para o registro de candidatura. A distinção conceitual entre elegibilidade e inelegibilidade, condições de elegibilidade (explícitas e implícitas) e condições para o registro, principalmente a partir da doutrina de Adriano Soares da Costa[21], não tem sido tarefa das mais fáceis. Para o doutrinador alagoano “A elegibilidade, dessarte, é um direito subjetivo que nasce com o registro de candidatura, sendo exercido durante o período de campanha eleitoral e se extinguindo com a votação e apuração dos votos”. As condições de elegibilidade listadas no texto constitucional não passariam, para ele, de condições de registrabilidade, às quais ainda acrescenta outras. E resume seu pensamento com assertiva invertida àquela até então propalada dizendo: “a inelegibilidade é a regra e a elegibilidade é a exceção”. Em oposição, Djalma Pinto[22], por exemplo, faz a distinção entre elegibilidade e condição para o exercício do direito de ser votado. Este sim decorreria do registro de candidatura e não aquela. Esse tema tornou-se ainda mais controvertido com as discussões em torno dos efeitos da Lei Complementar n. 135, de 04.06.2010 – a “ficha limpa”. Basicamente, três aspectos fundamentais envolvem essa discussão sobre a LC n. 135/10 e os seus efeitos no registro de candidaturas: primeiro, a lei é (in)constitucional, já que afrontaria o princípio da presunção de inocência? Para essa indagação, a resposta decorria do cotejo entre esse princípio e aquele previsto no § 9º do art. 14 da CF. As dúvidas eram muito maiores quando se pretendia inserir restrições nos moldes dessa lei pela via da jurisprudência. Com a regulamentação, pela via adequada – lei complementar – as possibilidades de incompatibilidade com a Carta Política foram bastante reduzidas. Segundo, se constitucional, não deveria apenas ser aplicada às próximas eleições em obediência ao princípio da anualidade da lei eleitoral previsto no art. 16 da CF? A resposta passa, necessariamente, pela compreensão do que é “processo eleitoral”, expressão do texto constitucional cujo significado tem recebido as mais diversas opiniões, inclusive do próprio TSE e do STF. Terceiro, se constitucional e aplicável a estas eleições, tem ela efeitos retroativos, pois, caso positivo, não importaria em violência ao ato jurídico perfeito, à coisa julgada e à segurança jurídica em geral? Sobre este último aspecto – (ir)retroatividade – e apenas para suscitar a reflexão – Vicente Ráo[23], defendeu muito bem a não retroatividade das leis ordinárias, dizendo: “a inviolabilidade do passado é princípio que encontra fundamento na própria natureza do ser humano, pois, segundo as sábias palavras de Portalis, ‘o homem, que não ocupa senão um ponto no tempo e no espaço, seria o mais infeliz dos seres, se não se pudesse julgar seguro nem sequer quanto à sua vida passada. Por essa parte de sua existência, já não carregou todo o peso de seu destino? O passado pode deixar dissabores, mas põe termo a todas as incertezas. Na ordem do universo e da natureza, só o futuro é incerto e essa própria incerteza é suavizada pela esperança, a fiel companheira da nossa fraqueza. Seria agravar a triste condição da humanidade, através do sistema da legislação, o sistema da natureza, procurando, para o tempo que já se foi, fazer reviver as nossas dores, sem nos restituir as nossas esperanças’.”  Outra controvérsia interpretativa nasceu com o que o TSE passou a entender como sendo quitação eleitoral no que diz respeito às prestações de contas de campanha. Inicialmente, apenas os eleitos estavam obrigados a apresentar as contas (texto original da Lei n. 9.504/97). Depois, disse a Corte Eleitoral que todos deviam apresentar as contas (Res. 21823/04). Mais adiante, essas contas tinham que ser aprovadas sob pena de não ser possível obter a quitação durante o curso do mandato (Res. 22715/06). Veio a Lei n. 12.034/09 para dizer que basta a “apresentação” das contas para fins de quitação. Apesar disso, e mais uma vez a lei parecia clara, o TSE, em sessão de 03.08.2010[24], por maioria, disse que “embora a literalidade da norma possa levar a essa consideração, a melhor solução passa por um entendimento que leve em consideração a finalidade dos preceitos que regulam essa fase do processo eleitoral”, ou seja, as contas devem ser aprovadas para fins de quitação. É indiscutível que estamos diante de uma réplica da Justiça Eleitoral à resposta do Legislativo vinda pela Lei n. 12.034/09. Haverá tréplica?


9. Entre os documentos que devem ser apresentados por ocasião do pedido de registro de candidatura, agora, pela reforma de setembro/09, os candidatos ao Executivo devem anexar a sua proposta. Ora, esse dispositivo tem natureza meramente simbólica. Primeiro, o que é uma proposta? A Justiça Eleitoral poderá analisar esse documento juntado e dizer que não é uma proposta? Parece que apenas naqueles casos em que, de forma flagrante, não houver qualquer tipo de proposição político-programática atinente a obras e/ou serviços de natureza pública, é que o documento deverá ser rejeitado. Mas, acima de tudo, e daí a natureza simbólica, é que o candidato que vencer a eleição não terá absolutamente nenhuma obrigação em cumprir os termos daquela proposta, salvo a de cunho moral. Trata-se, portanto, de um mero papel em forma de proposta a preencher os espaços dos arquivos da Justiça Eleitoral.


10. Protocolizado o pedido de registro de candidatura, poderá ele sofrer impugnação. Publicada pela Justiça Eleitoral a lista dos inscritos, a impugnação poderá ser ajuizada pelo partido, coligação, candidato e Ministério Público perante o Órgão da Justiça Eleitoral a quem couber efetuar o registro da candidatura. Sobre a impugnação ao pedido de registro, dois temas merecem tratamento. Primeiro, é a possibilidade conferida ao juiz eleitoral de ex officio indeferir o pedido mesmo sem que tenha havido impugnação. Essa possibilidade envolve, de certa forma, outra, que seria a de o Ministério Público requerer o indeferimento do pedido de registro mesmo sem ter formulado impugnação. Sendo possível, qualquer matéria poderia ser suscitada pelo Juiz Eleitoral ou pelo Ministério Público para que o pedido de registro fosse indeferido? Esses limites precisam ser definidos com maior clareza para que o pretenso candidato não seja surpreendido no processo. Segundo, o TSE, em 1992 (Ac. 12375), a partir do direito de petição previsto na Constituição Federal, criou a chamada “notícia de inelegibilidade” atribuindo ao cidadão o direito de noticiar ao juiz eleitoral apresentando a ele informações e documentos que possam levar ao indeferimento do pedido de registro de candidatura. A respeito dessa criação, diversas questões podem ser apresentadas, tomando-se como base a discussão apresentada por LUIZ FERNANDO C. PEREIRA[25]: a notícia não seria, por via transversa, o restabelecimento do § 3º do art. 97 do CE? Se a notícia for apresentada por quem não for cidadão, o juiz pode desprezá-la? Se o juiz pode de ofício indeferir o registro, haveria “legitimidade” na notícia de inelegibilidade? Se a AIRC for extinta sem análise de mérito, os seus documentos podem embasar o indeferimento do pedido de registro?  A notícia seria apenas de inelegibilidade ou poderia atacar outras causas criadoras de óbices ao registro? Embora o tema não seja tão recente, as respostas ainda são aguardadas.


 11.Diversas hipóteses de substituição de candidatos estão previstas na lei eleitoral, desde que atendidos determinados prazos. Um aspecto parece altamente questionável que é a possibilidade de substituição do candidato ao Executivo a qualquer tempo antes da eleição, desde que observado o prazo inicial de 10 (dez) dias do fato ou da decisão que gerar tal direito. O TSE em 2006 restringiu essa possibilidade estipulando o prazo de 24 horas antes do pleito. Esse prazo não existe na lei eleitoral. Nas instruções posteriores do TSE ele foi suprimido, o que dá a entender que a substituição pode ocorrer até a data da eleição. Já houve quem cogitasse sobre a possibilidade de ajuizamento de AIME por fraude nas hipóteses em que o substituído não tivesse condições de concorrer, mas mesmo assim requereu o registro e antes da eleição foi substituído no intuito de angariar votos ludibriando o eleitor. Não é crível que tal tese deva prosperar porque a substituição é um direito, e um direito regularmente exercido não pode ser taxado de fraude por não possuir índole ilícita (CC, art. 188, I).


12. O tema mais relevante em matéria recursal num processo de pedido de registro de candidatura diz respeito aos efeitos da decisão indeferitória enquanto pendente o recurso. Primeiro, cabe destacar que a reforma de setembro de 2009 introduziu aspecto importante. O pedido de registro era tido como o momento adequado para aferição das condições necessárias para a viabilidade da candidatura (condições de elegibilidade, inelegibilidade, demais exigências normativas para o registro). Isso ainda persiste, mas com um detalhe: agora, pela reforma, alterações, fáticas ou jurídicas, supervenientes ao registro que afastem a inelegibilidade, portanto, antes do trânsito em julgado da decisão, inclusive quando houver recurso pendente, geram o deferimento do registro, desde que, evidentemente, tenha sido indeferido unicamente pela causa supervenientemente afastada. Isso em nada modificou a teoria de que o candidato com registro indeferido e sub judice concorre “por conta e risco” e a dos “votos engavetados” aplicável na mesma hipótese, isto é, ele concorrerá por sua conta e risco e se receber votos, esses votos estarão condicionados ao posterior deferimento do registro, se houver.


Como se percebe, existe um emaranhado de idéias, às vezes contrapostas, que surgem a cada dia no direito eleitoral, gerando, em muitas ocasiões, um direito de conveniência, uma confusão conceitual, e abalando seriamente a própria segurança jurídica. Tudo isso é resultado da produção legislativa, em algumas situações de forma benevolente ao infrator e noutras confusas – ambas parecem propositais –, e também as respostas da Justiça Eleitoral, que no afã de atender a anseios expressos na sociedade organizada ou na própria Constituição, produz uma jurisprudência que, etimologicamente, está longe disso (posicionamentos reiterados).


Não poucas vezes, e nesta eleição (2010) não está sendo diferente, não se sabe ao certo quais regras valerão para o pleito, numa nítida afronta ao art. 16 da CF. É como se estivéssemos em campo prontos para o início de um partida, mas sem saber quais serão os jogadores e árbitros, se a bola está em campo ou não, se valerão as regras conhecidas ou outras que ainda estão sendo discutidas fora do campo. Escrever um livro de direito eleitoral positivo brasileiro é das tarefas mais difíceis. Operar como advogado, promotor ou juiz eleitoral, muito mais.


São remendos novos postos em tecido velho. A cada dia a rotura aumenta. Põe-se outro remendo, rompe-se e o rasgo torna-se maior. O que demonstra cada vez mais a necessidade imperiosa de uma grande reforma política no Brasil, o que certamente não virá com a reforma do Código Eleitoral – pelas próprias limitações da comissão e pelo tempo que dispõe -, cuja comissão está sendo presidida por José Antonio Dias Toffoli, Ministro do STF, que, segundo notícias veiculadas, pretende fazer a entrega do anteprojeto até o final deste ano.


E, especificamente, nas eleições deste ano (2010), por conta da reforma de setembro de 2009, da lei do “ficha limpa”, e do vai-e-vem da jurisprudência, nunca foram vistos tantos remendos novos em tecido velho.


 


Referências

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VELLOSO, Carlos Mário da Silva; AGRA, Walber de Moura. Elementos de direito eleitoral. São Paulo: Saraiva.

 

Notas:

[1] COSTA, Adriano Soares da. Comentários à Lei n. 11.300, de 10 de maio de 2006. Disponível em: <http://jusvi.com/artigos/22071/2>. Acesso em: 22 ago.2010.

[2] Palavra do Min. Carlos Ayres Britto por ocasião do julgamento do RO 1069/TSE.

[3] Tema sobre o qual há opiniões as mais variadas. Na autorizada de Inocêncio Mártires Coelho “ativismo judicial” no Brasil “não configura nenhum extravasamento de juízes e tribunais no exercício das suas atribuições, antes traduz a indispensável e assumida participação da magistratura na tarefa de construir o direito de mãos dadas com o legislador, acelerando-lhe os passos, quando necessário, porque assim o exige um mundo que se tornou complexo e rápido demais para reger-se por fórmulas ultrapassadas.” (COELHO, Inocêncio Mártires. Ativismo judicial: o caso brasileiro. Disponível em: <http:www.osconstitucionalistas.com.br/ativismo-judicial-o-caso-brasileiro>. Acesso em: 23.ago.2010).

[4] Os exemplos listados estão atrelados a registro de candidaturas porque o texto decorre de palestra proferida pelo autor no Seminário de Direito Eleitoral promovido nos dias 24 e 25 de agosto de 2010 em Belém/PA promovido pela Universidade da Amazônia – UNAMA, OAB/PA-ESA e MPE/PA-CEAF, cujo tema era exatamente “registro de candidaturas”.

[5] RAMAYNA, Marcos. Direito eleitoral – 9ª edição – Rio de Janeiro: Impetus, 2009, p. 84.

[6] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo – 16ª edição – São Paulo: Malheiros, 1999, p 407.

[7] COELHO, Inocêncio Mártires. Ativismo judicial: o caso brasileiro. Disponível em: <http:www.osconstitucionalistas.com.br/ativismo-judicial-o-caso-brasileiro>. Acesso em: 23.ago.2010.

[8] AIETA, Vânia Siciliano. Tratado de direito político, tomo IV, Rio de Janeiro: Lumen juris, 2006, p. 183-184.

[9] Apud AIETA, Vânia Siciliano, op. cit., p. 57.

[10] CÂNDIDO, Joel J. Direito eleitoral brasileiro – 14ª edição – Bauro, SP: Edipro, 2010, p. 102.

[11] PORTO, Walter Costa. Dicionário do voto. – Brasília: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Impressa Oficial do Estado, 2000, p. 139.

[12] Disponível em: <www.tse.gov.br>. Acesso em: 22 ago.2010.

[13] RABELLO FILHO, Benjamin Alves. Partidos políticos no Brasil: doutrina e legislação – Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 88.

[14] TELLES, Olivia Raposo da Silva. Direito eleitoral comparado – Brasil, Estados Unidos, França – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 14.

[15] Apud MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. – 2. edição – São Paulo: Saraiva, 2008, p. 769.

[16] VELLOSO, Carlos Mário da Silva; AGRA, Walber de Moura. Elementos de direito eleitoral. São Paulo: Saraiva, p. 137.

[17] Olívia Raposo da Silva Telles registra, quanto ao direito comparado, que “em virtude do princípio da paridade entre mulheres e homens quanto ao acesso às funções eletivas (Constituição, arts. 3 e 4), as listas de candidatos ao Parlamento europeu devem ser compostas alternadamente por um candidato de cada sexo (art. 9 da Lei n. 77-729, de 7 de julho de 1977, com redação dada pela Lei n. 2003-327, de 11 de abril de 2003). (TELLES, Olívia Raposo da Silva, op. cit., p. 369). A dúvida sobre a constitucionalidade ou não dessa regra é suscitada aqui muito mais para fins argumentativos, pois não há incompatibilidade entre previsões legais dessa natureza e o Texto Maior.

[18] GOMES, José Jairo. Direito eleitoral – 4ª edição – Belo Horizonte. Del Rey, 2009, p. 226.

[19] “O novo § 3º mudou apenas uma expressão em relação ao texto anterior. Agora, a lei menciona “preencherá”, e, antes, mencionava “deverá reservar”. Assim, afastada a interpretação, por não nos parecer razoável, de que passa a ser obrigado o preenchimento de todo o número de vagas, sem deixar nenhuma sem candidato, em ambos os percentuais, resta o entendimento de que a lei quis, com a nova expressão, adotar, sem reservas, a já remansosa jurisprudência no sentido da indisponibilidade da vaga dos sexos. Ou seja: o que antes era só entendimento de tribunal, agora é lei. Vaga remanescente do sexo feminino não se poderá preencher com homens, e vice-versa”. (CÂNDIDO, Joel J. op. cit., p. 417).

[20] DECOMAIN, Pedro Roberto; PRADE, Péricles. Comentários ao código eleitoral – São Paulo: Dialética, 2004, p. 124.

[21] GONÇALVES, Guilherme de Salles; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; STRAPAZZON, Carlos Luiz (Coord.). Direito eleitoral contemporâneo. Horizonte: Fórum, 2008, p. 64.

[22] PINTO, Djalma. Elegibilidade no direito brasileiro – São Paulo: Atlas, 2008, p. 43.

[23] RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos – 5ª edição – São Paulo: RT, 2000, p. 363.

[24] Disponível em: <http:www.tse.gov.br>. Acesso em: 23 ago.2010.

[25] PEREIRA, Luiz Fernando C. O reconhecimento de ofício da inelegibilidade. Revista Brasileira de Direito Eleitoral – RBDE, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 157-197, jul./dez.2009.


Informações Sobre o Autor

José Edvaldo Pereira Sales.

Mestre e Doutorando em Direito PPGD/UFPA. Promotor de Justiça Estado do Pará