Responsabilidades no financiamento societário no Brasil

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Financiamento societário é o processo de prover a sociedade empresária do capital financeiro formado no seu ativo[1].

A economista Cláudia Zonenschain identificou o padrão de financiamento das empresas no Brasil entre os anos de 1989 a 1996, período em que ocorreram grandes transformações na economia do País, tais como a abertura comercial, liberalização cambial e establização da moeda. Dentre os resultados, verificou-se (i) a grande utilização de capital próprio para financiar os investimentos; (ii) uma participação pouca expressiva de emissões dado o caráter incipiente dos mercados primário e secundário brasileiros; e (iii) a não utilização do endividamento junto ao setor bancário considerando as altas taxas cobradas.[2]

O professor José Edwaldo Tavares Borba define capital social como a cifra contábil que corresponde ao valor dos bens que os sócios transferiram ou se comprometeram à transferir à sociedade quando da subscrição de sua participação[3]. Trata-se de um valor formal e estático que, salvo em razão de um aumento ou redução deliberados em assembléia ou reunião de sócios, permanece inalterável durante toda a vida da sociedade.  Não se modifica em razão da real situação financeira da empresa. Diferencia-se, portanto, do conceito de patrimônio, que é o conjunto de valores de que a sociedade dispõe, incluindo os ativos (dinheiro, créditos etc) e os passivos (impostos, títulos a pagar etc). Este, por sua vez, é um valor real e dinâmico, que varia de acordo com o sucesso ou insucesso da sociedade.[4]

No início de suas atividades, o patrimônio da sociedade se equivale ao capital social.  Com o decorrer da empresa, se o patrimônio líquido exceder o capital, logo a sociedade acumulará lucros que poderão ser distribuídos aos sócios ou conservados na conta de reserva ou lucros acumulados. Por outro lado, caso o patrimônio líquido seja inferior ao capital em virtude de prejuízos, não se poderá efetuar qualquer distribuição de lucros aos sócios. Nesta hipótese, ainda que o patrimônio líquido seja reduzido a nada, o capital social continuará o mesmo, conforme consta do contrato social da sociedade.

O capital social é formado, em seu momento incial e sempre que necessário, pelo valor financeiro oriundo de patrimônios diversos do da sociedade, aplicado pelos sócios em prol da atividade empresarial. Já o reinvestimento do lucro é modalidade de autofinanciamento das sociedades empresárias, que pode ou não ser atrelado ao aumento do capital social[5].

Como exemplo de outras fontes externas de capital próprio, além do reinvestimento do lucro, temos os subscritores de ações ou quotas e demais pessoas que contribuem com doações ou concedem subvenções para investimento. 

Caso no decorrer das atividades empresariais se faça necessário o aporte de novos recursos, a sociedade poderá recorrer aos próprios sócios, os quais poderão ampliar a sua contribuição para o desenvolvimento da empresa e, conseqüentemente, se apropriar de um maior número ou um percentual maior de participação na sociedade.

A sociedade empresária não tem o dever de restituir ou remunerar as contribuições dos sócios feitas a título de capital, embora possa fazê-lo, desde que atendidos certos pressupostos econômicos e jurídicos.  O sócio tem o retorno do seu investimento atrelado ao sucesso ou insucesso da empresa, pela distribuição dos lucros e resultados.

Nessa esteira, a função do capital social é assegurar à sociedade os instrumentos para a realização do seu fim, e serve como referência de sua força econômica. Um capital social elevado sugere, a princípio, a solidez de uma empresa, em razão dos recursos ali aportados, os quais seriam suficientes ao atendimento de suas necessidades. Por isso, muitos doutrinadores entendem que a sua função é também dar eficácia à responsabilidade patrimonial da sociedade como pessoa distinta dos seus sócios. Nesse caso, o regime do capital social ganharia maior importância nas sociedades de responsabilidade limitada, uma vez que os credores sociais dependeriam da sua efetividade para garantir os seus interesses[6] e os administradores poderiam tentar pagar com os bens sociais, o que os sócios teriam capitalizado.[7]

Sendo assim, a análise das demonstrações financeiras e acuidade das informações nelas constantes assumem relevante importância para o credor de uma sociedade. Mas não há como negar que muitas vezes tal aferição é de difícil prática, enquanto o montante do capital social pode ser facilmente obtido com a verificação do contrato social, que se encontra registrado na Junta Comercial compete.

Nessa esteira, cumpre observar as diferenças entre capital subscrito e capital integralizado. O primeiro significa o montante de recursos que serão aportados pelos sócios a título de capitalização. O segundo corresponde aos recursos já transferidos para o patrimônio da sociedade.

Essa diferença assume importância pelo fato de ser comum em sociedades que a integralização – total ou parcial – do capital pelos sócios se dê em momento distinto da sua subscrição. Geralmente, o cronograma de aportes segue, de forma escalonada, o desenvolvimento das atividades da empresa, já que não é interesse dos sócios que os recursos fiquem “parados” na sociedade.

Nas sociedades anônimas, a integralização por dinheiro é a mais freqüente e está consubstanciada na assinatura do boletim de subscrição e no pagamento, em moeda corrente do País, das ações subscritas pelo acionista, de acordo com os valores e prazos previstos no referido boletim.[8]

Ao contrário do que acontece nas limitadas, onde muitos defendem que os bens transferidos devem ser de utilidade para o objeto social, nas sociedades anônimas quaisquer bens suscetíveis à avaliação em pecúnia podem servir à formação do capital. Para tanto, na companhia, os procedimentos societários descritos no Art. 8º da Lei das Sociedades Anônimas deverão ser observados. Também para as sociedades anônimas, aprovada a contribuição com bens pela assembléia, a transferência deverá ser averbada nos registros competentes, sendo para imóveis o Registro Geral de Imóveis, para marcas, o INPI, etc. Impende observar que os avaliadores e o subscritor responderão perante a companhia, os acionistas e terceiros pelos danos que lhes causarem por culpa ou dolo na avaliação dos bens, sem prejuízo da responsabilidade penal em que tenham incorrido.[9]

Para os subscritores, a Lei[10] fez questão de esclarecer que a sua responsabilidade é idêntica a de um vendedor, estando eles sujeitos as obrigações previstas no Código Civil, incluindo a responsabilidade pela evicção dos bens e vícios ocultos (rebiditórios).

Cumpre ressaltar que, segundo o Art. 117, letra “h”, da LSA, a transferência de bens estranhos ao objeto social da companhia pelo acionista controlador é modalidade de exercício abusivo de poder.

Apesar da regra geral forçada no artigo 108 do Código Civil[11], a escritura pública não será necessária para formalizar esse tipo de transferência de bens imóveis – do sócio para a sociedade –, vez que há previsão expressa em legislação especial. Trata-se da lei  6015/73 que regula os registros públicos, que em seu artigo 167, I, nº 32[12] afasta a necessidade de escritura pública para esse fim. É título hábil para o registro o instrumento particular que formalize a integralização do bem à sociedade. É necessário, porém, a descrição específica dos bens que serão integralizados, em atenção ao princípio da especialidade. Ressaltamos ainda que à tal transferência não há a incidência do ITBI (imposto de transmissão de bens imóveis), por força dos artigos 36 e 37 do Código Tributário Nacional.

A Lei das Sociedades Anônimas permite, nos termos do seu Artigo 10, parágrafo único, a contribuição mediante a cessão de créditos do subscritor para a companhia. Nessa outra modalidade de integralização de capital facultada aos acionistas, esses responderão não apenas pela solvência do crédito, mas pela solvência do próprio devedor.[13] Mesma referência se faz no artigo 1005 do Código Civil, aplicado às sociedades limitadas.

A responsabilidade dos sócios, nesse caso, seria subsidiária e não solidária, devendo a sociedade, primeiramente, executar o devedor.  Provada a sua insolvência, poderia exigir o pagamento do subscritor no valor atribuído ao crédito no tempo da conferência do bem ao capital.[14]

Ainda, convém notar que o subscritor não estará responsável pela solvência de quaisquer créditos que venham a ser transferidos para a sociedade a título de capital.  Deve-se excluir dessa responsabilidade a conferência de bens que, em razão de sua natureza ou forma de emissão, não se pode atribuir responsabilidade aos subscritores.  Exemplo disso, são os títulos de crédito negociados em massa, tal como títulos da dívida pública.[15]

Quanto a contribuição em serviços, para as sociedades limitadas existe vedação expressa. Importante salientar que, nas sociedades simples, a regra é que os serviços prestados devem ser afetos à atividade empresarial. Não podem, salvo convenção expressa em contrário, ser empregados em atividades estranhas à empresa.

A contribuição em serviços nas sociedades anônimas enfrenta muita polêmica. A doutrina não é pacífica em relação a essa forma de integralização do capital, mas o certo é que a maioria dos estudiosos entendem não ser possível esse tipo de contribuição para o capital social. Parte desses entendem não ser possível alegando que esta forma de integralização seria própria das sociedades contratuais, onde existe a affectio societatis. No entanto, a maior parte entende que a contribuição dos sócios em serviços, ou seja, em trabalho pessoal – atividade profissional ou conhecimentos técnicos – não é permitida nas sociedades anônimas por se tratar de um “valor insuscetível de incorporação definitiva no capital de uma sociedade”[16].

Apesar de encontrarmos algumas exceções[17], podemos afirmar que não há no direito pátrio um controle efetivo da realidade do capital social, que pudesse obrigar os sócios de uma sociedade a recapitalizarem a empresa sempre que o risco fosse aumentado.

O professor Fran Martins[18] defende que a lei, ao estabelecer que os sócios são responsáveis pelo montante do capital social, estaria exigindo dos sócios uma obrigação de recapitalizar a empresa sempre que o seu capital social seja insuficiente para pagar os compromissos assumidos pela sociedade. Nesse passo, defendem alguns autores que seria caso de desconsideração da personalidade jurídica a subcapitalização de sociedades, que se manifesta quando o seu capital é evidentemente insuficiente para o exercício da atividade empresarial.

Fica claro que a sociedade poderá optar por estabelecer uma razão de capital e dívida (equity/debt) para o desenvolvimento da atividade empresarial a que se propõe. Caso os recursos a título de empréstimo tenham sido captados de terceiros,  os sócios sujeitos não estariam sujeitos a qualquer responsabilidade se a sociedade vir a falir.

De outro lado, se os próprios quotistas ou acionistas tivessem contribuído com tal empréstimo, estaria configurado uma hipótese de subcapitalização, cuja responsabilidade dos sócios deveria ser averiguada em concreto.

Em conclusão, no Brasil, o acionista ou quotista não responde pela subcapitalização da sociedade, já que a sua responsabilidade está limitada ao capital social ou ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas, respectivamente. Além disso, não há também no direito pátrio qualquer restrição a contribuições dos sócios mediante empréstimo.

 

Referências
Batalha, Wilson de Souza Campos. Sociedades Anônimas e Mercado de Capitais. Rio de Janeiro: Forense, 1973, 1ª edição, volumes I e II.
Borba, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, 9ª edição.
Carvalhosa, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas.  São Paulo: Saraiva, 2004, Volume 1.
Coelho, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, Volume 2. São Paulo: Saraiva, 2005.
Comparato, Fábio Konder e Salomão Filho, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
MARTINS, Fran. Curso de Direito Comercial. Rio de Janeiro: Forense, 1991
Pedreira, José Luiz Bulhões Pedreira. “Noções de Economia e Finanças para Advogados”. In Instituto de Estudos de Direito da Economia – IEDE. Rio de Janeiro: IEDE, 1983.
Zonenschain, Claudia Nessi. Estrutura de capital das empresas no Brasil. Rio de Janeiro: s.ed, 1998.
 
Notas:
[1] Pedreira, José Luiz Bulhões Pedreira. Finanças e Demonstrações Financeiras da Companhia. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 385.

[2] Zonenschain, Claudia Nessi. Estrutura de capital das empresas no Brasil. Rio de Janeiro: s.ed, 1998, p.5.

[3] Borba, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, 9ª edição, p. 63.

[4] Idem.

[5] Carvalhosa, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas.  São Paulo: Saraiva, 2004, Volume 1, p. 92.

[6] Segundo Coelho, “no direito inglês a doctrine of capital maintenance defende que o capital das sociedades serve como um fundo de garantia aos credores”.

[7] Lamy Filho, Alfredo.  “Capital Social. Conceito. Atributos. A Alteração introduzida pela Lei 9.457/97. O Capital social no sistema jurídico americano.  In Revista Forense, Vol 346. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p.3.

[8] Existem sociedades para as quais, em virtude do seu objeto social, lei especial exige que o seu capital seja formado apenas por dinheiro (e.g. instituições financeiras em geral), sendo expressamente vedada a contribuição em bens.

[9] Cf. Art. 8, § 6º, LSA.

[10] Art. 10, caput, LSA. “A responsabilidade civil dos subscritores ou acionistas que contribuírem com bens para a formação do capital social será idêntica à do vendedor. (…)”

[11] Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.

[12]  Art. 167 – No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos.  (Renumerado do art. 168 com nova redação pela Lei nº 6.216, de 1975).
I – o registro: (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1975).
32) da transferência, de imóvel a sociedade, quando integrar quota social;

[13] Por seu turno, o Código Civil Brasileiro estabelece, em seu Art. 295, que o cedente se responsabiliza pela existência do crédito no momento em que lhe cedeu.

[14] Carvalhosa, Modesto. Ob.cit., p. 126.

[15] Idem.

[16] Valverde, Trajano de Miranda. Sociedade Por Ações. Rio de Janeiro: Forense, 1959, Volume 1, p. 98.

[17] Seria o caso das companhias seguradoras que tem de manter determinada reserva técnica de acordo com os riscos segurados e com as estatísticas que permitem um cálculo probabilístico da ocorrência de sinistros.

[18] Martins, Fran. Curso de Direito Comercial. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p.304. Apud. Pantoja, Teresa Cristina G. Ob.cit., p. 95.


Informações Sobre o Autor

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Guilherme Barbosa Franco Pedreschi

Advogado da Caixa Econômica Federal


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