Requisição de informações patrimoniais do devedor – Iniciativa do Juiz no processo de execução

Na sua última reunião (do dia 22.06.04), o Fórum permanente dos Juízes das Varas Cíveis de Pernambuco(1) aprovou por maioria de votos o seguinte enunciado:

Enunciado 21-FVC-IMP: “No processo de execução, o interesse público recomenda que o Juiz defira pedido de requisição de informações bancárias e fiscais do executado, sem necessidade de impor ao exeqüente prova de ter, por iniciativa própria, diligenciado previamente no sentido da localização de bens penhoráveis”.

A questão submetida a exame pelo Fórum, e agora pacificada no enunciado acima transcrito, vinha sendo (e ainda permanece) muito controvertida nos tribunais. Diz respeito à conveniência de o juiz, em atendimento à solicitação da parte, e para fins de possibilitar a penhora em execução ou a constrição de bens em qualquer outro tipo de processo, determinar (ou não) a expedição de ofício requisitório de informações patrimoniais (do devedor) a repartições públicas. É muito comum durante o processo de execução de o credor pleitear que o Juiz oficie a repartições como o Banco Central, Receita Federal, departamentos de trânsito e outros órgãos da Administração Pública, com o propósito de desvendar bens para garantir a satisfação da dívida por meio da penhora.

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Uma primeira corrente jurisprudencial posiciona-se no sentido de que a penhora não justifica a iniciativa de investigação patrimonial do devedor, pois não configura a hipótese um interesse público relevante, mas tão-somente um interesse individual e exclusivamente patrimonial do credor, que, em princípio, não autoriza a atuação judicial voltada à busca de informações sensíveis, constituindo-se em uma invasão desnecessária da privacidade do devedor. São representativos desse entendimento os arestos abaixo transcritos:

“Execução. Localização de bens do devedor. Declaração de bens para fins de imposto de renda. Requisição. As declarações, para fins de imposto de renda, têm caráter sigiloso que deve ser resguardado, salvo razão excepcional, que não se configura pelo simples interesse de descobrir bens a penhorar”(STJ, 3ª Turma, Resp. 11.114-ES, rel. Min. Eduardo Ribeiro, j. 23.08.91, DJU 16.09.91).

“Processual Civil. Execução. Informações sobre bens em nome do contribuinte. Ofício ao Banco Central do Brasil. Impossibilidade.

O interesse patrimonial do credor não autoriza, em princípio, a atuação judicial, ordenando a quebra do sigilo bancário, na busca de bens do executado para satisfação da dívida” (STJ, 2ª Turma, rel. Min. Peçanha Martins, j. 08.02.00, DJ 13.03.00).

No mesmo sentido: REsp nº 128.461/PR, 4ª Turma, Relator o Ministro Cesar Asfor Rocha, DJ de 12/04/99; REsp nº 59.812-5/SP, 3ª Turma, Relator o Ministro Waldemar Zveiter, DJ de 13/11/95.

Essa corrente jurisprudencial – de que não se justifica a quebra do sigilo patrimonial com o simples interesse de descobrir bens a penhorar – tem admitido algumas variações, ora permitindo a requisição de informações só para obter dados pertinentes à localização do endereço do executado, “pois em relação a isso não há motivo para sigilo” (Resp 83824/BA, 3ª Turma, rel. Min. Eduardo Ribeiro, j. 05.12.97, DJ 17.05.99; Resp 236704/SP, 3ª Turma, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 25.04.00, DJ 16.06.00), ora estendendo a exceção também às requisições relativas à declaração de bens, mas sempre excluindo a possibilidade de quebra do sigilo dos rendimentos em contas bancárias.

Essa orientação inicial, no entanto, não tem prevalecido diante da correta noção de que o desenvolvimento regular do processo de execução, que se realiza por meio da penhora de bens do executado para venda posterior e satisfação do crédito do credor, tem um espectro mais largo configurado no interesse social de que seja realizado com sucesso, como forma de realização mesma da Justiça. Não se trata, portanto, de satisfazer um mero interesse individual de crédito, mas de realização da Justiça. Ao deixar de cumprir com sua obrigação, o devedor quebra a paz social e daí nasce o interesse público de que a prestação obrigacional (correspondente à dívida) não cumprida voluntariamente seja satisfeita através do processo forçado de execução. O interesse da Administração da Justiça, nesse sentido, é de que o processo de execução atinja seus fins. Havendo necessidade de requisição de informações que possibilitem a descoberta de bens do executado livres e desembaraçados à penhora, ela se faz no interesse da Justiça. A própria dignidade da Justiça fica comprometida se os meios postos à sua disposição não são exercitados para encontrar bens sujeitos à execução (art. 600, IV, do CPC). Assim, mesmo no caso de informações patrimoniais que se revistam de caráter sigiloso assegurado por lei, como as constantes de declarações de bens e contas bancárias, este deve ser afastado diante de situações em que exista uma clara motivação de interesse público, um relevante interesse de administração da Justiça, como é a situação em que o sucesso do processo de execução dependa do emprego de meios para a localização de bens que possam garantir a dívida.

Essa é a posição assumida pela jurisprudência que vem se tornando majoritária, expressa nos seguintes acórdãos:

“Em face do interesse da Justiça na realização da penhora, ato que dá início à expropriação forçada, admite-se a requisição à repartição competente do imposto de renda para fins de localização de bens do devedor, quando frustrados os esforços desenvolvidos nesse sentido. Cada vez mais se toma consciência do caráter público do processo, que, como cediço, é instrumento da jurisdição” (STJ-RSTJ 21/298). No mesmo sentido: RSTJ 34/294.

“Execução fiscal – Expedição de ofício ao Banco Central para que informe sobre a existência de contas bancárias dos executados. Informações inacessíveis sem determinação judicial – medida que se faz necessária para o prosseguimento da execução. Deferimento restrito aos bancos situados na comarca” (TJ-SP, ac. un., 8ª Câm. Dir. Público, j. 14.08.96, Ag. 013109-5, rel. Des. Antônio Villen, in ADCOAS, 8152702).

Mesmo essa posição mais consentânea com o interesse da Justiça no regular desenvolvimento do processo de execução, exige a comprovação de que o credor, por iniciativa própria, diligenciou previamente no sentido da localização de bens penhoráveis. A concepção é a de que, na defesa de seus direitos creditícios, deve ele tomar a iniciativa de empreender esforços, extra-autos, para localizar bens do devedor, até porque dispõe do direito constitucional de petição, para requerer, junto a repartições públicas, informações indispensáveis ao exercício de seus direitos. Frustradas essas tentativas iniciais, com o que fica demonstrado a imprescindibilidade da atuação judicial, é que o Juiz deve atuar no sentido de vasculhar o patrimônio do devedor. A liberalidade do juízo, assumindo uma tarefa que, em princípio, é da própria parte, só se justifica quando não houver outros meios para a descoberta e levantamento de informações patrimoniais. Comprovando que, sem o concurso do poder judicial, não possam ser encontrados os bens para penhora, pois o credor já esgotou os meios que tinha à sua disposição, é possível a quebra do sigilo patrimonial do devedor, medida excepcional justificada pelas circunstâncias. Nesse sentido, a excepcionalidade da quebra do sigilo patrimonial só aparece na circunstância em que os esforços isolados da parte credora se mostraram infrutíferos à localização de bens do devedor e que, para o prosseguimento do processo de execução, é indispensável o concurso da atuação judicial. Se por outro meio o credor puder localizar os bens, é legítima a recusa do Juiz em quebrar o sigilo patrimonial do devedor, o que sempre ocorrerá se solicitar informações à Receita Federal ou ao Banco Central.

Revelam bem esse condicionamento à requisição de informações patrimoniais os arestos abaixo transcritos:

“Processo Civil. Execução Fiscal. Informações sobre bens a serem penhorados. Requisição. Sigilo bancário. Quebra. Impossibilidade em processo administrativo.

A obtenção de informações sobre a existência ou não de bens a serem penhorados é obrigação do exeqüente.

O juiz da execução fiscal só deve deferir pedido de expedição de ofício à Receita Federal e ao BACEN após o exeqüente comprovar não ter logrado êxito em suas tentativas de obter as informações sobre o executado e seus bens” (STJ, 1ª Turma, Resp. 206963-ES, rel. Min. Garcia Vieira, j. 25.05.99, DJ 28.06.99, ac. un.)

“Processual Civil. (…) Execução. Requisição de informações. Ofício ao Banco Central do Brasil. Indeferimento. Realização de esforço prévio. Inocorrência.

(…)

O deferimento de requisição de informações acerca de contas bancárias do executado, para fins de penhora, condiciona-se à ocorrência de prévias e frustradas diligências do credor tendentes à localização de bens. Se o exeqüente deixa de comprovar a realização de tais diligências, por atuação direta sua, legitima-se o indeferimento da requisição judicial” (STJ-4ª Turma, EDResp. 159705-SP, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 15.06.99, DJ 16.08.99, ac. un.).

“Execução. Bens do devedor. Requisição de informações à Receita Federal.

Somente em casos excepcionais, demonstrado o esgotamento das possibilidades colocadas à disposição do credor, caberá requisição judicial” (STJ-4ª Turma, Resp. 204350/SE, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 06.05.99, DJ 01.07.99).

Como se viu da leitura dos acórdãos acima, embora reconhecendo o interesse social na realização da penhora, a jurisprudência insiste em exigir um esforço processual inicial do credor na obtenção das informações acerca dos bens. Somente se admite como justificável o deferimento pelo juiz, em processo de execução, de solicitação tendente a obter informações sobre o patrimônio do devedor, se este demonstra que “foram exauridas, sem êxito, as vias administrativas para obtenção das informações”. A idéia prevalecente é de que “não cabe ao juiz função auxiliar investigatória”, sendo exclusivamente do próprio credor a tarefa de encontrar os bens penhoráveis, somente justificando-se a atuação judicial em caso de impossibilitada a iniciativa própria da parte.

Temos que essa concepção padece de um apego exagerado ao princípio dispositivo, que enxerga como ônus das partes a indicação e produção das provas, bem como a uma interpretação isolada do art. 399 do CPC (o qual permite a requisição, pelo juiz, de requisição de documentos constantes de repartições públicas). Nem sempre a construção das provas é tarefa da parte, avultando no processo probatório a função do Juiz, quer para admiti-las, quer na sua produção. No processo moderno, os poderes probatórios do Juiz são bem acentuados, devendo tomar iniciativa sempre que presentes razões de ordem pública e igualitária. Como já tive oportunidade de acentuar sobre o compromisso do Juiz com a investigação dos fatos, “não deve ele ficar restrito a esquemas preestabelecidos de produção de provas”, pois “a amplitude de poderes investigatórios e a iniciativa na colheita dos elementos de prova constituem valiosos recursos que, se bem utilizados, devem levar o processo a um resultado justo” (2). Sempre que se fizer necessário o atingimento dos fins processuais e a realização da Justiça, a produção das provas deixa de ser um ônus das partes para se tornar um compromisso do Juiz. Moacyr Amaral, para justificar os poderes de iniciativa probatória do juiz, já explicava que o Direito brasileiro não instituiu um “juiz inerte, passivo”; “ao juiz de outros tempos se substituiu se substituiu o juiz ativo”.

Ora, uma vez concebido que a realização da penhora está atrelada a uma razão de interesse público, o Juiz pode (e deve) até mesmo de ofício assumir a função investigatória dos bens do executado. Nessa tarefa não perde a imparcialidade, pois orienta-se apenas pelo propósito de cumprir a função própria do processo de execução (ou de falência, como no caso), que é a de excutir bens do executado para a satisfação do direito do credor. “Se a relação processual se instaura com a finalidade de se alcançar a prestação jurisdicional num caso concreto, assegurando a paz social, a soberania da lei, ao interesse das partes, no desenvolvimento da relação, sobreleva o interesse público de que esta se desenvolva e atinja a sua finalidade na consonância das normas e princípios que a regem, orientados pelos mais elevados princípios de justiça” (3). É justamente para que o processo se desenvolva e atinja o seu fim que são concedidos poderes probatórios ao juiz, para que, de modo desinteressado, possa entregar a prestação jurisdicional adequada ao caso. Com esse propósito, não só está autorizado como tem mesmo o dever de desenvolver atividades amplas e variadas voltadas à instrução do processo.

É com esse sentir, de que a investigação patrimonial do devedor responde à própria finalidade do processo de execução (ou de falência), que o Juiz deve assumi-la em atenção ao interesse público que o envolve.

Notas:
(1) O Fórum Permanente dos Juízes de Varas Cíveis do Estado de PE foi criado pelo Instituto dos Magistrados de Pernambuco – IMP, com o objetivo único de pesquisar, estudar, discutir, enunciar e divulgar a jurisprudência das Varas Cíveis. Para saber maiores informações sobre o FVC e ter acesso a seus enunciados, acesse a página do IMP – www.imp.org.br .
(2) Em “Juizados Especiais Cíveis – Comentários à Lei 9.99/95”, ed. Saraiva).
(3) Moacyr Amaral dos Santos, Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, 1º Volume, 13ª edição, editora Saraiva, 1987, p. 333.

 


 

Informações Sobre o Autor

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Demócrito Reinaldo Filho

 

Magistrado em Pernambuco.

 


 

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