Resumo: O Artigo aborda a polêmica questão da responsabilidade civil em virtude da atuação do Estado como legislador. É feita uma avaliação histórica e atual sobre o tema além da análise de importantes decisões dos tribunais superiores.
Introdução
Após termos conhecido a realidade da injustiça das normas e a forma como ela deve ser tratada passaremos a verificar a questão da responsabilidade civil do Estado. Esta responsabilização do Estado surgiu como mais uma forma de resistência à força desenfreada do Estado, que muitas vezes se aproveita do seu poder, através dos meios mais absurdos, inaceitáveis e desumanos, para “atropelar” os direitos dos seus pobres e frágeis administrados.
O Estado responde objetivamente por dano causado por seu agente, em substituição à responsabilidade deste, sem indagação de culpa. E o ônus financeiro da assunção dessa responsabilidade objetiva é suportado por toda a sociedade, que provê os cofres públicos através de tributos. Os tributos são pagos pelos cidadãos para propiciar ao Estado recursos financeiros necessários ao cumprimento de suas atribuições, inclusive para indenizar os danos por ele causados, a terceiros, no desempenho dessas atribuições. Daí a teoria do risco administrativo, que fundamenta toda a doutrina da responsabilidade objetiva do Estado.
O prejudicado pela ação estatal sempre terá o direito à indenização a ser pleiteada contra a Fazenda Pública ou contra a pessoa jurídica privada prestadora de serviço público a que pertencer o agente causador do dano. A ação nunca é dirigida contra o agente público ou de quem faz as suas vezes. Estes se limitam a responder regressivamente em casos de dolo ou culpa.
Desde a constituição de 1946 (art. 194) vem sendo adotada no Brasil a teoria do risco administrativo, combinada com o princípio da ação regressiva. A carta política de 1988 estendeu, acertadamente, a responsabilidade objetiva do Estado às pessoas jurídicas de direito privado, prestadoras de serviços públicos. Outrossim, qualquer pessoa de direito público, nacional ou estrangeira, submete-se ao preceito do § 6º do art. 37 da Carta Política.
Vejamos o § 6.º do art. 37 para mostrar como foi condensado a responsabilidade objetiva do Estado:
“As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos de seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”
Destarte, em seu art. 5.º, LXXV, deu um reforço legal para a tese da responsabilidade do Estado por ato judicial, com base nos seguintes termos: "o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença.
Portanto, a norma constitucional adotou a corrente objetiva, isto é, a atitude dolosa ou culposa do agente causador do dano é de menor relevância, esta é esteada na teoria do risco, em contrapartida aos defensores da corrente subjetiva, onde a responsabilidade se inspira na idéia de culpa, ficando, assim, a cargo da doutrina estabelecer até que ponto vai essa responsabilidade.
O Estado Legislador
A discussão doutrinária em tema de responsabilidade civil do Estado legislador no direito brasileiro pode ser sintetizado como um reconhecimento já configurado mas ainda vacilante em seus fundamentos e em seus contornos dogmáticos. O direito brasileiro, por ter adotado desde o seu alvorecer moderno, com a Constituição de 1891, o modelo norte-americano de controle de constitucionalidade das leis, nunca enfrentou os percalços para a afirmação da responsabilidade do Estado, tal qual se deu na França, em luta secular contra o dogma da soberania estatal.
No Brasil foi sempre clara a noção de que o Estado está submetido à ordem jurídica e de que o exercício ilegal das funções estatais enseja a reparação dos danos porventura ocasionados aos particulares. Deste modo, sempre se reconheceu, desde Pedro Lessa, a responsabilidade do Estado pelos danos causados pelo desempenho inconstitucional da função de legislar. Também é relativamente unânime na doutrina o entendimento de que essa responsabilização do Estado só pode ser demandada após a declaração de inconstitucionalidade da norma legislativa lesiva. Antes dessa declaração a lei eivada de vício presume-se constitucional e portanto, cogente; uma vez declarada a inconstitucionalidade, porém, os atos praticados sob a égide da lei viciada deverão reputar-se, a posteriori, ilícitos, e acarretar a responsabilidade do Estado pelos danos emergentes.
O problema concentra-se, assim na questão dos atos legislativos lícitos causadores de danos a terceiros. Embora não haja quanto à responsabilização do Estado consenso doutrinário a maioria da doutrina inclina-se pela tese da admissão do direito à indenização quando o ato legislativo constitucional atingir direta e imediatamente um particular ou grupo específico de particulares. O dano generalizado seria qualificado como encargo social, devendo ser suportado por todos os prejudicados, enquanto que o dano excepcional, desigual e grave, produzido pela norma legal, poderia, este sim, originar o ressarcimento sob o fundamento de violação ao princípio da igualdade de todos perante os encargos públicos. Apesar de relativo consenso, dissentem os autores na determinação da noção de dano especial e em seus contornos dogmáticos como a relevância do fato do lesado, a relação entre dano decorrente da própria lei e dano resultante da execução da lei, etc.
Os textos doutrinários, via de regra, não abordam em profundidade o tema e seus desdobramentos, limitando-se a afirmações peremptórias, ou, quando muito, escudadas na aplicação acrítica da doutrina francesa da responsabilidade do Estado legislador.
Um ponto a ser salientado é, contudo, a abordagem que a doutrina faz de um instituto relativamente novo: a responsabilidade estatal por omissões legislativas. Embora incipiente a discussão tornou-se fecunda nos últimos anos com diversos autores questionando a existência também de uma responsabilidade do Estado pela omissão inconstitucional no dever de legislar.
Jurisprudência sobre a responsabilidade civil do Estado legislador
Para verificarmos, na prática, como vem sendo o tratamento dado à responsabilidade civil do Estado enquanto legislador, vamos analisar o posicionamento jurisprudencial.
Em setembro de 1992, o STF reconhece nos fundamentos de uma decisão, que o Estado responde civilmente pelo desempenho inconstitucional da função de legislar, ou seja, pelos danos causados aos particulares decorrentes da própria norma jurídica e não de atos de execução da lei. Tratava a questão da lei nº 8024/90 que ao instituir o cruzeiro e dispor sobre a liquidez de ativos financeiros, determinou o bloqueio de cruzados novos, com restituição a ser feita em doze parcelas iguais, a partir de 16 de setembro de 1991.
Considerando que o recurso extraordinário para confirmação de decisão de desbloqueio imediato de cruzados novos objeto de retenção por efeito daquele ato legislativo estava prejudicado em função da restituição integral dos ativos financeiros bloqueados ultimada em 17 de agosto de 1992, o STF devolveu os autos à origem. Entretanto, o Ministro Celso de Mello (1992, p. 305-306) expressamente fundamentou que nada impedia que se demandasse, em sede processual adequada, a reparabilidade civil dos danos eventualmente causados pelo Estado, porque este responde pelo desempenho inconstitucional da função de legislar:
“Essa circunstância, contudo, não impede que se discuta, em sede processual adequada – e perante o juízo competente – o tema concernente à reparabilidade civil dos danos eventualmente causados pelo Estado por ato inconstitucional.
A elaboração teórica em torno da responsabilidade civil do Estado por atos inconstitucionais tem reconhecido o direito de o indivíduo, prejudicado pela ação normativa danosa do poder público, pleitear, em processo próprio, a devida indenização patrimonial.
A orientação da doutrina, desse modo, tem-se fixado, na análise desse particular aspecto do tema, no sentido de proclamar a plena submissão do poder público ao dever jurídico de reconstituir o patrimônio dos indivíduos cuja situação pessoal tenha sofrido agravos motivados pelo desempenho inconstitucional da função de legislar.”
Assentou-se então na jurisprudência o princípio doutrinário de que o Estado submete-se integralmente à ordem jurídica, inclusive no exercício da função legislativa, e que o desempenho inconstitucional da função de legislar gera o direito à reparação dos danos sofridos.
O mesmo Ministro Celso de Mello (1993, p. 175-177) reafirmou esse entendimento ao despachar o Recurso Extraordinário nº 158.962 de 04 de dezembro de 1992.
Não obstante o pronunciamento da mais alta Corte do país, a matéria não se acha plenamente pacificada na jurisprudência, havendo ainda decisões judiciais que, com alicerce na idéia teórica de ineficácia da lei inconstitucional, não admitem a possibilidade de que esta possa causar danos concretos aos particulares. Como esta decisão da 2ª Turma do TRF da 4ª Região (1991, p. 4552):
“Legitimidade passiva – Responsabilidade da União por atos legislativos – Alteração de normas relativas a cadernetas de poupança. 1. A atividade legislativa ou é exercida segundo a Constituição ou contra a Constituição. 2. Em qualquer caso inexiste responsabilidade do Estado. Na primeira hipótese, porque o ato será legítimo e dele não poderá decorrer prejuízo indenizável; na segunda, porque o ato legislativo será ineficaz, não podendo gerar qualquer efeito em relação à situação jurídica de seus destinatários. 3. A União Federal, portanto, não pode, em razão de sua atividade legislativa, ser considerada litisconsorte passiva da instituição financeira depositária de recursos de cadernetas de poupança. A caderneta de poupança é contrato de depósito estabelecido entre a instituição financeira e seu cliente. Embora sujeito a regras ditadas pelo Estado, o contrato não perde a natureza de contrato particular. Aliás, a cada vez mais constante presença legislativa do Estado limitando a autonomia da vontade na formação do contrato não é privilégio dos ajustes bancários. Basta citar, da mesma estirpe, os contratos de trabalho, de locação, de transporte e tantos outros. Embora ditando regras de natureza cogente em relação a tais pactos, nem por isso o Estado a eles se vincula e nem é parte na relação jurídica que deles nasce. Não há porque, ademais, pretender a responsabilidade do Estado por alegados prejuízos que decorreriam a uma das partes em razão de alteração legislativa.”
Outro assunto importante que analisamos seu reconhecimento pela jurisprudência pátria está na responsabilidade civil do Estado por ato legislativo constitucional. A mesma ainda não é reconhecida pela jurisprudência. Os tribunais pátrios não admitiram o rompimento do princípio da igualdade de todos os indivíduos diante dos encargos públicos como fundamento da responsabilidade civil do Estado por ato legislativo, ou seja, a idéia segundo a qual o prejuízo sofrido pelo particular dará lugar à indenização estatal toda vez que este prejuízo seja especial em relação a uma determinada categoria de indivíduos.
O que vem sendo aceito pelos tribunais é a indenizabilidade do prejuízo resultante do ato legislativo que impõe medidas restritivas ao exercício de uma indústria ou de uma atividade econômica, ou a faculdades inerentes à propriedade, com a modificação do direito anterior e suprimindo ou diminuindo certas vantagens ou proveitos que antes eram desfrutados pelo particular, desde que, através dessa regulamentação, se atinja a essência do direito de propriedade, equivalendo à sua supressão por meios indiretos. Fundamenta-se a pretensão à indenização, ainda aqui, segundo os tribunais, num ato ilícito, a violação do princípio constitucional que assegura a proteção ao direito de propriedade.
Tem decidido nessa linha reiterada, quanto às restrições impostas por lei especial à derrubada de matas pelo proprietário rural com vistas à preservação de reservas florestais, a jurisprudência do STJ:
“STJ. 1ª Turma: Não é negado ao Poder Público o direito de instituir parques nacionais, contanto que o faça respeitando o sagrado direito de propriedade, assegurado pela Constituição. Não é para confundir as limitações da lei nº 4771/65 com a proibição de desmatamento e uso da floresta que cobre totalmente a propriedade, porque seria ‘interdição de uso de propriedade’, salvo indenização devida. (13.3.91, RDA 183/134)
STJ. 1ª Turma. : Ao direito do Poder Público de instituir parques corresponde a obrigação de indenizar em respeito ao direito de propriedade assegurado pela Constituição. Há que se distinguir a simples limitação administrativa da supressão do direito de propriedade. A proibição de desmatamento e uso de floresta que cobre a propriedade é interdição de uso da propriedade, só possível com indenização prévia, justa e em dinheiro, como compensação pela perda total do direito de uso da propriedade e desaparecimento de seu valor econômico. (REsp. 19.630, 19.08.92, DJU, I, 19.10.92, p. 18.217)
STJ. 1ª Turma : O direito de instituir parques nacionais, estaduais ou municipais há de respeitar o direito de propriedade, assegurado na Constituição. Da queda do muro de Berlim e do desmantelamento do império comunista russo sopram ventos liberais em todo o mundo. O Estado todo-poderoso e proprietário de todos os bens e que preserva apenas o interesse coletivo, em detrimento dos direitos e interesses individuais, perde a sobrevivência. Recurso provido”. (REsp. 32.222-PR, 17.5.93, DJU 21.06.93, p. 12351) (CAHALI, 1996, p. 563)”
A responsabilidade civil do Estado legislador, reconhecida pelo Tribunal, na prática, muitas vezes o é sob fundamento diverso, qual seja, a desapropriação indireta, o que isenta o julgador de enfrentar diretamente os tormentosos problemas da responsabilidade por ato legislativo. Como nesse caso julgado pelo 1º Tribunal de Alçada Cível de São Paulo:
“1º TACivSP, 4ª C.: A desapropriação indireta consiste no fato de apropriar-se a Administração dos bens de um particular sem o emprego dos processos legais. Se, em virtude de lei municipal, um terreno não pode ser murado, mas sim gramado, serve de logradouro público e tem seu aproveitamento econômico impedido, encontrando-se, praticamente, fora do comércio, impõe-se a conclusão de que foi apropriado pelo Poder Público, o qual, conseqüentemente, deve pagar a indenização devida. (22.11.72, maioria, RT 454/139)”
Como se deduz do exame acima, a responsabilidade civil do Estado legislador no Brasil recebe uma aceitação bastante escassa nos Tribunais. Limita-se essa, consensualmente, à indenização dos danos decorrentes de ato administrativo baseado em lei posteriormente declarada inconstitucional pelo Judiciário.
Conclusão
No que tange à própria responsabilidade que decorre diretamente da lei inconstitucional, a admissibilidade jurisprudencial é restrita, fundando-se, não obstante, em decisões pacíficas do STF. A Suprema Corte tem adotado nesse particular comportamento inovador, reconhecendo o direito à indenização mesmo nos casos de planos macroeconômicos, quando é preponderante o relevante interesse público a confrontar-se com o direito dos particulares.
Contudo, mesmo nesses casos, a fundamentação das decisões judiciais é reduzida e não são abordados aspectos laterais porém relevantes como a culpa do lesado e a relação entre a lei e o seu regulamento.
Praticamente inexistente é o reconhecimento da responsabilidade civil do Estado por atos lícitos. Essas questões, ou não são abordadas, ou o são, com fundamento em forçosas analogias com outros institutos como o apossamento e a desapropriação indireta. Procura ainda a jurisprudência brasileira conduzir a discussão para a questão da violação do sacrossanto direito de propriedade, retornando para o terreno doutrinário sólido da responsabilidade do Estado pelo desempenho inconstitucional da função de legislar.
Informações Sobre o Autor
Reno Sampaio Mesquita Martins
Procurador da Fazenda Nacional