Resumo: O presente artigo procura analisar o direito falimentar brasileiro sob a ótica de seu sujeito passivo, sobretudo dos sócios que podem ser chamados a responder pelos débitos da sociedade falida. Neste sentido, analisar-se-á a desconsideração da personalidade jurídica na falência, bem como a forma de apuração da responsabilidade pessoal dos sócios, controladores e administradores, sem descurar da extensão da falência a grupos de empresas.
Palavras-chave: Falência. Responsabilidade Pessoal dos Sócios. Desconsideração da Personalidade Jurídica. Extensão da Falência a Grupos de Empresas.
Abstract: Bankruptcy. Personal Liability of Partners. Disregard of Legal Entity. Extension of the Bankruptcy for Groups of Companies.
Keywords: Bankruptcy. Personal Liability. Disregard of Legal Entity.
Sumário: Introdução. 1. Antecedentes Históricos. 2. Caracterização da Falência. 3. Sujeito Passivo da Falência. 4. Sócios Ilimitadamente Responsáveis. 5. Apuração da Responsabilidade Pessoal dos Sócios de Responsabilidade Limitada, Controladores e Administradores. Desconsideração da Personalidade Jurídica. 5.1. A Figura do Administrador de Fato. 5.2. Desconsideração da Personalidade Jurídica. 6. Extensão da Falência a Grupos de Empresas, de Fato ou de Direito. Conclusão. Referências.
Introdução
A finalidade do presente estudo é abordar o instituto da execução concursal aplicável às sociedades empresárias, com ênfase na análise da apuração da responsabilidade dos sócios limitada e ilimitadamente responsáveis pelas obrigações sociais.
Neste sentido, procurar-se-á apenas delimitar o instituto da falência no sistema jurídico nacional, com breves referências à legislação alienígena, quando conveniente, apontando seus pressupostos e requisitos fundamentais. Deixar-se-á de lado, em razão do corte metodológico proposto, a análise do procedimento falimentar, efeitos da falência e demais aspectos relativos ao tema de que ora se trata.
1. Antecedentes históricos
Historicamente, o processo de execução surgiu com a figura da manusinjectio, uma das cinco ações previstas no direito romano em sua primeira fase.[1]Inicialmente, a garantia do credor residia sobre o próprio corpo do devedor, o que permitia, no extremo, se repartissem tantos pedações do devedor quanto fossem seus credores. A história, porém, nos dá conta de que tal comportamento nunca fora, efetivamente, adotado, haja vista sua incompatibilidade com os costumes vigentes ao tempo de sua existência.
De qualquer forma, residindo a garantia do credor sobre o próprio corpo do devedor, permitia-se ao primeiro que, ante o inadimplemento de seu crédito, levasse o devedor à venda nas feiras, na condição de escravo, ou, através do nexum, que o devedor obrigasse a prestar serviços ao credor até a integral satisfação do crédito deste.
A garantia do credor incidente sobre o próprio corpo do devedor desaparece com o advento da Lex PoeteliaPapiria (326 a.C ou 428 a.C)[2], a partir da qual a garantia do credor passa a residir sobre o patrimônio do devedor inadimplente.
No que pertine ao comércio propriamente dito, este experimenta excepcional desenvolvimento na Idade Média com o surgimento das corporações de ofício. De fato, o conjunto de decisões expedidas por tais corporações deram origem ao primitivo direito comercial, onde a inadimplência por parte dos seus membros implicava na expulsão de tal ordem. A expulsão, atente-se, dava-se por intermédio de um ato simbólico, qual seja, a quebra da banca do comerciante nas feiras medievais, fato do qual decorre a expressão até hoje utilizada “quebra”, “bancarrota” (direito italiano) e “bankruptcy” (direito americano e inglês). Por trás da severidade de tais consequências estava presente o verdadeiro intuito da expulsão e da quebra da banca: a preservação do crédito e da higidez do mercado. Neste sentido:
“… a partir do momento em que o comércio ganha espaço nas relações socioeconômicas, a tutela do crédito adquire contornos mais específicos.
De um lado, porque a concessão do crédito – tanto pelos banqueiros quanto pelos fornecedores – projeta-se ao longo da cadeia negocial; de outro, porque parece razoável se impeça ao comerciante, desatento às suas obrigações, tendo em vista o poder de contágio dos efeitos que sua ação pode acarretar, continue a gozar das vantagens e benefícios que os demais têm no que diz respeito a prazo para solver suas obrigações.”[3]
Esta concepção de predisposição das normas para proteção do crédito se torna mais intensa com o aprofundamento da economia liberal, o que leva a denominada Escola de Chicago a criar a análise econômica do direito e a orientar a análise das normas jurídicas de acordo com o princípio da eficiência. Neste sentido, e adotando as lições de Kronman, as normas jurídicas são eficientes “quando permitem a maximização da riqueza global, mesmo que isto seja feito à custa de prejuízo a um agente econômico específico”[4]. E, trazendo a questão de volta para o tema que nos interessa, resta claro que a eficiência proposta pela indigitada teoria é atingida pela retirada do empresário “quebrado” do mercado, com vistas à maximação da riqueza por intermédio da circulação hígida do crédito entre os diversos agentes econômicos.
Fundada neste premissa, a nova lei falimentar (Lei nº 11.101/2005) procurar facilitar a recuperação do crédito, seja por intermédio da preservação da unidade produtiva (recuperação judicial ou extrajudicial), seja por meio da liquidação do patrimônio do devedor para pagamento pro rata dos credores (falência), saneando-se o mercado e permitindo-se a maximização da riqueza global.[5]A falência, perde, com isso, o caráter de pena ao devedor faltoso, passando a ser vista como instrumento de recuperação da empresa:
“Após a 2ª Grande Guerra nota-se abrandamento no tratamento sancionatório dado às empresas faltosas. O movimento tem início em 1978, nos Estados Unidos, com a corporatereorganization ao que segue o BanckrupcyReformAct de 1979 e que consubstancia a tentativa de recuperar a empresa em crise sem prejudicar a satisfação de seus credores, que se espalha pelos diferentes ordenamentos jurídicos. A ideia é sanear erecuperar a empresa com ênfase ao pressuposto objetivo econômico e aos pré-concursais e pré-falimentares. Para tanto tem-se, inclusive, a criação de órgãos públicos, cuja função é adquirir o controle das empresas em crise e saneá-las (v.g., IRI, IDF, NEB).(…)
No Brasil esta tendência traduziu-se pelo projeto de Lei nº 4.376/1993, ao depois transmudado na Lei n 11.101/2005, que entrou em vigor em 10 de junho do mesmo ano com a finalidade de:
– eliminar a empresa inviável;
– afastar o empresário faltoso;
– preservar a empresa como unidade de produção;
– tutelar a circulação do crédito.”[6]
2. Caracterização da Falência
A evolução do direito falimentar brasileiro demonstra que vários foram os critérios adotados para a caracterização do estado de falência. Neste sentido, podemos enumerar:[7]
“- Código Comercial de 1.850: em seu art. 797 previa que a falência se caracterizava pelo desequilíbrio econômico, confessado pela incapacidade de pagar;
– Decreto nº 917, de 24 de Outubro de 1.890: prática de atos ou fatos descritos no seu art. 1º, notadamente a impontualidade de obrigação líquida e certa no seu vencimento[8];
– Lei nº 859, de 16 de Agosto de 1.902[9];
– Decreto nº 4.855, de 2 de junho de 1.903[10];
– Lei nº 2.024, de 17 de dezembro de 1.908[11];
– reto nº 5.746, de 9 de dezembro de 1.929[12];
– Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1.945”[13].
A Lei nº 11.101/2005, em seu art. 94, agora vigente, define os requisitos para caracterização da falência:
“Art. 94. Será decretada a falência do devedor que:
I – sem relevante razão de direito, não paga, no vencimento, obrigação líquida materializada em título ou títulos executivos protestados cuja soma ultrapasse o equivalente a 40 (quarenta) salários-mínimos na data do pedido de falência;
II – executado por qualquer quantia líquida, não paga, não deposita e não nomeia à penhora bens suficientes dentro do prazo legal;
III – pratica qualquer dos seguintes atos, exceto se fizer parte de plano de recuperação judicial:
a) procede à liquidação precipitada de seus ativos ou lança mão de meio ruinoso ou fraudulento para realizar pagamentos;
b) realiza ou, por atos inequívocos, tenta realizar, com o objetivo de retardar pagamentos ou fraudar credores, negócio simulado ou alienação de parte ou da totalidade de seu ativo a terceiro, credor ou não;
c) transfere estabelecimento a terceiro, credor ou não, sem o consentimento de todos os credores e sem ficar com bens suficientes para solver seu passivo;
d) simula a transferência de seu principal estabelecimento com o objetivo de burlar a legislação ou a fiscalização ou para prejudicar credor;
e) dá ou reforça garantia a credor por dívida contraída anteriormente sem ficar com bens livres e desembaraçados suficientes para saldar seu passivo;
f) ausenta-se sem deixar representante habilitado e com recursos suficientes para pagar os credores, abandona estabelecimento ou tenta ocultar-se de seu domicílio, do local de sua sede ou de seu principal estabelecimento;
g) deixa de cumprir, no prazo estabelecido, obrigação assumida no plano de recuperação judicial.”
3. Sujeito Passivo da Falência
O âmbito de aplicação da LRF está descrito em seu art. 1º, onde se lê o seguinte:
“Art. 1o Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor.”
Verifica-se, portanto, que apenas o empresário e a sociedade empresária estão sujeitos à declaração da falência. O Código Civil (CC), em seu art. 966, define o que se considera por empresário:
“Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.
Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.”
Observe-se que o conceito de empresário aqui descrito aplica-se tanto ao empresário pessoa física (empresário individual) como ao empresário pessoa jurídica (sociedade empresária), estando infensos à disciplina desta lei[14]:
– Sociedades Simples: art. 997 a 1.038 do Código Civil[15];
-Exercentes de profissão intelectual, exceto se organizarem elementos de empresa (organização dos fatores de produção – capital, mão-de-obra, insumos e tecnologia): art. 966, parágrafo único, CC);
-Exercentes de atividade rural não inscritos no Registro Público de Empresas Mercantis: art. 971, CC;
– Cooperativas: art. 982, parágrafo único, CC.[16]
Por outro lado, cumpre consignar que as sociedades por ações, seja qual for o seu objeto, sempre serão consideradas empresárias (art. 987, parágrafo único, CC) e, por isto, sujeitas ao regime falimentar, observadas as exceções legais (art. 2º, LRF).
Verificada a sujeição ao regime falimentar, cumpre-nos, agora, verificar quem não se sujeita ao regime de execução concursal previsto na Lei nº 11.101/2005. A este respeito dispõe o art. 2º da LRF:
“Art. 2o Esta Lei não se aplica a:
I – empresa pública e sociedade de economia mista;
II – instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores.”
A respeito da exclusão do direito falimentar, preleciona Fábio Ulhoa Coelho:
“… a lei prevê hipóteses de exclusão total ou parcial do regime falencial. Quando totalmente excluída da falência, a sociedade empresária devedora com ativo inferior ao passivo (menos bens em seu patrimônio do que o necessário ao pagamento dos débitos) submete-se sempre a regime de execução concursaldiverso do falimentar. Chama-se, também, a hipótese de exclusão absoluta. Quando, de outra lado, é parcialmente excluída da falência, submete-se a sociedade empresária a procedimento extrajudicial de liquidação concursalalternativo ao processo falimentar. Essa hipótese é também chamada de exclusão relativa. Uma sociedade empresária excluída totalmente da falência não pode, em nenhuma hipótese, submeter-se ao processo falimentar como forma de execução concursal de suas obrigações, isto é, ela nunca pode falir. Já a excluída parcialmente, em determinados casos discriminados por lei, pode ter o seu patrimônio concursalmente executado por via da falência. Ou seja, nesse último caso, ela não pode falir em determinadas situações.(…)
Duas são as hipóteses de exclusão absoluta. A primeira diz respeito às empresas públicas e sociedades de economia mista[17], que estão totalmente excluídas do processo falimentar (LF, art. 2º, I).(…)
A segunda hipótese de exclusão absoluta do direito falimentar alcança as câmaras ou prestadoras de serviços de compensação e de liquidação financeira.(…)
As sociedades empresárias relativamente excluídas do direito falimentar são três: as companhias de seguro, operadoras de planos privados de assistência à saúde[18] e instituições financeiras.”[19]
4. Sócios Ilimitadamente Responsáveis
A personalização da sociedade empresária, nos termos do art. 985 do CC, tem início com a arquivamento de seus atos constitutivos no Registro Publico das Empresas Mercantis, como se infere da seguinte redação:
“Art. 985. A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos (arts. 45 e 1.150).”
Da personalização da sociedade decorrem três importantes consequências, a saber: titularidade obrigacional, titularidade processual e responsabilidade patrimonial.[20]
No que pertine à responsabilidade patrimonial, resta claro do ordenamento jurídico nacional (art. 990, CC, a contrario sensu) que a aquisição de personalidade jurídica cria um novo centro de imputação, o qual passa a ser responsável patrimonialmente por seus atos. Desta maneira, deixa de confundir-se com seu patrimônio próprio o patrimônio pessoal dos sócios que a integram, os quais somente podem tê-los atingidos em hipóteses excepcionais, a depender do tipo societário adotado. Neste sentido confira-se a lição de Manoel de Queiroz Pereira Calças:
“De acordo com o Código Civil, respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais : (i) na sociedade em nome coletivo, todos os sócios (art. 1039; (ii) na sociedade em comandita simples, os sócios comanditados (art. 1045) ; (iii) na sociedade em comandita por ações, o acionista-diretor (art. 1091); (iv) na sociedade em comum (irregular), todos os sócios, respondendo solidariamente com a sociedade o sócio que por ela contratou (art. 990). Tais sócios, portanto, serão atingidos pela sentença de falência das respectivas sociedades; e, por isso, apesar de não serem considerados empresários (art. 966), serão declarados falidos. Indispensável, assim, a citação de tais sócios, nos termos dos arts. 81 e 98 da LRF, contando-se o prazo em dobro para a contestação desde que delineada a situação do art. 191 do CPC.”[21]
Para estas hipóteses em que os sócios respondem ilimitadamente pelas obrigações sociais, prevê o art. 81 da LRF:
“Art. 81. A decisão que decreta a falência da sociedade com sócios ilimitadamente responsáveis também acarreta a falência destes, que ficam sujeitos aos mesmos efeitos jurídicos produzidos em relação à sociedade falida e, por isso, deverão ser citados para apresentar contestação, se assim o desejarem.
§ 1o O disposto no caput deste artigo aplica-se ao sócio que tenha se retirado voluntariamente ou que tenha sido excluído da sociedade, há menos de 2 (dois) anos, quanto às dívidas existentes na data do arquivamento da alteração do contrato, no caso de não terem sido solvidas até a data da decretação da falência.
§ 2o As sociedades falidas serão representadas na falência por seus administradores ou liquidantes, os quais terão os mesmos direitos e, sob as mesmas penas, ficarão sujeitos às obrigações que cabem ao falido.”
Trata-se de regra diversa da legislação anterior, onde os sócios de responsabilidade ilimitada sujeitavam-se aos efeitos da falência, mas não eram considerados falidos:
“Art. 5° Os sócios solidária e ilimitadamente responsáveis pelas obrigações sociais não são atingidos pela falência da sociedade, mas ficam sujeitos aos demais efeitos jurídicos que a sentença declaratória produza em relação à sociedade falida. Aos mesmos sócios, na falta de disposição especial desta lei, são extensivos todos os direitos e, sob as mesmas penas, tôdas as obrigações que cabem ao devedor ou falido.”
Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se ao sócio de responsabilidade solidária que há menos de dois anos se tenha despedido da sociedade, no caso de não terem sido solvidas, até a data da declaração da falência, as obrigações sociais existentes ao tempo da retirada. Não prevalecerá o preceito, se os credores tiverem consentido expressamente na retirada, feito novação, ou continuado a negociar com a sociedade, sob a mesma ou nova firma.
São, portanto, requisitos para que a extensão da falência aos sócios ilimitadamente responsáveis: a) requerimento por quem de direito[22]; b) observância do contraditório; c) ser o sócio ilimitadamente responsável pelas obrigações sociais, de acordo com as normas de direito material. Vê-se, assim, a possibilidade de quem não ostenta a condição de empresário ou sociedade empresária submeter-se ao regime da LRF, em que pese o disposto no seu art. 1º. A respeito do tema, assim já decidiu o E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
“Agravo. Falência de sociedade limitada, sócia ostensiva em contrato de sociedade em conta de participação. Decisão judicial que determina a arrecadação de todas as máquinas que integram o patrimônio social da sociedade falida. Pretensão do agravante, intitulando-se sócio participante (oculto) de liberar 50% das máquinas, sob o argumento de que são de sua propriedade. Sociedade em conta de participação que não tem patrimônio social autônomo, mas sim, patrimônio especial, ou seja, patrimônio de afetação. A falência da sociedade ostensiva acarreta a dissolução da sociedade em conta de participação e sua liquidação sob o rito da ação de prestação de contas. Sócio oculto que gerencia a sociedade em conta de participação responde solidaria e ilimitadamente pelas obrigações derivadas dos negócios em que interveio. Manutenção da decisão que ordenou a arrecadação dos bens e o depósito judicial do faturamento decorrente da atividade da sociedade em conta de participação. Agravo improvido.”[23]
Questão também relevante é a constante do § 1º do art. 81, que prevê a possibilidade de que o sócio de responsabilidade limitada que se retirou voluntariamente da sociedade nos dois anos anteriores à falência seja declarado falido pelas dívidas existentes por ocasião do arquivamento da alteração do contrato/estatuto social, caso ainda não solvidas até a data da declaração da quebra. Embora seja indiscutível a necessidade de sua citação para integrar a lide e, querendo, apresentar contestação[24], questiona-se se este regime também seria aplicável àquele que faleceu nas mesmas condições descritas no enunciado normativo (a menos de dois anos da decretação da falência com dívidas não solvidas contemporâneas à alteração contratual). Acerca do tema preleciona Manoel de Queiroz Pereira Calças, para quem a doutrina inclina-se no sentido da interpretação restritiva do art. 81, § 1º, da LRF, o qual incide apenas nos casos de retirada voluntária ou exclusão da sociedade, não estando subsumidos à hipótese legal os casos de óbito e venda da participação societária.[25]
Para colmatar, importante perquirir se não haveriam outros meios de obter o mesmo resultado (ampliação da massa falida objetiva) sem o resultado indesejável da ampliação da massa falida subjetiva. A respeito do tema preleciona Paulo Fernando Campos Salles de Toledo, citando Fábio Ulhoa Coelho:
“Fábio Ulhoa Coelho, em artigo a respeito da matéria (2009, p. A11), lembra, desde logo, três dessas alternativas legais. A primeira é a ação de integralização de ações ou quotas subscritas do capital social da falida, que a antiga lei de Falências previa expressamente no art. 50. (…)
A segunda opção mencionada corresponde à responsabilidade civil de sócios, controladores e administradores, estabelecida nas respectivas leis e que será apurada “independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo”.
A terceira via a ser mencionada é a da revocatória falimentar. (…)
Mas o ordenamento jurídico, além disso, apresenta mais uma solução que preenche perfeitamente as finalidades visadas pela extensão da falência. Refiro-me à desconsideração da personalidade jurídica. (…)”[26]
5. Apuração da responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilidade limitada, controladores e administradores. Desconsideração da personalidade jurídica
No que tange à responsabilidade pessoal de sócios de responsabilidade limitada, administradores e controladores, dispõe o art. 82 da LRF:
Art. 82. A responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilidade limitada, dos controladores e dos administradores da sociedade falida, estabelecida nas respectivas leis, será apurada no próprio juízo da falência, independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo, observado o procedimento ordinário previsto no Código de Processo Civil.
§ 1o Prescreverá em 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da sentença de encerramento da falência, a ação de responsabilização prevista no caputdeste artigo.
§ 2o O juiz poderá, de ofício ou mediante requerimento das partes interessadas, ordenar a indisponibilidade de bens particulares dos réus, em quantidade compatível com o dano provocado, até o julgamento da ação de responsabilização.
Observe-se que o próprio juízo da falência será responsável para apuração da indigitada responsabilidade, independentemente da realização do ativo e da prova da insuficiência para pagamento do passivo[27], sendo certo que a pretensão da massa prescreve no prazo de dois anos a contar do trânsito em julgado da sentença de encerramento da falência.
Na esteira do escólio de Fábio Ulhoa Coelho, podemos dizer que o presente dispositivo aplica-se a quatro sujeitos: ao sócio da sociedade limitada, administrador da sociedade limitada, acionista controlador da sociedade anônima e administrador da sociedade anônima.[28]
O sócio da sociedade por cotas de responsabilidade limitada responderá pessoalmente pelas obrigações sociais e, por isso, poderá ser responsabilizado no processo falimentar em duas hipóteses: quando participar de deliberação social contrária à lei ou contrato social (art. 1080, CC) e, juntamente com os demais sócios, pela integralização do capital social anteriormente subscrito (art. 1052, CC).[29] O administrador das limitadas, a seu turno, responderá pessoalmente pelas obrigações sociais quando descumprir os deveres inerentes a seu cargo (art. 1011, CC), sendo a responsabilidade sempre subjetiva[30].
Relativamente ao controlador da sociedade por ações, temos que o mesmo responderá pelas obrigações sociais quando incorrer no abuso do poder de controle (art. 117, LSA), o que dependerá da demonstração do interessado (responsabilidade subjetiva).
Por derradeiro, o administrador da sociedade anônima incorrerá na hipótese até aqui tratada quando incorrer em ilícito na condução dos negócios sócias (art. 158, LSA).[31]
Como o art. 82 faz referência à apuração da responsabilidade pelo próprio juízo da falência, com observância do procedimento comum ordinário do CPC, pensamos que a responsabilização das pessoas aqui referidas deverá ser precedida de requerimento pela parte interessada e legitimada para tanto, o qual deverá ser autuado em apenso aos autos da falência.[32]
5.1. A figura do administrador de fato
O até aqui lançado permite inferir que a lei de falências, sempre no escopo de viabilizar a recuperação do crédito e preservar a empresa, permite responsabilizar os sócios de responsabilidade limitada nos casos acima especificados (da desconsideração da personalidade trataremos abaixo), além de prever a falência por extensão dos sócios de responsabilidade ilimitada (art. 81).
Verifica-se, contudo, que o art. 82 faz referência ao controlador e administrador da sociedade falida, corte este que pode levar a injustiças, mormente quando determinado acionista, sem deter o poder de controle ou participar formalmente da administração, determina, por sua posição de destaque, os rumos da atividade empresarial.
Surge, em razão disso, no direito comparado, a figura do administrador de fato, que não goza de poderes legais de administração ou controle mas participa, ativamente, na determinação do destino da empresa. Neste caso, prevê-se que a ele deverão ser extensíveis as mesmas consequências aplicáveis aos controladores e administradores, caso se constato exercício ilegal ou abusivo de seu direito. Neste sentido, preleciona Francisco Reyes Villamizar:
“O sistema de administradores de fato, tomado no Direito Comparado de sociedades, aponta no sentido de tornar extensíveis as responsabilidades legais aplicáveis aos administradores a outros indivíduos que, sem ocupar cargos formais dentro da companhia, exerçam atividades positivas de administração ou gestão.”[33]
A doutrina, que teve início na jurisprudência norte americana no julgamento do caso Donahuevs. RoddElectrotypeCo.[34], pode ser tomada de empréstimo no tema que estamos a tratar: poderia um sócio ou acionista, que não ostenta a condição formal de administrador ou controlar, ver-se responsabilizado pessoalmente pelas obrigações sociais em caso de danos causados aos demais sócios? Pensamos que, no Brasil, a solução possa ser dada pela análise do art. 187 do Código Civil:
“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”
Assim, a conduta do administrador de fato que lese interesse de terceiros poderá constituir ato ilegal, se violar o contrato ou estatuto ou, na falta desta circunstância, exercício abusivo de seu direito, o qual poderá gerar sua responsabilidade no próprio procedimento falimentar, na esteira do art.82 da LRF.
5.2. Desconsideração da personalidade jurídica
O instituto da desconsideração da personalidade jurídica surgiu com o julgamento do caso “Salomon vs. Salomon”, julgado no final do século XIX na Inglaterra, tendo sido aplicado, também, no direito norte americano, no julgamento do caso “Bank of United Statesvs.Deveaux[35]. Em ambos os precedentes da common law encontra-se como elemento essencial à superação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica o uso da personalidade de forma abusiva, desvirtuada de seus fins, com danos a terceiros que com ela contratem.
Na doutrina, a desconsideração da personalidade jurídica tem início com os estudos de Bigiavi, que, embora sem empregar tal expressão, fazia referência à figura do “sócio tirano”, isto é, daquele que faz uso da sociedade como coisa própria.[36]O indigitado autor conclui, após equipará-lo à figura do sócio único, que a consequência legal para seu comportamento seria a sua responsabilidade ilimitada, com fundamento no art. 2.362 do CodiceCivile. Tal entendimento, em que pese sua relevância para a matéria, tem poucos adeptos na atualidade, em virtude da interpretação restritiva que se tem dado ao indigitado art. 2362 do Código Civil Italiano.[37]
Nos anos 50 surge a primeira sistematização doutrinária da desconsideração da personalidade jurídica, pela obra de Rolf Serick. Fundado numa teoria unitarista da pessoa jurídica, que nela vê uma essência pré-normativa, cujo valor próprio contrapor-se-ia e sobrepor-se-ia ao objetivo de uma norma específica, define a desconsideração com um conceitotécnico específico, contraposto e excepcional em relação à pessoa jurídica.[38]
Dentro da visão unitarista proposta por Serick podem ser encontradas duas vertentes: a) a que procura justificar a desconsideração de um posto de vista objetivo-institucional (Immenga), utilizando critérios como utilização da contrária aos estatutos, à função ou objetivo da pessoa jurídica; b) a que procura justificar a desconsideração a partir do uso intencional da autonomia da pessoa jurídica com finalidade fraudulenta (Serick e Galgano).[39]
Na lição de Calixto Salomão Filho, a adoção irrestrita da teoria em comento leva a suas implicações: a) admitir a desconsideração apenas para atribuir responsabilidade a sujeito diverso do devedor; b) somente tem lugar a desconsideração em caso de falência do devedor.[40]
A última conclusão, por óbvio, atrita com a própria finalidade da desconsideração, que é a superação episódica da autonomia patrimonial para atingir o patrimônio pessoal do sócio, preservando-se, com isso, a integridade da unidade produtiva.[41]
Em contraposição à teoria proposta por Serick, Müller-Freienfels vê na desconsideração uma técnica de aplicação de normas que permite atribuir valor diferenciado a diversos conjuntos normativos. Assim, não caberia a desconsideração apenas nos casos de fraude, mas, sobretudo, sempre que, numa análise valorativa, à luz do direito aplicável, a desconsideração fosse mais importante que a autonomia patrimonial.[42]Assim, a “pessoa jurídica concebida como um centro de imputação de normas é sustentável como tal apenas na medida em que o escopo de cada regra o permita.”[43]Desse entendimento decorrem as figuras da desconsideração atributiva, da desconsideração para fins de responsabilidade, da desconsideração em sentido inverso e da desconsideração em benefício do sócio.[44]
No Brasil, a análise da doutrina e jurisprudência permitem inferir a aproximação com a teoria de Serick (fundando-se, em especial, na fraude perpetrada por intermédio da autonomia patrimonial), em que pese as hipóteses de desconsideração para fins de responsabilidade (art. 135, III, CTN, bem como no âmbito trabalhista).
Em matéria falimentar, é cediço o entendimento no sentido do cabimento da desconsideração da personalidade jurídica, a qual pode ser decretada incidentalmente no processo, observado o devido processo legal:
“Agravo de Instrumento. Falência. A desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, para atingir o patrimônio particular de sócios de responsabilidade limitada, pode ser declarada incidentalmente no processo de falência, desde que observada a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal, devendo ser comprovados os requisitos do art. 50 do Código Civil. Não observados os princípios constitucionais impõe-se a anulação da decisão e a revogação da ordem de constrição dos bens particulares dos sócios. Agravo provido.”[45]
“Agravo de Instrumento. Falência de sociedade limitada. Desconsideração da personalidade jurídica da sociedade e extensão dos efeitos da falência aos sócios-administradores deferida a requerimento do Administrador Judicial e do representante do Ministério Público. Arrecadação de bens particulares dos sócios administradores. Desconsideração da personalidade jurídica decretada com base no artigo 50 do CC, sob o argumento de que houve desvio de finalidade. Prova segura de que a sociedade, cujo objeto social era a revenda de combustíveis, comercializava produtos adulterados. Denúncia do Ministério Público contra o administrador pela prática de crime contra a ordem econômica, além de cassação da inscrição da sociedade do cadastro de contribuintes de ICMS. Desconsideração da personalidade jurídica da sociedade mantida. Pedido subsidiário de preservação da metade ideal da esposa do sócio administrador rejeitado, em face de ser ela sócia e administradora da sociedade falida. Agravo desprovido.”[46]
Observe-se que, desconsiderada a personalidade jurídica, o sócio não passará, em razão disso, a ostentar a condição de falido. Tal situação, como se infere do art. 81 da LRF, somente se aplica aos sócios de responsabilidade ilimitada. Neste sentido:
“Falência do Banco Santos S/A – Extensão da falência à pessoa natural de Edemar Cid Ferreira, controlador de fato – Inadmissibilidade – A lei só autoriza que seja declarado falido o sócio ilimitadamente responsável, o que ocorre nos casos raros de sociedades em nome coletivo e comandita simples (artigo 81 da Lei n.º 11.101/2005) – Nos casos de sociedades outras, como a sociedade anônima, a responsabilidade dos controladores e dos administradores será apurada na forma da lei (artigo 82 da Lei n.º 11.101/2005) – Na hipótese de instituição financeira, como a dos autos, essa ação de responsabilização é a ação civil pública já em andamento, prevista na Lei n.º 6.024, de 13 de março de 1974, na qual, inclusive, foi deferida medida com caráter cautelar, autorizando a arrecadação dos bens particulares do agravado – Em qualquer hipótese de propositura de ação de responsabilização, de desconsideração da personalidade jurídica e de extensão da falência, a sua eventual procedência só pode ter conseqüências patrimoniais, ou seja, sujeitando os bens do sócio, controlador ou administrador, ao pagamento das obrigações sociais, mas não o sujeitando à condição de falido – Não se sujeita o acionista controlador de sociedade anônima à condição de falido porque continua vigorando o princípio da autonomia da pessoa jurídica – “A falência de uma sociedade empresária projeta, claro, efeitos sobre os seus sócios. Mas não são eles os falidos e, sim, ela. Recorde-se, uma vez mais, que a falência é da pessoa jurídica, e não dos seus membros” – Agravos de instrumentos interpostos pela Massa Falida e pelo Ministério Público não providos.”[47]
6. Extensão da falência a grupos de empresas, de fato ou de direito
Para finalizar o presente trabalho, resta-nos tratar do tema ligado à extensão da falência a empresas integrantes de grupo econômicos, de fato ou de direito. Embora a doutrina posicione-se no sentido de que a única hipótese de extensão da falência encontra-se prevista no art. 81 da LRF[48], o fato é que a indigitada extensão a empresas do mesmo grupo é pacificamente aceita na jurisprudência, desde que se verifique a prática de atos ilegais ou abusivos destinados a desviar o patrimônio da sociedade falida e que se observe o postulado do devido processo legal. Neste sentido vem decidindo, reiteradamente, o Superior Tribunal de Justiça:
“PROCESSO CIVIL. FALÊNCIA. EXTENSÃO DE EFEITOS. POSSIBILIDADE.PESSOAS FÍSICAS. GRUPO ECONÔMICO. DEMONSTRAÇÃO. AUSÊNCIA. CITAÇÃOPRÉVIA. NECESSIDADE.
1. Em situação na qual dois grupos econômicos, unidos em torno de umpropósito comum, promovem uma cadeia de negócios formalmente lícitosmas com intuito substancial de desviar patrimônio de empresa emsituação pré-falimentar, é necessário que o Poder Judiciário tambéminove sua atuação, no intuito de encontrar meios eficazes dereverter as manobras lesivas, punindo e responsabilizando osenvolvidos.
2. É possível ao juízo antecipar a decisão de estender os efeitos desociedade falida a empresas coligadas na hipótese em que,verificando claro conluio para prejudicar credores, há transferênciade bens para desvio patrimonial. Não há nulidade no exercíciodiferido do direito de defesa nessas hipóteses.
3. A extensão da quebra a pessoas físicas que participem dessesgrupos demanda que se demonstre a efetiva participação de cada um aquem os efeitos da falência serão estendidos.
4. Na hipótese em que as pessoas físicas se limitaram à constituiçãode uma empresa, com sua posterior transferência a sociedadesintegrantes do grupo econômico falido, sem qualquer ingerênciaposterior demonstrada, a extensão da quebra demanda prévia citação,possibilitando-se o exercício, pelos destinatários da ordem, de seudireito de defesa.
5. Recurso especial conhecido e provido.”[49]
Admitindo a extensão de que ora se trata encontra-se, também, precedente do TJSP, de relatoria do Desembargador Pereira Calças:
“Agravo de Instrumento. Pedido de falência. Requerimento de desconsideração da personalidade jurídica da ré, citada por edital, a fim de ser citada sociedade integrante do mesmo grupo econômico e composta dos mesmos sócios da devedora. Indeferimento por falta de amparo legal. O pedido de desconsideração da personalidade jurídica de sociedade empresária, com o escopo de extensão dos efeitos da falência para outra sociedade do mesmo grupo econômico, só pode ser formulado depois do decreto da quebra. Pretensão prematura. Agravo desprovido.”[50]
Observe-se que o raciocínio dá-se a contrario sensu, admitindo-se a extensão desde que: (i) já tenha sido decretada a falência de uma das empresas do grupo; (ii) estejam preentes os requisitos para a desconsideração, mormente os previstos no art. 50 do CC; (iii) reste observado o devido processo legal.
São estas, enfim, as considerações cabíveis sobre o tema nos lindes deste pequeno trabalho.
Informações Sobre o Autor
Pablo Francisco dos Santos
Procurador do Estado de São Paulo. Professor de Direito Societário na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestrando em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo